Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1117/13.7TVLSB.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: COMODATO
RESTITUIÇÃO DA COISA
TERMO FINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Celebrado contrato de comodato que prevê a disponibilização de imóvel para habitação permanente da comodatária, e sendo o comodato vitalício, o contrato considera-se cumprido com a efectiva disponibilização de tal imóvel para habitação da comodatária.
- O comodato não é um contrato sinalagmático, já que à obrigação de disponibilização da coisa pelo comodante não corresponde qualquer contrapartida pelo comodatário.
- Prevendo-se que a utilização do imóvel pela comodatária tenha lugar até à sua morte, não estamos perante uma obrigação contratual essencial da comodatária no que toca à restituição (obrigação que, por definição, ela nunca poderia cumprir) mas perante um termo final, certo na sua verificação mas cujo momento em que ocorrerá é impossível de determinar.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


M..., instaurou a presente ação declarativa sob a forma ordinária contra (1) a sociedade H... Lda. e (2) M....

A autora formula os seguintes pedidos:

a)Se declare a anulabilidade do negócio jurídico celebrado pela autora, especificamente, do consentimento para a venda e respetiva venda do imóvel para a H..., bem como do contrato de comodato, retroagindo os seus efeitos à data do consentimento para a venda, 5.3.1999, devendo ser restituído tudo o que houver sido prestado entretanto;
b)Se determine a entrega do imóvel ao proprietário anterior ao consentimento da autora, A...;
c)Se proceda ao cancelamento do registo a favor do banco, Ap. 20 de 13.01.2004, convertida em definitiva pela Ap. 23 de 05.07.2004. 

Como fundamento, a autora alega o seguinte:

-A autora habita desde 1984 o imóvel identificado, que constitui a casa de morada de família;
-Em 05.03.1999, a autora deu o consentimento para que fosse celebrada uma escritura de compra e venda do referido imóvel entre a empresa «H..., Lda.» e o seu marido;
-O consentimento foi prestado sob condição da autora continuar a residir no imóvel juntamente com o agregado familiar, vitaliciamente e a título gratuito;
-O referido imóvel foi vendido através de uma dação de pagamento pela H..., Lda. ao banco réu, que é o seu atual proprietário;
-O réu tomou conhecimento do conteúdo do consentimento prestado pela autora, pelo que não tem direito à proteção conferida a terceiros de boa-fé;
-O consentimento prestado teve por base a vontade viciada da autora, sobre o objeto do negócio e os motivos que o determinaram, tendo agido com erro, o que lhe dá o direito à anulação do negócio nos termos dos artigos 251º e 252º do Código Civil.

A citação inicial da 1ª ré, na pessoa do administrador de insolvência, foi por despacho de fls. 89-90 (em 24.10.2013) declarada nula, por ter sido realizada após o encerramento do processo de insolvência.

Posteriormente, resultaram infrutíferas as diligências realizadas para citar a primeira ré pessoalmente, tendo-se procedido à citação edital.

O Ministério Público, citado em representação da ré, apresentou contestação em que suscita a exceção da caducidade do direito de anulação invocado.

Notificada para exercer o contraditório, a autora pugnou pela improcedência da exceção.

Por seu turno, o banco réu, devidamente citado, não contestou.

Dos documentos juntos aos autos e do acordo das partes, resulta apurada a seguinte factualidade com relevância para a decisão:

1)A casa onde a autora vive, sita na Rua D...., nº ..., em Lisboa, foi vendida pelo seu cônjuge, A..., em 5 de Março de 1999, a uma empresa de que era gerente, a «H... Limitada», conforme escritura de compra e venda de fls. 18 e 19.
2)Em 05.03.1999, a autora deu o seu consentimento a essa venda, na condição de permanência na casa a título gratuito e vitalício para si e filhos que se encontrassem naquela comprovadamente a viver à data da sua morte, o que lhe foi assegurado por um contrato de comodato celebrado com a «H..., Lda.», em 05.03.1999, nos termos do documento de fls. 20 a 21.
3)Em 28.06.2004, a referida casa foi dada em cumprimento pela «H..., Lda.» ao banco réu através de escritura pública nos termos do documento nº 8 de fls. 32 a 36.
4)A autora deduziu embargos de terceiro por apenso à providência cautelar que o banco réu instaurou para obter a entrega do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens e que foi deferida em 05.02.2009 pela 1 ª Vara Cível de Lisboa, conforme documento 3 dos autos de procedimento cautelar.
5)Os embargos foram recebidos por despacho proferido em 06.05.2009 e julgados improcedentes por sentença da qual a autora apresentou recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou a sentença recorrida, embora por diferentes fundamentos, por acórdão datado de 01.02.2011, ainda não transitado em julgado (documento nº 2 dos autos de procedimento cautelar).

