Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
402/14.5TNLSB.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -À luz dos critérios legais definidos no art.º 5.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 de 16 de janeiro, o Tribunal Marítimo de Lisboa é internacionalmente competente para conhecer do litígio nos termos do qual a Autora requer a condenação da Ré no pagamento de indemnização, por cumprimento defeituoso de contrato de transporte de mercadorias com origem no porto de Aveiro e entregues no porto de Terneuzen, na Holanda.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


  I-RELATÓRIO:


F... S.A interpôs a presente acção declarativa de condenação contra:

R... KG, ambas melhor identificadas nos autos.

Por sentença de fls. 275 a 285 dos autos, foi julgada procedente por provada a excepção dilatória da incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para conhecer do litígio, por violação das regras da competência internacional estipuladas nos artigos 2º e 5º do Regulamento CE 44/2001 e, consequentemente, foi a Ré absolvida da instância.

Inconformada com a decisão, veio a Autora interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1.O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pela Recorrente, sendo que, no caso em apreço, são três as questões a analisar no âmbito do Recurso, a saber:

2.A questão da (in)competência do Tribunal deve ser analisada tendo em atenção a causa de pedir invocada pela Recorrente, sendo que, no caso em apreço, resulta da p.i. que estamos perante o cumprimento defeituoso de um contrato de transporte efectuado pela Recorrida ao abrigo de quatro Bill of Lading (B/L), emitidos em virtude de uma carta-partida. 
3.Tratando-se de um contrato de transporte de mercadorias por mar, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para o julgamento das acções emergentes desse contrato se o porto de carga se situar em território português ou se o contrato de transporte tiver sido celebrado em Portugal (cfr. art. 30º do Decreto-Lei nº 352/86). 
4.Também são internacionalmente competentes para o julgamento das acções emergentes do contrato de fretamento ou subfretamento se o porto de carga se situar em Portugal ou se o contrato de fretamento ou subfretamento tiver sido celebrado em Portugal (cfr. art. 47º do Decreto-Lei nº 191/87).
5.Resulta, igualmente, da alínea b) do artigo 62º do Código de Processo Civil, que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando foi praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram. 
6.É certo que o Regulamento (CE) nº 44/2001 aponta, como regra geral, que as partes devem ser demandadas nos tribunais dos respectivos domicílios mas prevê, igualmente, excepções à regra geral, sendo que, de acordo com o seu artigo 5º, uma pessoa com domicílio no território de um Estado-membro pode ser demandada noutro Estado-membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deve ser cumprida a obrigação em questão.
7.Conforme consta na p.i., a Recorrida estava obrigada, antes do início da viagem, a preparar e pôr em bom estado o porão do navio onde as mercadorias iriam ser carregadas, para sua recepção, transporte e conservação, sendo que os danos à carga da segurada da Recorrente ocorreram em resultado do estado em que se encontrava o porão do navio, sujo com resíduos de mercadorias (cereais) que tinham sido transportados anteriormente pelo navio. 
8.Considerou a Mma. Juiz a quo que o contrato subjacente à matéria em discussão é de fretamento e não de transporte marítimo, sendo que o contrato de fretamento é definido como “… aquele em que uma das partes (fretador) se obriga a disponibilizar um navio, ou parte dele, para fins de navegação marítima, mediante uma retribuição pecuniária denominada frete” (Decreto-Lei nº 191/87, de 29 de Abril). 
9.Mas mesmo considerando que estamos perante um contrato de fretamento, é forçoso concluir que o Tribunal Marítimo de Lisboa é competente porquanto a obrigação da Recorrida foi cumprida quando colocou o navio Norderau à disposição da Portucel (segurada da Recorrente) no porto de Aveiro.        
10.Acresce que, no âmbito de um contrato de fretamento, o fretador (a Recorrida) estava obrigado a apresentar o navio ao afretador, antes do início da viagem, em boas condições de modo a dar integral cumprimento ao contrato, obrigação essa que a Recorrida não cumpriu.
