Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10341/2004-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: MÉDICO
NEGLIGÊNCIA
ERRO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: 1. A responsabilidade extracontratual surge como consequência da violação de direitos absolutos, que se encontram desligados de qualquer relação pré-existente entre o lesante e o lesado (obrigação de indemnizar em consequência de um acidente de viação, por exemplo);
2. A responsabilidade contratual pressupõe a existência duma relação inter-subjectiva, que atribuía ao lesado um direito à prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa mesma relação (caso típico da violação de um contrato).
3. A responsabilidade civil médica admite ambas as formas de responsabilidade, pois o mesmo facto poderá, ao mesmo tempo, representar a violação de um contrato e um facto ilícito extracontratual.
4. Mas, no domínio da responsabilidade aquiliana, apenas a responsabilidade civil fundada em factos ilícitos é admissível (e não pelo risco ou por factos lícitos).
5. O erro médico pode ser definido como a conduta profissional inadequada resultante da utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorrectas que se revelam lesivas para a saúde ou vida de um doente. E pode ser cometido por imperícia, inconsideração ou negligência
6. Embora tradicionalmente, a doutrina fosse relutante em admitir a natureza contratual da responsabilidade médica, por repugnar a aceitação da culpa presumida do médico sempre que o tratamento não tivesse alcançado os objectivos desejados, é hoje aceite em todos os ordenamentos jurídicos que a maior parte das situações de responsabilidade médica, derivada de lesões corporais provocadas pelo médico, tem natureza contratual.
7. Em regra, a relação entre o médico de clínica privada e o doente que o procura configura uma relação contratual, um contrato de prestação de serviços, ou um contrato médico, pelo que lhe serão aplicáveis as regras da responsabilidade contratual.
8. Pode acontecer, contudo, que o dano se mostre consequência de um facto que simultaneamente viole uma relação de crédito e um dos chamados direitos absolutos, como o direito à vida ou à integridade física, ou seja: pode suceder que exista uma situação susceptível de preencher os requisitos de aplicação dos requisitos da responsabilidade contratual e extracontratual.
9. Na maior parte dos casos, a responsabilidade do médico, exercendo clínica em regime de profissão liberal, é de natureza contratual, sendo tal obrigação de meios e não de resultados
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.
Maria...., presentemente representada pelos seus herdeiros habilitados, ....., interpôs a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra “Clínica ... Lda.”, com sede ....em Lisboa e contra M., médico.

A então A. pediu a condenação dos RR. a pagarem-lhe a quantia de 31.372.O00$00, sendo 1.372.000$00 por danos materiais e 30.000.000$00 por danos não patrimoniais, bem como todas as restantes despesas com o caso relacionadas e que viessem a ser determinadas em execução de sentença.

Alegou, para tanto, que, em Maio de 1995, recorreu aos serviços da R. para a realização de exames de rotina de mamografía bilateral e eventual eco, se necessário, e uma ecografia ginecológica.
Tais exames foram realizados pelo R., que é o médico responsável da R., não tendo o relatório do mesmo diagnosticado nada de anormal.
Confiando em tal diagnóstico, a A. não adoptou qualquer outro cuidado médico não aconselhado pelo resultado do exame.
Todavia, em Maio de 1996, a A. veio a descobrir, na sequência de exames médicos, que tinha uma lesão neoplásia maligna plurifocal, em evolutividade, no seio direito.
Na sequência de ulteriores exames, veio a apurar-se que se tratava de uma disseminação metastásica óssea na calote craniana e coluna com fractura patológica de D7, não sendo já possível a abordagem cirúrgica.
Sucede que o exame feito na clínica R., e da autoria material do R. médico, revelava já sinais evidentes da existência de uma situação anormal no seio direito onde, passado cerca de um ano, veio a ser detectada a neoplasia, sendo certo que o R. nada diagnosticou no seu relatório.
As afecções suspeitas já reveladas pela mamografia realizada pelo R. aconselhariam, no mínimo, a realização de mais aprofundados exames.
Se tal diagnóstico tivesse sido feito, a A. não se encontraria na situação que está, impossibilitada de obter a cura e desprovida de forças para combater a doença.
O R. violou, assim, as legis artis da sua profissão, actuando de forma negligente.
Em consequência directa da actuação dos RR., a A. teve despesas de 700.000S00 com médicos e exames e pagou 672.000S00 a terceiros para prestação de serviços domésticos.
A título de indemnização pela prostração física e psíquica, pelas perturbações no seu equilíbrio emocional e física da família (em particular de um filho deficiente que tem a seu cuidado), pela tristeza, desespero, angústia, abatimento, a A. peticiona uma indemnização de 30.000.000$00.
**
Contestando, por impugnação, os RR. argumentam que não sabem se houve ou não um erro em qualquer ponto do procedimento que conduziu à elaboração do relatório apresentado pela A., sendo certo que uma mamografía é um mero auxiliar de diagnóstico, a ser ponderado pelo médico assistente da doente, em conjunto com outros elementos, nomeadamente com o exame directo da doente, sendo que a médica de família da A. nada detectou antes da realização do exame, uma vez que este foi pedido e feito por mera rotina.
Por outro lado, dizem, é possível que ocorra o desenvolvimento de uma lesão idêntica à da A. no espaço de um ano.
Alegam ainda os RR não ser verdade que a detecção precoce de uma neoplasia permita sempre a sua cura ou que possibilite dispensar tratamentos penosos.
Concluem, assim, pela improcedência da acção.
**
Procedeu-se a audiência de julgamento, tendo o Tribunal respondido à matéria controvertida como consta de fls. 173 a 175.

Foi depois proferida a competente sentença, da qual foi interposto recurso.
Por douto acórdão deste Tribunal da Relação foi decidido anular o julgamento para ampliação da matéria de facto, eliminando-se parte de um facto dado como assente e inserindo-se o mesmo na base instrutória.
Na sequência, e com o âmbito, do despacho de fls. 286, repetiu-se a audiência de julgamento, tendo a prova testemunhal sido gravada.
A fls. 341 foi proferida a decisão relativa ao facto então controvertido.
Seguidamente foi proferida a competente sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e em consequência os RR condenados solidariamente a pagarem aos AA:
a) a quantia de 6.843,51 euros a título de danos patrimoniais;
b) todas as restantes despesas derivadas da doença da falecida, que foi autora, a determinar em execução de sentença;
c) a quantia de 50.000,00 euros a título de danos não patrimoniais.

Dela recorreram os RR formulando as seguintes conclusões:
A) Em causa no presente recurso está a condenação dos Apelantes a pagarem solidariamente à Apelada, em sede de responsabilidade civil, a quantia de 6.843,51 euros mais despesas a liquidar em execução de
sentença a título de danos patrimoniais, bem como o montante de
50.000,00 euros a título de danos não patrimoniais, em virtude de um erro
de diagnóstico cometido pelo Apelante médico;
B) Para este efeito, o Tribunal "a quo", partindo do sistema do cúmulo de responsabilidades contratual e extracontratual, considerou (i) a existência de um ilícito culposo traduzido na não detecção de uma neoplasia na análise da mamografia da Apelada efectuada na Apelante Clínica em 1995, e (ii) a verificação do nexo de causalidade entre este ilícito e dois danos, a saber, a diminuição das probabilidades da A. debelar a neoplasia maligna e, em qualquer circunstância, a diminuição da esperança de vida da A.;
C) Acontece que, atenta a factualidade provada - contratação dos serviços de radiologia da Apelante Clínica - em causa está um ilícito contratual na alegada vertente de cumprimento defeituoso, o que determina, na nossa ordem jurídica a aplicação do regime consagrado para a responsabilidade civil contratual, salvo quando exista remissão expressa ou implícita para o regime da responsabilidade civil extracontratual;
D) Daqui deriva que, e sem conceder, com base na causa de pedir alegada pela Apelada e na matéria provada, só a Apelante Clínica poderia ser condenada, donde a violação pela decisão recorrida do disposto no art.
800°, n° 1, do C.C;
E) Depois, não basta constatar a existência de um ilícito médico, aqui erro de diagnóstico, há que verificar se este erro é culposo;
F) Ora, por não ter valorado correctamente a prova produzida e por não ter tido em consideração um artigo científico constante dos autos, o qual releva como parecer técnico, e donde resulta a variabilidade e falibilidade na interpretação de mamografias por radiologistas mesmo em situação de teste, o Tribunal "a quo" cometeu um erro de julgamento, em cuja base se encontra o critério, aliás, errado, do bom profissional da categoria e especialidade do devedor, considerando de negligência grosseira a actuação do Apelante médico, quando, ao invés, não existe, com base no
critério do especialista médio - homem médio - e nos referidos elementos,
qualquer culpa do Apelante médico;
G) A sentença recorrida viola, assim, consequentemente, o art. 487°, n° 2, ex vi art. 799°, n° 2, do CC;
H) Depois, não existe nexo de causalidade entre os danos sofridos pela Apelada e o erro de diagnóstico do Apelante médico, e isto simplesmente porque quer os danos patrimoniais, presentes e futuros - despesas médicas - quer os danos morais - sofrimento - decorrem directamente da doença de que a Apelada padece e já padecia, não se demonstrando que pudessem ter sido sequer agravados com o ilícito médico cometido;
I) Na verdade, no que a este nexo quanto aos danos patrimoniais especificamente concerne, entendem os Apelantes existir erro de julgamento da matéria de facto constante do quesito 11o da base instrutória, cuja resposta positiva expressamente se impugna com base nos depoimentos das testemunhas Dr.... e Dr. ..., dos quais resulta inequivocamente que tal resposta parte de dados estatísticos sendo igualmente plausível resposta diversa, donde perante a dúvida quanto à prova do facto constante daquele quesito, impendia sobre o julgador considerar tal matéria não provada por aplicação do disposto nos arts. 342°, n° 1, e 346°, do CC, que assim foram violados;
J) Aliás, e agora quanto ao nexo de causalidade em matéria de danos morais, e perdoe-se a expressão, a fuga para a frente traduzida na consideração como dano indemnizável a diminuição das probabilidades da A. debelar a neoplasia maligna e, em qualquer circunstância, a diminuição da esperança de vida da A, revela justamente a ausência de nexo de causalidade adequada entre o erro de diagnóstico cometido e os danos sofridos pela Apelada;
K) Ora, como se admite, mesmo que o diagnóstico do Réu tivesse sido o correcto e, na sequência de exames complementares, fosse logo detectada a neoplasia maligna, não é possível quantificar as probabilidades de cura efectiva da Autora porquanto a evolução de tal neoplasia não é absolutamente previsível;
L) Só que o direito não cuida de estatísticas, nem de probabilidades, exige a prova da causalidade do dano e da sua relação com a culpa, sob pena de a culpa, e sem conceder, poder fundamentar a responsabilidade do médico por um dano que não causou com a consequente porta aberta sem limites à responsabilidade civil profissional;
M) Por isso, falar do dano constituído pela perda de uma possibilidade em matéria de responsabilidade médica é um sofisma porque, dado o carácter aleatório e incerto da medicina, não se pode afirmar que existem possibilidades para um paciente concreto, só se pode falar de possibilidades estatísticas. Este extremo tem uma grande relevância: é impossível aplicar as estatísticas de uma doença determinada a um doente em particular, porque a peculiaridade de cada doente não cabe na abstracção e generalidade das estatísticas; a um paciente, que vai a caminho de um cirurgião, pode-lhe servir de consolo a constatação de que aquela intervenção tem um determinado índice estatístico de resultados positivos, porque pensa que poderá ser incluído nestes, mas isto não oferece nenhuma garantia nem ao médico nem ao doente, porque as estatísticas entendem de generalidades e o homem doente é o caso concreto;
N) Decidindo o contrário, a sentença recorrida peca por má interpretação do direito aplicável, violando, consequentemente, o disposto nos arts. 563° e 564°, do C.C.;
0) Finalmente, e sempre sem conceder, também na fixação do montante indemnizatório a nível de danos morais - 50.000,00 euros-, a sentença recorrida erra na interpretação e aplicação da lei;
P) Na verdade, mesmo admitindo-se a existência de erro médico culposo e a sua causalidade adequada ao sofrimento da Apelada, verdade é que, atenta a falibilidade dos radiologistas na interpretação de mamografias, com uma margem de erro de 30% na detecção do cancro da mama, a culpa do Apelante médico sempre seria leve, donde a plena aplicação do disposto no art. 494°, do CC;
Q) Por outro lado, sabendo-se que só a gravidade dos danos morais merece a tutela do direito, revela-se injusta a repercussão sobre os Apelantes de todo o sofrimento da Apelada, infligido pela doença de que esta padece e padecia, e isto ainda quando se entenda que para tal contribuiu a conduta dos Apelantes;
R) Pelo que, também aqui, a sentença recorrida peca por má interpretação do direito, violando, consequentemente, o disposto nos arts. 494° e 496°, do CC.

Os apelados pedem a confirmação da sentença.
**
Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.

Por razões de ordem prática far-se-á sempre referência à “autora”, como sendo a primitiva autora, excepto na parte decisória.

Da 1ª instância vêm provados os seguintes factos:
1 - Por requisição da sua médica de família, Dra. S.., a Autora
recorreu aos serviços da Ré, em Maio de 1995, para aí realizar, como exames
de rotina, uma mamografia bilateral e eventual eco se necessário e uma
ecografia ginecológica (A);
2 - Quer a mamografia quer o exame ginecológico foram efectuados
pelo Dr. M... que é, ademais, o clínico responsável da Ré (B);
3 - A Ré entregou à Autora as películas correspondentes aos mesmos
exames acompanhadas do respectivo relatório, que constitui o doc. n° l que
se dá aqui para todos os efeitos por integralmente reproduzido (C);
4 - Assim, relativamente à mamografia - único daqueles dois exames
que à presente acção importa - o réu, seu autor material, diz expressamente no
relatório em apreço que não se observam imagens de lesões nodulares nem
de microcalcifícações (D);
5 - Confiada no diagnóstico do Réu acabado de mencionar, a Autora não repetiu o mesmo tipo de exame nem adoptou outros cuidados médicos especiais, não aconselhados pelo resultado do exame em apreço (Io);
6 - As películas de mamografia realizada pelo Réu revelavam afecções suspeitas no seio direito traduzidas em condensação dispersante no quadrante superior externo do referido seio (3o);
7-0 mesmo Réu, no relatório atrás mencionado, não fez qualquer referência à existência das afecções referidas em 6. que aconselhariam novos e mais aprofundados exames para a respectiva despistagem (4o);
8 - Uma mamografia é um mero auxiliar de diagnóstico, a ser
ponderado pelo médico assistente da doente no conjunto com outros
elementos, designadamente o exame directo da doente (6o);
9 - No dia 23 de Maio de 1996, a Autora detectou uma acentuada
umbilicação do mamilo da mama direita (E);
10 - Consultou imediatamente a sua médica ginecologista e procedeu
logo de seguida a novos exames mamográficos, desta feita na Clínica de.... Belém (F);
11 - Na mamografia então realizada naquela clínica, mais precisamente
no dia 24.5.96, e de que foi responsável o Dr. P..., o respectivo
relatório - que ora se junta como doe. n°2 - diagnosticava, desgraçadamente e
de forma inequívoca, a presença de uma lesão neoplásica maligna plurifocal
em evolutividade no seio direito (G);
12 - E já nesse mesmo relatório se assinalava também a existência, no
prolongamento axilar do mesmo seio, de múltiplas formações nodulares
atribuídas pelo autor do exame a gânglios de características necessariamente
suspeitas atendendo à lesão descrita (H);
13 - Escassos dias após ter tido conhecimento deste dramático
diagnóstico, a Autora foi encaminhada para o Dr.... Alves,
médico do Hospital da Cruz Vermelha, cujo primeiro exame revelou que a
Autora apresentava um extenso tumor do seio direito (I);
14 - Entretanto o mesmo médico, perante os sinais evidenciados,
mandou proceder a outros exames complementares de diagnóstico mais
profundos (J);
15 - Os quais foram efectuados , uns em Junho de 1996, e outros em
Setembro do mesmo ano (K);
16 - Acontece que esses exames, cujos relatórios se juntam como does.
4. 5 e 6, vieram revelar que não se estava já perante uma neoplasia
embrionária mas antes face a uma situação mais vasta, profunda e gravemente
generalizada (L);
17 - Situação essa que o Dr..... Alves descreve como
tratando-se de uma disseminação metastásica óssea na calote craniana e
coluna com fractura patológica de D7 (M);
18 - Acontece que o estado evolutivo da doença em causa era de tal
modo que o mesmo médico considerou que, perante o que acabara de ler nos
exames referidos, a abordagem terapêutica indicada não era a cirúrgica mas
sim a quimioterapêutica citostática sistémica (N);
19 - Decisão em que foi secundado pelo seu colega Dr. E..., conforme se alcança do mesmo doc. n° 3 (O);
20 - Se o diagnóstico referido em 6 tivesse sido feito, as probabilidades
de debelar a neoplasia maligna da Autora seriam superiores e a esperança de
vida da mesma seria sempre superior (5o);
21- A Autora teve até agora os seguintes prejuízos materiais: despesas
com médicos e exames - 700.000S00; despesas com a contratação de terceiros para serviços domésticos de Agosto de 1996 a Janeiro de 1998- 672.000$00 (P).
22 - A situação de prostração física e psíquica da Autora causou perturbações no equilíbrio emocional e físico da família em
particular de um filho deficiente que tem ainda ao seu cuidado (Q);
23 - A Autora era uma pessoa cheia de energia e vitalidade e o único amparo do marido e daquele filho deficiente, para além de ser ela quem organizava e assegurava toda a vida familiar (R);
24 - A Autora ficou num profundo e insuperável estado de tristeza, desespero, angústia e abatimento, agravado pela impotência em continuar a acorrer à ajuda essencial que prestava àqueles seus familiares (S).
25- O referido em 21 foi consequência directa da actuação dos RR (11).

Por ter interesse para a decisão da causa dá-se também como provado que a autora faleceu em 05.02.01

O DIREITO.
Questões a decidir:
1. Eventual alteração da matéria de facto;
2. Caracterização do contrato celebrado entre A e RR;
3. A culpa e responsabilidade dos RR;
4. Montante dos danos.

I
Na sequência do acórdão já proferido neste Tribunal e atrás referido foi elaborado o quesito nº 11.
Da alínea P) da especificação constava: Deste modo, a autora, em consequência directa da actuação dos RR, teve até agora os seguintes prejuízos materiais:
despesas com médicos e exames: 700.000S00
despesas com a contratação de terceiros, para serviços domésticos, de Agosto de 1966 a janeiro de 1998: 672.000$00.
Naquele acórdão foi decidido que tal alínea deveria ser alterada no sentido de passar para o questionário a sua primeira parte, ou seja, “em consequência directa da actuação dos RR”.
E isto porque foi entendido que embora não tivessem sido contestados os valores dos danos, o mesmo já não sucedeu quanto ao nexo de causalidade entre esse dano e o facto (ilícito) imputado aos RR.
Por isso foi formulado um novo quesito com a seguinte redacção: “o referido em P foi consequência directa da actuação dos RR?”
E após nova audiência de julgamento foi respondido “provado”.
Por isso consta agora do nº 25 dos “factos provado”: “o referido em 21 foi consequência directa da actuação dos RR” ( o nº 21 corresponde à alínea P).
Portanto, a matéria de facto agora dada como provada é exactamente a mesma do primeiro julgamento.
........
........
Nesta conformidade, altera-se a resposta ao quesito nº 11 nestes termos:provado apenas que algumas das despesas referidas em P foram feitas em consequência directa da actuação dos RR”.
II
Em Maio de 1995, a A recorreu aos serviços da R a fim de efectuar uma mamografia e eventual eco, bem como uma ecografia ginecológica. E esses exames foram efectivamente feitos pelo ora réu, que é o médico responsável da co-ré clínica.
Feitos os exames, a ré entregou à autora as películas correspondentes aos mesmos, acompanhadas do respectivo relatório.
Assim, relativamente à mamografia - único exame que agora está em causa - o réu, seu autor material, diz expressamente naquele relatório: “não se observam imagens de lesões nodulares nem de microcalcifícações”.
Confiada no diagnóstico do réu, a autora não repetiu o mesmo tipo de exame nem adoptou outros cuidados médicos especiais.
A verdade é que as películas da mamografia já revelavam então afecções suspeitas no seio direito.
Entretanto, no dia 23 de Maio de 1996, a autora detectou uma acentuada umbilicação do mamilo da mama direita, pelo que consultou imediatamente a sua médica ginecologista e procedeu de seguida a novos exames mamográficos noutra clínica
Na mamografia realizada nesta clínica, mais precisamente
no dia 24.5.96, foi diagnosticada, de forma inequívoca, a presença de “uma lesão neoplásica maligna plurifocal em evolutividade” no seio direito.
E já nesse relatório se assinalava também a existência, no
prolongamento axilar do mesmo seio, de “múltiplas formações nodulares”
atribuídas pelo autor do exame “a gânglios de características necessariamente
suspeitas atendendo à lesão descrita neste seio”.
Escassos dias após ter tido conhecimento deste diagnóstico, a autora foi encaminhada para um médico do Hospital da Cruz Vermelha, cujo primeiro exame revelou que apresentava um extenso tumor do seio direito.
Acontece que o estado evolutivo da doença em causa era de tal
maneira grave que o médico considerou que, perante o que acabara de ler nos exames referidos, a abordagem terapêutica indicada não seria já a cirúrgica mas sim a quimioterapêutica citostática sistémica.
Todavia, como se provou, se o diagnóstico referido tivesse sido feito pelo ora réu em Maio de 1995, as probabilidades de debelar a neoplasia maligna seriam superiores e a esperança de vida da doente seria sempre superior.

Assim, a questão que se coloca é a da responsabilidade civil dos réus perante os factos descritos.
Na sentença recorrida, partindo-se da consideração de que, sem embargo da regra da natureza contratual da responsabilidade médica, existem casos em que a conduta do médico pode configurar uma situação de responsabilidade extracontratual (v.g. ofensas corporais), bem como as situações que os danos causados pelo médico no decurso do tratamento não têm nenhuma conexão funcional com o mesmo, colocou-se a questão de saber se o doente - perante a conduta do médico que integra simultaneamente violação do contrato e ilícito extracontratual- poderia recorrer a ambas as tutelas ou apenas a uma delas. E concluiu-se no sentido de que, facultar ao lesado a escolha entre o regime que melhor o protege no caso concreto é a solução que melhor se coaduna com o princípio do favorecimento da vítima. “Admitir que, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços sui generis fossem impunes condutas que – na ausência do contrato – integrariam responsabilidade aquiliana, constituiria o paradigma da não protecção do doente”, pode ler-se ainda na douta sentença.
Aceita-se, assim, a doutrina do concurso de responsabilidades. O que implica que haja uma única acção, a que corresponde no plano material um único direito, que tem como objecto unitário o ressarcimento do dano, mas que pode ser fundamentada em diversas normas (1).
A sentença recorrida conclui, pois, pela verificação cumulativa da responsabilidade civil contratual e extracontratual, optando depois pela aplicação da responsabilidade extracontratual, por considerar ser o instituto que melhor se coaduna com o princípio do favorecimento da vítima.
Parece-nos, contudo, que mais importante do que saber se estamos perante um caso de responsabilidade contratual ou extracontratual, ou se é admissível o chamado “concurso de responsabilidades”, o que principalmente importa averiguar é se o réu agiu de forma negligente e, por isso, deve ser responsabilizado pelas consequências do seu acto.
No entanto, sempre se tecerão algumas considerações sobre o tema, o que, de resto, também foi feito, e bem, na douta sentença recorrida.
A responsabilidade civil (conjunto de factos que dão origem à obrigação de indemnizar os danos sofridos por outrem) pode ser classificada em responsabilidade contratual e extracontratual ou aquiliana (ou obrigacional e extra-obrigacional ou delitual, conforme os autores).
Em qualquer dos casos, a responsabilidade civil consiste na obrigação de o lesante reparar os danos sofridos pelo lesado. E aqui cabe tanto a responsabilidade proveniente da falta de cumprimento duma obrigação como a resultante da violação de direitos absolutos, como melhor se verá.
O Código Civil trata separadamente as duas modalidades de responsabilidade (nos artigos 483º e s.s. a resp. extracontratual e nos artºs. 798º e s.s. a resp. contratual). Mas, nos artigos 562º e s.s. sujeita-se ao mesmo regime.
E embora sujeitas, em boa parte, a um regime comum, podem assinalar-se algumas diferenças de largo alcance prático:
1. Na resp. extracontratual, geralmente, a culpa não se presume (artº 487º, nº 1), ao contrário do que acontece na obrigacional (artº 799º, nº 1);
2. O regime da resp. por acto de terceiros é diferente (artºs. 500º e 800º);
3. Os prazos de prescrição são diferentes;
4. Nos casos de pluralidade de responsáveis, na responsabilidade aquiliana o regime aplicável é o de solidariedade (artº 497º do CC), o que não sucede no domínio da responsabilidade contratual, pois só é admitida quando resulte da lei ou da vontade das partes (artº 513º).
Portanto, embora entre nós existam algumas diferenças de regime, também existem inúmeras semelhanças (quanto a estas ver artº 562º e s.s.).
No que se refere às diferenças essenciais entre os dois regimes, parece-nos que nada de significativo é relevante para o caso sub judicio, uma vez que a questão relativa ao ónus da prova, que poderia ser da maior importância, praticamente não se coloca. A maior dúvida suscita-se quanto à relação jurídica existente entre os RR, mas que estes praticamente não discutem.
A responsabilidade obrigacional resulta do incumprimento de uma ou mais obrigações. Supõe, pois, a falta de cumprimento de uma obrigação.
E como em regra a responsabilidade obrigacional resulta da falta de cumprimento dum contrato é que se diz contratual. Mas nem sempre a responsabilidade obrigacional provém da violação dum contrato, podendo resultar da falta de cumprimento doutro negócio jurídico.
A responsabilidade extra-obrigacional (2) pode definir-se, em relação à obrigacional, por exclusão de partes (resulta da violação duma regra geral relativa à conduta, de deveres genéricos de respeito, de normas destinadas à protecção de outrem). A responsabilidade aquiliana nasce, pois, quando o dano resulta de infracção de um dever geral de conduta.
Enquanto que a responsabilidade extracontratual surge como consequência da violação de direitos absolutos, que se encontram desligados de qualquer relação pré-existente entre o lesante e o lesado (obrigação de indemnizar em consequência de um acidente de viação, por exemplo), a responsabilidade contratual pressupõe a existência duma relação inter-subjectiva, que atribuía ao lesado um direito à prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa mesma relação (caso típico da violação de um contrato).
Nesta conformidade, aceita-se que a responsabilidade civil médica admite ambas as formas de responsabilidade referidas. É que o mesmo facto poderá, ao mesmo tempo, representar a violação de um contrato e um facto ilícito extracontratual. Mas, no domínio da responsabilidade aquiliana, apenas a responsabilidade civil fundada em factos ilícitos é admissível (e não pelo risco ou por factos lícitos).
Todavia, parece-nos que no caso sub judice a responsabilidade do médico deriva apenas da violação do contrato. Com efeito, não vemos que tenham sido violados direitos absolutos que se encontrem desligados da relação contratual estabelecida e que ficou descrita.
III
Por razões várias que aqui não cabe averiguar, os casos de negligência médica estão a tornar-se mais frequentes nos tribunais portugueses nos últimos anos.
Mas nem sempre é fácil discernir até que ponto existe efectivamente erro médico, uma actuação negligente, ou apenas falta de meios para um correcto diagnóstico. No entanto, casos têm surgido em que é nítida a falta de cuidados nos serviços de saúde e o desinteresse revelado pelos respectivos profissionais no atendimento e tratamento dos doentes, quer a nível hospitalar (público ou privado), quer a nível da própria clínica.
E é preciso não esquecer que um dos direitos fundamentais do cidadão é precisamente o direito à saúde (artº 64º da CRP). E é em parte a tomada de consciência desse direito que leva os lesados a responsabilizar a classe médica, nomeadamente, a nível da responsabilidade civil, que é o que agora nos interessa considerar.
Entre estes comportamentos anti-éticos avultam o erro médico e em especial o erro por negligência.
“O erro médico pode ser definido como a conduta profissional inadequada resultante da utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorrectas que se revelam lesivas para a saúde ou vida de um doente” (3). E pode ser cometido por imperícia, inconsideração ou negligência
É geralmente entendido que a responsabilidade do médico é, em princípio, de natureza contratual (4). Com efeito, é hoje aceite em todos os ordenamentos jurídicos que a maior parte das situações de responsabilidade médica, derivada de lesões corporais provocadas pelo médico, tem natureza contratual. Mas, tradicionalmente, a doutrina era relutante em admitir a natureza contratual da responsabilidade médica, por repugnar a aceitação da culpa presumida do médico sempre que o tratamento não tivesse alcançado os objectivos desejados. E, na verdade, não será fácil ao médico, em certos casos, ilidir a presunção de culpa, quando tal presunção se verifique.
Essa relutância foi porém ultrapassada pela distinção feita por Demogue (5) entre “obrigações de meios” e “obrigações de resultado”.
É obrigação de meios aquela em que o devedor se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza (v.g. a obrigação do médico de empregar o seu saber tendente à cura do doente, mas não se comprometendo à cura efectiva). A obrigação de resultados verifica-se quando se conclua da lei ou do negócio jurídico que o devedor está vinculado a conseguir um certo efeito útil (v.g. a obrigação de entregar determinado objecto em determinado local) (6).
“O contrato médico é uma convenção estabelecida entre o médico e o doente, ou um seu representante, pelo qual o médico aceita, a pedido do doente, ministrar-lhe os seus serviços, para os quais a sua profissão, legalmente, o habilita” (7).
Assim, em regra, a relação entre o médico de clínica privada e o doente que o procura configura uma relação contratual, um contrato de prestação de serviços, ou um contrato médico, pelo que lhe serão aplicáveis as regras da responsabilidade contratual.
Trata-se de um contrato de prestação de serviços, mais propriamente um contrato médico ou um contrato socialmente típico que se insere na categoria dos chamados contratos de prestação de serviços (8), isto é, um contrato oneroso (em regra), sinalagmático, celebrado geralmente intuitu personae, com algumas características peculiares que necessariamente o distinguem da generalidade dos contratos deste género (dado o seu carácter sui generis), como é geralmente reconhecido por quase toda a doutrina nacional e estrangeira. E tem como características específicas ser um contrato essencialmente pessoal e um contrato que, em princípio, não obriga a um resultado, isto é, o médico não se obriga a curar o doente, mas apenas prestar-lhe os cuidados considerados úteis e necessários à eventual cura.
A relação entre o doente e o médico nasce, assim, em regra, através de um contrato de prestação de serviços, visando o tratamento daquele, tendo por finalidade restituir-lhe a saúde, suavizar-lhe o sofrimento e salvar-lhe ou prolongar-lhe a vida.
O médico deve, por isso, agir segundo as exigências da legis artis e os conhecimentos científicos existentes na época, actuando de acordo com o dever objectivo de cuidado.
Pode acontecer que o dano se mostre consequência de um facto que simultaneamente viole uma relação de crédito e um dos chamados direitos absolutos, como o direito à vida ou à integridade física” (9). Ou seja: pode suceder que exista uma situação susceptível de preencher os requisitos de aplicação dos requisitos da responsabilidade contratual e extracontratual. Nesses casos, verifica-se, simultaneamente, a violação dum contrato e de um dever geral de conduta (10). Então há que averiguar se o doente poderá invocar simultaneamente as normas correspondentes à responsabilidade contratual e à responsabilidade aquiliana, consoante lhe sejam mais favoráveis.
É que se admite, na doutrina e na jurisprudência, um concurso de responsabilidades.
Por isso tem-se discutido quais as consequências jurídicas do concurso de ambas as espécies de ilícito civil, sendo defendidas duas teorias: a do sistema do cúmulo e a do sistema do não cúmulo.
No acórdão da RC, de 04.04.95. (CJ Ano 95-II-31) considerou-se justamente que “um dos casos em que é admissível o concurso de pretensões, por cumulação de responsabilidades, é a dos médicos e enfermeiros”.
Tal entendimento parece basear-se na doutrina defendida por Miguel Teixeira de Sousa (11): “o médico que realiza, por observação descuidada do paciente, um diagnóstico errado ou o cirurgião que descura negligentemente os cuidados técnicos adequados à operação respondem tanto obrigacionalmente por violação de um contrato de prestação de serviços (artº 1154º do CC) como delitualmente por ofensa à integridade física do paciente (artº s. 70º, nº 1 e 483º, nº 1 do CC”.
Mas também se refere no mesmo acórdão: “duvidoso é se existe aqui um concurso de normas ou simplesmente um concurso de pretensões; isto é, se existe um único direito material a exercer numa única acção, fundamento em diversas normas, ou se existe um concurso de pretensões ou de acções”.
Os apelantes defendem que não se encontra consagrado entre nós o regime do cúmulo de responsabilidades, pelo que, quando, em abstracto, a conduta do agente viole simultaneamente uma relação de crédito e um direito absoluto, deverá ser aplicado o regime da responsabilidade contratual em aplicação de um princípio de consunção. E concluem que ao caso deve ser aplicado o regime da responsabilidade contratual.
Almeida Costa (12) pronuncia-se pela não aplicação do sistema do cúmulo: se de um vínculo negocial resultam danos para uma das partes, o pedido de indemnização deve alicerçar-se nas regras da responsabilidade contratual. A mesma directriz impõe-se quando o facto que produz a violação do negócio jurídico – ou melhor, da relação que dele deriva – simultaneamente preenche os requisitos da responsabilidade aquiliana. Esta solução mostra-se correcta no plano sistemático e no da justiça material”.
Todavia, acrescenta o mesmo professor que «as hipóteses de concurso da responsabilidade contratual e da extracontratual, aqui abordadas, reconduzem-se à figura do concurso aparente, legal ou de normas. Quer dizer, trata-se de situações em que só “aparentemente” se pode falar de um concurso, já que nos deparamos com uma única conduta ilícita – a merecer, portanto, uma só indemnização».
Mas a questão não é pacífica como se acentua na citada obra (13).
Todavia, como bem se refere neste mesmo estudo (pag. 194) “não há dois danos distintos, nem há duas condutas diferentes, nem do ponto de vista naturalístico, nem no plano jurídico. O que há são dois regimes legais de protecção do lesado que prevêem tal conduta e visam reparar tal dano. Mas cada regime com a sua teleologia própria”.
O sistema que exclui o cumulo consiste precisamente na aplicação do regime da responsabilidade contratual, em virtude de um princípio de consunção.
Ora, existindo um único dano, resultante de um único facto, nada justifica a duplicação de acções ou concorrência de pretensões. Tal como não se justifica que o lesado beneficie, na mesma acção, das normas que considere mais favoráveis de cada um dos regimes. Mais discutível será se se deve admitir a chamada teoria da opção, ou seja, deixar-se ao lesado a escolha de uma acção baseada no ilícito contratual ou no ilícito extracontratual (numa acção invocaria a responsabilidade contratual e noutra a responsabilidade extracontratual).
E embora a solução seja a mesma, no caso sub judice , parece-nos de optar pelo sistema do não cúmulo. À unidade de conduta e do dano corresponderá necessariamente a unidade de pedido e de indemnização. Daí que não se veja que tenha cabimento admitir-se que o lesado possa socorrer-se na mesma acção (ou seja, simultaneamente) das normas da responsabilidade contratual e extracontratual ou aquiliana. Se de um vínculo negocial resultam danos para uma das partes, o pedido de indemnização deve alicerçar-se nas regras da responsabilidade contratual (14).
A doutrina e jurisprudência consideram geralmente que a obrigação contratual do médico é uma obrigação de meios, porquanto, em princípio, o médico não pode nem deve prometer a cura do doente, limitando-se a dispensar-lhe os cuidados julgados necessários. É que a cura não depende apenas da actuação do médico, ainda que perfeita, em conformidade com os conhecimentos obtidos em cada época. E, tratando-se de uma obrigação de meios, cabe ao paciente demonstrar que o médico, na sua actuação, atentas as exigências da legis artis e os conhecimentos científicos então existentes, violou os deveres objectivos de cuidado, que não agiu em conformidade com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, puderem conduzir à produção do resultado pretendido. É, pois, o doente que tem de provar que não lhe foram prestados os cuidados possíveis em face das circunstancias. Todavia, casos existem em que o médico se compromete a obter um certo “resultado”, como sucede, por exemplo, nas “operações plásticas” e nas análises clínicas. Nas obrigações de resultado impende sobre o médico o ónus da prova, nos termos do artigo 799º, ou seja, presume-se a sua culpa, admitindo, obviamente, tal presunção, prova em contrário.
Portanto, na maior parte dos casos, a responsabilidade do médico, exercendo clínica em regime de profissão liberal, é de natureza contratual, sendo tal obrigação de meios e não de resultados.

No caso sub judice poderá dizer-se que, sendo a responsabilidade do réu de natureza contratual, a sua obrigação será de resultado.
Com efeito, a autora dirigiu-se à clínica, pedindo que lhe fosse feita uma mamografia. Como é sabido, tal acto consiste na realização de um exame seguido de um relatório sobre o que foi observado, a fim de o doente o mostrar ao seu médico assistente. Assim, o médico, ora réu, ao aceitar fazer esse exame, obrigou-se não só a realizá-lo, mas também a fazer o respectivo o relatório, em conformidade com o que lhe era possível observar. E através desse exame pretendia-se averiguar se existia qualquer anomalia, obrigando-se precisamente a fazer o relatório em conformidade com a observação devida. Por isso, não nos parece que o réu se tenha comprometido apenas a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produziria. Ter-se-á obrigado a apresentar um determinado resultado, ou seja, ter-se-á vinculado a conseguir um certo efeito útil, a fazer uma leitura correcta da película.
Se um doente aparece num consultório com determinada queixa, o médico apenas se obriga a prestar-lhe os melhores cuidados: põe à sua disposição a sua técnica, saber e experiência, mas, em princípio, não lhe promete a cura. Aqui, sim, estaremos perante uma obrigação de meios. E o “resultado” a que se refere o contrato de prestação de serviço consistirá precisamente nos próprios meios empregues pelo médico na actividade por ele realizada e tendente à obtenção da cura (o “resultado” não será necessariamente a cura, mas os meios utilizados para esse efeito).
IV
A autora alegou que perante a extensão e profundidade das metáteses directamente resultante da neoplasia, a abordagem terapêutica indicada para o caso tornou-se mais penosa, em lugar da cirurgia, que só em estados tumorais menos avançados levaria à cura ou, no mínimo, poderia aumentar o tempo de vida da autora. E diz também que a situação que descreveu na PI não teria ocorrido se o exame feito pelo réu tivesse indicado o estado da doença que já então se verificava. Assim, se tal diagnóstico tivesse sido feito, a A. não estaria na situação em que se encontrava à data da PI.
E o réu, ao não diagnosticar a neoplasia, teria cometido uma falta grave, violadora da legis artis.
O R teria, assim, actuado de forma negligente, uma vez que, com os dados da ciência médica já conhecidos e pelos meios tecnológicos utilizados, tinha obrigação de mencionar no relatório que elaborou os sinais que já eram visíveis, pelo que se tornou responsável pela irrecuperabilidade da lesão sofrida pela autora e pela sua morte prematura, para além de a sua conduta ter constituído causa directa de imenso sofrimento físico e moral.
O réu teria praticado um acto ilícito que teria lesado gravemente a integridade física e o direito à saúde da autora, pelo que os RR seriam responsáveis pelos danos sofridos por esta, constituindo-se no dever de indemnizar nos termos dos artigos 483º, nº1 e 490º do CC.
Os apelantes defendem que terá sido cometido um erro de diagnóstico. Todavia dizem que tal erro não é culposo, uma vez que, com base num estudo feito nos EUA, e que juntaram aos autos, um “especialista médio” poderia cometer o mesmo erro de diagnóstico
Todavia, parece-nos que há que concluir que o réu agiu de forma negligente.
Para a realização da perícia médica requerida foram colocadas aos três peritos médicos duas questões:
1- as películas da mamografia realizadas pelo réu revelavam a existência de afecções suspeitas no seio direito?
2- As afecções existentes revelavam inequivocamente a existência de uma neoplasia?
Dois dos peritos responderam de forma semelhante (quase idêntica) ou seja: identificam-se alterações consideradas suspeitas na mama direita; as alterações radiológicas detectadas apesar de serem suspeitas de malignidade, são sempre um diagnóstico de probabilidade, necessitando caracterização citológica e ou histológica para confirmação.
O outro perito respondeu de forma diferente, mas no essencial, confirmando a tese dos outros dois: com os conhecimentos de medico-radiologista, em Maio de 1995, as películas radiográficas então realizadas pelo réu permitiam apenas o diagnóstico de alterações nos dois seios e consideradas suspeitas na mama direita; as alterações radiográficas apenas eram suspeitas de malignidade e, como tal, são sempre um diagnóstico de probabilidades, pelo que necessitam de conveniente caracterização anatómo patológica para devida confirmação.
Por sua vez, a testemunha Dr. P...., especialista em mamografias e docente universitário, perante a observação da mamografia em audiência de julgamento disse ser “escandalosamente patente a lesão neoplásica no seio direito” que – segundo classificação radiológica da evolução da lesão – assumiria o grau R5 numa escala de R1 a R5.
A Drª Z... (uma das peritas referidas), em audiência de julgamento classificou a lesão neoplásica como R4.
Verifica-se, assim, que o réu podia e devia prever a situação então existente. A verdade é que nada fez, tudo se passando como se de nada de anormal se tivesse verificado. Com efeito, como vimos, o réu diz expressamente no relatório que elaborou: “não se observavam imagens de lesões nodulares nem de microcalcifícações”.
Quer isto dizer que o réu nada observou, apesar de já então as películas da mamografia realizada revelarem afecções suspeitas no seio direito... E se o tivesse feito tornar-se-ia aconselhável a realização de novos e “mais aprofundados exames para a respectiva despistagem”.
E não se diga que agora é mais fácil ver os sinais suspeitos porque os médicos posteriormente ouvidos já sabiam o que estava em causa e, por isso, tiveram mais possibilidades de detectarem os sinais visíveis. É que, como vimos, os sinais já eram evidentes e nenhum dos peritos ouvidos afirmou que era necessária uma observação especialmente atenta para detectar a doença. E nada justifica, ao contrário do alegado pelos apelantes, que, por se tratar de um mero exame de rotina, o médico não devesse ser igualmente diligente. Em qualquer circunstância, o R sempre deveria agir com a diligência necessária a detectar tais sinais, pois o que a autora procurava era precisamente saber se existia alguma anomalia. À data da realização do exame, um radiologista, como era o réu, de acordo com os conhecimentos da época, de normal diligência, estava em condições de detectar a existência das referidas anomalias
Uma mamografia é um mero auxiliar de diagnóstico, a ser ponderado pelo médico assistente do doente em conjunto com outros elementos, designadamente o exame directo. A verdade é que, perante o relatório feito pelo réu, a autora não repetiu o mesmo tipo de exame nem adoptou outros cuidados médicos especiais, e daí as consequências referidas. Certamente teria tomado outra atitude se o diagnóstico tivesse sido feito.
Como vimos, os referidos médicos classificaram a lesão neoplásica como R4 e R5, respectivamente, ou seja, em estado muito avançado.
É claro que não estamos perante um caso de negligência médica semelhante àqueles em que os doentes são completamente abandonados à sua sorte num hospital porque o médico pura e simplesmente se desinteressou do doente e que são conhecidos. Mas também não podemos dizer que se tratou de um mero erro e que mesmo um médico muito atento e sabedor poderia cometer perante as mesmas circunstâncias. O estudo apresentado “vale o que vale” e “cada caso é um caso”. É que não resulta dos autos que só com uma observação muito atenta seria possível descobrir os sinais da doença. E, na verdade, seria muito diferente se tal tivesse ficado provado. É que nesse caso poderia dizer-se que o médico não teria agido com culpa (15). O aludido estudo é apenas mais um elemento de prova a ter em conta e de forma alguma se provou que as anomalias constantes das películas só poderiam ser observadas por um especialista “acima da média”. Com efeito, foram ouvidos outros médicos em audiência de julgamento, onde tomaram conhecimento dos exames realizados, e nada afirmaram em sentido contrário.
A negligência consiste em o medico deixar de fazer o que as legis artis impõem que se faça – artº 26º do CDOM. Assim, o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se, por esse facto, a prestar-lhe os melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correcção, no exclusivo intuito de lhe restituir a saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, na medida das possibilidades existentes em cada momento .
No caso sub judice, o erro é bastante diferente do comum dos casos, uma vez que a falta de diligência consistiu em o médico não ter tido o cuidado necessário para observar convenientemente o exame que acabara de fazer. Mas não deixa de se tratar de um erro médico, onde se revela, pelo menos, uma grave falta de cuidado, ou seja de diligência.
V
Como estabelece o artigo 798º do CC, o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
São pressupostos da responsabilidade civil contratual (por facto ilícito):
a) o facto ilícito (que consiste na inexecução da obrigação; incumprimento);
b) que o facto seja imputável ao devedor, isto é, que este tenha agido com culpa;
c) o prejuízo sofrido pelo credor;
d) nexo de causalidade entre o facto e o dano
Parece-nos que nenhuma dúvida se suscita em relação à inexecução da obrigação. Poderia falar-se aqui em execução defeituosa, uma vez que o médico procedeu à elaboração do relatório, mas fê-lo deficientemente (a prestação não foi realizada como era devido). A verdade é que a execução defeituosa se reconduziria necessariamente à inexecução da obrigação (não cumprimento definitivo), pois já não é possível proceder à execução da obrigação com interesse para a autora.
Mas, para que o devedor se constitua na obrigação de indemnizar, é ainda necessário que esse facto lhe seja imputável, isto é, que este tenha agido com culpa.
E aqui apenas nos interessa a mera culpa ou negligência, que consiste na omissão da diligência devida. O agente (mais concretamente o réu) devia ter agido doutro modo.
E, como determina o nº 2 do artº 799º, a culpa é apreciada nos termos da responsabilidade civil (16), ou seja, na falta de outro critério, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (487º, nº 2). É, assim, apreciada em abstracto (e não em concreto, isto é, a diligência que o agente normalmente aplica nos seus actos, e de que se revela habitualmente capaz). A diligência deve, pois, ser apreciada pela conduta que teria o bom pai de família (o bonus pater familias) (o homem de diligência média, ou uma pessoa normalmente diligente, o “homem normal”, medianamente prudente e cuidadoso) em circunstâncias semelhantes e com qualificações profissionais idênticas.
Para o caso sub judice tomar-se-á em consideração o modo como devia agir um especialista idóneo colocado perante as mesmas circunstâncias: um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais e na mesma data.
De forma alguma de provou (e tal prova competia aos RR) que só um especialista muito experiente e com conhecimentos “acima da média” poderia ter verificado as alterações consideradas suspeitas. De igual modo não se poderia invocar que o réu só não o fez porque tinha pouca experiência (facto não alegado), pois se trata de um técnico da especialidade. E, como se disse, não seriam necessários conhecimentos especiais, a um médico da especialidade, para poder observar a referidas anomalias.
Consequentemente, o R incorreu em violação das legis artis, agindo negligentemente.
E é indiscutível que a autora sofreu prejuízos, como melhor se verá. E há um nexo de causalidade entre esses prejuízos e o facto ilícito praticado pelo réu, como também se verá.
VI
Sobre as relações entre os RR, na douta sentença apenas foi dito o seguinte:
A relação que se estabeleceu entre a R. e a A. é eminentemente contratual, sendo que – estando o R ao serviço da R – a R. responderá pelos actos do R. - artº 800º, nº 1 do Código Civil.
Todavia,...há que reconhecer que o regime da responsabilidade extracontratual é mais favorável à A. ao estipular a responsabilidade solidária dos RR em decorrência da relação de comissão existente – arts. 500º e 497º do CC”.
E daí a condenação de ambos os RR.
A verdade é que nem a autora nem os RR alegaram factos suficientes no sentido de ser devidamente caracterizada tal situação jurídica.
Nesta parte apenas foi alegado e provado o seguinte:
A autora recorreu aos serviços da Ré para aí realizar uma mamografia bilateral, e eventual eco, e uma ecografia ginecológica;
Quer a mamografia quer o exame ginecológico foram efectuados
pelo Dr. Miguel Côrte-Real que é, ademais, o clínico responsável da Ré.
No caso de um médico trabalhar numa clínica, por conta desta, e sob a sua autoridade e direcção, portanto, a ela ligada por um contrato de trabalho (17), entre os doentes e a clínica estabelece-se uma relação de natureza meramente contratual. A clínica responderá então a título de responsabilidade contratual, mas o médico que nela trabalha, não tendo qualquer relação contratual com o doente, apenas poderá responder (se for caso disso) a título de responsabilidade delitual.
Mas outras relações jurídicas podem ser estabelecidas entre o médico e a clínica, designadamente um contrato de prestação de serviço.
O médico não actua aqui sob a autoridade e direcção da cínica, não tem com ela um contrato de trabalho subordinado. Todavia está a ela ligada por um contrato de prestação de serviço.
Nestes casos, o contrato é celebrado entre a clínica e o doente, a quem este paga os honorários, sendo observado pelo médico com quem não estabelece qualquer relação contratual.
No 1º caso (CT) o médico deverá ser considerado um empregado da clínica, embora com a necessária autonomia técnica. Então aplicar-se-ão as regras do contrato individual de trabalho.
No caso de o médico estar ligado por um contrato de prestação de serviço, será aplicável o artigo 800º, nº 1 do CC.
No caso sub judice, como vimos, não foram esclarecidas as relações existentes entre a clínica e o médico.
Mas parece não existir entre os RR uma relação de carácter laboral ou de prestação de serviços, uma vez que é o médico o “responsável pela clínica”.
Parece estarmos perante um caso em que o médico é o gerente e “dono” da clínica, nela exercendo simultaneamente a especialidade de radiologista. O réu será simultaneamente “responsável pela clínica”, actuando como “sócio gerente” e como médico. É preciso não esquecer a natureza da actividade exercida pelo médico.
Até poderá, pois, considerar-se que o contrato foi celebrado entre ambos os RR e a doente. De resto, a contestação é feita em conjunto, em nome de ambos os RR, e nenhuma questão se suscita relativamente à divisão de responsabilidades. O que eles alegam é que o médico não agiu com culpa e, por isso, não deve ser responsabilizado, o mesmo sucedendo, ipso facto, com a clínica.
Em casos como este, o doente dirige-se a uma determinada clínica para fazer um exame. E, em regra, desconhece as relações existentes entre essa clínica e o médio que o observa. E desconhece mesmo se o pagamento é feito à clínica ou ao médico. O que pretende é que um médico (às vezes um médico determinado, que lhe é recomendado ou de quem apenas ouviu falar) lhe faça o exame o melhor que possa e saiba. De resto, no espaço físico de uma clínica podem trabalhar médicos em regime de total independência, pagando, por exemplo, uma renda pela ocupação do consultório.
Aliás, os RR defendem que se aplica o regime da responsabilidade contratual e que a clínica responde nos termos do artigo 800º.
Mas esta questão só é aflorada nas conclusões C) e D) desta apelação.
C) Acontece que, atenta a factualidade provada - contratação dos serviços de radiologia da Apelante Clínica - em causa está um ilícito contratual na alegada vertente de cumprimento defeituoso, o que determina, na nossa ordem jurídica a aplicação do regime consagrado para a responsabilidade civil contratual, salvo quando exista remissão expressa ou implícita para o regime da responsabilidade civil extracontratual;
D) Daqui deriva que, e sem conceder, com base na causa de pedir alegada pela Apelada e na matéria provada, só a Apelante Clínica poderia ser condenada, donde a violação pela decisão recorrida do disposto no art. 800°, n° 1, do C.C.

Assim, o R, pelas razões referidas não poderá deixar de ser responsabilizado com a clínica. A não se entender assim, teríamos de chegar à conclusão de que o médico responderia a título de responsabilidade extracontratual. É que a obrigação aquiliana decorre de um dever geral de cuidado a que o médico se obriga, como dissemos.

VII
A autora formulou dois pedidos:
a) 30.000.000$00 por danos não patrimoniais/ morais;
b) 1.372.000$00 por danos patrimoniais (700.000$00 gastos com exames médicos realizados + 672.000$00 por serviços domésticos que teve de pagar entre Agosto de 1996 e Janeiro de 1998 – sendo a acção de Fevereiro desse ano) e ainda outras despesas relacionadas que tiver de fazer em virtude da doença, a liquidar em execução de sentença.
Quanto aos danos patrimoniais, como vimos, foram os RR condenados a pagá-los porque se considerou que:
- A autora teve até agora os seguintes prejuízos materiais: despesas
com médicos e exames - 700.000S00; despesas com a contratação de terceiros para serviços domésticos de Agosto de 1996 a Janeiro de 1998- 672.000$00 (P).
- O referido (em 21 ou P) foi consequência directa da actuação dos RR.
Perante estes factos justificar-se-ia esta condenação.
A verdade é que, como se disse, apenas consideramos que algumas das despesas referidas foram feitas em consequência directa da actuação dos RR. E isto porque, quer a neoplasia tivesse sido diagnosticada pelo apelante em 1995, quer na data em que o foi efectivamente, em 1996, sempre a ré teria de realizar exames complementares, bem como fazer despesas com os tratamentos, tal como as restantes que decorreriam da doença.
Dizem os apelantes que não existe nexo de causalidade entre os danos sofridos pela Apelada e o erro de diagnóstico do apelante médico, e isto porque, quer os danos patrimoniais, presentes e futuros - despesas médicas - quer os danos morais - sofrimento - decorrem directamente da doença de que a apelada padece e já padecia, não se demonstrando que pudessem ter sido sequer agravados com o ilícito médico cometido.
A verdade é que não ficou demonstrado que, como consequência do erro médico, a autora não tivesse sofrido prejuízos.
Mas ficou provado:
- o estado evolutivo da doença em causa era de tal
modo que o médico do Hospital da cruz Vermelha considerou que, perante o que acabara de ler nos exames referidos, a abordagem terapêutica indicada não era a cirúrgica mas sim a quimioterapêutica citostática sistémica;
- Se o diagnóstico referido tivesse sido feito, as probabilidades
de debelar a neoplasia maligna da Autora seriam superiores e a esperança de
vida da mesma seria sempre superior;
- algumas das despesas referidas em P foram feitas em consequência directa da actuação dos RR.
É sabido que quanto mais cedo for detectada a doença maiores serão as probabilidade de se conseguir a cura. E, com toda a probabilidade o tratamento não teria sido o mesmo e as despesas teriam sido menores. Além disso, a abordagem terapêutica indicada seria, em princípio, a cirúrgica.
Deste modo, se a doença tivesse sido debelada mais precocemente, não teria sido necessário fazer tantos exames e, por isso, não teria tido necessidade de gastar tanto dinheiro e poderia mesmo não ter tido necessidade da ajuda de terceiros para realização dos serviços domésticos.
Portanto, apenas em execução de sentença, nos termos do nº 2 do artigo 661º do CPC, seria possível determinar o montante dos danos patrimoniais sofridos pela A. em consequência directa da actuação dos RR. E estas despesas seriam as feitas até Janeiro de 1998 (no máximo de 1.372.000$00) e as restantes derivadas da doença da falecida, nas mesmas condições.
Todavia, pelas razões referidas em I, parece-nos que nem mesmo em execução de sentença é possível determinar o valor exacto dos danos.
Por isso, entende-se que deve desde já lançar-se mão do preceituado no nº 3 do artigo 566º do C. Civil, ou seja, o recurso à equidade.
E cerca de 1/3 daquele montante parece-nos razoável.
Nesta conformidade, fixa-se equitativamente em 450 euros o montante dos danos patrimoniais.
VIII
A situação é mais delicada em relação aos danos não patrimoniais.
A questão da admissibilidade da reparação autónoma por danos não patrimoniais no âmbito da responsabilidade contratual tem gerado alguma controvérsia na doutrina e na jurisprudência.
Pela não ressarcibilidade dos danos não patrimoniais no domínio da responsabilidade contratual podem ver-se, por exemplo: Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, I-599 e RLJ, Ano 123-253) e ac. STJ de 27.06.78 (BMJ 278-193).
Contudo, a grande maioria da doutrina e da jurisprudência sustenta a tese contrária.
Assim, Galvão Telles (Direito das Obrigações, 4 ed., pag. 300); Almeida Costa (Direito das Obrigações, pag. 396); Vaz Serra (Rev. Leg. Jur. ano 108, pag. 222); mesmo Autor em BMJ n. 83, pag. 69 e segs. António Pinto Monteiro (“Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil”, pag. 85 nota 164 e “Clausula Penal e Indemnização, pag. 31, nota 77).
No mesmo sentido, veja-se na jurisprudência, Acs do STJ de 30-1-81 (BMJ n. 303, pag. 212), de 17-1-93 (Col. Jur. ano I, tomo I, pag.
61) de 09.12.93 (CJ 93-3º-174) e de 25.11.98 (BMJ 481-470), da Relação do Porto de 4-2-92 (Col. Jur. ano XVII, tomo I, pag. 232), da Relação de Coimbra de 14-4-93 (Col. Jur. ano XVIII, tomo 2, pag. 39) e da Relação de Lisboa de 17-6-93 (Col. Jur. ano XVIII, tomo 3, pag. 129) e de 15.05.03 (recurso nº 3081/03 disponível na Internet).
Aceita-se que sejam indemnizáveis os danos morais emergentes da falta de cumprimento de obrigações contratuais (tal como decidimos no ac. desta Relação, de 30.11.04, no recurso nº 7627/04 e que, por isso, se segue de perto).
As razões de tal aceitação podem ver-se sintetizadas no acórdão do STJ de 15.06.93 (BMJ 428-534 e 534 e 535) para onde se remete.
Se, por exemplo, se viola uma obrigação e em particular um contrato, poderá o lesado exigir uma indemnização por danos não patrimoniais? A esta pergunta responde J. Galvão Telles (18): “sem dúvida, em tais sectores estes danos não se produzirão com a mesma frequência nem em regra com a mesma intensidade. Mas, se existirem e se forem suficientemente graves de modo a justificar a tutela da vítima, por que não há-de esta poder exigir a sua reparação?”
Assim, se se viola um contrato, poderá o lesado pedir uma indemnização por danos não patrimoniais se estes forem suficientemente graves de modo a justificarem a tutela do direito. Nem outra solução seria aceitável, salvo melhor opinião.
Nos termos do artigo 496º do C. Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, em montante a fixar equitativamente pelo tribunal, tendo em conta as circunstâncias referidas no artigo 494º, ou seja, grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.
Mesmo no domínio da responsabilidade extrajudicial tem-se discutido na doutrina a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais.
E isto porque há quem defenda que eles são insusceptíveis de reparação pecuniária, não havendo dinheiro capaz de reparar uma dor, uma injúria, a perda de um órgão importante do corpo humano ou a sua deformação.
Além disso seria muito difícil, senão impossível, avaliar o valor desses danos.
A verdade é que o lesado, apesar de tudo, sempre ficará mais protegido se o dano for indemnizado, ainda que tal indemnização não possa compensar totalmente a perda sofrida.
Procura-se, assim, com a indemnização pelos danos não patrimoniais, atenuar as consequências que para o lesado advêm da conduta do lesante.
Por isso se deve entender que com a avaliação de tais danos se pretende mais compensar do que indemnizar o mal causado pela lesão sofrida.
Nesta linha de pensamento escrevia o Prof. Vaz Serra na RLJ ano 113º-104: “a situação ou compensação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, visto que não é um equivalente do dano, um valor que reponha a coisa no estado anterior à lesão, tratando-se então de atribuir ao lesado uma satisfação ou compensação do dano, que não é susceptível de equivalente”.
Ou, como escreve o Prof. Inocêncio Galvão Telles in “Direito das Obrigações”, pag. 297: “na impossibilidade de reparar directamente os danos pela sua natureza não patrimonial, procura-se repará-los indirectamente através de uma soma em dinheiro susceptível de proporcionar satisfações porventura de ordem espiritual, que representem um lenitivo, contrabalançando até certo ponto os males causados”.
Tem-se entendido, e com razão, que é muito difícil, senão impossível, calcular o montante exacto da compensação devida pelos danos morais. E situações existem que nenhuma quantia poderá compensar ainda que minimamente o dano sofrido pela vítima.
Como dissemos, não se trata propriamente de indemnizar a vítima, mas antes de a tentar compensar, atenuando-se um mal já consumado.
É que o dinheiro pode proporcionar à pessoa lesada satisfações não só de carácter económico, mas também de carácter espiritual e até mesmo moral, que possa atenuar a dor e o sofrimento.
O Prof. A. Varela in “Das Obrigações em Geral” Vol. I, Ag. 502 diz que “a indemnização” por danos morais reveste uma natureza acentuadamente mista: “por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado não lhe é estranha a ideia de reparar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado, a conduta do agente”.
É que se trata de prejuízos que não atingem em si o património, não o fazendo diminuir nem frustrando o seu acréscimo. O património não é afectado: nem passa a valer menos nem deixa de valer mais. Há a ofensa de bens de carácter imaterial – desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro, tal como a integridade física, a saúde, a honra e a reputação (19).
Como vimos, a nossa lei aceita a ressarcibilidade dos danos morais, mas apenas daqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito: o dano há-de ser de tal maneira grave que justifique a concessão ao lesado duma satisfação de ordem pecuniária (compensação), nos termos referidos. Ou, como se refere no citado acórdão do STJ de 15.06.93 (BMJ 428- 535), que revistam gravidade objectiva e acentuada, de modo a justificarem uma compensação de ordem pecuniária.
Não há qualquer dúvida de que os danos sofridos pela autora, dada a sua gravidade, são indemnizáveis.
Como dissemos, os apelantes alegam que não existe nexo de causalidade entre os danos sofridos pela doente e o erro de diagnóstico.
E dizem ainda que:
- mesmo que o diagnóstico do Réu tivesse sido o correcto e, na sequência de exames complementares, fosse logo detectada a neoplasia maligna, não é possível quantificar as probabilidades de cura efectiva da Autora porquanto a evolução de tal neoplasia não é absolutamente previsível;
- só que o direito não cuida de estatísticas, nem de probabilidades, exige a prova da causalidade do dano e da sua relação coma culpa, sob pena de a culpa, e sem conceder, poder fundamentar a responsabilidade do médico por um dano que não causou com a consequente porta aberta sem limites à responsabilidade civil profissional;
A verdade é que ficou provado que:
confiada no diagnóstico do Réu, a Autora não repetiu o mesmo tipo de exame nem adoptou outros cuidados médicos especiais, não aconselhados pelo resultado do exame em apreço;
se o diagnóstico referido tivesse sido feito, as probabilidades de debelar a neoplasia maligna da Autora seriam superiores e a esperança de vida da mesma seria sempre superior.
Ora, em consequência do erro de diagnóstico, a autora não tomou os cuidados que se impunham, fazendo outros exames e eventualmente sujeitando-se a tratamentos que podiam ter evitado a morte prematura. E se não há a certeza de que podia ser curada, provou-se que as probabilidades de cura seriam maiores e sobretudo que a esperança de vida da autora seria sempre superior, o que é muito importante. Além disso, aquando da realização dos exames em 1996, chegou-se à conclusão de que a abordagem terapêutica indicada não era já a cirúrgica mas sim a quimioterapêutica citostática sistémica. E isto porque o estado evolutivo da doença era já muito grave.
Portanto, existe um nexo de causalidade adequada entre a conduta negligente do R. e as duas situações referidas: a diminuição das probabilidades de a neoplasia ser debelada e, em qualquer caso, a diminuição da esperança de vida da ora falecida.
O simples facto de a autora saber que poderia ter sido curada já a fez sofrer. Na verdade, nestes casos, sempre se ficará com a sensação de que não foi feito tudo o que era possível com os dados actuais da ciência. E, como vimos, a autora faleceu em Fevereiro de 2001 (com 62 anos de idade), ou seja, quase cinco anos após a descoberta da doença (não constando dos autos a causa da morte).
Tal como muito bem se diz na sentença recorrida, mesmo que o diagnóstico do R tivesse sido correcto, e, na sequência de exames complementares, fosse logo detectada a neoplasia maligna, não é possível quantificar as probabilidades de cura efectiva da autora, porquanto a evolução de tal neoplasia não é absolutamente previsível. Mas uma coisa é certa: em virtude do acto praticado pelo réu, a esperança de vida da autora diminuiu, pelo que bem poderia ainda estar viva neste momento (embora nada garanta que assim fosse).
A maior dificuldade está em determinar o montante da indemnização a atribuir.
E os factos a considerar não são muitos, excepto a circunstância já várias vezes referida de as probabilidades de a neoplasia ser debelada serem superiores e a esperança de vida da autora ser sempre superior caso o diagnóstico da doença tivesse sido feito em Maio de 1995. E mesmo em relação a estes factos nada se apurou em termos quantitativos. Na verdade, não é possível quantificar as possibilidades de cura efectiva da autora, porquanto a evolução da neoplasia não é absolutamente previsível.
Todavia ficou provado:
a autora era uma pessoa cheia de energia e vitalidade e o único amparo do marido e de um filho deficiente, para além de ser ela quem organizava e assegurava toda a vida familiar;
a autora ficou num profundo e insuperável estado de tristeza, desespero, angústia e abatimento, agravado pela impotência em continuar a acorrer à ajuda essencial que prestava àqueles seus familiares.
Estes factos seriam muito importantes e justificariam que o montante da indemnização fosse bastante elevado, se fossem apenas consequência do acto do réu. A verdade é que poderiam ter-se verificado em parte mesmo que o diagnóstico da doença tivesse sido feito pelo réu. O sofrimento de que a autora padeceu decorre directamente da sua doença e não apenas do erro de diagnóstico.
Criticam-se na douta sentença recorrida “os montantes que têm sido adoptados pela nossa jurisprudência dos tribunais superiores para a fixação de danos não patrimoniais”. Estamos naturalmente de acordo.
Há uma grande diferença entre este caso e um outro em que tivesse ficado provado que, em virtude da atitude negligente do réu, a doente teria perdido a oportunidade de sobreviver e de ser curada. É que então a conduta negligente do R teria sido causa da morte prematura da autora.
Mas também não podemos olvidar que a culpa do réu não pode ser considerada leve, devendo antes ser considerada muito grave, pois omitiu um dever de cuidado que poderia ter sido fatal para a evolução da doença.
Daí que o montante dos danos seja, apesar de tudo, considerável.

Nesta conformidade, parece-nos ajustada a indemnização 50.000 euros tal como foi fixada na sentença recorrida. Todavia considera-se esta quantia actualizada nesta data, a partir da qual serão contados os juros de mora.
**
Por todo o exposto acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, e em consequência vão os RR condenados a pagarem aos AA habilitados:
a) a quantia de 50.000,00 euros a título de danos não patrimoniais.
b) 450 euros a título de danos patrimoniais.
c) Juros de mora à taxa legal, até integral pagamento, desde a data da citação (03.03.98) sobre a quantia de 450 euros e desde esta data (19.04.2005) sobre a quantia de 50.000 euros.
Vão os RR absolvidos do restante pedido.

Custas por AA e RR na proporção do vencido em ambas as instâncias.

Lisboa, 19.04.2005.

Pimentel Marcos
Vaz das Neves
Abrantes Geraldes.



_______________________
(1).-Rui Alarcão, Direito das Obrigações, pag. 212 (citado na douta sentença)

(2).-Vaz Serra- BMJ 85-116.

(3).-Germano de Sousa, in BOA, nº 6/99 (Nov/Dez. pag 13), também disponível na Internet.

(4).-Ver ac. STJ de 05.07.01 (CJ (stj) Ano IX- II- 166).

(5).-Traité des Obligations , tomo V e tomo VI citado na douta sentença.
Veja-se também Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, in “Direito e Justiça”, pag. 173. nota 22

(6).-Veja-se Almeida e Costa, in “Direito das Obrigações, pag. 971- 9ª edição.

(7).-J.A. Esperança Pina, in “A Responsabilidade Dos Médicos”, pag. 92.

(8).- “Contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição (artº 1154º do CC).

(9).-Almeida Costa, in “Direito das Obrigações, 9ª edição, pag. 499.

(10).-Questão diferente desta coloca-se quando o mesmo facto produz dois danos, ou seja, um deles envolve responsabilidade contratual em relação a uma pessoa e o outro responsabilidade extracontratual em relação a terceiro, estranho ao negócio. Aqui verifica-se um concurso real de responsabilidade contratual e extracontratual.

(11).- “O Concurso de Títulos de Aquisição da Prestação”, pag. 136

(12).-Ob cit. pag. 503.

(13).-Direito e Justiça, pag. 191 e s.s.

(14).-Sobre esta questão pode ver-se A. Costa na citada obra, pags. 499 e s.s. que, nesta parte, temos seguido de perto.

(15).-Sendo a culpa apreciada em abstracto, como se dirá.

(16).-trata-se da responsabilidade extra-obrigacional especialmente regulada nos artigos 483º e s.s. do CC

(17).-E é possível a existência de um contrato de trabalho entre uma clínica e um médico (aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante remuneração, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa sob a autoridade e direcção desta – artº 1º da LCT e 1152º do CC)

(18).-Ob. Cit. Pag. 303.

(19).-Galvão Telles ob. cit. pag. 296