Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11260/2005-7
Relator: ARNALDO SILVA
Descritores: ACÇÃO POPULAR
LEGITIMIDADE
NULIDADE
PROPRIEDADE HORIZONTAL
AMBIENTE
INTERESSES DIFUSOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: 1. O direito de acção popular, como direito fundamental, visa a protecção dos interesses difusos. A defesa destes interesses, é concedida aos cidadãos uti cives e não uti singuli, precisamente porque são interesses de toda a comunidade, e, por isso, os cidadãos uti cives têm o direito de promover a defesa de tais interesses, individual ou associativamente.
2. O art.º 52º, n.º 3 da C.R.P. alarga a legitimidade activa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua posição específica com os bens ou interesses em causa. E, de uma forma exemplificativa, enumera os seguintes interesses difusos susceptíveis de tutela: a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural.
3. A Lei n.º 83/95 de 31-08 (lei do direito de participação procedimental e de acção popular) veio regulamentar a acção popular especial para a tutela dos interesses difusos, e possibilitar que fossem interpostas acções no âmbito do contencioso administrativo, na jurisdição civil (cf. art.º 12º) e permitir a intervenção especial no processo penal.
4. O art.º 26º-A do Cód. Proc. Civil (na redacção do Dec. Lei n.º 180/96, de 25-09) deve ser articulado com o regime estabelecido na Lei n.º 83/95, de 31-08. O art.º 26º-A do Cód. Proc. Civil trata da legitimidade difusa. E os critérios desta legitimidade são diferentes dos previstos no art.º 26º do Cód. Proc. Civil. Segundo o art.º 26º-A do Cód. Proc. Civil, a acção popular tem cabimento quando estejam em causa interesses ligados à saúde pública, ao ambiente, à qualidade de vida, à protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público (art.º 1º da Lei n.º 85/93). E a legitimidade para estas acções é conferida aos titulares referidos no art.º 2º e ao Ministério Público, nos termos estabelecidos no art.º 16º da Lei n.º 83/95.
5. As associações de defesa do ambiente (cf. art.º 2º, n.º 1 da LADA – Lei de Defesa do Ambiente – Lei n.º 10/87, 04-04) têm legitimidade activa para propor acções necessárias à preservação ou cessação de actos e omissões de entidades públicas ou privadas que constituam factor de degradação do ambiente.
6. A noção de ambiente é uma noção ampla. Ela não se restringe aos elementos naturais, antes abarca outros factores económicos culturais e sociais. Ambiente é tudo aquilo que nos rodeia e que influencia, directa e indirectamente, a nossa qualidade de vida e dos seres vivos que constituem a biosfera. A al. a) do n.º 2 do art.º 2º da LADA adopta esta noção ampla de ambiente.
7. O PDM é um instrumento de planeamento territorial, e de política ambiental, e no território que ordena, visa a existência de um ambiente propício à saúde e bem-estar das pessoas e o desenvolvimento cultural das comunidades, a melhoria da sua qualidade de vida, e a correcta expansão das áreas urbanas. E as normas do RGEU (Regulamento Geral da Edificações Urbanas - aprovado pelo Dec. Lei n.º 38.382, de 07-08-1951), para além da sua função directiva, visam tornar os núcleos urbanos mais atraentes, mais saudáveis e com melhor qualidade de vida.
8. Violando uma escritura pública de constituição de propriedade horizontal diversas normas do RGEU e do PDM da cidade de Lisboa, tem a associação do ambiente autora legitimidade activa para propor um acção popular contra os réus __ o que declarou sujeitar determinado prédio ao regime de propriedade horizontal e o notário que lavrou a respectiva escritura __ a pedir que seja declarada parcialmente nula essa escritura de propriedade horizontal.

(AS)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes, em conferência, na 7.ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:

1. Associação de Moradores e Amigos da Freguesia de S. Francisco Xavier/Lisboa […] intentou contra A. […] SA, […] e contra N. […] Notária […]acção declarativa comum com forma ordinária.  

Pede que seja declarada parcialmente nula a escritura de propriedade horizontal identificada na petição inicial __ lavrada no dia 29-05-2002 no […] Cartório Notarial de Lisboa […] respeitante ao prédio urbano sito em […] Lisboa […] e pertencente A.[…] SA por falta de requisitos legalmente exigidos e a sujeição das edificações […] (Casa da Quinta) e […] (edifício de escritórios) ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada condómino da quota que lhe tiver sido fixada nos termos da mesma escritura.

Para o efeito alega, em síntese, que é uma associação que tem por fim a promoção e defesa da qualidade de vida, ambiente, urbanismo, cultura, tempos livres e património na área geográfica da Freguesia de S. Francisco Xavier, em Lisboa, especialmente do património edificado e da área florestal de Monsanto, e que o imóvel a que se refere a aludida escritura de propriedade horizontal não foi construído de harmonia com o projecto de construção […] aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa, […] nem foi construído de acordo com a licença de construção […] emitida pela dita CML, […] porquanto, no projecto de construção que integrou processo camarário […] as fracções […] e[…] correspondem, respectivamente, à Casa da Quinta e Terrenos Anexos, e a um Edifício de Apoio às Actividades Agrícolas, e na citada escritura estas fracções passaram, respectivamente, a “Casa da Quinta” e “edifício de escritórios”, ambas destinadas a transmissão. Na véspera da dita escritura a ré A.[…] requereu à CML a alteração da designação destas duas fracções __ o que implicava consequentemente a alteração dos respectivos usos __, tendo esta pretensão sido indeferido pela CML em data posterior à da aludida escritura, e determinado o embargo destas duas fracções. A actuação das rés é ilegal por violar normas gerais pertinentes à propriedade horizontal e normas especiais relativas à certeza e à segurança jurídica próprias do Notariado Latino, e que os senhores notários devem observar.
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2. As rés A. […] SA e notária contestaram separadamente. A primeira impugnou os factos articulados pela autora, concluindo pela sua absolvição do pedido, ou, se assim se não entender, que os efeitos da nulidade eventualmente declarada sejam limitados à fixação do fim a que se destinam as fracções […] e […].

A segunda arguiu a excepção dilatória da sua ilegitimidade, alegando que o notário é um funcionário público, servidor do Estado, e que a ré notária não é parte no acto que o autor submeteu a juízo, só podendo o Estado ser demandado judicialmente. No mais impugnou também os factos articulados pela autora; concluindo pela procedência da excepção dilatória da sua ilegitimidade, e pela sua absolvição da instância, e pela improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.
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3. A autora respondeu às contestações.
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4. Por despacho de fls. 189, o Ministério Público foi ouvido, nos termos do art.º 13º da Lei 83/95, de 31-08, tendo em vista a possibilidade de indeferimento liminar da acção.

Na sua vista (fls. 190), o Ministério Público foi de parecer que a acção deveria prosseguir os seus termos, por não se afigurar ser manifestamente inviável.
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5. Por despacho de fls. 191 a 193, foi a petição liminarmente indeferida e a autora condenada em custas em 1/2 das correspondentes ao valor da causa, com a legal redução da taxa de justiça [art.º 14º, n.º 1 al. b) do CCJ], com fundamento em que a presente acção está sujeita a apreciação liminar, nos termos do art.º 13º da Lei 83/95, de 31-08, e que, não obstante a citação das rés, tal apreciação não se pode ter por precludida, e porque a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal não pode ser declarada ex officio pelo tribunal a pedido de outros interessados que não os indicados no n.º 2 do art.º 1416º do Cód. Civil, e a autora não alegou ser condómina, e porque a extensão da legitimidade referida no art.º 2º da Lei 83/95 tem de ser conexionada com o âmbito da própria lei definido no seu art.º 1º, não cabendo a declaração de nulidade parcial do título constitutivo na esfera dos interesses passíveis de participação procedimental.
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5. Inconformada com este despacho, agravou a autora. Nas suas alegações, em síntese nossa, conclui:

1.º Com a presente acção, apresentada ao abrigo da Lei n.º 83/5, de 31-08 (Direito de participação popular e da acção procedimental), a autora pretende proteger o ambiente o ambiente e a qualidade de vida pertinentes à Quinta de Santo António, em Caselas, em particular, e da freguesia de S. Francisco Xavier em geral, e acima de tudo fazer cumprir o PDM de Lisboa, aprovado pela Resolução do Concelho de Ministros n.º 94/94, publicado no DR I Série B, de 29-09, a fls. 5916 e segs.;

2.º A autora tem por fim a promoção e defesa da qualidade de vida, ambiente, urbanismo, cultura, tempos livres e património na área geográfica da freguesia de S. Francisco Xavier, em Lisboa, especialmente o património edificado e da área florestal de Monsanto (art.º 3º do seus Estatutos) e não exerce qualquer tipo de actividade de natureza lucrativa, ou em concorrência com outras empresas ou profissionais liberais, e com total independência do Estado, autarquias locais, partidos políticos ou outras organizações económicas , patronais ou sindicais (art.º 2º dos seus Estatutos);

3.º Para a prossecução dos seus fins, a autora deve promover acções de defesa referidas na conclusão 2.ª, bem como exercitar quaisquer diligências em direito permitidas que se afigurem adequadas à prossecução daqueles fins, e nomeadamente, ao exercício de direitos reconhecidos pela Lei de Bases do Ambiente, a instauração de acções populares, ou em geral quaisquer acções, interpor recursos graciosos ou contenciosos, de natureza preventiva ou outros (art.º 4º dos seus Estatutos);

4.º Por via da presente acção, a autora pretende ver declarada nula determinadas cláusulas do título constitutivo da propriedade horizontal de um prédio, por as mesmas violarem o PDM de Lisboa e o licenciamento camarário, uma vez que dão destino diverso daquele que lhes é dado pelo PDM e licenciamento camarário, os quais não permitem a constituição do espaço em questão (as fracções designadas pelas letras […] e […] como fracção e determinam a afectação do mesmo como casa da quinta, suas serventias e edifício de apoio às actividades agrícolas, tudo no âmbito de uma quinta histórica da cidade de Lisboa;

5.º Donde é manifesta a legitimidade da autora.
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6. As rés contra-alegaram.

6.1. Nas suas contra-alegações, a ré A. […] conclui:

1.º A apelante carece de legitimidade à luz do previsto no n.º 2 do art.º 1416° do Cód. Civil para intentar a presente acção;

2.º Porquanto não é condómino nem está investido nos poderes cometidos ao Ministério Público;

3.º Sendo essa a posição dominante da jurisprudência;

4.º Os fins estatutários cometidos à apelante nunca caberiam no objecto do pedido;

5.º O fim visado pela apelante é anular parcialmente a constituição de propriedade horizontal relativamente a duas fracções que foram executadas em conformidade com o segundo projecto;

6.º Por carecer de legitimidade a questão de afectação do fim  das duas fracções é matéria que nunca podia ser discutida pela presente via;

7.º A tutela visada pela autora não cabe na esfera dos interesses passíveis de participação procedimental e acção popular;

8.º Não sendo verdade que o art.º 1416º do Cód. Civil  tenha sido alterado pelo Dec. Lei n.º 180/96 (1), de 25-09;

9.º A decisão impugnada aplicou correctamente o direito;

10.º Pelo que não merecendo qualquer censura, deve ser mantida nos seus precisos termos.
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6.2. Nas suas contra-alegações, a ré […] bate-se pela improcedência do recurso.
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7. O Tribunal manteve o despacho recorrido.
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8. As questões essenciais a decidir:

Na perspectiva da delimitação pelo recorrente (2), os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º, n.º 1 e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil) (3), salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil), exceptuando-se do seu âmbito a apreciação das questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (n.º 2 1.ª parte do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).

Atento o exposto e o que flui das conclusões das alegações (4) __ e só se devem conhecer as questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas (5) __, da autora agravante supra descritas em I. 5., a única questão essencial a decidir é a autora é ou não parte legítima.
Colhidos o vistos legais, cumpre decidir.
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II. Fundamentos:

A) De facto:

A matéria de facto a ter em conta é supra descrita em I. 1. e  I. 5..
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1. A legitimidade da autora:

Nos termos do n.º 3 do art.º 52º da C.R.P., na redacção da Lei Constitucional n.º 1/89, de 08-07, « é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização (...) ». O direito de acção popular, como direito fundamental, aqui consagrado, visa a defesa dos interesses difusos (6), isto é, de interesses cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma comunidade ou grupo, mas que não é susceptível de apropriação individual por qualquer um desses. A defesa destes interesses é concedida aos cidadãos uti cives e não uti singuli, precisamente porque são interesses de toda a comunidade, e, por isso mesmo, os cidadãos uti cives têm o direito de promover (7), a defesa de tais interesses (8), individual ou associativamente. A lei constitucional alarga aqui a legitimidade activa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua posição específica com os bens ou interesses em causa (9). Os interesses difusos susceptíveis de tutela são aqui, numa enumeração de forma exemplificativa, a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural [al. a) do n.º 3 do art.º 52º]. E a sua tutela enquadra-se na garantia constitucional estabelecida no art.º 20º da C.R.P..

A legitimatio ad causam e ad processum das associações está constitucionalmente condicionada pela exigência de elas terem como escopo a « defesa dos interesses em causa ». O que implica não só a aplicação do princípio da especialidade, mas também a existência de uma certa conexão entre os efeitos dos actos ou situações que se pretendem prevenir ou fazer cessar e os fim estatutário da associação em causa (10).

A Lei n.º 83/95 de 31-08 (lei do direito de participação procedimental e de acção popular) veio colmatar a situação de inconstitucionalidade por omissão que se estava a verificar (11), e regulamentar a acção popular especial para a tutela dos interesses difusos, e possibilitar que fossem interpostas acções no âmbito do contencioso administrativo, na jurisdição civil (cfr. art.º 12º) e permitir a intervenção especial no processo penal. O art.º 26º-A do Cód. Proc. Civil, na redacção do Dec. Lei n.º 180/96, de 25-09, deve ser articulado com o regime estabelecido na Lei n.º 83/95, de 31-08 (lei do direito de participação procedimental e de acção popular) e com a LBA (Lei de Bases do Ambiente – Lei n.º 11/87, de 07-04). Nos termos do art.º 26º-A do Cód. Proc. Civil, « têm legitimidade para propor e intervir nas acções e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à promoção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei ». Trata-se, pois, de uma legitimidade fundada, não segundo os critérios previstos no art.º 26º do Cód. Proc. Civil, mas sim de uma legitimidade difusa (121) __ distinta quer da legitimidade individual do sujeito, quer do Ministério Público ou órgão equivalente __, tendo em vista o exercício do direito de acção popular, previsto no art.º 52º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil e regulada na Lei 83/95.

Atento o disposto no art.º 26º-A do Cód. Proc. Civil e art.º 2º, n.º 1 da Lei n.º 83/95, a acção popular tem cabimento quando estejam em causa interesses ligados à saúde pública, ao ambiente, à qualidade de vida, à protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público (art.º 1º da Lei n.º 85/93). E a legitimidade para estas acções é conferida a qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, às associações e fundações defensoras dos interesses que fundamentam a dita acção popular, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda, às autarquias locais, relativamente aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição (art.º 2º da Lei n.º 83/95), e ao Ministério Público, nos termos estabelecidos no art.º 16º da Lei n.º 83/95.

As associações de defesa do ambiente são associações dotadas de personalidade jurídica constituídas nos termos da lei geral, que não tenham por fim o lucro económico dos seus associados, e sejam constituídas exclusivamente para a defesa do ambiente, do património natural e construído, conservação da natureza e promoção da qualidade de vida, n.º 1 do art.º 2º da LADA (Lei de Defesa do Ambiente – Lei n.º 10/87, de 04-04). Estas associações têm legitimidade para propor acções necessárias à prevenção ou cessação de actos de actos e omissões de entidades públicas ou privadas que constituam factor de degradação do ambiente [art.º 7º, n.º 1 al. a da LADA].

A noção de ambiente (13) é claramente uma noção ampla, que não se restringe aos elementos naturais, abarcando antes os factores económicos culturais e sociais. O ambiente é tudo aquilo que nos rodeia (14) e que influencia, directa ou indirectamente a nossa qualidade de vida e dos seres vivos que constituem a biosfera (15). E é esta noção que a al. a) do n.º 2 do art.º da LADA adopta. E nos termos da al. b) do n.º 2 do art.º da LADA, a expressão « ordenamento do território » é o processo integrado da organização do espaço biofísico, tendo como objectivo o uso e a transformação do território, de acordo com as suas capacidades e vocações, e a permanência dos valores de equilíbrio biológico e da estabilidade geológica, numa perspectiva de aumento da sua capacidade de suporte de vida. O ordenamento do território, é assim um processo dinâmico evolutivo integrado, um quadro de referência, que define restrições, vocações e capacidades para a utilização, ocupação e transformação do território, numa perspectiva de aumento da sua capacidade de suporte de vida (16). Nos termos da al. a) do art.º 4º da LADA a existência de um ambiente sadio propício à saúde e bem-estar das pessoas e ao desenvolvimento cultural das comunidades, bem como à melhoria da qualidade de vida, pressupõe a adopção de medidas que visem o desenvolvimento económico e social auto-sustentado e a expansão correcta das áreas urbanas, através do ordenamento do território. O ordenamento do território aparece assim, como um instrumento de desenvolvimento económico-social e da correcta expansão das áreas urbanas (17). Nos termos do art.º 27º, n.º1 da LADA, são instrumentos de política de ambiente e do ordenamento do território, entre outras, o ordenamento integrado do território a nível regional e municipal [al. a) do n.º 1 do mesmo artigo], os planos regionais de ordenamento do território, os planos directores municipais e outros instrumentos de intervenção urbanística [al. e) do n.º 1 do mesmo artigo], e o licenciamento prévio de todas as actividades potencial e efectivamente poluidoras ou capazes de afectarem a paisagem. Nos termos do art.º 40º, n.º 4 da LBA, os cidadãos directamente ameaçados ou lesados no seu direito a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado podem pedir, nos termos gerais de direito, a cessação das causas de violação e a respectiva indemnização (18).

As normas do RGEU (Regulamento Geral das Edificações Urbanas – aprovado pelo Dec. Lei n.º 38.382, de 07-08-1951) têm uma função directiva e disciplinadora e visam tornar os núcleos urbanos mais atraentes, mais sólidos, mais salubres, submetendo as edificações a licenciamento e fiscalização municipal, por forma a atingir tais objectivos. Por razões de natureza técnico-jurídica, o RGEU submete a construção dos edifícios à prévia obtenção de licença pelas Câmaras Municipais, e determina que, nos projectos de construção e reconstrução ou ampliação das construções existentes sejam sempre indicados o destino da edificação e a utilização prevista para as diferentes compartimentos (art.ºs 1º a 6º). Nos termos dos art.ºs 294º e 292º do Cód. Civil, a escritura de constituição da propriedade horizontal (estatuto jurídico-real do condomínio) pode ser nula, ou parcialmente nula, se houver desconformidade entre o teor desta e o projecto aprovado pela Câmara Municipal, por violação das disposições de carácter imperativo decorrentes do preceituado no art.º 6º do RGEU ou do que se dispõe no PDM, ou seja, deste instrumento de planeamento territorial, e de política ambiental, tendo em vista a existência de um ambiente sadio propício à saúde e bem-estar das pessoas e ao desenvolvimento cultural das comunidades, bem como à melhoria da qualidade de vida, pela expansão correcta das áreas urbanas, através do ordenamento do território.