Foi proferida sentença que julgou procedente a invocada excepção de caducidade do direito de anulação, absolvendo os RR do pedido.
Inconformada recorre a Autora, concluindo que:

-Nos termos do art. 638°, nº 1 do CPC, o prazo para apresentar contestação é de 30 dias, a notificação foi efetuada no dia 9/6/2015, conforme certificação do sistema, sendo a mesma apresentada tempestívamente.
-Dispõe o art. 662º que o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida impuser decisão diversa.
-A Recorrente juntou documentos aos autos de relevo em ordem a demonstrar a existência de má-fé por parte do banco que adquínu o imóvel em 28/6/2004, e os mesmos foram ignorados pela douta sentença recorrida.
-A vingar a tese defendida pela Recorrente, é essencial, para que o pedido possa proceder, que tais documentos (5, 6 e 7 juntos com a PI) sejam considerado e dados como provados os factos que os mesmos demonstravam (PI artigos 11° a 16º), já que o banco Réu, nem sequer os contestou, aceitando-os.
-Nomeadamente. o conhecimento prévio à aquisição por parte do banco, da existência de um ónus sobre o imóvel (ín casu Contrato de Comodato), o que aliás releva igualmente da mencionada escritura de Dação em Cumprimento - essa dada como provada datada de 28/6/2004 - já que o banco não refere que o ímóvel é dado livre de ónus e encargos.
-O conhecimento da existência do ónus - Contrato de Comodato - determina que o banco não possa ser considerado terceiro de boa-fé, beneficiando desta forma da proteção conferida pelo art. 291, nºs 1 e 3 do CC, podendo ser-lhe oposta a anulação do negócio já que conhecia o vício do negócio anulável.
-Declara a douta sentença que o Contrato de Comedato se encontra integralmente realizado (ou seja cumprido) com a entrega do imóvel pelo Comodante, tendo em linha de conta o enquadramento de que o mesmo foi celebrado, de molde a garantir o uso vitalício pela Comodatária, o que determinaria não haver lugar à  restituição do imóvel.
- Ora, salvo melhor entendimento, a utilização vitalícia (cláusula quarta do Contrato de Comodato, configura um termo - facto futuro e certo - ou seja,um prazo, que produz efeitos jurídicos, nomeadamente a cessação do Contrato de Comodato por morte da comodatária e a consequente restituição do imóvel (cláusula décima segunda do Contrato de Comodato).                                                                                                               
-Logo, uma das obrigações fundamentais do Contrato de Cornodato (art. 1129° do CC), para além da entrega da coisa (a cargo da Comodante), é a restituição, findo o prazo convencionado, pelo que, até que se verifique essa entrega, o Contrato não se encontra cumprido.
-Acresce que o art. 1135º do CC pressupõe outras obrigações a cargo da Comodatária que se perpetuam por todo o tempo que durar o contrato, sob pena de o mesmo ser dado por incumprido, nomeadamente e sem limitar:  guardar e conservar a coisa emprestada, facultar ao comodante o exame da coisa, não aplicar o imóvel a fim diverso daquele a que se destina, não fazer uma utilização imprudente, não proporcionar a terceiro o uso da coisa, avisar o  comodante sempre que tenha conhecimento de vícios da coisa e por fim restitui-la no prazo acordado .
-Igualmente o art. 1136° do CC impõe responsabilidade ao Comodatário pelo tempo qos durar o comodato quanto ao perecimento da coisa, o que. aliás, no caso concreto decorre expressamente do contratado pelas partes, Cláusula sétima do Contrato de Comodato junto como doc. 4.
-Tais situações determinam, em acréscimo ao que vimos expondo em abono da nossa tese, que o contrato se encontra em curso peto tempo que durar. É um contínuo com obrigações e deveres a cargo da Comodatária, que pode ver o mesmo resolvido por justa causa em caso de incumprimento das obrigações a seu cargo (art. 1140º do CC), pelo que, não pode vingar a tese que o mesmo se encontra integralmente cumprido apenas com a entrega do imóvel ao Comodatário.
-O desfasamento temporal da prestação e da contraprestação, que não é vedado nos termos do art. 428º nº 1 do CC, apanágio dos contratos bilaterais imperfeitos, não determina nunca que o mesmo se possa considerar cumprido com a verificação da entrega do imóvel, como pretende a douta sentença, mas apenas que a correlatividade das obrigações sucede em momentos temporalmente distintos.
-Conforme referem PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, 2a edição, em anotação àquele normativo (nota 4): “Apesar de gratuito,  o comodato não deixa de ser em regra um contrato bilateral imperfeito: o contrato envolve obrigações não só para o comodatário, mas também para o comodante. Não há, porém, entre umas e outras, a relação de interdependência e reciprocidade que, através do sinalagma, define os contratos bilaterais ou sinalagmáticos perfeitos ..”.
-Em síntese, e para o que interessa ao caso vertente, existem no Contrato de Comodato subscrito pela Recorrente obrigações, diríamos até que a mais importante de todas, tendo em linha de conta a natureza do comodato, a obrigação da restituição do imóvel findo o prazo contratado (arts. 1129º; 1135º e 1137º do CC e cláusula quarta do Contrato de Comodato - doc. 4 já citado) em bom estado de conservação.
-E tal obrigação (a restituição do imóvel), consubstancia um efeito essencial deste negócio jurídico, de tal maneira que determina que o mencionado negócio não se encontra cumprido enquanto subsistirem incumpridas as obrigações dele emergentes ou pelo menos a obrigação da parte interessada na anulabilidade (cfr. AC do STJ, Proc. 03B1475 de 18/12/2003, citado).
-Como referem Pires de Lima e Antunes Varela em anotação ao art. 287°, nº 2 (anotação 3. do referido artigo no Código Civil Anotado, vol. 1, 4a Edição "Cessa  o limite do prazo, nos termos do n°  2, se o negócio ainda não foi cumprido, ... ", ora, fazendo um paralelismo se a coisa objeto do comodato não foi restituída, naturalmente o contrato também ainda não se encontra cumprido.
-O que tem como consequência a possibilidade de aplicação do art. 287°, nº 2 do CC - que acolhe o princípio da perpetuidade da anulabilidade do negócio enquanto as obrigações decorrentes do negócio não estiverem cumpridas : "enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via da acção como por via da excepção."., sem que possa ser invocada a caducidade do direito da Recorrente.
-Note-se que a hipótese de anulabilidade é válida tanto por via da exceção como por via da ação, já que o art 287°, nº 2 do CC, faz essa equiparação.
-O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc, 6422/2004-2 de 11/11/2004, consultado na página da internet em www.dgsi.pt, refere mesmo o seguinte: "Para efeitos do art. 287º nº 2 do C. Civil, negócio não cumprido é aquele em que ainda não foram cumpridas todas as obrigações dele emergentes ou em que, pelo menos, subsistem por cumprir obrigações relevantes. (...)".
-Como já se disse, a obrigação de restituir o imóvel é uma obrigação decorrente do Contrato de Comodato findo o prazo, e objetivamente uma obrigação relevante, tão relevante que se encontra na génese da figura do comodato: obrigação da restituição da coisa (art. 1129º do CC), e obrigação de zelar pela coisa por todo o tempo que durar o contrato (art 1135°).
-A restituição do imóvel não ocorreu, diferentemente do que pretende a douta sentença, o facto de o contrato ser vitalício não determina que o mesmo não esteja sujeita a termo - apenas neste caso futuro e incerto e as obrigações constantes do contrato e dos arts. 1135° ou 1136° do CC, continuam a impender sobre a Recorrente por todo o tempo que este durar.
-Podendo, consequentemente, a Recorrente (enquanto essa obrigação subsistir incumprida) lançar mão da ação de anulabilidade, nos termos invocados, a todo o tempo, sem dependência de prazo nos termos do art. 287º nº 2 do CC, pelo que, salvo melhor opinião, não tem razão a douta sentença quando invoca a caducidade do direito da Recorrente.
-A não se entender desta forma, estar-se-ia a sancionar a interpretação inconstitucionalizante da douta sentença relativamente aos arts. 278°; 1129º; 1135°; 1136º e 1140° todos do CC, porquanto, ao não fazer uma correta interpretação do regime legal, não só entra em contradição com o art. 203º da CRP, que determinas sujeição dos tribunais à apicação da lei, como dos arts. 13° e 20º da CRP ao potenciar um tratâmento discriminatório, denegando desta forma justiça.

O Mº Pº contra-alegou, sustentando a bondade da decisão recorrida.

Cumpre apreciar.

A questão que se coloca, e a única apreciada na sentença recorrida, é a de saber se ocorreu caducidade do direito da Autora de invocar a anulação do contrato. 

A Autora veio pedir que se declare a anulabilidade do negócio jurídico de compra e venda do imóvel bem como do contrato de comodato que lhe está subjacente.

O consentimento prestado pela Autora para a compra e venda – e que ela agora vem pôr em causa – ocorreu em 05/03/1999, na mesma data da compra e venda e do contrato de comodato.

Em 28/06/2004 o imóvel foi dado em cumprimento pela sociedade que o havia comprado, “H... Lda” ao Banco ora Réu, que instaurou providência cautelar para obter o imóvel livre e devoluto de pessoas e bens. A Autora deduziu embargos de terceiro por apenso a tal providência cautelar, os quais foram recebidos em 06/05/2009 e julgados improcedentes por acórdão desta Relação de Lisboa, de 01/02/2011.

Ora, na medida em que a Autora sustenta a anulabilidade dos contratos de compra e venda e de comodato, invocando o erro na sua própria declaração negocial, é indiscutível que se apercebeu do mesmo pelo menos antes do recebimento dos embargos, em 06/05/2009. A presente acção deu entrada em Junho de 2013.

Nos termos do art. 287º nº 1 do Código Civil a anulabilidade só pode ser arguida dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento.

Com base nisto e igualmente no facto de considerar o contrato de comodato integralmente cumprido, o Mº juiz a quo julgou procedente a excepção de caducidade do direito da Autora de invocar a anulabilidade do negócio.

Pretende contudo a Autora que o contrato de comodato ainda não se encontra cumprido, na medida em que não ocorreu a restituição do imóvel pelo comodatário.

Relembre-se que nos termos do contrato de comodato celebrado, condição do consentimento da Autora para a compra e venda, a Autora poderá utilizar o imóvel como sua habitação própria e permanente até à data da sua morte, transmitindo-se aos seus parentes em primeiro grau que se encontrem a viver no imóvel aquando da sua morte.

Assim, entende a Autora que, não tendo ocorrido um dos elementos constitutivos do contrato de comodato, a saber, a restituição da coisa pelo comodatário, o contrato não está cumprido, podendo, nos termos do art. 287º nº 2 do Código Civil a anulabilidade do mesmo ser arguida em qualquer momento.

Nos termos do art. 1129º do Código Civil, “comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.

Não estamos perante uma situação como a prevista no art. 1137º nºs 1 e 2 do mesmo diploma, ou seja, não ter sido fixado prazo certo para a restituição. No caso dos autos o que sucede é a fixação de um termo final incerto, ou seja, os efeitos do contrato produzem-se de imediato mas cessam com a ocorrência inevitável de um facto jurídico mas que não se pode antecipadamente prever quando terá lugar. Sabe-se que a morte ocorrerá mas não se pode antecipar o momento de tal ocorrência.

Como sublinha Inocêncio Galvão Telles, o termo é “a cláusula acessória por virtude da qual os efeitos de um contrato, ou de outro negócio jurídico, ficam dependentes de um facto futuro e certo (...) Não existe incerteza sobre a produção dos efeitos ou sobre a sua permanência, porque antecipadamente se sabe que o evento previsto há-de verificar-se, como certo que é: apenas se difere ou limita no tempo a actuação do contrato, que principiará ou cessará com aquele evento (...) O termo diz-se inicial ou final conforme se traduz numa dilação ou numa limitação temporal dos efeitos. No primeiro caso, estes só vêm a produzir-se a partir de certa data; no segundo, produzem-se logo mas cessam ao fim de certo tempo (...)”.  - “Manual dos Contratos em Geral” pág. 274/275.

De resto, o próprio contrato de comodato celebrado entre Autora e a Ré H... – Sociedade de Comércio Imobiliário Lda, prevê logo na cláusula 4ª que “o presente contrato é celebrado vitaliciamente”.

Dito isto, torna-se necessário apurar qual o momento em que o contrato se considera cumprido, para efeitos do disposto no art. 287º nº 2 do Código Civil.

O comodato é um contrato gratuito, na medida em que não existe contraprestação do comodatário correspectiva da entrega da coisa. E por isso mesmo, não tem a característica do sinalagma que caracteriza outros contratos. À entrega da coisa por uma das partes à outra para que esta se sirva dela, não corresponde qualquer prestação desta última.

Podem ocorrer deveres acessórios quanto ao modo de uso da coisa, como as previstas no art. 1135º do Código Civil, nomeadamente as que têm a ver com a finalidade do contrato. No caso dos autos, tal finalidade é a habitação familiar da comodatária.

O contrato cessa com a restituição da coisa pelo comodatário.

Há contudo que estabelecer uma distinção entre cumprimento do contrato e fim ou cessação do mesmo.

Na realidade, um contrato considera-se cumprido quando os seus efeitos essenciais, o seu objecto, se produzem. No caso dos contratos sinalagmáticos, porque existem prestações de ambas as partes, e que correspondem uma à outra – transferência da propriedade e entrega da coisa contra o pagamento do preço, na compra e venda, por exemplo – a concretização da prestação e contraprestação assinalam frequentemente o cumprimento do contrato. Mas não necessariamente a sua cessação.

Nos contratos de execução instantânea, cumprimento e cessação ocorrem simultaneamente, como acontece justamente no contrato de compra e venda (salvo no caso do pagamento a prestações): transferida a propriedade e entregue a coisa por um lado, pago o preço por outro, o contrato está realizado e consumado. Ao invés, nos contratos de execução continuada, o cumprimento é contínuo até que ocorra a cessação: no arrendamento, e enquanto ele durar, o senhorio tem de proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa e este tem de pagar as rendas. Aqui só se pode falar de cumprimento quando o arrendamento cessa, tendo, ao longo da sua vigência, as partes satisfeito as respectivas obrigações contratuais.

E no caso do comodato?

O comodato, não sendo sinalagmático, parece, à primeira vista, cumprido logo que o bem é entregue ao comodatário para que este o use, já que não existe uma contrapartida a cargo do comodatário.

Contudo, deveremos atentar na lição de Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, pág. 426: “apesar de gratuito, o comodato não deixa de ser, em regra, um contrato bilateral imperfeito: o contrato envolve obrigações não só para o comodatário mas também para o comodante. Não há porém,entre umas e outras, a relação de interdependência e reciprocidade que, através do sinalagma, define os contratos bilaterais e sinalagmáticos perfeitos”.

No caso dos autos, o contrato prevê a cedência do imóvel à Autora, para que esta o use enquanto sua habitação. Todavia, como a Autora já ali habitava, não chegou a existir transmissão, como resto se assinala na cláusula 2ª nº 2 do contrato de comodato.

A restituição, como vimos, ficou sujeita a termo final incerto, ou seja, uma circunstância certa (a morte) mas cuja ocorrência  não pode ser previamente determinada.

O que é aqui relevante, em nosso entender, é que nos próprios termos do contrato, um dos elementos constitutivos do mesmo (a restituição) não ocorrerá em vida da comodatária. Assim sendo, o cumprimento do contrato celebrado ocorre com a mera disponibilização do imóvel para habitação da Autora. É um caso em que existe cumprimento sem existir cessação do contrato. O contrato cessa com a morte da Autora (caso não existam descendentes desta, em primeiro grau, a habitarem a casa à data da sua morte): a restituição, aqui, não é elemento constitutivo do cumprimento (pois a comodatária, por definição, nunca o poderia fazer) mas simplesmente da extinção do contrato.

O cumprimento do contrato a que alude o nº 2 do art. 287º do Código Civil não se reporta às obrigações acessórias, sobretudo quando estas não tendem à efectiva produção dos efeitos do contrato mas tão só à adequada execução do mesmo. Integra apenas os elementos que configuram o tipo contratual.

As obrigações que impendem sobre a comodatária têm a ver com a adequada execução do contrato e da sua finalidade – habitação do imóvel pela comodatária – pressupondo assim o cumprimento contratual do comodante – disponibilização do imóvel para tal fim.
A obrigação de restituir a coisa objecto do comodato não constitui assim qualquer contra-prestação interligada com o dever de disponibilização da coisa pelo comodante, mas antes uma obrigação que põe termo ao contrato, que o extingue. Na medida em que as partes acordaram que a restituição só ocorreria após a morte da Autora – não falando da situação de parentes em primeiro grau que habitem a casa à data da morte da comodatária – há que concluir que o contrato se cumpriu com a disponibilização do imóvel para habitação da comodatária, mas não se extinguiu pois o respectivo termo final coincide com a morte da comodatária.
                                                           
Alega a recorrente que uma tal interpretação é inconstitucional, pois viola as normas expressas nos artigos 203º, 13º e 20º da CRP.
Quanto ao art. 203º e à sujeição das decisões judiciais à lei, não vemos em que medida existe aqui qualquer violação da norma constitucional. Decidir de acordo com a lei não significa decidir de acordo com a interpretação da lei sustentada pela recorrente. A ser assim, todas as sentenças seriam inconstitucionais pois, de um modo ou de outro, nunca se conformam inteiramente com as interpretações da lei dadas por ambas as partes em litígio.

Quanto ao mais não existe qualquer denegação de justiça (seja por razões económicas da parte ou outras): fazer justiça significa proferir decisão judicial num litígio, nos termos da legislação aplicável, não significa dar razão à recorrente.

Nem se verifica qualquer tratamento discriminatório. Os prazos de caducidade para exercício de um direito são aplicáveis a todos os cidadãos e visam garantir um mínimo de segurança e estabilidade nas relações jurídicas, sancionando aqueles que, podendo fazê-lo, não exercem o seu direito dentro de um dado prazo. Na situação em apreço o comodato produziu os seus efeitos em 05/03/1999, a Autora teve conhecimento do erro por si invocado, pelo menos antes de recebidos os embargos de terceiro  em 06/05/2009, e só deduziu a presente acção em 12/06/2013.

Conclui-se assim que:

-Celebrado contrato de comodato que prevê a disponibilização de imóvel para habitação permanente da comodatária, e sendo o comodato vitalício, o contrato considera-se cumprido com a efectiva disponibilização de tal imóvel para habitação da comodatária.
-O comodato não é um contrato sinalagmático, já que à obrigação de disponibilização da coisa pelo comodante não corresponde qualquer contrapartida pelo comodatário.
-Prevendo-se que a utilização do imóvel pela comodatária tenha lugar até à sua morte, não estamos perante uma obrigação contratual essencial da comodatária no que toca à restituição (obrigação que, por definição, ela nunca poderia cumprir) mas perante um termo final, certo na sua verificação mas cujo momento em que ocorrerá é impossível de determinar.

Termos em que se julga a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.


LISBOA, 11/2/2016


António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Decisão Texto Integral: