Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
372/09.1TCFUN.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: BENS COMUNS DO CASAL
QUOTA SOCIAL
PATRIMÓNIO COMUM
REGIME DE BENS
SIMULAÇÃO
PROVA
PROVA DOCUMENTAL
PROVA TESTEMUNHAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Sendo a protecção de terceiros que justifica a especial exigência do artigo 1723º al c) CC, tal exigência só deverá aceitar-se, quando e onde o interesse de terceiros o exigir. Nas situações em que não estejam em causa interesses de terceiros, relevará o interesse de qualquer um dos cônjuges na prova de que o valor utilizado na aquisição do novo bem proveio do seu património para afastar a presunção de comunhão que advém do disposto no art 1724º CC na sua al b) aceitando-se, pois, que qualquer deles possa fazer prova em contrário à que resulta da presunção da comunicabilidade do dinheiro ou valores empregues na aquisição, quando tenha sido omitida no próprio documento desta, ou noutro de igual valor, a proveniência desse dinheiro ou valores.
II - Não obstante a tese do A. implicar a prova da existência de um acordo simulatório que abrangeu a totalidade dos herdeiros, e mais tarde a dos vendedores, e um negócio dissimulado que implicava a adjudicação da propriedade do imóvel herdado do pai exclusivamente a ele, e a consequente venda, exclusivamente por ele ao comprador, com o correlativo recebimento por inteiro do respectivo preço, é de admitir que o mesmo, apesar de simulador, pudesse provar através de testemunhas que os 2.250.000$00 empregues no aumento de capital social da sociedade de que é sócio desde quando era solteiro, lhe advieram por inteiro da sucessão do pai, mas apenas na medida em que se possa detectar nos autos um princípio de prova por escrito nesse sentido.
III - Com efeito, na esteira do entendimento de Vaz Serra, tem vindo a ser admitido que, para evitar as consequências iníquas a que a rigidez do texto do art 394º CC pode conduzir, sobretudo nas relações entre os simuladores, quando exista um princípio de prova por escrito seja lícito a estes recorrerem à prova testemunhal para provarem o acordo simulatório e o negócio simulado.
IV - A razão que levou o legislador a impedir aos simuladores o uso da prova testemunhal relativamente ao acordo simulatório e ao negócio simulado, reside nos riscos inerentes à falibilidade e fragilidade da prova testemunhal e à circunstância daqueles, ao contrário dos terceiros, disporem facilmente de um meio seguro de acautelarem aquela prova através de uma “contradeclaração”.
V - È quando essa “contradeclaração” não existe que se põe a questão de saber se pode resultar dos autos a existência de um ou mais documentos escritos que possam valer como um começo de prova da simulação, o qual torne admissível o recurso ao depoimento de testemunhas.
VI - O que se exige é que o documento ou conjunto de documentos disponíveis no processo torne plausível, ou razoável, admitir a verosimilhança dos factos que, segundo a parte que os alega, qualificam a simulação.
VII - No caso dos autos os elementos documentais não tornam verosímil a existência das apontadas simulações em termos de poderem constituir um começo de prova das mesmas, que depois pudesse vir a ser interpretado, ou mesmo integrado, pelo concurso da prova testemunhal, pelo que não pode ser admitida a prova testemunhal, resultando, em consequência, não provada toda a matéria constante da base instrutória.
VIII- Pelo que se haverá de se concluir que o valor empregue no aumento de capital social – 2.250.000$00 – é bem comum do casal.
IX- Esta conclusão, porém, não implica que a quota que o A. detém na sociedade tenha passado a constituir um bem comum do casal, continuando a mesma a ser um bem próprio do A. porque a adquiriu em solteiro - cfr art 1722º/2 al a) CC.
X - O que a R. tem direito é a “comungar” no âmbito patrimonial dessa quota, na medida em que os aumentos da mesma, realizados já na vigência do casamento, tenham advindo de proventos comuns, podendo vir a ver definido, embora não nesta acção, o montante dos créditos de compensação a que tem direito o património comum.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I -”A”, moveu a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra “B”, pedindo que esta fosse condenada a reconhecer que a quota, no valor nominal de 75 000, 00 euros, que detém na sociedade “C”, Comércio de Produtos Alimentares, Lda., com o n.º de registo e matrícula ..., não constitui bem comum do casal, mas sim um bem próprio (dele A.)
Para tanto alegou ter casado com a R. em 12/6/99 no regime de comunhão de adquiridos, estando actualmente em processo de divórcio. Refere que como preliminar dessa acção, e por iniciativa da R., foi arrolada a referida quota social no pressuposto de que seria um bem comum do casal. Contudo, a referida quota é um bem próprio seu. Com efeito, a quota em causa é o resultado da união de três quotas que adquiriu ainda no estado de solteiro, em 10/7/98; posteriormente, o valor da referida quota aumentou, em consequência de três aumentos de capital, um realizado com dinheiro proveniente da venda de um prédio que herdou do seu pai, e os outros dois com reservas livres da própria sociedade.
A R contestou  por impugnação, e reconveio, pedindo igualmente a intervenção de um terceiro. A título de contestação, pugnou pela versão de que a referida quota constitui bem comum do casal por ter sido adquirido na constância do matrimónio, sendo certo ainda que o A. não fez constar da escritura pública do primeiro aumento de capital qualquer referência sobre a proveniência do dinheiro utilizado para o efeito. Em reconvenção, pediu a nulidade da venda do imóvel que supostamente o A. herdou do pai, pois, enquanto mulher deste, não deu o seu consentimento para tal venda que ocorreu já quando eram casados um com o outro, requerendo, em conformidade, a intervenção na lide do adquirente desse prédio, “D”.
O A. replicou, mantendo a sua versão dos factos, defendendo a improcedência da nulidade da referida venda por estar em causa, não a sua nulidade, mas anulação, e se mostrar já caduco o direito a esta.


Realizada audiência preliminar, a R. desistiu do pedido reconvencional, o que foi homologado, tendo-se proferido despacho saneador, no qual foi seleccionada a matéria de facto.
Procedeu-se a julgamento, tendo vindo a ser proferida sentença que condenou a R. a reconhecer que a quota, no valor nominal de 75 000, 00 €, que o A. “A” detém na sociedade “C”, Comércio de Produtos Alimentares, Lda., com o n.º de registo e matrícula ..., não constitui bem comum do casal (A. e R.), mas sim um bem próprio daquele A.