11.Considera, no entanto, a Recorrente que estamos perante o cumprimento defeituoso de um contrato de transporte efectuado pela Recorrida ao abrigo de quatro Bill of Lading (B/L) emitidos em virtude de uma carta-partida. 
12.A este contrato aplica-se a Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimentos, vulgarmente designada por Convenção de Bruxelas de 1924 ou por Regras de Haia, que faz parte da ordem jurídica portuguesa, tendo o seu texto sido publicado no Diário do Governo, Iª série, de 20.06.1962. 
13.Resulta do artigo 10º da Convenção de Bruxelas de 1924 que as suas disposições aplicam-se a todo o conhecimento criado num dos Estados contratantes e que, se existindo uma carta-partida forem emitidos conhecimentos, ficarão estes sujeitos nos termos da Convenção (cfr. parágrafo 2º do artigo 5º). 
14.É certo que o contrato de transporte é um contrato de resultado, cumprindo o transportador a sua obrigação quando entrega a mercadoria transportada no destino, mas também é verdade que, antes de iniciado o transporte, existem obrigações que recaem sobre o transportador. 
15.A Recorrida estava obrigada, antes do início da viagem, a preparar e pôr em bom estado o porão do navio onde as mercadorias iriam ser carregadas, para sua recepção, transporte e conservação – alínea c) do nº 1 do artigo 3º da Convenção.
16.Conforme foi referido, os danos à carga da segurada da Recorrente não ocorreram durante a viagem mas em resultado do estado em que se encontrava o porão do navio, sujo com resíduos de mercadorias (cereais) que tinham sido transportados anteriormente pelo navio. 
17.Acresce, ainda, que, sem prejuízo do acima exposto, a obrigação que está em discussão nos presentes autos é a obrigação de indemnizar, tal como está configurada pela Recorrente na p.i., pelo que decorre do artigo 774º do Código Civil que a prestação deve ser efectuada no domicílio do credor.
18.Importa ainda ter em consideração o disposto no artigo 24.º do Regulamento n.º 44/2001 segundo o qual “…é competente o tribunal do Estado – Membro perante o qual o requerido compareça …”, sendo que esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência.
19.Ora, da leitura da contestação resulta, de forma clara e inequívoca, que a Recorrida não se limitou a arguir a incompetência do Tribunal tendo invocado outras excepções e apresentado defesa por impugnação.
20.Acresce que a Recorrida, apesar de não ter sido devidamente citada, veio, por sua iniciativa, contestar a acção, invocando diversas excepções e apresentando a sua defesa por impugnação; a Mma. Juiz a quo ignorou este facto bem como o disposto no artigo 24º do Regulamento nº 44/2001.
21.Errou a Mma. Juiz a quo ao julgar procedente por provada a excepção dilatória da incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para conhecer do presente litígio por violação das regras da competência internacional estipuladas nos artigos 2º e 5º do Regulamento CE 44/2001 e, consequentemente. 
22.O princípio, previsto no artigo 5º do Regulamento, segundo o qual em matéria contratual, o tribunal competente é o tribunal do lugar onde deve ser cumprida a obrigação, impõe que, no caso em apreço, o tribunal competente seja o Tribunal Marítimo de Lisboa, independentemente de saber se estamos perante um contrato de fretamento ou um transporte de mercadorias, porquanto, quer num quer no outro, existem obrigações da Recorrida que tinham de ser cumpridas no porto de Aveiro, seja no que diz respeito à colocação do navio à disposição da segurada da Recorrente seja no que se refere à obrigação de preparar e pôr em bom estado o porão do navio onde as mercadorias iriam ser carregadas, para a sua recepção, transporte e conservação.
23.Foram violadas, entre outras, as disposições constantes dos artigos 5º, nº 1, alínea b) e 24º do Regulamento (CE) nº 44/2001, artigo 30º do Decreto-Lei nº 352/86, artigo 47º do Decreto-Lei nº 191/87, artigo 62º, alínea b) do Código de Processo Civil, e artigo 774º do Código Civil.
Nestes termos e nos mais de Direito deve o recurso ser julgado procedente, e em consequência, deve ser revogada a sentença recorrida que julgou procedente por provada a excepção dilatória da incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para conhecer do presente litígio por violação das regras da competência internacional estipuladas nos artigos 2º e 5º do Regulamento CE 44/2001, com todas as consequências daí decorrentes, por ser de Justiça.

A parte contrária apresentou contra-alegações pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II-OS FACTOS.

Os elementos relevantes para a decisão são os que constam do relatório, sendo a questão a apreciar apenas jurídica. Contudo, para melhor enquadramento da questão transcreve-se a decisão recorrida:

A Ré invocou a excepção da incompetência internacional do Tribunal Marítimo de Lisboa por força da aplicação do Regulamento CE 44/2001 do Conselho de 22.12.2000, ao abrigo dos artº 2 e 3, nos termos dos quais a R... apenas pode ser demandada pela Autora no Tribunal do Estado com competência sobre o local onde se situa o seu domicílio – os Tribunais Alemães, ou sobre o local onde a obrigação foi cumprida – os Tribunais Holandeses.
Para o efeito, a Ré conclui, atenta a factualidade alegada pela Autora na petição inicial, estar em causa o cumprimento defeituoso de um contrato de fretamento, uma operação material de transporte ou de uma prestação de serviço de transporte da carga do Porto de Aveiro para o Porto de Terneuzen que a R... terá acordado executar com a Portucel.
Donde, estando a R... sediada na Alemanha e a F... e a sua segurada ambas domiciliadas em Portugal, portanto todas domiciliadas em Estados Membros da União Europeia, a competência internacional do tribunal para dirimir a presente disputa deve aferir-se nos termos do citado Regulamento CE, cujas normas prevalecem sobre as regras internas.
Consequentemente, devendo a acção ser interposta no Tribunal Alemão do local onde a Ré está sediada ou no Tribunal Holandês do local onde foi cumprida a obrigação, a violação das regras enunciadas do Regulamento CE constitui excepção dilatória de incompetência absoluta por violação das regras de competência internacional nos termos do disposto no art 2 a 7 do Regulamento e art 59, 96 al a), 97 nº 1, 98, 99 nº 1 e 577 al a) do CPC, determinativo da absolvição da instância da Ré, nos termos do art 278 nº 1 al a) do CPC.
Notificada a parte contrária, a Autora repudiou a verificação da excepção invocada pela Ré.
Argumenta que, independentemente da qualificação jurídica do contrato celebrado entre a sua segurada e a Ré ser de transporte marítimo ou de afretamento, os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para o seu julgamento ao abrigo do art 30 do DL352/86, no primeiro caso situando-se o porto de carga em território português ou o respectivo contrato tiver sido celebrado em Portugal, bem como no segundo caso ao abrigo do art 47 do DL 191/87, nas circunstâncias supra enunciadas mutadis mutandis.

Resulta ainda o art 62 do CPC, que os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes quando foi praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram.

O Regulamento CE 44/2001 contempla como regra geral ser competente o Tribunal do domicílio do Réu. Mas prevê excepções, designadamente, em matéria contratual ser competente o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação (art 5º).
Daí, mesmo assentando na qualificação do contrato feita pela Ré como de fretamento, impõe-se concluir que o Tribunal competente é o Tribunal Marítimo de Lisboa, porquanto a obrigação da Ré foi cumprida quando colocou o navio Norderau à disposição da Portucel no Porto de Aveiro, a fim de nele ser carregada a mercadoria com destino a Terneuzen (Holanda).

Na hipótese se estarmos perante um contrato de transporte marítimo de mercadorias, o Tribunal Marítimo de Lisboa é igualmente competente, porquanto tratando-se de uma obrigação de indemnizar, decorre do art 774 do C. Civ. que a prestação deve ser efectuada no domicílio do credor.

Decidindo:

A Autora interpôs a presente acção por via da qual peticiona a condenação da Ré no pagamento à Autora da quantia de 153.430,32€, a título de indemnização pelo cumprimento defeituoso do transporte de mercadorias efectuado pela Demandada ao abrigo de quatro Bills of Lading, emitidos em virtude de uma carta-partida. Mais precisamente, a Ré transportou 1.731 atados com pasta de papel, carregados no porão do navio Norderau no Porto de Aveiro, com destino ao Porto de Terneuzen, na Holanda, onde o navio chegou no dia 16.12.2013. Porém, no dia seguinte, após a descarga foram detectadas impurezas no topo dos fardos, tendo 491.931Kg da carga sido contaminados por resíduos de mercadorias, cereais, transportados anteriormente nos porões daquele navio.

Conforme o Conselheiro Barros Caldeira explicita exemplarmente no Ac do STJ nº 4A4283 de 3.3.2005, na aferição da competência dos Tribunais de um Estado Membro da Comunidade Europeia, com excepção da Dinamarca, é aplicável o Regulamento CE nº 44/2001 do Conselho de 22.12.2000, desde que as acções:
a)Respeitem a matéria civil e comercial (âmbito material de aplicação);
b)O réu tenha domicílio, sede ou estabelecimento principal no território de um Estado Membro (âmbito espacial de aplicação);
c) E tenha sido intentada após o dia 1.3.2002
(âmbito temporal de aplicação).
 
Pelo que, in casu, encontrando-se inequívoca e irrefutavelmente preenchidas as três condições supra elencadas, na aferição da competência internacional do Tribunal é aplicável o Regulamento CE 44/2001.

Assim sendo, o seu art 2 nº 1 consagra como regra geral da competência ser o Tribunal do domicílio do Réu.

Mas prevê excepções nas secções 2 a 7 do capítulo II.

Nesta senda, dispõe o art 5 nº 1 que uma pessoa domiciliada no território de um Estado membro pode ser demandada noutro Estado Membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.

Donde se extrai, ao abrigo dos art 2 nº 1 e 5 nº 1 do citado Regulamento CE, que são internacionalmente competentes para conhecer do presente litígio o Tribunal do domicílio do Réu (regra geral) ou o Tribunal onde foi ou devia ser cumprida a obrigação (regra excepcional).

No primeiro caso, é inequívoca a competência do Tribunal Alemão por corresponder ao local onde a Ré está sediada.

No segundo caso, importa decifrar qual o local onde a obrigação foi ou devia ser cumprida, questão esta que pressupõe a qualificação jurídica do contrato celebrado ente a segurada da Autora e a Ré.

Na versão dos factos configurada pela Autora na petição inicial, a sua segurada acordou com a Ré o transporte de 1.731 atados com fardos de celulose, efectuado pela Demandada ao abrigo de quatro Bills of Lading, emitidos em virtude de uma carta-partida (cfr art 3º da PI). O transporte da mercadoria do porto de Aveiro para o porto de Terneuzen (Holanda) foi efectuado pela Ré ao abrigo de uma carta-partida (art 30º da PI). Para o efeito, a mercadoria foi carregada a bordo no navio Norderau, tendo sido emitido pela Ré quatro Bill of Lading (art 31º da PI). O navio chegou ao porto de Terneuzen no dia 16.12.2013 (art 33º da PI).

Não obstante a Autora tenha sido parca na descrição dos termos contratuais subjacentes à negociação acordada entre a sua segurada e a Ré para a deslocação da mercadoria em apreço do Porto de Aveiro para o Porto de Terneuzen, a sua alegação do transporte da mercadoria entre estes dois portos ter sido efectuado pela Ré ao abrigo de uma carta-partida, com base na qual foram emitidos quatro Bill of Lading, é sobejamente esclarecedora e decisiva na qualificação jurídica do contrato celebrado entre a Portucel e a R....

Parafraseando Azevedo Matos, o contrato de fretamento também se verifica pelo conhecimento de carga.

Este é tão importante que a carta partida só se emprega, normalmente, quando o fretamento é total, sendo aquele passado em todos os outros casos e até neste, por causa do crédito documentário (in Princípios de Direito Marítimo, II, pg 55).

Portanto, inequivocamente, o contrato subjacente à matéria em discussão nos autos é de fretamento e não de transporte marítimo.

Na definição dada pelo art 1 do DL 191/87 de 29.4, neste contrato, o fretador obriga-se perante o afretador a pôr à sua disposição um navio ou parte dele, para fins de navegação marítima, mediante uma retribuição denominada de frete.

Pelo que, grosso modo, o fretamento é um aluguer de navio (cfr I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo, Introdução ao Direito dos Transportes, António Menezes Cordeiro, pg 35).

Significa isto, no caso concreto, que a Ré obrigou-se a por à disposição da Portucel o navio Norderau para deslocar a sua mercadoria do porto de Aveiro para o porto de Terneuzen.

Portanto, a obrigação da Ré foi cumprida à chegada do porto de Terneuzen na Holanda, á luz dos critérios legais definidos nos termos e para os efeitos do  art.º 5.º n.º1 do citado Regulamento.

Consequentemente, para além dos tribunais alemães, os tribunais holandeses são também  internacionalmente competentes  para conhecer do presente litígio.

Ao abrigo do art.º 3.º n.º2 do Regulamento CE 44/2001, contra as regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo, onde se insere inclusive o referido art.º 5.º, não podem ser invocadas, nomeadamente, as regras de competência nacionais constantes do anexo I, no caso de Portugal o art.º 65.º n.º1 do CPC.

De igual modo, as normas do Regulamento CE 44/2001 prevalecem sobre as restantes normas de competência internas, nomeadamente do invocado art.º 47 do D.L. 191/87 de 29-04, por força do preceituado no art.º 8.º da CRP.

Pelo que tudo visto e ponderado, impõe-se julgar procedente a excepção da incompetência absoluta dos Tribunais portugueses para conhecer do presente litígio por violação das regras de competência internacional estipuladas no art.º 2.º e 5.º do Regulamento CE 44/2001, determinante da absolvição da Ré da instância, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 99.º n.º1, 278.º n.º1 a), 576.º n.º2 e 577.º a) ambos do CPC.

Decisão:

Pelo exposto e nos termos sobreditos, julgo procedente por provada a excepção dilatória da incompetência absoluta dos Tribunais portugueses para conhecer do presente litígio por violação das regras de competência internacional estipuladas no art.º 2 e 5.º do Regulamento CE 44/2001 e, consequentemente absolvo a Ré da instância.”

III-O DIREITO.

Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas, que delimitam o âmbito de cognição do Tribunal, a única questão a decidir consiste em saber se o Tribunal Marítimo de Lisboa é ou não internacionalmente competente para conhecer do presente litígio, de acordo com as regras de competência internacional aplicáveis ao caso.

A Autora interpôs a presente acção por via da qual peticiona a condenação da Ré no pagamento à Autora da quantia de 153.430,32€, a título de indemnização pelo cumprimento defeituoso do transporte de mercadorias efectuado pela Demandada ao abrigo de quatro Bills of Lading, emitidos em virtude de uma carta-partida. Mais precisamente, a Ré transportou 1.731 atados com pasta de papel, carregados no porão do navio Norderau, no Porto de Aveiro, com destino ao Porto de Terneuzen, na Holanda, onde o navio chegou no dia 16.12.2013. Porém, no dia seguinte, após a descarga foram detectadas impurezas no topo dos fardos, tendo 491.931Kg da carga sido contaminados por resíduos de mercadorias, cereais, transportados anteriormente nos porões daquele navio.
           
Com base nestes factos, o Tribunal a quo entendeu qualificar o contrato celebrado entre a segurada da Autora e a Ré como um contrato de fretamento e não de transporte marítimo, ao contrário da ora Apelante que o qualifica como contrato de transporte marítimo.

Porém, para decisão da questão em causa, não é relevante tal distinção, sendo apenas relevante que nos encontramos perante uma situação de responsabilidade por incumprimento contratual.

O que não sofre discussão é a aplicabilidade, ao presente caso, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 de 16 de Janeiro relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, pois ambas as partes e o tribunal a quo a aceitam.

Na verdade, as normas do Regulamento, ao definirem a competência dos tribunais dos Estados comunitários, constituem uma “lei especial” perante as normas reguladoras da competência internacional previstas nas leis internas. Assim, “sempre que o caso concreto cabe no âmbito de aplicação do citado Regulamento, as respectivas normas prevalecem sobre a regulamentação geral interna de cada Estado”[1]. Por isso dispõe o art.º 59.º do CPC que a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos factores de conexão aí previstos “ sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais.” Aplica-se, pois, à questão em apreço o Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 16 de Janeiro.

Nos termos do art.º 5.º n.º1 a) daquele Regulamento, “ uma pessoa com domicílio no território de um Estado – Membro poe ser demandada noutro Estado-Membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.”

Ora, a questão está, portanto, em saber, no caso concreto, onde foi ou devia ser cumprida a obrigação.

Aceitando até a argumentação da sentença recorrida, no sentido de estarmos perante um contrato de fretamento de navio, vem este definido no art.º1.º do DL 191/87 de 29 de Abril como aquele em que “uma das partes (fretador) se obriga em relação à outra (afretador) a pôr à sua disposição um navio, ou parte dele, para fins de navegação marítima, mediante uma retribuição pecuniária denominada frete.” E no art.º 2.º “designa-se carta-partida o documento particular exigido para a válida celebração do contrato de fretamento”.

Constituem obrigações do fretador:

a)Apresentar o navio ao afretador na data ou época e no local acordados;
b)Apresentar o navio, antes e no início da viagem, em estado de navegabilidade, devidamente armado e equipado, de modo a dar integral cumprimento ao contrato.
c)Efectuar as viagens previstas na carta – partida.” É o que dispõe o art.º 7.º do D.L.191/87.

Ora, no caso em apreço, ao abrigo da carta- partida que titulou o contrato, o transporte da mercadoria teve origem no porto de Aveiro, com destino ao porto de Terneuzen.

Portanto, por força do contrato de fretamento em apreço, a Ré obrigou-se a pôr à disposição da segurada da Autora (Portucel) o navio, no porto de Aveiro, para  deslocar a mercadoria para o porto de Terneuzen. Portanto, parece-nos, ao contrário do que é entendido na decisão recorrida, que a obrigação devia e foi cumprida no Porto de Aveiro. Ali é que a obrigação principal de colocar o navio à disposição do afretador, foi cumprida.

É ainda obrigação do afretador apresentar o navio em estado de navegabilidade, devidamente armado e equipado, antes e no início da viagem: Ora esta obrigação também tinha de ser cumprida no porto de Aveiro, pois ali ocorreu o início da viagem.

Por fim, é obrigação do fretador efectuar as viagens previstas na carta-partida. No caso em apreço, a viagem iniciou-se em Aveiro e terminou no porto holandês de Terneuzen.

Em rigor, estamos perante uma obrigação duradoura continuativa, ou seja não se se circunscreve a uma actividade momentânea do devedor, antes trata-se de um comportamento continuado que se estende no tempo[2], ou seja durante o tempo que demora a viagem entre Portugal e Holanda. E assim, não só se estende no tempo, como também no espaço. Ou seja, há deveres que integram essa obrigação complexa cujo cumprimento ocorre num Estado e outros deveres cujo cumprimento ocorre noutro. É neste contexto que se coloca a questão inicial: onde deve entender-se que a obrigação foi cumprida: no porto de Aveiro onde começou a viagem ou no porto de Terneuzen onde a mesma terminou?

Como decorre do que supra ficou exposto, dos três deveres fundamentais que integram a obrigação complexa do fretador, dois deles, claramente, tinham de ser cumpridos no Porto de Aveiro. Apenas no terceiro dever – efectuar a viagem prevista na carta – se estabelece uma conexão com o Estado Holandês. Nestas condições, teremos forçosamente de concluir que, pelo menos parte significativa da obrigação complexa e duradoura a cargo do Réu, devia ser cumprida no Porto de Aveiro. Tanto basta para atribuir competência aos Tribunais portugueses para conhecer do litígio em questão.

Por conseguinte, à luz dos critérios legais definidos no artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, temos de concluir que os tribunais portugueses – neste caso o Tribunal Marítimo de Lisboa- é competente para conhecer o presente litígio.
Procedem as conclusões da Apelante.

IV-DECISÃO.

Em face do exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e revogando a decisão recorrida, julgar improcedente a excepção dilatória da incompetência absoluta dos tribunais portugueses para conhecer do presente litígio.

Custas pela Apelada.


Lisboa, 7 de Abril de 2016


Maria de Deus Correia
Nuno Sampaio
Maria Teresa Pardal



[1]Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25/11/2004, Processo 04B3758 e de 03-03-2005, Processo 04A4283, ambos disponíveis em www.dgsi.pt
[2]Vide a este propósito da qualificação das obrigações. MARIO JÚLIO ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 10.ª edição, Almedina,p.699.

Decisão Texto Integral: