Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
141/12.1PTAMD.L1-9
Relator: BRÁULIO MARTINS
Descritores: PENA CRIMINAL
INTEGRAÇÃO EM CÚMULO JURÍDICO
AUTONOMIA
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 08/14/2023
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Quando uma pena é englobada numa decisão de punição do concurso de infrações não perde a sua existência nem a sua autonomia – verbi gratia, as penas assim cumuladas são descritas nas decisões de punição do concurso; apesar da efetivação do cúmulo jurídico, continuam a constar do registo criminal; são mencionadas e ponderadas individualmente no elenco dos antecedentes criminais do agente numa sentença condenatória; são novamente individualmente consideradas em caso de necessidade de reformulação do cúmulo jurídico.

II. As punições parcelares integradas no cúmulo jurídico não desaparecem da ordem jurídica; o que simplesmente lhes acontece é que, por decisão do legislador, e com base em sólidas convicções político-criminais, são combinadas entre si de determinado modo para que a punição de conjunto possa traduzir mais fielmente a gravidade do ilícito global perpetrado.

III. Dada a natural provisoriedade de qualquer decisão judicial não transitada em julgado, não existe qualquer óbice à declaração de prescrição de uma pena que foi incluída numa decisão de cúmulo jurídico que revista tal condição, o que determinará, naturalmente, a reformulação desta decisão.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: DECISÃO SUMÁRIA

I

RELATÓRIO

1
No processo n.º 141/12.1PTAMD, que corre termos no Juízo Local Criminal da Amadora – J3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi proferida decisão em 23 de Janeiro de 2022 com o seguinte teor:

 “(…) verificando-se que o prazo de prescrição de quatro anos da pena de multa em que foi o arguido AA foi condenado nestes autos se completou no dia 22-08-2022, e inexistindo quaisquer causas de suspensão ou interrupção, declaro a mesma extinta, por decurso do prazo prescricional, nos termos do disposto no art.º 122.º, n.º 1, alínea d) do CP.”

2

O Ministério Público não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso, no qual formulou as seguintes conclusões:

1. O arguido AA foi condenado nos presentes autos, por douta sentença proferida em 22.05.2012, transitada em julgado em 22.02.2018, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3.°, n.º1 e 2 do Dec.Lei n.º2/98, de 3 de Janeiro, com as disposições conjugadas dos art.s 121.ºe 122.ºdo Código da Estrada, na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de €600,00 (seiscentos euros).
2. No entanto, no proc. 518/12.2PFAMD, por sentença de cúmulo proferida em 04.07.2020, ainda não transitada em julgado, mas cujo teor foi dado conhecimento aos presentes autos em 08.07.2020, foi englobada a pena a que o arguido foi condenado nos presentes autos, bem como as aplicadas no âmbito dos proc. 1629/15.8GLSNT, 1066/16.7GLSNT, 199/12.3PBAMD e 2268/12.0T3AMD, tendo o arguido sido condenado:
- na pena única de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão (operando-se cúmulo jurídico entre as penas aplicadas nestes autos e nos processos 1629/15.8GLSNT e 1066/16.7GLSNT);
- na pena única de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à razão diária de 5,00€ (cinco euros), num total de 1 100,00 € (mil e cem euros) (operando-se cúmulo jurídico entre as penas aplicadas nos processos 141/12.1PTAMD, 199/12.3PBAMD e 2268/12.0T3AMD); e
- na sanção acessória única de proibição de conduzir por 20 (vinte) meses, sendo que, procedendo-se ao desconto de 10 (dez) meses já cumpridos, o arguido deverá cumprir o remanescente de 10 (dez meses) de tal sanção acessória (operando-se cúmulo jurídico entre as penas aplicadas nestes autos e nos processos 1629/15.8GLSNT e 1066/16.7GLSNT).
3. Não obstante o exposto, por despacho datado de 23.01.2023, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo determinou a extinção por prescrição da pena a que o arguido foi condenado nos presentes autos.
4. No entanto, em nosso entendimento, com a realização e com o proferimento da sentença de cúmulo superveniente das penas aplicadas ao arguido, através da qual foi englobada, entre o mais, a pena a que o arguido foi condenado nos presentes autos, as penas unitárias originais deixam, necessariamente, de ter existência.
5. A alteração legislativa operada pela Lei 59/2007, de 04.09 ao art.º 78.ºdo Código Penal, suprimiu, da redacção anterior, o requisito da condenação anterior não se encontrar ainda cumprida, prescrita ou extinta, impondo a realização do concurso, mesmo nestes casos, o que significa que no cúmulo superveniente a realizar devem englobar-se realizar todas as condenações anteriores, mesmo aquelas que já tenham sido cumpridas, declaradas extintas ou prescritas.
6. Esta opção legislativa tem por base o facto do legislador ter estabelecido, de forma peremptória, a forma de efectivação do cúmulo jurídico das penas em concurso, ou seja, que deve ser realizado em audiência de julgamento, consubstanciando um verdadeiro julgamento de mérito em que o tribunal profere uma nova decisão final, no decorrer da qual é valorada, entre o mais, a personalidade do agente, realidade que constitui, o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes e tem, necessariamente, carácter unitário, sendo que, a decisão aplicada sobrepõe-se às decisões anteriormente proferidas por cada crime que foi condenado das penas parcelares, as quais englobam e fazem parte integrante na pena única resultante da efectivação do cúmulo.
7. Pelo exposto, conclui-se que foi intenção do legislador ao decretar tais alterações legislativas, sustentar que com o proferimento da sentença de cúmulo superveniente das penas aplicadas ao arguido, as correspondentes penas unitárias deixam de ter existência, e por conseguinte, não devem ser declaradas extintas, nomeadamente por prescrição, em virtude desta decisão consubstanciar um acto inútil, uma vez que, mesmo declarada extinta, a pena deve/tem ser englobada ou mantida no cúmulo realizado.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores, não deixarão de doutamente suprir.
Deve o recurso ser julgado procedente, por provado, e consequentemente, deverá ser o despacho proferido que declarou prescrita a pena de multa substituído por outro que indague o proc. 518/12.2PFAMD sobre o trânsito em julgado da sentença ali proferida.

3

Não foi apresentada resposta ao recurso.

4

Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos:

Interpõe o Ministério Público recurso do despacho proferido a 23 de janeiro de 2023, que declarou prescrita a pena de multa aplicada ao arguido AA.
Conforme resulta na douta argumentação constante da motivação de recurso, uma vez realizado o cúmulo jurídico superveniente as penas parcelares aí englobadas deixam de ter existência jurídica.
No entanto, em nosso entender, tal só ocorre quando a sentença cumulatória transitar em julgado. Até essa altura as penas parcelares mantêm a sua autonomia.
Não tendo ainda transitado em julgado a sentença proferida no Proc. nº 518/12.2PFAMD, do J2, do Juízo Local Criminal da Amadora, que efetuou o cúmulo jurídico, onde foi englobada a pena aplicada nos presentes autos, esta pena ainda não perdeu a sua autonomia originária.
Assim, nada obsta a que possa ser declarada a sua prescrição, de conhecimento oficioso, pelo despacho recorrido.
Pelo que, não se acompanha a posição do Exm.º Colega junto da 1ª instância e emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso.

5

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido dada resposta.

6

Os autos apresentam condições para ser proferida decisão sumária.


II

FUNDAMENTAÇÃO

1

Objeto do recurso:

Pode declarar-se a prescrição de uma pena englobada numa decisão de punição do concurso de infrações enquanto esta decisão não estiver transitada em julgado?

2

Decisão recorrida:

Nos presentes autos foi o arguido AA condenado, por sentença transitada em julgado a 22-08-2018, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o total de €600,00 (seiscentos euros).
Tal pena veio a ser integrada em cúmulo jurídico realizado no processo n.º 518/12.2PFAMD, que corre termos no Juízo Local Criminal da Amadora – Juiz 2, cuja sentença cumulatória, proferida em 04-07-2020, ainda não transitou em julgado na presente data (cfr. informação que consta sob ref.ª Citius 22424095),
Notificado para se pronunciar sobre a prescrição da pena de multa em que o arguido foi condenado nestes autos, o Ministério Público defendeu que a mesma não se mostra prescrita, invocando, na esteira do decidido pelo Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 04-06-2019 (Proc. n.º 36/06.8IDFAR.E1, relator Gilberto Cunha), que a pena unitária fixada nestes autos deixou de ter existência jurídica, perdendo a sua autonomia, a partir do momento em que foi integrada no cúmulo jurídico, uma vez que o trânsito em julgado da sentença cumulatória “constitui apenas um requisito para a sua execução pois, a sentença enquanto título executivo, tem de revestir-se do atributo da irrevogabilidade, isto é, da força de caso julgado (...)”.
Assim, conclui que, já não tendo existência jurídica, pelos motivos acima referidos, a pena de multa dos presentes autos já não poderá ser declarada extinta, por prescrição.
Cumpre apreciar e decidir.
Estabelece o artigo 122.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal (doravante CP), que a pena de multa prescreve no prazo de quatro anos, acrescentando o n.º 2 do mesmo artigo que “o prazo de prescrição começa a correr no dia em que tiver transitado em julgado a decisão que tiver aplicado a pena.”
Transpondo para o caso que aqui nos ocupa, e considerando que não ocorreu qualquer causa de suspensão ou interrupção da pena, nos termos previstos nos art.º s 125.º e 126.º, ambos do CP, conclui-se necessariamente que o prazo de prescrição de quatro anos, contado da data de trânsito em julgado da sentença proferida nestes autos, se completou em 22-08-2022.
Assente tal facto, a questão que aqui se suscita é a de saber se a circunstância de a pena de multa em que o arguido foi condenado nestes autos ter sido incluída em cúmulo jurídico no processo n.º 518/12.2PFAMD, por sentença ainda não transitada em julgado, obsta à declaração da sua extinção, por decurso do prazo prescricional.
E quanto a esta matéria, salvo melhor entendimento, não se acompanha a posição do Ministério Público, secundada pelo acórdão a que acima se fez referência, pelas razões que se passam a apresentar.
Ora, de acordo com o n.º 2 do art.º 122.º do CP, que se transcreveu supra, a data relevante para efeitos de contagem do prazo de prescrição de uma pena é a do trânsito em julgado da sentença que a aplicou, o que sucede em virtude de, até esse momento, a sentença em questão poder ser alvo de modificação, nomeadamente por via de recurso.
Daqui decorre, consequentemente, que ao definir tal momento temporal – trânsito em julgado da sentença condenatória – como aquele relevante para efeitos de prescrição da pena, o legislador teve como pressuposto que esta última só se consolida na ordem jurídica a partir dessa data, o que é desde logo coerente com o disposto no art.º 628.º CPC ex vi art.º 4.º do CPP, que estabelece a noção de trânsito em julgado.
Por outro lado, como se lê no sumário do Ac. do STJ, de 27-05-2021 (Processo n.º 105/20.1SHLSB-A.L1-A.S1, relator António Gama, disponível em www.dgsi.pt) , “O trânsito em julgado de uma decisão desempenha um papel fulcral na segurança jurídica”, a qual se assume como um princípio emergente daquele consagrado no art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, tanto o princípio da segurança jurídica, como o da proteção da confiança, constituem princípios basilares de um Estado de Direito Democrático, exigindo um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas, tendo subjacente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica, bem como legitimidade da atuação do Estado.
Daqui decorre que é o trânsito em julgado de uma sentença condenatória que define com segurança a situação processual de um arguido, relativamente à pena em que foi condenado, gerando igualmente expectativas jurídicas que merecem tutela constitucional, designadamente quanto aos prazos de prescrição da mesma.
Já no que diz respeito à matéria de cúmulo jurídico, regem os art.º s 77.º e 78.º do CP, de cuja leitura conjugada não se retira qualquer referência à perda de autonomia das penas parcelares em que o arguido foi anteriormente condenado como consequência da mera prolação da decisão cumulatória. Aliás, a mesma não constitui, sequer, qualquer causa de suspensão ou interrupção da pena, nos termos dos art.ºs 125.º e 126.º do CP.
Assim, inexistindo qualquer norma especial, e tendo em conta a unidade sistemática e os princípios a que acima fizemos referência, somos levados a concluir que a pena única determinada em cúmulo jurídico apenas se consolida na ordem jurídica após o trânsito em julgado da sentença que a aplicou, à semelhança do que sucede com qualquer outra sentença condenatória, momento esse em que, consequentemente, as penas unitárias anteriormente fixadas perdem a sua autonomia.
Em abono desta interpretação, importa ainda fazer referência ao disposto no art.º 467.º, n.º 1 do CPP, que estabelece que “As decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva em todo o território português e ainda em território estrangeiro, conforme os tratados, convenções e regras de direito internacional.”
Ora, daqui decorre que a sentença cumulatória só é exequível a partir do seu trânsito em julgado, nada obstando a que, até esse momento, as penas parcelares que integraram o cúmulo, porque já transitadas em julgado anteriormente, possam ser (ou continuar a ser) executadas. Aliás, estamos em crer que é precisamente tal circunstância que motivou o legislador a prever o desconto, na pena única, de pena anterior parcialmente cumprida que venha a ser substituída por esta, ainda que de diferente natureza, conforme estatui o art.º 81.º do CP.
Salvo melhor entendimento, interpretação diversa violaria os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, uma vez que até ao trânsito em julgado da decisão cumulatória a mesma é ainda passível de recurso, podendo vir a ser alterada, razão pela qual não se pode afirmar que tem existência na ordem jurídica em momento anterior a essa data. Por outro lado, admitir que as penas parcelares integradas no cúmulo jurídico perdem a sua autonomia no momento em que a sentença de cúmulo é proferida seria colocar em causa uma decisão já estabilizada no ordenamento jurídico, bem como a confiança que o arguido e a comunidade depositaram na sua exequibilidade, expressamente prevista no art.º 467.º, n.º 1 do CPP.
Por fim, sempre se dirá que tal poderia constituir, igualmente, um modo de prolongamento dos prazos de prescrição das penas parcelares integradas no cúmulo, nomeadamente nas situações em que, como a dos presentes autos, a sentença cumulatória não transita em julgado em momento anterior à prescrição de uma dessas penas. Com efeito, consideramos que, não existindo norma expressa que regule tal situação, tal violaria a proteção da confiança que o arguido depositou relativamente aos prazos de prescrição da pena parcelar, taxativamente previstos no Código Penal, assim como a segurança jurídica, do arguido e da comunidade, relativamente ao período em que o Estado se encontra legitimado a executar penas já transitadas em julgado [ realce-se que os prazos de prescrição visam sancionar lapsos de tempo consideráveis e injustificados sem que haja andamento do processo, não sendo exigível que o arguido esteja, por tempo irrazoável, à espera do cumprimento de uma pena. Tal decorre, desde logo, do direito a um processo justo e equitativo, previsto no art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, mas também do art.º 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos].
Acresce que a declaração de extinção de uma pena parcelar em virtude do decurso do prazo prescricional não contende, salvo melhor opinião, com o esgotamento do poder jurisdicional do juiz que proferiu a decisão de cúmulo, uma vez que, como é entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça, “Nas decisões de cúmulo de penas não se forma caso julgado firme, mas rebus sic stantibus, valendo a decisão nas circunstâncias que estiveram na base da sua formação” (3 Ac. do STJ de 17-09-2015, Proc. n.º 134/10.3TAOHP.S3, relator Arménio Sottomayor, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, se é admissível uma reformulação do cúmulo quando a decisão que o aplicou já se mostra transitada em julgado, por ser mais favorável ao arguido, também será admissível, por maioria de razão, igual reformulação nas situações em que, não estando a sentença cumulatória transitada em julgado, uma das penas veio entretanto a prescrever [Em abono deste entendimento, também se lê no Ac. do STJ, de 27-01-2022, Proc. n.º 5175/20.0T8LRS.L1.S1, relator Cid Geraldo, que “A única limitação ao cúmulo (ou à sua reformulação) é a de as respectivas penas não estarem cumpridas, prescritas ou extintas”(sublinhado nosso)], tanto mais que essa reformulação será igualmente mais favorável ao arguido.
Face a tudo o que acima se expôs, consideramos que o facto de uma pena ter sido integrada em cúmulo superveniente, por sentença ainda não transitada em julgado, não obsta a que venha a ser declarada extinta, em virtude da prescrição, como aliás se decidiu no Ac. do TRP, de 06-02-2008 [ Processo n.º 0716679, relator Manuel Braz, disponível em www.dgsi.pt], em cujo sumário se lê: “Uma pena não deixa de poder ser declarada prescrita pelo facto de ter sido englobada num cúmulo jurídico.”
Consequentemente, verificando-se que o prazo de prescrição de quatro anos da pena de multa em que foi o arguido AA foi condenado nestes autos se completou no dia 22-08-2022, e inexistindo quaisquer causas de suspensão ou interrupção, declaro a mesma extinta, por decurso do prazo prescricional, nos termos do disposto no art.º 122.º, n.º 1, alínea d) do CP.

3

O direito.

Como afirma o Ministério Público nas suas conclusões, resulta com clareza dos autos que:

O arguido AA foi condenado nos presentes autos, por sentença proferida em 22.05.2012, transitada em julgado em 22.02.2018, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3.°, n.ºs 1 e 2 do Dec.Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, com as disposições conjugadas dos art.ºs 121.ºe 122.ºdo Código da Estrada, na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de €600,00 (seiscentos euros).
No entanto, no proc. 518/12.2PFAMD, por sentença de cúmulo proferida em 04.07.2020, ainda não transitada em julgado, mas cujo teor foi dado conhecimento aos presentes autos em 08.07.2020, foi englobada a pena a que o arguido foi condenado nos presentes autos, bem como as aplicadas no âmbito dos proc. 1629/15.8GLSNT, 1066/16.7GLSNT, 199/12.3PBAMD e 2268/12.0T3AMD, tendo o arguido sido condenado:
- na pena única de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão (operando-se cúmulo jurídico entre as penas aplicadas nestes autos e nos processos 1629/15.8GLSNT e 1066/16.7GLSNT);
- na pena única de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à razão diária de 5,00 € (cinco euros), num total de 1 100,00 € (mil e cem euros) (operando-se cúmulo jurídico entre as penas aplicadas nos processos 141/12.1PTAMD, 199/12.3PBAMD e 2268/12.0T3AMD); e
- na sanção acessória única de proibição de conduzir por 20 (vinte) meses, sendo que, procedendo-se ao desconto de 10 (dez) meses já cumpridos, o arguido deverá cumprir o remanescente de 10 (dez meses) de tal sanção acessória (operando-se cúmulo jurídico entre as penas aplicadas nestes autos e nos processos 1629/15.8GLSNT e 1066/16.7GLSNT).
Não obstante o exposto, por despacho datado de 23.01.2023, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo determinou a extinção por prescrição da pena a que o arguido foi condenado nos presentes autos.

E na decisão recorrida de 23/01/2023 lê-se:

Estabelece o artigo 122.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal (doravante CP), que a pena de multa prescreve no prazo de quatro anos, acrescentando o n.º 2 do mesmo artigo que “o prazo de prescrição começa a correr no dia em que tiver transitado em julgado a decisão que tiver aplicado a pena.”
Transpondo para o caso que aqui nos ocupa, e considerando que não ocorreu qualquer causa de suspensão ou interrupção da pena, nos termos previstos nos art.º s 125.º e 126.º, ambos do CP, conclui-se necessariamente que o prazo de prescrição de quatro anos, contado da data de trânsito em julgado da sentença proferida nestes autos, se completou em 22-08-2022.

Ora, tudo isto é absolutamente inquestionável.

Todavia, cumpre averiguar se a inclusão da pena proferida neste processo numa decisão de punição do concurso de infrações proferida num outro processo, ao abrigo do disposto no art.º 78.º do Código Penal, e que ainda se não mostra transitada em julgado, impede que se declare a extinção, por prescrição, da pena aqui proferida.

O recorrente entende que quando uma pena é englobada numa decisão de punição do concurso de infrações perde a sua autonomia – chega mesmo a afirmar que as penas unitárias originais deixam, necessariamente, de ter existência. É verdade que a perda de autonomia é uma afirmação constante do vocabulário dos nossos processos penais, mas cujo fundamento legal se não descortina; ou seja, nada na lei permite tal afirmação, e, muito menos, a lei o afirma ou dá a entender sequer.

A punição do concurso de infrações consiste tão só num conjunto de regras especiais para determinação da pena aplicável ao cometimento múltiplo de crimes. E, como sabemos, são várias as possibilidades de conformação legal de tal modo de punição: pena unitária (os vários crimes são vistos como um só, com uma só pena); pena conjunta (as penas concretas são transformadas ou convertidas, segundo um princípio de combinação, na moldura penal do concurso – pode ser por absorção, em que se atende penas à moldura penal do crime mais grave, ou por exasperação ou agravação, que, igualmente, parte daquela moldura, mas agravando a pena concreta em proporção com a pluralidade de crimes. O nosso sistema atual é qualificável como de pena conjunta obtida través de um cúmulo jurídico – sobre estas questões, cfr. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, pág. 276 e segs.

Curiosamente, a palavra autonomia é usada pelo autor citado, na referida obra (pág. 400/401), na sua exposição, quando, explicando o sistema de pena única, escreve que “pena unitária existirá quando a punição do concurso sobrevenha sem consideração pelo número de crimes concorrentes e independentemente da forma como poderiam combinar-se as penas que a cada um caberiam. Os crimes concorrentes perdem aqui toda a sua autonomia, não se tornando sequer necessário determinar a pena de cada um.”

Ora, aqui sim, há perda ou falta de autonomia – dos crimes praticados, desde logo, e das respetivas penas, que nem sequer chegam a ser fixadas, não tendo, sequer, portanto, estas, existência, quanto mais autonomia.

Mas não é isso que se passa no nosso sistema legal no regime especial de determinação da pena aplicável em caso de concurso de infrações.

As penas que integram o concurso mantêm a sua autonomia e existência para sempre e são vários os campos em que produzem efeitos jurídicos: a título de meros exemplos, são descritas nas decisões de punição do concurso; apesar da efetivação do cúmulo jurídico, continuam a constar do registo criminal; são mencionadas e ponderadas individualmente no elenco dos antecedentes criminais do agente numa sentença condenatória; são novamente individualmente consideradas em caso de necessidade de reformulação do cúmulo jurídico. Ou seja, tais punições parcelares não desaparecem da ordem jurídica. O que simplesmente lhes acontece é que, por decisão do legislador, e com base em sólidas convicções político-criminais, são combinadas entre si de determinado modo para que a punição de conjunto possa traduzir mais fielmente a “(…) gravidade do ilícito global perpetrado (…) – cfr. Figueiredo Dias, ob. cit, loc. cit, pág. 291.

No mesmo sentido propende, tanto quanto parece, a decisão recorrida, quando afirma:

Já no que diz respeito à matéria de cúmulo jurídico, regem os art.ºs 77.º e 78.º do CP, de cuja leitura conjugada não se retira qualquer referência à perda de autonomia das penas parcelares em que o arguido foi anteriormente condenado como consequência da mera prolação da decisão cumulatória. Aliás, a mesma não constitui, sequer, qualquer causa de suspensão ou interrupção da pena, nos termos dos art.ºs 125.º e 126.º do CP.

Talvez se possa dizer que a origem da tão difundida expressão perda de autonomia, acima referida, possa estar nesta obra de tão insigne mestre, que certamente, e justamente, inspirou e inspira muitos de nós, mas, como se vê, neste caso, constituindo, eventualmente, algo diferente do que ali se expõe.

Assim sendo, a inclusão de uma pena numa decisão de punição do concurso de infrações não determina a perda de autonomia ou existência desta; determina, isso, sim, que, exclusivamente para o efeito de determinação da medida da pena de tal pluralidade criminosa, ela se combine de determinado modo com outras penas, sendo, todavia, sempre cognoscível e individualizável,  por quem nisso tiver interesse ou necessidade.

O recorrente invoca ainda em favor da sua posição a alteração de redação do regime que aqui analisamos.

Vejamos a sucessão legal.

Versão original:

Artigo 78.º
Conhecimento superveniente do concurso
1 - Se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior.
2 - O disposto no número anterior é ainda aplicável no caso de todos os crimes terem sido objecto separadamente de condenações transitadas em julgado.
3 - As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior.

Versão em vigor:

Artigo 78.º
Conhecimento superveniente do concurso
1 - Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.
2 - O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado.
3 - As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior.

O recorrente interpreta esta alteração pelo seguinte modo:

A alteração legislativa operada pela Lei 59/2007, de 04.09 ao art.º 78.ºdo Código Penal, suprimiu, da redacção anterior, o requisito da condenação anterior não se encontrar ainda cumprida, prescrita ou extinta, impondo a realização do concurso, mesmo nestes casos, o que significa que no cúmulo superveniente a realizar devem englobar-se realizar todas as condenações anteriores, mesmo aquelas que já tenham sido cumpridas, declaradas extintas ou prescritas.
Esta opção legislativa tem por base o facto do legislador ter estabelecido, de forma peremptória, a forma de efectivação do cúmulo jurídico das penas em concurso, ou seja, que deve ser realizado em audiência de julgamento, consubstanciando um verdadeiro julgamento de mérito em que o tribunal profere uma nova decisão final, no decorrer da qual é valorada, entre o mais, a personalidade do agente, realidade que constitui, o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes e tem, necessariamente, carácter unitário, sendo que, a decisão aplicada sobrepõe-se às decisões anteriormente proferidas por cada crime que foi condenado das penas parcelares, as quais englobam e fazem parte integrante na pena única resultante da efectivação do cúmulo.
Pelo exposto, conclui-se que foi intenção do legislador ao decretar tais alterações legislativas, sustentar que com o proferimento da sentença de cúmulo superveniente das penas aplicadas ao arguido, as correspondentes penas unitárias deixam de ter existência, e por conseguinte, não devem ser declaradas extintas, nomeadamente por prescrição, em virtude desta decisão consubstanciar um acto inútil, uma vez que, mesmo declarada extinta, a pena deve/tem ser englobada ou mantida no cúmulo realizado.

Ora, como é evidente, não é assim.

Não foi certamente intenção do legislador, com esta alteração, legal fazer incluir numa punição de um concurso de infrações uma pena prescrita não cumprida – o que o legislador pretendeu foi tornar a punição do concurso de infrações mais justa e consonante com o que a Jurisprudência vinha decidindo, permitindo, assim, que, por exemplo, uma pena cumprida indevidamente, por estar prescrita, fosse abrangida pelo cúmulo jurídico, e descontado tal cumprimento na pena única fixada, tal como dispõe a parte final no n.º 1 do citado preceito na sua atual redação.

Ora, o que aqui nos ocupa é precisamente uma pena ainda não cumprida que foi declarada prescrita.

E essa declaração surge no momento em que tal pena foi considerada numa decisão judicial para a determinação da moldura penal de um concurso de infrações, a qual ainda não transitou em julgado, a que se seguiu uma comunicação de tal situação ao processo de origem – ora, como todos sabemos, o nosso conhecido despacho da perda de autonomia nestes casos apenas é proferido depois de ter sido efetuada a comunicação relativa ao trânsito em julgado da decisão de cúmulo, e não logo em seguida à prolação da dita decisão.

Temos como certo que dada a natural provisoriedade de qualquer decisão judicial não transitada em julgado, não existe qualquer óbice à declaração de prescrição de uma pena que foi incluída numa decisão de cúmulo jurídico que revista tal condição, o que determinará, naturalmente, a reformulação desta decisão – neste particular caso das punições do concurso de infrações, com é consabido, é muito ténue até a própria intangibilidade do caso julgado, atento o regime legal do conhecimento superveniente do concurso, sendo habitual dizer-se que vigora aqui a regra de rebus sic standibus.

Situação idêntica poderia configurar-se com a inclusão na decisão de cúmulo jurídico de uma pena de prisão cuja execução foi suspensa, tendo sido dado a conhecer após a prolação daquela, mas antes do seu trânsito em julgado, que no processo de origem da última havia sido, entretanto, proferido despacho a julgar extinta, pelo cumprimento, tal pena – como sabemos, a Jurisprudência é unânime no sentido da não inclusão na punição do concurso de tal pena, determinando mesmo que se não proceda a cúmulo nessas condições sem que do processo conste toda informação a ela referente. Assim, também aqui, a prolação da decisão de cúmulo nada implicaria em relação à autonomia da pena indevidamente cumulada, cuja declaração de extinção se tornaria plenamente eficaz, como é natural.

Assim sendo, concordando com o parecer junto aos autos neste Tribunal da Relação, entendo que no caso presente nada impede, antes pelo contrário, impõe, que se declara a prescrição da pena aplicada nos presentes autos.

Por todo o exposto, julgo improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, confirmo a decisão recorrida.
Sem tributação, por isenção do recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 14 de agosto 2023
António Bráulio Alves Martins