II – Do assim decidido, apelou a R, a qual concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:
1- Não há motivo para se considerar a quota, no valor nominal de € 75.000,00, que o Recorrido detém na sociedade “C”, Comércio de Produtos Alimentares, Lda. como bem próprio deste.
2- A quota da sociedade “C” – Comércio de Produtos Alimentares, Lda. constitui um bem comum devido ao regime de bens do casamento do recorrido e da recorrente, que é a comunhão de adquiridos.
3- Na data do primeiro aumento de capital (11/01/2000), o Recorrido já era casado com a recorrente, o que significa que o aumento de capital social da aludida sociedade foi realizado com proventos comuns do casal e como tal é bem comum.
4- A indicada quota foi reforçada na constância do matrimónio, pelo que é um bem comum do casal, não se enquadrando em nenhuma das situações previstas do artigo 1722º do Código Civil.
5 - Em última análise, a Recorrente sempre teria o direito a ser compensada por metade do valor dos aumentos de capital.
6 - O dinheiro usado pelo Recorrido no primeiro aumento de capital social em causa não foi realizado com o produto obtido da venda do prédio urbano, cuja escritura de compra e venda foi realizada a 21 de Junho de 1999.
7 - Na escritura de compra e venda do referido prédio, bem como em todos os documentos juntos aos autos, nada consta que o prédio em causa fosse apenas para o  Recorrido ou que o produto da venda desse bem lhe deveria ser exclusivamente adjudicado.
8 - Na escritura de aumento de capital da sociedade, realizada a 11/01/2000, não foi feita qualquer referência à proveniência do dinheiro utilizado pelo Recorrido para a subscrição do capital social da sociedade aí identificada, pelo que não preenche os requisitos do artigo 1723º alínea c) do Código Civil.
9 -Os documentos contabilísticos demonstram que depois da venda do prédio referido nos autos e antes da escritura de aumento de capital por entradas em dinheiro, não houve qualquer entrada em dinheiro pelo Recorrido, seja proveniente da venda de um imóvel, seja de qualquer outra proveniência.
10 - A aceitar-se que o dinheiro da venda do prédio realizada em 21 de Junho de 1999, foi destinado ao aumento de capital realizado a 11/01/2000, fica sempre por demonstrar como é que tal foi feito, já que apenas em Julho de 2000 se verificam depósitos desses valores, os quais, distam 13 meses da data da venda do prédio.
11 -A aceitar-se a tese defendida pelo Recorrido, significaria que este esteve um ano e um mês com o dinheiro na conta sem o utilizar, quando todas as testemunhas disseram que o aumento era urgente, já que a escritura de venda do prédio foi realizada em 21 de Junho de 1999 e o aumento de capital apenas em Julho de 2000.
12 - A sentença em causa deveria incluir nos factos assentes e provados que o depósito referente ao aumento de capital só foi realizado em 20 de Julho de 2000.
13 - A sentença em causa violou os artigos 473°, 1726º e 1723º, alínea c), 347º, 371º, 372º e 393 do Código Civil.
14 - Por tais motivos, deve a douta decisão recorrida ser revogada, proferindo-se
outra consentânea com os factos constantes.

            O A. apresentou contra-alegações nelas defendendo a manutenção do decidido.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.
         III – A 1ª instância julgou como provados os seguintes factos:   
A)Autor e Ré contraíram casamento católico em 12 de Junho de 1999, sem convenção antenupcial (al. A) dos factos assentes).
B)Actualmente, correm seus termos sob o n.º .../09.0TMFUN pelo Tribunal de
Família e Menores do ... uns autos de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, em que é Autora e Reconvinda a ora Ré “B” e Réu e Reconvinte o ora Autor “A” (al. B) dos factos assentes).
C)Como preliminar da instauração da acção de divórcio acima referida, a referida “B” instaurou uns autos de arrolamento de todos os bens comuns do casal, cujo processo correu seus termos sob o n.º .../08.6TMFUN por esse mesmo Tribunal (al. C) dos factos assentes).
D) Alegando tratar-se de bem comum do casal, no processo acabado de referir, a Ré “B” pediu que fosse arrolada uma quota no valor nominal de 75 000, 00 euros de que o Autor é titular na sociedade comercial denominada “C”, Comércio de Produtos Alimentares, Lda., com o número único de registo e matrícula ..., e sede ao Caminho das Quebradas, n.º 9, São Martinho, nesta cidade do ... (al. D) dos factos assentes).
E) E mais requereu que o arresto fosse efectuado sem audiência prévia do ali requerido, alegando receio de que este viesse a ocultar e dissipar imediatamente todos os bens logo que o mesmo tivesse conhecimento da providência requerida (al. E) dos factos assentes).
F) Dando acolhimento à pretensão da ora Ré e considerando que, sendo o arresto
Requerido como preliminar da acção de divórcio, o requerente não necessita de demonstrar o justo receio de dissipação dos bens, o Tribunal ordenou o arresto nos termos requeridos (al. F) dos factos assentes).
G) Notificado da decisão acima referida, o Autor optou por deduzir oposição à providência cautelar decretada (al. G) dos factos assentes).
H) Produzida prova sumária na sobredita providência cautelar, a final foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a oposição deduzida pelo ora Autor, ordenou o levantamento do arrolamento de uma viatura ligeira que se apurou não pertencer ao casal, mas sim à sociedade “C”, Comércio de Produtos Alimentares, Lda. (al. H) dos factos assentes).
I) Quanto ao mais, incluindo a quota referida em D), foi mantido o arrolamento já ordenado, pelo facto do Tribunal ter considerado que a mesma constitui bem comum (al. I) dos factos assentes).
J) O Autor “A” tornou-se sócio da sociedade acabada de referir, então ainda denominada “C”, Importação e Exportação de Mariscos e Peixe Congelado, Lda., em 10 de Julho de 1998, no estado de solteiro, por ter adquirido duas quotas, cada uma delas no valor nominal de 100 000$00, correspondente ao contravalor de 498, 80 euros, mediante cessão efectuada, respectivamente, por “E” e “F”, titulada por escritura pública lavrada a fls. 5 a fls. 7 do Livro n.º 256-C, do Extinto Terceiro Cartório Notarial do ... (al. J) dos factos assentes).
L) Nessa mesma altura e através daquela mesma escritura, adquiriu por cessão de “G” uma outra quota no valor nominal de 50 000$00, correspondente ao contravalor de 249, 40 euros (al. L) dos factos assentes).
M) Em 11 de Janeiro de 2000, verificou-se um aumento do capital social da sociedade “C” de 500 000$00, correspondente ao contravalor de 2 493, 99 euros, para 5 000 000$00, correspondente ao contravalor de 24 939, 89 euros, sendo o aumento no valor de 4 500 000$00, correspondente ao contravalor de 22 445, 91 euros, subscrito e realizado em numerário por ambos os sócios na proporção das suas quotas, ou seja, cada um, com a quantia de 2 250 000$00, correspondente ao contravalor de 11 222, 95 euros, titulado por escritura pública lavrada a fls. 78 e 79 do Livro nº. 333-C do Extinto Terceiro Cartório Notarial do ... (al. M) dos factos assentes).
N) Na escritura referida em M) não foi feita qualquer referência à proveniência do dinheiro utilizado pelo Autor para a subscrição do capital social da sociedade aí identificada (al. N)dos factos assentes).
O) O prédio urbano, destinado a construção, localizado no sítio da ..., Caminho ..., freguesia ..., concelho do ..., está descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ... daquela freguesia e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 6 613º (al. O) dos factos assentes).
P)O prédio referido em O), anteriormente de natureza rústica, pertencia a “H” e consorte “I”, sendo aquele pai do Autor (al. P) dos factos assentes).
Q)Com a morte do referido “H” procedeu-se a inventário para partilha da respectiva herança, sendo que nesse inventário o prédio referido em O) foi descrito como verba n.º 4 do activo (al. Q) dos factos assentes).
R)No final desse inventário, o prédio referido em O) foi adjudicado e ficou a pertencer aos interessados “I”, “J”, “L”, “A”, ora Autor, e “M”, a primeira viúva meeira e os demais filhos do inventariado, em comum e na proporção das respectivas quotas (al. A) dos factos assentes).
S)O prédio referido em O) foi vendido, pelo preço de 2 500 000$00, por “I”, “J”, “L”, “A” e “M” a “D”, por escritura pública lavrada em 21 de Junho de 1999, a fls. 11 e 12 do Livro n.º 159-A, do Cartório Notarial de ... (al. S) dos factos assentes).
T) A Ré, enquanto mulher do Autor, não deu o seu consentimento à venda referida em S) (al. A) dos factos assentes).
U)Mediante escritura pública lavrada em 28 de Dezembro de 2000, a fls. 12 a fls. 13 v. do Livro de Notas n.º 69-D, do Cartório Notarial de ..., foi declarado, por deliberação: aumentar o capital social da “C” de 5 000 000$00, correspondente ao contravalor de 24 939, 89 euros, para 75 000, 00 euros;  que o aumento, no valor de 10 036 150$00, correspondente ao contravalor de 50 060, 11 euros, era realizado através de reservas livres, passando assim cada um dos sócios a deter uma única quota no valor nominal de 37 500, 00 euros (al. U) dos factos assentes).
V)Passando a partir dessa altura a sociedade a denominar-se “C”, Comércio de Produtos Alimentares, Lda. (al. V) dos factos assentes).
X) Mediante escritura pública lavrada em 18 de Junho de 2004, a fls. 59 e 60 do Livro n.º 60-A, do Extinto Quarto Cartório Notarial do ..., os sócios da sociedade “C” declararam, por deliberação: aumentar o capital social de 75 000, 00 euros para 150 000, 00 euros; que o valor do aumento, de 75 000, 00 euros, era realizado por incorporação de reservas livres, mediante o aumento proporcional do valor nominal das quotas pelos sócios “A”, ora Autor, e “N”, passando as respectivas quotas a ser no valor nominal de 75 000, 00 euros (al. X) dos factos assentes).
Z) O valor correspondente ao aumento de capital referido em M) foi realizado pelo sócio “A” através de dinheiro obtido com a venda referida em S) (artigo 1º da base instrutória).
AA) Com efeito, em vida do referido “H”, este e a sua esposa pretendiam doar ao Autor, filho do primeiro, a fim de ali construir a respectiva habitação (artigo 2º da base instrutória).
BB) Desiderato esse que só não se concretizou efectivamente devido ao inesperado decesso do referido “H” (artigo 3º da base instrutória).
CC) De qualquer forma, quer a viúva meeira, quer os demais herdeiros, na altura da venda, quiseram honrar a vontade do falecido, de modo que abdicaram da quota-parte do valor a que tinham direito a favor do ora demandante “A” (artigo 4º da base instrutória).
EE) Os valores utilizados nos aumentos de capital referidos U) e X) foram gerados pela própria sociedade “C” através de capitais cuja quota-parte do sócio “A” resulta de direitos próprios anteriores (artigo 5º da base instrutória).

V- Para melhor se equacionarem as questões a decidir no recurso, importa fazer referência, ainda que breve, ao decidido na 1ª instância.
Entendeu-se nela - e logo em primeiro lugar na análise que nela se faz – que os aumentos de capital da sociedade em causa nos autos resultantes da incorporação de reservas livres da própria sociedade - e que tiveram lugar em plena vigência da sociedade conjugal entre A. e R. casados em regime de comunhão de adquiridos – devem ser considerados bens próprios do cônjuge titular da quota social, logo do A., que a adquiriu ainda em solteiro, porque as mesmas – as referidas reservas livres – não devem ser considerados frutos da quota para o efeito da disciplina do art 1728º CC, não sendo susceptíveis de apropriação individualizada. Entendeu-se subsequentemente, e agora referentemente ao primeiro aumento de capital da sociedade, resultante este de entradas em dinheiro, que a circunstância de na respectiva escritura não se ter consignado a proveniência desse dinheiro – da parte do A., 2.250.000$00 - visto estarem em jogo apenas interesses dos cônjuges, não obstaria a que este pudesse elidir a presunção “juris tantum” de que tal dinheiro teria proveniência comum,  utilizando para o efeito, qualquer meio de prova. E, na sequência desse entendimento, e em função dos factos dados como provados nos arts 2º, 3º, 4º e 1º da base instrutória – referidos em Z) a CC) dos factos elencados na sentença - veio a entender que o valor correspondente ao aumento de capital em causa, tendo sido obtido pelo A. através de dinheiro resultante da venda de imóvel adveniente da sucessão do pai, por isso, bem próprio do A., conservava a natureza de bem próprio à luz do disposto no art 1723º/al c) CC .

Feitas estas observações, está-se em condições de se enunciarem as questões que emergem das conclusões das alegações para resolução. E são as seguintes:
- saber se a sentença deveria ter incluído nos factos assentes e provados,  que o depósito referente ao (primeiro) aumento de capital só foi realizado em 10/7/2000  (conclusão 12ª);
-  saber se esse aumento de capital social se deve entender como realizado com proventos comuns do casal, ao contrário do que foi decidido na 1ª instância;
- na afirmativa, saber se essa conclusão implica que a quota detida pelo apelado na referida sociedade passe a dever ser tida como comum;
- a não se entender por esse carácter comum, saber se a apelante, em função daquele aumento de capital realizado com proventos comuns do casal, adquiriu o direito de ser compensada por metade do valor desse aumento de capital e dos subsequentes, estes realizados, já não em numerário, mas através de reservas livres da sociedade.

Sendo estas as questões que resultam das conclusões das alegações, cumpre sub-equacionar na segunda das acima referidas questões, duas sub-questões:
- Saber se, ao contrário do que foi defendido na sentença recorrida, não se deverá entender que a circunstância de na escritura pública referente ao primeiro dos aumentos de capital social não ter sido referida a proveniência do dinheiro utilizado pelo A. para a subscrição desse aumento, implica só por si, e sem possibilidade de prova em contrário, que se deva entender que esse dinheiro corresponde a proventos comuns do casal;
- saber se, ainda que assim não se entenda – e portanto, se perfilhe o entendimento defendido na 1ª instância,  de que, estando apenas em jogo os interesses dos cônjuges, seria  possível ao A. elidir a presunção de que o dinheiro utilizado naquela subscrição  era comum  - se o mesmo podia, não obstante, fazer tal prova através de testemunhas, como se propôs fazer e foi aceite na 1ª instância, provando através delas que aquele dinheiro lhe adveio da venda de imóvel adquirido por sucessão do pai, embora decorra da  certidão do inventário por morte deste  e da escritura pública referente à venda desse imóvel, que do mesmo só foi adjudicado ao A. a correspondente parte na sucessão e só recebeu o correspondente preço da venda do mesmo  – conclusão 7ª.

Pretende a apelante que a sentença deveria ter incluído nos factos assentes e provados que o depósito referente ao aumento de capital só foi realizado em 20 de Julho de 2000.
            Conclusão que se mostra inaceitável.
O facto em causa não foi objecto de alegação nos autos. Sendo facto cuja alegação interessaria à R., o mesmo não consta da sua contestação.
Sabe-se que o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, podendo apenas servir-se de factos não alegados nos casos previstos no art 514º CPC (factos notórios, ou factos de que o tribunal tenha conhecimento em virtude do exercício das suas funções) no art 665º (factos que revelem o uso anormal do processo) e nos casos em que os factos não alegados se consubstanciem como instrumentais e tenham resultado da instrução e discussão da causa – art 264º/2 CPC.
 È verdade que o facto cuja inclusão na sentença a apelante reclama, se configura, face ao objecto da acção, como um facto instrumental. Ele sobreveio ao processo, justamente, em consequência de diligências instrutórias solicitadas pela apelante relativamente às contas da sociedade. E, com tal facto, pretende esta pôr em causa que tenha sido com o dinheiro que o A. tenha recebido da venda do imóvel adquirido por sucessão do pai, realizada em 21/6/99, que  haja subscrito o aumento de capital em Janeiro de 2000, pondo em evidência que, afinal, o valor para tal subscrição apenas foi depositado na sociedade em Julho de 2000.    
Mas isso não significa que tal facto houvesse que ser elencado como provado na sentença.
Os factos que o juiz deve ter em consideração na sentença são aqueles a que alude o art 659º/3 CPC: os factos admitidos por acordo, os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, e os que o tribunal colectivo deu como provados.  
Os factos instrumentais nem por isso deixam de ser tidos em consideração, quando seja caso disso, na decisão, como o admite o referido nº 2 do art 264º CPC, mas, normalmente, na decisão sobre a matéria de facto, como é próprio da sua finalidade. Por vezes, até são inseridos na matéria que é objecto da base instrutória [1], para a esclarecer, sendo que as mais das vezes, tais factos são apenas referidos na decisão de fundamentação das respostas à matéria de facto, deixando o julgador expresso o modo como os mesmos o influenciaram nessa decisão concreta. Foi o caso na situação dos autos, sem que e não obstante, tal facto haja contribuído negativamente para a convicção do julgador no tocante à matéria que estava em causa provar [2].
Não podem é tais factos – quando não alegados, como foi o caso, nem inseridos na base instrutória aquando da resposta à mesma - e porque então nenhuma autonomia revelam, ser incluídos como provados na sentença, quando a sua função é, apenas, a de intervirem na prova dos factos essenciais.
De todo o modo, adiante, voltar-se-á ao facto em causa e á sua importância como facto instrumental.
Improcede, assim a 12ª conclusão.

A questão que a aplicação da norma constante do art 1723º al c) do CC à situação dos autos levanta, concretamente, saber se a circunstância de na escritura pública referente ao primeiro dos aumentos de capital social não ter sido referida a proveniência do dinheiro utilizado pelo A.. para a subscrição desse aumento, implicará, só por si, que se deva entender que esse dinheiro corresponde a proventos comuns do casal, foi abundantemente explanada na sentença recorrida, não merecendo desta instância melhores reparos.
A verdade é que também este tribunal entende, na esteira do que se julga constituir doutrina e jurisprudência dominante [3]  que sendo uma ideia de protecção de terceiros que justifica a especial exigência do artigo 1723º al c), tal exigência só deverá aceitar-se, quando e onde o interesse de terceiros o exigir. Nas situações em que não estejam em causa interesses de terceiros, relevará o interesse de qualquer um dos cônjuges na prova de que o valor utilizado na aquisição do novo bem proveio do seu património, para afastar a presunção de comunhão que advém do disposto no art 1724º CC na sua al b) (de acordo com a qual se integram na comunhão «os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei») Referem Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira [4] que, «na ausência de terceiros que possam ser enganados pela aparência, a exigência de um meio especial de prova – está-se a referir, obviamente, à prova por menção expressa no documento de aquisição com intervenção de ambos os cônjuges –   não tem sentido».
Aceita-se, pois, que na denominada sub-rogação indirecta ou “reemprego” – situação que se verifica quando de um património sai determinado bem, mas outro entra nele, procedendo essa aquisição e perda de actos jurídicos diferentes, e sem que se torne ostensiva a conexão entre tal perda e aquisição – quando não esteja em causa a protecção de terceiros,  possa ser feita prova em contrário à que resulta da presunção da comunicabilidade do dinheiro ou valores empregues na aquisição, quando tenha sido omitida no próprio documento desta, ou noutro de igual valor, a proveniência desse dinheiro ou valores. Não se trata de retirar carácter imperativo à referida norma da al c) do art 1723º CC, «trata-se apenas de não aplicar a norma imperativa quando não está presente a razão que indubitavelmente a justifica» [5]. Assim, quando não estejam em jogo interesses de terceiros, mas somente os dos cônjuges, a norma em causa deixa de valer como contendo uma presunção “jure et de jure”, passando a valer como contendo apenas uma presunção “juris tantum”, podendo o cônjuge substituir a prova (tarifada) que adviria da mencionada declaração quanto à origem do dinheiro ou valores empregues na subrogação, pela prova (livre) de que o dinheiro ou valores empregues na subrogação é apenas dele, podendo fazer tal prova através de qualquer meio.[6]

            Este entendimento é o que, na nossa opinião, melhor se articula com os vínculos pessoais que ligam entre si os cônjuges na vigência da sociedade conjugal e que tornam muitas vezes difícil a exigência de um sobre o outro, de que admita fazer constar no documento de aquisição a proveniência própria do dinheiro ou valores empregues, já que tal exigência é facilmente perspectivada com desconfiança pelo cônjuge cujo dinheiro próprio não está em causa, como se a mesmo implicasse uma previsível ruptura do casamento, e uma acto de oportunismo perante a mesma.

Admite-se pois, no que à situação dos autos respeita, que o A., perante a eminente ruptura que o divórcio implicará no seu casamento, e em face da R. seu cônjuge, possa fazer a prova de que o valor de 2.250.000$00 correspondente à parte que subscreveu no aumento do capital social da “C” em 11/1/2000, não resultou do esforço conjunto do casal, mas adveio à sua titularidade por sucessão do pai..

Porém, não deixa de ser legítima a questão que a apelante coloca no recurso, e que se reconduz a saber se será admissível que o A. logre a prova em questão – isto é, que os 2.250.000$00 empregues no aumento de capital social os obteve com a venda de prédio herdado do pai – utilizando, para esse efeito, prova testemunhal, não obstante decorrer da certidão do inventário por morte do pai, e da escritura pública referente à venda desse imóvel, que deste, só foi adjudicado ao A., a correspondente parte na sucessão, e que só recebeu o correspondente preço da venda do mesmo.

            O que da certidão do inventário havido por óbito de “H”, pai do A. resulta, é que, por morte dele, o referido imóvel – que veio a corresponder à verba nº 4 do mapa da partilha - foi adjudicado a “I” – mulher daquele – e a “J”, “L”,  e a ele próprio A, mas, em comum e na proporção dos respectivos quinhões; e foi com base nesse mapa de partilha que foram determinadas as tornas a cada um dos herdeiros, sendo que pelos mesmos foi dito terem-nas já recebido em mão. Mais tarde, em 21/6/99, aquando da escritura de compra e venda desse imóvel, figurando como vendedores os acima referidos “I”, “J”, “L”, “M” e o próprio A., e como comprador “D”,  foi referido que todos os outorgantes declararam ter recebido o produto da venda, 2.500.000$00.
            O que significa que por força dessa venda, e como decorre da respectiva escritura, o A. não obteve os referidos 2.500.000$00, mas valor seguramente muito inferior.

Poderá o A., não obstante o referido conteúdo destes documentos autênticos, fazer prova através de testemunhas – e eventualmente de presunções judiciais – de que não obstante o que neles consta, a verdade foi a de que, em vida do referido “H”, este e a sua esposa pretendiam doar ao A., filho do primeiro, a fim de ali construir a respectiva habitação, o imóvel em causa (artigo 2º da base instrutória), desiderato que só não se concretizou, efectivamente, devido ao inesperado decesso do referido “H” (artigo 3º da base instrutória), e que, de qualquer forma, quer a viúva meeira, quer os demais herdeiros, na altura da venda, quiseram honrar a vontade do falecido, de modo que abdicaram da quota-parte do valor a que tinham direito a favor do A. (artigo 4º da base instrutória)?

            Note-se que, ao contrário do que o A. apelado nas contra-alegações do recurso salienta, esta objecção da R. apelante relativamente aos meios de prova utilizados, não tem a ver com a impugnação da decisão da matéria de facto a que se reporta a 2ª parte da al a) do nº 1 do art 712º CPC.
 Quer dizer: embora o resultado que a apelante pretende atingir seja o de ver alteradas por este tribunal as respostas à BI (arts 1º a 5º) no sentido de os factos dela  constantes serem dados como não provados, não pretende atingir esse desiderato através da impugnação da decisão da matéria de facto a que se reporta a 2ª parte da al a) do nº 1 do art 712º CPC, de tal modo que tivesse que ter dado cumprimento aos ónus a que se reporta o art 685º- B CPC, procedendo às várias e necessárias especificações a que esse normativo alude; antes o pretende atingir, fazendo vingar o entendimento de que tais respostas advieram de depoimentos testemunhais que, em última análise, não poderiam ser aceites como tendo virtualidade de fazer prova contra os factos que constam dos documentos autênticos acima referidos.
Será caso para se dizer, quando se conclua pela referida inadmissibilidade, que o tribunal recorrido desconsiderou indevidamente documentos autênticos que fazem prova plena e, portanto, que os elementos fornecidos pelo processo impunham decisão da matéria de facto diversa da tida na 1ª instância que se mostra insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, nos termos do art  712º/1 al b) CPC.

            Sabendo-se que, de acordo com o art 392º CC «a prova por testemunhas é admitida em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada»,  dispõe o art 394º CC que «é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico  (…) quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores», acrescentando o seu nº 2 que, «a proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores».
           
              Na situação dos autos, e salvo melhor opinião, é o próprio A. quem na réplica acaba por admitir a existência de uma verdadeira simulação com a finalidade de enganar e prejudicar o Estado, quer no que se refere ao acordo que esteve na base da adjudicação  do imóvel no inventário a todos os seus interessados «em comum e na proporção das respectivas quotas», quer no que se refere à posterior compra e venda desse imóvel a terceiro, quando refere que «se os herdeiros do falecido “H” (…) , formalmente adjudicassem o prédio em causa ao ora A. haveria lugar ao pagamento de tornas (art 56º) a que acresceriam encargos do imposto de sisa devido pela transmissão, (art 57º) e posteriormente, no caso de venda, o respectivo imposto de mais valias (art 58º), dando assim lugar a encargos fiscais suplementares, sem qualquer vantagem ou contrapartida (art 59º).  
            Como é o próprio A. quem logo na petição elucida – art 23º-  que,  «quer a viúva meeira, quer os demais herdeiros na altura da venda quiseram honrar a vontade do falecido, de modo que abdicaram da quota parte do valor a que tinham direito a favor do A.»

O que implica a existência de um acordo simulatório que abrangeu a totalidade dos herdeiros, e mais tarde a dos vendedores (e, porventura, o próprio comprador),  e um negócio dissimulado que implicava a adjudicação da propriedade do imóvel herdado do pai exclusivamente ao aqui A., e a consequente venda, exclusivamente por ele ao comprador, com o correlativo recebimento por inteiro do respectivo preço.

Do que se veio de dizer resulta que, de acordo com o disposto no referido art 392º/ 1 e 2 estava vedado ao A. – simulador – fazer a prova do acordo simulatório e do negócio dissimulado por via de prova testemunhal - e por presunções judiciais, cfr art 351ºCC, ou por confissão extra-judicial não constante de documento, cfr 358º/3 CC -   na medida em que essa prova implicava convenções contrárias ao conteúdo dos referidos documentos autênticos.

Note-se como o põem em evidência Pires de Lima e Antunes Varela [7] que o art 394º rege apenas em relação às convenções válidas «contrárias aos documentos na parte em que estes não tem força probatória plena e às convenções adicionais, ou acessórias como lhes chama o art 221º».
Já a inadmissibilidade da prova testemunhal contra o conteúdo de documentos, em relação ao qual estes façam prova plena, resulta das disposições conjugadas dos arts 371º, 372º, 376º e 393º CC. Mas não é disso que se trata dos autos: ninguém está a pôr em questão os factos que os documentos autênticos acima referidos referem como praticados pelo oficial público respectivo, mas sim o respectivo conteúdo em função de convenções que se mostram contrárias ao mesmo.