Alegando a autora é uma associação que tem por fim a promoção e defesa da qualidade de vida, ambiente, urbanismo, cultura, tempos livres e património na área geográfica da Freguesia de S. Francisco Xavier, em Lisboa, especialmente do património edificado e da área florestal de Monsanto, e que o imóvel a que se refere a aludida escritura de propriedade horizontal não foi construído de harmonia com o projecto de construção […] aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa, […] nem foi construído de acordo com a licença de construção […] emitida pela dita CML […] porquanto, no projecto de construção que integrou processo camarário […] as fracções […] e […] correspondem, respectivamente, à Casa da Quinta e Terrenos Anexos, e a um Edifício de Apoio às Actividades Agrícolas, e na citada escritura estas fracções passaram, respectivamente, a “Casa da Quinta” e “edifício de escritórios”, ambas destinadas a transmissão, e que pretende ver declarada parcialmente nula a escritura de propriedade horizontal relativa a tal imóvel, por desconformidade entre esta e o projecto de construção aprovada pela CM de Lisboa, com vista a fazer cumprir o PDM da cidade de Lisboa, é de concluir, face a tudo o que foi dito, que com tudo isto, a autora pretende que se cumpram as normas do RGEU que visam, na sua função directiva, tornar os núcleos urbanos mais atraentes, mais salubres, isto é, mais saudáveis e com melhor qualidade de vida, e pretende que se cumpram as disposições do PDM de Lisboa, instrumento de planeamento territorial, e de política ambiental, com vista à existência, na sua freguesia de um ambiente sadio propício à saúde e bem-estar das pessoas e ao desenvolvimento cultural das comunidades, bem como à melhoria da qualidade de vida, pela expansão correcta das áreas urbanas, através do ordenamento do território. Ou seja, numa palavra, a autora pretende, com o cumprimento das normas do RGEU e com o cumprimento das disposições do PDM,  proteger o ambiente. Ambiente que é uma noção ampla, como ficou dito.  

E se é isto, a autora tem, pois, legitimidade activa (legitimidade difusa) para propor a presente acção popular que tem por objecto o pedido supra descrito em I. 1., __, porque, não obstante a autora não ser condómina (art.º 1416º, n.º 2 do Cód. Civil), e se bem que não tenha um interesse individual na declaração parcial da nulidade da escritura de constituição do citado imóvel, a lei (art.º 26º-A do Cód. Proc. Civil) confere-lhe a faculdade para dar início a esta acção, uma vez que se está perante a defesa de interesses difusos, não se estando assim perante um caso de legitimidade individual referida aos interesses pessoais da autora, de uma legitimidade segundo os critérios previstos no art.º 26º do Cód. Proc. Civil, mas sim ante uma legitimidade activa difusa para propor a presente acção popular especial para a protecção de interesses difusos, nos termos do art.º 26º-A do Cód. Proc. Civil.

Assim sendo, não pode manter-se o despacho recorrido __ que, com o devido respeito, foi erradamente proferido como sendo de indeferimento liminar. Este despacho nunca poderia ser de indeferimento liminar, porque o processo já tinha ultrapassado o momento do despacho liminar. Daqui a impossibilidade lógica de o indeferimento liminar. O que o Mm.º Juiz poderia ter feito era, no despacho saneador, julgar a autora parte ilegítima (muito embora a autora seja parte legítima, como se viu) e de absolver as rés da instância, nos termos dos art.ºs 510º, n.º 1 al. a); 494º al. e) e 288º, n.º 1 al. d) do Cód. Proc. Civil. O facto de o Mm.º Juiz não ter indeferido liminarmente a petição inicial (não importa agora se por razões imputáveis à secretaria e/ou ao Mm.º Juiz), quando podia e devia fazê-lo não o impedia de absolver posteriormente as rés da instância, no despacho saneador, porque o facto de o não ter feito só poderia significar que, no momento em que proferiu o despacho liminar (ou em que deveria proferi-lo, se a acção tivesse tido uma tramitação correcta de harmonia com a lei), não se apercebeu do vício ou este não lhe saltou à vista (19).
Procede, pois, o recurso.
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III. Decisão:

Assim e pelo exposto, acordam em julgar procedente o agravo interposto pela  autora e, consequentemente, dando provimento ao agravo, revogam o despacho recorrido, e julgam agora a autora parte legítima.

Sem custas.

Registe e Notifique (art.º 157º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil).
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Data do acórdão: 20-06-2006.

Adjuntos:
Graça Amaral
Orlando Nascimento



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(1).-A ré escreveu Dec. Lei n.º 180/86, de 25-09, mas vê-se que é um manifesto lapso, como se depreende do corpo das suas contra-alegações.

(2).-O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461 e 395 e segs. Cfr. ainda, v. g., Manuel Rodrigues, Dos Recursos – 1943 (apontamentos de Adriano Borges Pires), págs. 5 e segs.; J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V (Reimpressão – 1981), págs. 305 e segs.; Castro Mendes, Direito Processual Civil – Recursos, Ed. da A.A.F.D.L. – 1980, págs. 57 e segs. e 63 e segs.; Armindo Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Ed. da A.A.F.D.L. – 1982, págs. 239 e segs.; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.

(3).-Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.

(4).-As quais terão de ser, logicamente, um resumo dos fundamentos porque se pede provimento do recurso, tendo como finalidade que elas se tornem fácil e rapidamente apreensíveis pelo tribunal. As conclusões não devem ser afirmações desgarradas de qualquer premissa, e sem qualquer referência à fundamentação por que se pede o provimento do recurso. Não podem ser consideradas conclusões as indicadas como tal, mas que sejam afirmações desgarradas sem qualquer referência à fundamentação do recurso, nem se deve tomar conhecimento de outras questões que eventualmente tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas, mas não levadas às conclusões. Por isso, só devem ser conhecidas, e só e apenas só, as questões suscitadas nas alegações e levadas às conclusões. Neste sentido, vd. Acs. do STJ de 21-10-1993 e de 12-01-1995: CJ (STJ), respectivamente, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19.

(5).-Cfr. supra nota 4.

(6).-A acção popular prevista no art.º 52º, n.º 3 da C.R.P. abrange quer o contencioso administrativo, quer o processo civil. A Lei n.º 83//95, de 31-08, surgida na sequência desta disposição constitucional, regula a acção popular no âmbito do contencioso administrativo, no âmbito da jurisdição civil e da intervenção penal. No entanto, já antes da C.R.P. de 1976, existia na nossa ordem jurídica a acção popular tradicional, que integra três casos particulares: a do art.º 822º do Cód. Adm. (que previa o recurso directo de anulação contra deliberações ilegais dos órgãos das autarquias locais), a do art.º 826º do Cód. Adm. (que previa a acção popular em matéria de contencioso eleitoral) __ artigo este que foi posteriormente substituído pelo art.º 59º da LPTA (Dec. Lei n.º 267/85, de 16-07). Hoje o contencioso eleitoral está regulado nos art.ºs 97º a 99º do CPTA __, e a do art.º 369º do Cód. Adm. (que previa a acção popular correctiva a intentar pelos cidadãos contribuintes e domiciliados com vista a reivindicar e a reaver bens ou direitos de uma autarquia local usurpados ou lesados por terceiros). Destas três só as duas primeiras pertenciam ao contencioso administrativo. A última (situada no âmbito da clássica acção popular supletiva) pertencia ao contencioso civil. A acção popular regulada pela Lei n.º 83/95 é uma acção popular especial para a tutela dos interesses difusos. Sobre a evolução histórica da acção popular vd. Nuno Sérgio Marques Antunes, O Direito de Acção Popular no Contencioso Administrativo, Lex, Lisboa – 1997, págs. 17 e segs.; e sobre esta matéria, vd. este mesmo autor, nesta obra, págs. 42 e segs. e 53 e segs. Cfr. ainda Miguel Teixeira de Sousa, « Legitimidade Processual e Acção Popular no Direito do Ambiente », in Direito do Ambiente, INA – 1994, pág. 421.

(7).-Prevê-se, assim, no direito português, quer a class action __ acção em que cada membro de um grupo de pessoas tem direito de litigar em representação de todas elas, mesmo sem obter o seu prévio conhecimento. Acção que tem particular interesse nos Estados Unidos, Rule 23 (b) das Federal Rules of Civil Procedeure, em que a legitimidade é concedida a um particular __, quer a ação associativa (organizational action), em que essa mesma legitimidade é atribuída a uma associação de defesa do respectivo interesse. Vd. Miguel Teixeira de Sousa, « Legitimidade Processual e Acção Popular no Direito do Ambiente », in Direito do Ambiente, INA – 1994, págs. 418-419.

(8).-Vd. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, C.R.P. Anot., 3.ª Ed., Coimbra Editora - 1993, págs. 281-282 Anotação X ao artigo 52º.

(9).-Vd. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, opus cit., pág. 281 Anotação IX ao artigo 52º.

(10).-Vd. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, opus cit., pág. 282 Anotação XI ao artigo 52º.

(11).-Vd. Nuno Sérgio Marques Antunes, opus cit., pág. 21.

(12).-Vd. Miguel Teixeira de Sousa, « Legitimidade Processual e Acção Popular no Direito do Ambiente », in Direito do Ambiente, INA – 1994, pág. 415.

(13).-No sentido etimológico preciso. A palavra ambiente é em português um substantivo derivado do particípio presente latino do verbo « ambio, is, ivi (ou ii), itum, ire », que significa « 1. andar em volta de; rodear; cercar; 2. procurar obter, disputar (um cargo público); pedir o voto a; solicitar; 3. ambicionar »; em italiano e em espanhol « ambiente »; em alemão « umwelt », « environment » em inglês, palavra donde derivou o termo francês « environnement », não é um conceito unívoco. M. Cortellazzo e P. Zolli, Dizionário etimologico della lingua italiana, Zanichelli, Bolonha, 1979, I, págs. 45-46, cit. apud Giovanni Cordini, « O Direito do Ambiente em Itália », tradução de Teresa Salis Gomes, Direito do Ambiente, INA (1994), págs. 203, diz que, ao que parece, o termo foi proposto em 1623 por Galileu para designar « o espaço onde se encontra uma pessoa ou um objecto ». Para Michel Prieur, Droit de L'environemment, 2e édition 1991, Dalloz - 1991, págs. 1 « “L'environnment” est un néologisme récent dans la langue française qui exprime le fait d'environner, c'est-à-dire d'entourer. Issu du substantif anglais “environnment” et de son dérivé “environmental” il fait son entrée dans le grand Larouse de la langue française en 1972: « ensemble des éléments naturels ou artificiels qui conditionnent la vie l'homme ». Édis Milaré, Curadoria do Ambiente, Edições APMP, Série - Cadernos Informativos, São Paulo, págs. 20 indica para a palavra ambiente o lugar, o sítio, o recinto, o espaço que envolve os seres vivos ou as coisas.

(14).-Cfr. supra nota 13.

(15).-Vd., v.g., João Pereira Reis, Lei de Bases do Ambiente Anot. e Comentada e Legislação Complementar, Liv. Almedina, Coimbra – 1992, pág. 25 anotação 3 ao artigo 5º.

(16).-Vd. João Pereira Reis, ibidem, pág. 25 anotação 3 ao artigo 5º.

(17).-Vd. João Pereira Reis, opus cit., pág. 17 anotação 2 ao artigo 4.

(18).-João Pereira Reis, opus cit., págs. 84-85 anotação 4 ao artigo 40º é da opinião que a lei consagra aqui um direito subjectivo ao ambiente contra a tese defendida por Colaço Antunes em A tutela dos Interesses Difusos em Direito Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra – 1989.

(19).-Neste sentido, vd. J. a. Reis, Cód. Proc. Civil, Vol. II, 3.ª Ed. (reimpressão) , Coimbra Editora, Ld.ª, Coimbra – 1981, págs. 397-398.