Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8139/2006-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: OBRAS
DEVER DE VIGILÂNCIA
DEVER DE INFORMAR
REPARAÇÕES URGENTES
DETERIORAÇÃO
ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- O inquilino tem o dever de vigiar o estado de conservação do local arrendado e de informar o senhorio para que este examine o local e proceda às reparações necessárias que sejam da sua responsabilidade (artigos 1038º,alínea d) e h) do Código Civil).
II- Se o inquilino omite tais deveres de vigilância e de informação, não pode obviamente considerar-se o locador em mora quanto à obrigação de fazer reparações no interior do local arrendado (artigo 1036.º/1 do Código Civil), responsabilizando-o pelos danos decorrentes da deterioração, designadamente da deterioração não aparente, de partes do imóvel (v.g. canalizações) que resulta da conjugação da usura do tempo com a utilização que delas faz o inquilino.
III- Há, assim, situações em que, mesmo admitindo que a obra em causa de conservação competiria ao senhorio por se estar face a uma deterioração inerente a uma prudente utilização (artigo 1043.º/1 do Código Civil e 12.º do Regime do Arrendamento Urbano), a responsabilidade acaba por recair no inquilino por ter sido ele quem, pela sua ilícita omissão, contribuiu decisivamente para um processo de crescente deterioração que desembocou no evento destrutivo, no caso, a rotura de canalização.
IV- Se o locatário verifica que no local arrendado se originam infiltrações ou humidades provenientes da canalização já gasta pela usura dos anos, não faz ele uma prudente utilização do locado se indiferentemente deixa que tais humidades e infiltrações persistam, não procedendo à reparação da canalização nem avisando o locador para que a execute ele próprio (artigo 1043.º/1 do Código Civil).
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. A Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A, subrogando-se ao seu segurado demandou F. […] Lda. pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 6.557.158$00 com juros desde a citação até integral pagamento, valor que reduziu para 3.327.158$00, por ter sido reembolsada na parte restante pela seguradora da ré.

2. O pedido tem como fundamento os prejuízos sofridos pelo segurado da A., que é arrendatário de armazém sito na cave de imóvel onde a ré explora no piso superior (R/C) estabelecimento comercial, resultantes da rotura de uma tubagem de escoamento de águas residuais da casa de banho do estabelecimento da ré.

3. A acção foi julgada procedente e a ré condenada no pagamento de € 16.595,79 com juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento.

4. A Ré recorre com base em três razões:

5. Primeira: oposição entre fundamentos e decisão (artigo 668.º/1, alínea c) do C.P.C.) visto que a decisão proferida considerou que houve da parte da ré omissão do dever de conservação e vigilância do estabelecimento quando afinal se provou que a ré providenciou no sentido de apurar a origem das infiltrações de água que se faziam sentir.

6. Segunda: a sentença fundamenta a responsabilidade da ré na violação dos deveres de conservação e vigilância da coisa locada, que lhe incumbiam enquanto arrendatária da fracção, conforme resulta do disposto no artigo 1043.º do Código Civil, quando o referido preceito não tem qualquer relevância para o caso sub judice visto que a obrigação de manutenção e restituição da coisa no estado em que o arrendatário a recebeu não afecta, como é evidente, a regra acerca do risco inerente ao direito de propriedade que corre por conta do locador e não do locatário.

7. Terceiro: a haver responsabilidade da ré, os prejuízos só se determinaram em sede de audiência e, por conseguinte, os juros não são devidos desde a data da citação, mas sim e tão-só desde a data da sentença.

8. Apreciando:

9. Não foi impugnada nem se justifica qualquer alteração da matéria de facto; por isso limitamo-nos a remeter para os termos da decisão de 1ª instância que decidiu aquela matéria.

10. Quanto ao primeiro argumento da recorrente, importa salientar que a culpa da ré não fica afastada pelo facto de se ter provado que “ providenciou no sentido de apurar a origem das infiltrações de água que se faziam sentir” (resposta ao quesito 18),“requerendo, nomeadamente, os serviços de um canalizador” (resposta ao quesito 19º) pois o que importava, em termos de diligência, é que a rotura da canalização fosse detectada e isso não aconteceu. Alegou a ré que o canalizador “ após ter removido alguns azulejos e verificar a canalização através da medição da pressão constatou a não existência de qualquer avaria ou rotura”. Certo é que nem a ré provou o que consta desse quesito, como ficou provado que houve rotura e um dos locais “afectados foi a extremidade do armazém onde existia uma secção de armazenamento de revistas, devido aos derrames de águas residuais da casa de banho (polibã) do estabelecimento da ré (resposta ao quesito 11º) que, sendo súbita, como todas as roturas, não foi inesperada porque há muito que a ré vinha sendo avisada de infiltrações de água no armazém provenientes do tecto.

11. Para afastar a culpa, a ré teria de provar que detectou e procedeu a tempo às reparações solicitadas ou então que a rotura verificada foi, apesar dos esforços realizados e reparações efectuadas, de todo imprevisível, juízo inaceitável face à matéria provada por inexistência de factos alegados que o suportem.

12. Quanto ao segundo argumento importa salientar que, na locação, o arrendatário tem a obrigação de não fazer da coisa uma utilização imprudente (artigo 1038.º, alínea d) do Código Civil) e deve avisar imediatamente o locador , sempre que tenha conhecimento de vícios na coisa, ou saiba que a ameaça algum perigo ou que terceiros se arrogam direitos em relação a ela, desde que o facto seja ignorado pelo locador conforme artigo 1038.º,alínea h) do Código Civil; veja-se Ac. da Relação de Lisboa de 17-1-2006(Graça Amaral) C.J.,1, pág. 75.

13. De facto, independentemente da questão de saber se cabe ao locador ou ao locatário, a realização de todas as obras de conservação, certo é que o locatário tem em seu poder a coisa arrendada e a exclusividade do acesso.

14. Ora, não faria sentido, apesar de o locatário estar obrigado a facultar ao locador o exame do local arrendado (artigo 1038.º, alínea b) do Código Civil), impor-se ao locador um ónus de fiscalização contínua que só poderia ser exercido com sucesso por uma presença igualmente contínua no local arrendado, situação que contrariaria a própria natureza do contrato de arrendamento que impõe ao locador o desapossamento da coisa por via da obrigação de entrega da coisa locada (artigo 1031.º, alínea a) do Código Civil).

15. Pode, assim, extrair-se daqueles dois preceitos a ideia de que se impõe ao inquilino o dever de proceder à vigilância do estado de conservação da coisa arrendada, que deve utilizar de forma prudente e comedida, em conformidade com os fins do contrato (artigo 1043.º/1 do Código Civil) e o dever de comunicar ao locador o deficiente estado de conservação do local arrendado não só para que o locador proceda às reparações necessárias, mas também para que o examine previamente a fim de se inteirar da razão da necessidade de obras, pois bem pode dar-se o caso de estas resultarem afinal de uma imprudente utilização por parte do inquilino e, em tal circunstância, compete-lhe a ele, não ao senhorio, efectuar as reparações necessárias.

16. Se o inquilino omite tais deveres de vigilância e de informação, não pode  obviamente considerar-se o locador em mora quanto à obrigação de fazer reparações no interior do local arrendado, responsabilizando-o pelos danos decorrentes da deterioração, designadamente da deterioração não aparente, de partes do imóvel (v.g. canalizações) que resulta da conjugação da usura do tempo com a utilização que delas faz o inquilino.

17. Há, pois, aqui uma actuação ilícita por parte do inquilino, um incumprimento culposo de obrigação contratual que é causa da ausência de reparação susceptível de obstar à deterioração danosa.

18. Tais deveres assumem uma intensidade ainda maior quando se trata de fazer reparações urgentes (artigo 1036.º do Código Civil) por ser evidente a verificação do evento danoso.

19. Há, assim, situações em que, mesmo admitindo que a obra em causa seria de mera conservação e, portanto, competiria ao senhorio realizá-la por se estar face a uma deterioração inerente a uma prudente utilização (artigo 1043.º/1 do Código Civil), a responsabilidade vai acabar por recair no inquilino por ter sido ele quem, pela sua ilícita omissão, contribuiu decisivamente para um processo de crescente deterioração que desembocou no evento destrutivo, no caso, a rotura de canalização.

20. Não se olvide que, antes de 18-6-1999, os gerentes da ré foram alertados várias vezes, nomeadamente por cartas de 7-7-1999 e 12-8-1999, para infiltrações de água e fortes humidades no tecto do armazém de produtos acabados (livros e revistas) localizado na cave que fica por debaixo do estabelecimento da ré (resposta aos quesitos 4º e 5º) tendo inclusivamente começado a pingar água através do tecto do referido armazém (resposta ao quesito 7º).

21. Não estamos diante de uma rotura repentina da canalização cujos danos resultam do risco inerente à propriedade que corre por conta do locador e não do locatário ( ver ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, pág. 380).

22. O artigo 1043.º do Código Civil refere-se, sem dúvida, à responsabilização do locatário pelas deteriorações da coisa que sejam da sua responsabilidade quando da restituição da coisa locada;  no entanto, este preceito deve ser conjugado com o artigo 12.º do Regime do Arrendamento Urbano segundo o qual “as obras de conservação ordinária estão a cargo do senhorio, sem prejuízo do disposto no artigo 1043.º do Código Civil e nos artigos 4.º e 120.º do presente diploma”.

23. Ora se “ a regra proclamada é a de que a realização de obras de conservação ordinária (discriminadas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo anterior) compete, na vigência do contrato de arrendamento, ao senhorio” (loc.cit. pág. 512, anotação ao artigo 12.º do R.A.U.), essa regra não é absoluta, pois, de acordo com o artigo 1043.º do Código Civil, ressalvado pelo próprio artigo 12.º do R.A.U., “ se a obra se tornava necessária, mercê de um acto culposo do locatário ou seus familiares... era ao locatário que incumbia a realização da obra” (idem, pág. 513).

24. Por isso, aquele preceito - o artigo 1043.º do Código Civil - apontando para o momento da restituição da coisa locada, permite, em conjugação com o artigo 1044.º, considerar que ao locatário incumbe a realização de obras de conservação que resultem de uma deterioração que não seja inerente a uma prudente utilização.

25. Se “ o conhecimento do estado em que a coisa foi entregue ao locatário é essencial para determinar a medida da responsabilidade deste” (ANTUNES VARELA, loc. cit, anotação ao artigo 1043.º, pág. 380) então “ para esse efeito, e dadas as dificuldades da prova, estabelece-se no n.º2 uma presunção: a de que a coisa foi entregue em bom estado de conservação. Desta presunção há que tirar as consequências legais respectivas” (idem, pág. 380).

26. Cabe, assim, ao locatário ilidir tal presunção (artigo 350.º/2 do Código Civil). Não ilidida, então uma provada a existência de uma deterioração (prova que compete ao locador: artigo 342.º/1 do Código Civil) já ao locatário, que foi quem ao longo de anos, por vezes muitíssimos anos, utilizou a coisa arrendada, cabe provar que a deterioração resultou de uma prudente utilização em conformidade com os fins do contrato.

27. Se o locatário verifica que no local arrendado se originam infiltrações ou humidades provenientes da canalização já gasta pela usura dos anos, não faz ele uma prudente utilização do locado se indiferentemente deixa que tais humidades e infiltrações persistam, não procedendo à reparação da canalização nem avisando o locador para que a execute ele próprio.

28. Assim, face a uma tal situação, o inquilino, quando da restituição da coisa locada, deve responder pelos gastos inerentes a tais reparações.

29. Durante a vigência do contrato se o inquilino opta por não comunicar ao senhorio a existência de uma situação reveladora da necessidade de substituição de canalização, cabe-lhe proceder ele próprio à obra de conservação.

30. Se o não fizer, é o que sucede no caso em apreço, incorre em responsabilidade pelos danos resultantes da uma rotura da canalização que já vinha dando sinais há algum tempo pelo aparecimento de humidades e infiltrações.

31. Refira-se que o entendimento exposto não obsta a que, num quadro circunstancial diverso, se não possa considerar que o inquilino será o responsável pelas obras de conservação, designadamente quando traduza um manifesto abuso do direito, dada exiguidade da renda e as limitações legais a um aumento efectivo do seu valor, proceder o senhorio a obras de conservação cujo custo se mostre desproporcionado relativamente aos rendimentos obtidos.

32. Quanto ao último argumento saliente-se que não estamos face a um pedido ilíquido, mas diante de um pedido bem concretizado. Por isso, vale a regra constante do artigo 805.º/1 do Código Civil e os juros são devidos desde a citação.

Concluindo:

I- O inquilino tem o dever de vigiar o estado de conservação do local arrendado e de informar o senhorio para que este examine o local e proceda às reparações necessárias que sejam da sua responsabilidade (artigos 1038º,alínea d) e h) do Código Civil).
II- Se o inquilino omite tais deveres de vigilância e de informação, não pode  obviamente considerar-se o locador em mora quanto à obrigação de fazer reparações no interior do local arrendado (artigo 1036.º/1 do Código Civil), responsabilizando-o pelos danos decorrentes da deterioração, designadamente da deterioração não aparente, de partes do imóvel (v.g. canalizações) que resulta da conjugação da usura do tempo com a utilização que delas faz o inquilino.
III- Há, assim, situações em que, mesmo admitindo que a obra em causa de conservação competiria ao senhorio por se estar face a uma deterioração inerente a uma prudente utilização (artigo 1043.º/1 do Código Civil e 12.º do Regime do Arrendamento Urbano), a responsabilidade acaba por recair no inquilino por ter sido ele quem, pela sua ilícita omissão, contribuiu decisivamente para um processo de crescente deterioração que desembocou no evento destrutivo, no caso, a rotura de canalização.
IV- Se o locatário verifica que no local arrendado se originam infiltrações ou humidades provenientes da canalização já gasta pela usura dos anos, não faz ele uma prudente utilização do locado se indiferentemente deixa que tais humidades e infiltrações persistam, não procedendo à reparação da canalização nem avisando o locador para que a execute ele próprio (artigo 1043.º/1 do Código Civil).

Decisão: nega-se provimento ao recurso, confirmando-se, assim, a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente

Lisboa, 26 de Outubro de 2006

(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)