Dir-se-á que, entre nós, e na esteira do entendimento de Vaz Serra [8], vários outros autores [9],  e subsequentemente muita jurisprudência, para evitar as consequências iníquas a que a rigidez do texto do art 394º pode conduzir – sobretudo nas relações entre os simuladores -  tem vindo a admitir que existindo um princípio de prova por escrito, seja lícito aos simuladores recorrerem à prova testemunhal.
 Como refere Carvalho Fernandes [10] trata-se de admitir «o recurso à prova por testemunhas para interpretar o contexto dos documentos que titulem a simulação (aqui, com fundamento no nº 3 do art 393º CC) e ainda para completar a prova documental existente, desde que esta constitua, por si só, um indicio que torne verosímil a existência da simulação» Neste caso, acrescenta, «o contributo do depoimento das testemunhas não estaria limitado à interpretação desses documentos, podendo também ser o de os integrar».

Deve salientar-se que a razão que levou o legislador a impedir aos simuladores o uso da prova testemunhal relativamente ao acordo simulatório e ao negócio simulado  (quando nenhum destes factos se pode ter como coberto pela força probatória plena do documento, autêntico ou particular que titula o negócio simulado), reside nos riscos inerentes à falibilidade e fragilidade da prova testemunhal. «Seria, na verdade, inadmissível pôr assim ao alcance de um dos simuladores contra o outro, ou de ambos contra terceiros, um meio relativamente fácil de «simulando» a simulação, atacar um negócio verdadeiro e sem vício que se tornou incómodo ou indesejável, pondo em causa a sua eficácia e frustrando a confiança que justificadamente a outra parte ou terceiro nele fundou. Estar-se-ia, do um passo, a destruir, com base numa prova insegura a melhor fé que um documento merece»[11].
 Acresce que os simuladores têm facilmente ao seu alcance um meio seguro de acautelarem a prova do acordo simulatório e do negócio dissimulado  - que dispensa a intromissão de estranhos, como é adequado à simulação – e que é a “contradeclaração”.  
E é pela possibilidade da existência desta, que o legislador entendeu não estender aos terceiros a proibição do nº 2 do art 394º: «É que estes, não só não podem munir-se desse meio probatório escrito, como podem não ter acesso a ele, nomeadamente por ignorarem a sua existência»[12]

«Quando exista essa “contradeclaração” escrita que traduza a vontade real dos simuladores, seja ela no sentido de não celebrar qualquer negócio – simulação absoluta – seja no sentido de celebrar negócio diferente quanto a algum dos seus elementos – simulação relativa - o papel reservado à prova testemunhal é fácil de perceber: estará em causa a interpretação desse mesmo escrito».
Mas, as mais das vezes, não há essa “contradeclaração”, como sucede no caso dos autos.
 
E por isso cumpre saber se dos autos resulta a existência de um ou mais documentos escritos, dos quais, embora possa não resultar isoladamente, ou mesmo no seu conjunto, título suficiente de uma contradeclaração, esse documento ou conjunto de documentos possam valer como um começo de prova da simulação que torne admissível o recurso ao depoimento de testemunhas.
 Diz a este respeito, Carvalho Fernandes [13] «Não se exige que o documento crie no espírito do julgador a convicção da existência da simulação, pois isso equivaleria, como dizem Antunes Varela e outros, a fazer prova bastante ou suficiente desse facto. Não é isso que aqui está em causa pois, se assim fosse, não seria necessário o recurso à prova testemunhal. O que se exige é que o documento ou conjunto de documentos disponíveis no processo torne plausível, ou razoável, admitir a verosimilhança dos factos que, segundo a parte que os alega, qualificam a simulação, Por outras palavras, esses documentos têm de permitir, como um dos sentidos possíveis do seu conteúdo, a comprovação dos factos em que se traduz a simulação. A função que, por isso, fica reservada ao depoimento das testemunhas, não é mais do que a de trazer ao juiz os elementos que, a partir dos documentos disponíveis, lhe permitam, ou não, formar uma convicção da existência da simulação. Dentro da mesma ordem de ideias, fundando-se nesse começo de prova, de igual modo será lícito ao juiz, pela via de deduções lógicas, com base nas regras que a experiência nascida da observação das coisas da vida faculta, chegar à prova da simulação. Com efeito, neste caso, a base da prova é ainda documental, estando reservada à prova testemunhal ou por presunções um papel adjuvante».

            Feitas estas observações, cabe tentar a respectiva aplicação à situação dos autos, para se concluir pela admissibilidade, ou não, do recurso à prova testemunhal, e por presunções, para a prova da matéria contida na base instrutória.

Há de facto no caso em litígio um começo de prova documental.
Que se encontra no depósito a que a apelante alude na conclusão 12ª e a que acima se fez referência como constituindo um facto instrumental. Trata-se do depósito no valor de 4.500.000$00  realizado em 20 de Julho de 2000, correspondente à soma de dois cheques do montante de 2.250.000$00 cada um, bem como a circunstância desse valor de 2.250.000$00 se conter e andar muito próximo daquele que o A. invoca como tendo recebido da venda do imóvel herdado do pai.
Vejamos como o facto em causa adveio aos autos.

Pretendendo a R., ora apelante, consultar as contas da “C” e tendo visto deferida parcialmente essa sua pretensão – cfr despacho de fls 318- acabou por o fazer na sede da sociedade. Constatou então, como disso deu conhecimento nos  autos –fls 367- que no mês de Janeiro de 2000 – visto que o aumento de capital teve lugar em 11 desse mês – o elemento contabilístico que comprova a entrada na caixa social da sociedade dos 4.500.000$000 referentes a esse aumento de capital,  resulta de um depósito de dois cheques de 2.250.000$00, cujo depósito, no entanto, só veio a ter lugar em 20/7/2000, por isso, seis meses depois. Sobre esse assunto veio a ser junto aos autos – fls 378 – por iniciativa do A., um “relatório de verificação de entrada de capital”  subscrito por uma revisora oficial de contas, e do qual resulta, efectivamente que «em 20/7/20002 a sociedade depositou na sua conta bancária aberta no BES como nº ….. a quantia total de 4.500.000$00, que de acordo com o talão de depósito, corresponde à soma do valor de dois cheques do montante de 2.250.000$00 cada um», não estranhando a “Declaração” final desse relatório, segundo a qual, se refere:« Com base no trabalho efectuado, declaramos que o aumento de capital subscrito pelos sócio “H” ….. no montante de 2.250.000$00  ….foi a) efectivamente realizado em 20/7/2000 e deu entrada nos cofres da sociedade; b) realizado com fundos provenientes da sua conta bancária que para o efeito foi habilitada com entradas de fundos efectuados pelo próprio nesse mesmo dia».
 
Do que se conclui que apesar da venda do imóvel integrado na herança do pai do A. ter tido lugar em 21/6/1999, e, segundo o A., ter revertido para ele a totalidade do preço pago pelo comprador do mesmo - 2.500.000$00 - por os demais herdeiros terem renunciado à sua parte, o aumento de capital da sociedade através de numerário só teve lugar, “grosso modo” seis meses depois, mas com base num valor que só é efectivamente realizado outros seis meses depois, em Julho de 2000.

Estes factos, instrumentais, advindos de prova documental, acabam, salvo melhor opinião, e em função das discrepâncias temporais acima referidas, por não tornar plausível ou razoável, em termos de verosimilhança, que o conteúdo da adjudicação a todos os herdeiros resultante do inventário e o conteúdo da venda por todos eles do imóvel que constituía a verba nº 4 do mapa de partilha do mesmo inventário, e o correspondente recebimento por cada um deles da sua parte no preço da venda, não tenha, efectivamente, correspondido à verdade dos factos. Por outras palavras, os apontados elementos documentais não tornam verosímil a existência das apontadas simulações, em termos de poderem constituir um começo de prova das mesmas, que depois pudesse vir a ser interpretado, ou mesmo integrado, pelo concurso da prova testemunhal.
Na verdade, como se justifica que tendo o A. na sua posse desde 21/6/99 o valor necessário ao aumento de capital, este venha a ter lugar seis meses depois, mas sem a real entrada desse capital na sociedade, que só acontece, outros seis meses depois?!
 Admitir nesta situação de desarticulação temporal de documentos que os autos facultam, e que, como referido, em nada concorre para a plausibilidade da existência das referidas simulações, que se façam valer os elementos obtidos através da prova testemunhal, será, sem dúvida, transformar esta prova no elemento de prova mais relevante e significativo, com o inerente risco da respectiva falibilidade, que foi justamente o que o legislador no art 394º CC pretendeu afastar.

Com o que se conclui, pela inadmissibilidade da prova testemunhal e consequente e correlativamente, pela não prova de toda a matéria constante da base instrutória.

O que significa que o A., ao contrário do que se propôs na acção, não logrou provar que o valor correspondente ao (primeiro) aumento de capital tenha sido por ele realizado através de dinheiro obtido com a venda feita pelo preço de 2.500.000$00  do imóvel que constituiu a verba nº 4 do mapa de partilha do inventário que teve lugar pela morte do pai, e portanto, que o valor utilizado para esse aumento do capital social  constituía um bem próprio.

A consequência desta não prova resulta do disposto no art 1724º al b) - haverá de se concluir que o valor empregue nesse aumento de capital social – 2.250.000$00 – é bem comum do casal.

Sucede que esta conclusão não implica que a quota no valor nominal de 75 000, 00 €, que o A. detém na sociedade “C”, Comércio de Produtos Alimentares, Lda., tenha passado a constituir um bem comum do casal.

Como se refere no Ac STJ de 24/9/1996 [14], a propósito das normas dos arts 1722º n 1 al c) e 1723º do CC, «a ratio legis (destas normas) torna-se clara: aquilo que era próprio antes do casamento, deve continuar a sê-lo e para que tal desiderato não seja uma simples “boa intenção” subvertida pelas realidades da vida, o que já era próprio deve transmitir essa qualidade ao que aparecer em seu lugar. Este é um resultado da verdade substancial, em desfavor das simples sombras ou aparências. E é assim que o art 1723º CC tem de ser aplicado em sintonia, tanto quanto possível, com os princípios básicos deste instituto. Daí resulta que, harmónica e razoavelmente, a sub-rogação real directa ou indirecta, relativamente a bens que eram próprios, deve ter como resultado que os bens substitutos dos próprios, próprios devem ser. Ou então, a lógica, de lógica só tem o nome».

            Aliás, como o A. nos autos o fez salientar citando o Ac RL de 28/4/90 [15], «a quota social, nos regimes de casamento, só é comunicável quanto ao seu valor económico». A qualidade de sócio não se comunica ao outro cônjuge, nem mesmo no regime de comunhão geral de bens, como era o caso na situação da vida que estava em causa no acórdão atrás referido.

Portanto, a quota em causa nos autos, ainda que aumentada sucessivamente após o casamento do A. com a R. realizado em comunhão de adquiridos, não deixa de ser um bem próprio do A., porque a adquiriu em solteiro - cfr art 1722º/2 al a) CC.
O que a R. ora apelante tem direito é a “comungar” no âmbito patrimonial dessa quota, na medida em que os aumentos da mesma, realizados já na vigência do casamento, tenham advindo de proventos comuns.
 
O que já se viu que sucedeu com o aumento de capital realizado em 11/1/2000 porque o numerário utilizado pelo A. enquanto sócio dessa sociedade para esse efeito  -2.250.000$00 – pertence em metade à R. apelante.

E quer-se crer que nos demais aumentos de capital, embora realizados através de reservas livres da sociedade, também a R. comungará no seu valor patrimonial, embora aí, necessariamente que em valor indefinível matematicamente e só passível de ser obtido por recurso à equidade.
Com efeito, o aumento do capital por incorporação de reservas – disponíveis para o efeito, como o refere o art 91º/1 CSC – há-se resultar sempre «de uma situação sólida do património social para através dele se dilatar o capital social sem captação doutros fundos»[16]. E resultando as reservas livres de lucros do exercício não distribuídos, «poupanças aforradas que se constituem ou se mantêm por um desígnio fundamental de prudência financeira», não se poderá deixar de concluir que para o seu concreto montante não poderá ter deixado de intervir o aumento de capital social através de numerário em que a R, da forma já descrita, terá concorrido.

De uma maneira ou de outra, e visto que já se concluiu que a quota social em causa nos autos não perdeu a natureza de bem próprio, o que a R. poderá vir a ver definido – mas não nesta acção, em que tal não vem pedido reconvencionalemnete como poderia ter sucedido - é o montante dos créditos de compensação [17] a que tem direito o património comum.

Talvez seja de se incluir a quota em causa nos autos na situação a que se refere o art 1728º CC que dispõe que se «consideram próprios os bens adquiridos por virtude da titularidade de bens próprios que não possam considera-se como frutos destes, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum». De algum modo a situação em causa integrar-se-á – com alguma analogia - na referida na parte final da al c) deste art 1728º, onde se refere «valores adquiridos» (aqui pelo A.) por virtude de um «direito de subscrição» (a quota) que se reconhece a quem é dono do «titulo» que permitiu essa «subscrição».

Do que se veio de dizer resulta que a acção manter-se-á procedente.
Vinha pedido, apenas, e em termos de simples apreciação positiva, a mera declaração da existência de um direito: que a quota, no valor nominal de 75 000, 00 €, que o A. detém na sociedade “C”, Comércio de Produtos Alimentares, Lda., com o n.º de registo e matrícula ..., não constitui bem comum do casal, mas sim um bem próprio (dele A.).
E esse reconhecimento, como se viu, não pode ser negado.
E nada mais foi pedido na acção, nem pelo A., nem pela R., sequer nos termos incidentais a que se refere o art 96º/2 CPC.

Por isso, e apesar desta, na veste de apelante, ter visto neste recurso alterada a matéria de facto provada na 1ª instância e com essa alteração não elidida pelo A. a presunção de comunicabilidade referentemente ao valor de 2.250.000$00 utilizado para o aumento de capital na sociedade levado a efeito em 11/1/2000, nenhum reflexo tem esse resultado no mérito da causa.

Tão pouco na procedência do presente recurso, pois que com ele pretendia a apelante, o que não obteve: que a quota em causa nos autos fosse tida como bem comum (conclusão 2ª e 4ª), ou, ao menos, que, a ela recorrente, lhe fosse reconhecido o direito de ser compensada por metade do valor dos aumentos de capital (conclusão 5ª).
 Pelo que a sentença recorrida deverá, não obstante, e ainda que com fundamentos diversos dos nela utilizados, ser mantida.

V- Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.  
           
     Custas pela apelante.

Lisboa, 20 de Outubro de 2011
                                              
Maria Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
José Maria Sousa Pinto
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[1]- Só por essa via podem vir a ser referidos na matéria de facto que o tribunal teve como provada
[2]- Com efeito, diz-se nessa decisão:«….pese embora a outorga da respectiva escritura de aumento de capital tenha ocorrido em 11/1/2000, o valor correspondente só entrou nos cofres da empresa no mês de Julho desse mesmo ano (20/7/2000), ou seja, volvidos mais de seis meses, através de cheque emitido pelo A a favor da sociedade em causa, após este ter depositado na sua conta os valores necessários para o efeito, conforme referiu a testemunha Maria de Fátima Pereira,  ROC que confirmou o seu parecer de fls 378 a 381 dos autos, no qual, após análise da escrita contabilística da referida sociedade, atestou da proveniência desse dinheiro e da data da entrada na sociedade».
[3] - Em sentido contrário ao acima defendido, cfr  Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 1 723º, do Cód. Civil, que sustentam que se exige, para que haja sub-rogação dos bens próprios, que a proveniência do dinheiro ou valores com que os bens foram adquiridos, conste do próprio documento de aquisição ou de documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges, sendo que só esta intervenção simultânea no documento onde se mencione a proveniência dos meios com que a aquisição foi efectuada garante capazmente a veracidade da declaração, entendendo que essa solução perfilhada pelo legislador é a que  melhor corresponde ao interesse da segurança nas relações jurídicas e a que mais eficazmente acautela os interesses legítimos de terceiros contra as surpresas de uma prova incontrolável (Código Civil anotado, vol. IV, 2º ed.,págs. 424 a 427). È do mesmo entendimento  Rodrigues Bastos, e Rita Xavier,«Os limites da autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges»,p 367 e ss e em «A sub-rogação real indirecta de bens próprios nos regimes de comunhão» p 208. Perfilhando esta posição, entre outros, e consoante se dá notícia na decisão recorrida, Ac. do STJ, de 15 de Outubro de 1998, BMJ 480- 466; 25 de Maio de 2000, CJSTJ 2000, II, pág. 76; e da Rel. de Lisboa de 2 de Outubro de 2008, proferido no processo n.º 5146/2007-8  II, 1973, 138 s) Ac. do STJ, de 6 de Março de 2007, proferido no processo n.º 06A4619.
No sentido acima defendido, e referindo a jurisprudência citada na decisão recorrida: Ac. do STJ, de 14 de Dezembro de 1995, BMJ 452, pág. 437; de 24 de Setembro de 1996, BMJ 459, pág. 535; de 15 de Maio de 2001, CJSTJ, 2001, II, pág. 75; de 2 de Maio de 2002, na revista nº 4085/01, relatada pelo Conselheiro Sousa Inês (Edição Anual de 2002 do Boletim de Circulação Interna do STJ, pág. 173; de 24 de Junho de 2006, processo n.º 06A2720; de 6 de Março de 2007, proferido no processo n.º 0644619; da Rel. de Lisboa, de 19 de Novembro de 2009, proferido no processo n.º 478/08.4 TVLSB.L1.2; e da Rel. do Porto de 29 de Outubro de 2009, proferido no processo n.º 1047/06.9 TVPRT.P1
[4] - »Curso de Direito da Família», I, 4ª ed, p 522
[5] - Obra referida em 2 , p 521
[6] -Não se desconhece que o maior óbice ao entendimento perfilhado, advém da possibilidade de poder suceder que a qualificação de um bem como próprio possa mais tarde vir a ser mudada em face do conhecimento posterior da existência, à data daquela qualificação, de terceiros interessados. A respeito desta possibilidade e da relativização desse inconveniente, veja-se Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, obra citada, 522 e 523.
[7]- «Código Civil Anotado», 1987, p 343 
[8] - Vaz Serra tendo optado por uma solução inspirada no CC italiano e francês, formulou  nos trabalhos preparatórios do actual CC, uma proposta no sentido de admitir aos simuladores que fizessem uso, a titulo excepcional, da prova por testemunhas nos seguintes casos: existência de prova escrita «proveniente daquele contra quem a acção é dirigida ou do seu representante» ou quando por efeito «da qualidade das partes, da natureza do contrato ou de outra circunstância, seja verosímil que tenham sido feitas contradeclarações; impossibilidade moral ou material de prova escrita: E, não obstante esta sua proposta não ter sido acolhida no texto legal, nem por isso deixa de sustentar o mesmo ponto de vista, como decorre da RLJ Ano 103º, 1970/1971, nº 3406, p 5 e ss e RLJ 107º-1974/75 nº 3514, p 308 e ss
[9] -Entre outros, Carvalho Fernandes em «O Direito» Ano 124, 1992, IV ,“A prova da Simulação pelos simuladores» p 521 e ss; Mota Pinto, num parecer feito com a colaboração de Pinto Monteiro, in CJ Ano X (1985) III, 11 e ss
[10] -Obra atrás citada
[11]- Estudo de Carvalho Fernandes acima referenciado
[12] - De novo carvalho Fernandes no mesmo estudo
[13]- Estudo citado, p 606
[14]- Relatado por Cardona Ferreira e acessível em www.dgsi.pt
[15] - CJ- II, 166 relatado por Carvalho Pinheiro; no mesmo sentido, Ac RP 25/9/90, CJ IV, 220, relatado por Tato Marinho
[16]-  Pinto Furtado, «Curso de Direito das Sociedades», 5ª ed , 526
[17] - Os créditos por compensação pressupõem  um movimento de valores entre o património comum e o próprio de um dos cônjuges. Distinguem-se dos créditos entre cônjuges na medida em que estes pressupõem a transferência de valores entre patrimónios próprios – ver para esta distinção, Cristina Araújo Dias, «Uma análise do novo regime jurídico do divórcio», 2ª ed ,  p 63