Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3463/19.7T8VFX.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: LEIS COVID 19
SUSPENSÃO DAS ACÇÕES DE DESPEJO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADO O DESPACHO
Sumário: As acções de despejo não ficam suspensas por força da legislação Covid-19; para que ocorra a suspensão, tem de houver um despacho judicial que declare verificados os pressupostos da previsão da suspensão do artigo 6-A/6-c da Lei 1-A/2020 na redacção agora em vigor.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A 12/11/2019, D... intentou uma acção de despejo (artigo 14/1 da Lei 6/2006 de 27/02) sob a forma de processo comum contra M… e cônjuge A…, casados, residentes na rua … 1.° dt°, 2625-423 Forte da Casa, na qualidade de arrendatários, e M…, na qualidade de fiador, pedindo que os réus sejam condenados a verem decretada a resolução do contrato de arrendamento e a entregarem o locado livre e desocupado de pessoas e bens e em bom estado de conservação (para além do pagamento de rendas, com juros).
Alegou para o efeito, na parte que agora importa, que por
contrato reduzido a escrito e assinado pelo demandante e pelos demandados, aquele declarou dar de arrendamento aos primeiros demandados e estes declararam aceitar receber de arrendamento a fracção autónoma referida acima como residência dos mesmos. O contrato teve início em 01/07/2014 e foi celebrado pelo prazo certo de 5 anos. O local arrendado destinou-se a habitação. A renda mensal foi fixada em 370€. Os demandados arrendatários não pagaram 332,20€ referente a parte da renda respeitante a Julho de 2018, vencida a 01/06/2018, as rendas vencidas no dia 01/07/2018 e meses subsequentes referentes. Nos termos do disposto no artigo 1083/3 do CC, o demandante pode proceder à resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento das rendas.
Em meados de Nov2019, já todos os réus estavam citados. Nenhum contestou.
A 23/12/2020, o autor expôs e requereu o seguinte:
- No dia 09/11/2020, o mandatário do demandante, mediante telefonema para a secretaria do tribunal, foi informado que o presente processo e todas as acções de despejo para habitação se encontravam suspensas até final do corrente ano por efeitos da lei sobre a pandemia.
No dia 03/12/2020, o mandatário do demandante voltou a telefonar para a secretaria do tribunal, tendo sido novamente informado que as acções de despejo para habitação, incluindo a presente, estão suspensos até ao final do corrente ano por efeitos da lei.
Porém, o demandante (o seu mandatário) não foi notificado de qualquer despacho a ordenar a suspensão do processo.
Consultado o processo, verifica-se que do mesmo não consta qualquer despacho a ordenar a suspensão do processo.
Ora, o artigo 6/1-c da Lei 1-A/2020 de 19/03, na redacção dada pela Lei 58-A/2020 de 30/09, dispõe que “as acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
Ou seja, a suspensão do processo não é um efeito automático da lei.
Tal suspensão tem de ser decretada no próprio processo, mediante despacho devidamente fundamentado a avaliar as condições da concreta situação de fragilidade, em que o despejo venha a colocar o inquilino, ou a outra razão imperiosa.Tal situação de fragilidade, ou outra razão imperiosa, não se verifica na fase da citação e dos articulados, uma vez que o despejo apenas pode ser concretizado em execução de sentença.
Até lá, a tramitação (movimentação) do processo deve prosseguir.
Temos em que se requer o prosseguimento do processo.
A 06/01/2021 foi proferido o seguinte despacho, que se transcreve na parte que importa (os itálicos e os sublinhados são do tribunal recorrido):
Na presente acção que o autor move contra os réus com vista a obter a entrega do locado, objecto de contrato de arredamento para fins habitacionais, bem como o pagamento das rendas vencidas e não pagas, os réus, mostram-se citados sem que tenham deduzido contestação.
Prevê o art. 6-A da Lei 1-A/2020, de 19/03, versão actualizada, sob a epigrafe Regime processual transitório e excepcional (i.e. em vigor até ser revogado ...), no seu n.° 6 que “Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório: (...) c) As acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa; (...)”.
Em face do que vem alegado pelo autor, na sua petição inicial, confessado pelos réus, dada a não oposição, encontrarem-se reunidos os pressupostos vertidos no mencionado preceito legal e que determinam a suspensão ope legis da presente acção, nos termos do disposto no art. 269/1-d) do CPC, o que obsta à prática de quaisquer actos no processo que não sejam urgentes e determina que não corram os prazos judiciais - cfr. art. 275, n°s 1 e 2, do CPC.
Assim e até revogação da referida situação excepcional e transitória, mantém-se a suspensão da acção de despejo, pelo que se indefere o que vem requerido.
O autor recorre desta decisão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1- A suspensão prevista no artigo 7/11 da Lei 1-A/2020 de 19/03 não opera ope legis, ao contrário do que consta do despacho recorrido.
2- Por outro lado, a decisão que decreta a suspensão deve ser fundamentada, nos termos do disposto nos artigos 154 e 607, n°s 3 e 4 do CPC.
3- Tal decisão tem de ser decretada no próprio processo, mediante despacho devidamente fundamentado a avaliar as condições da concreta situação de fragilidade, em que o despejo venha a colocar o inquilino, ou a outra razão imperiosa.
4- Pelo que a sentença padece da nulidade de falta de fundamentação de facto prevista no artigo 615/1-b do CPC.
5- Mesmo que se entenda que o juiz a quo “aderiu”, no despacho interlocutório, aos fundamentos de facto alegados pelo demandante, nenhum facto foi alegado na petição inicial sobre uma eventual situação de fragilidade do dos locatários.
6- Pelo que, neste caso, a decisão recorrida padece também da nulidade prevista no art. 615/1-c do CPC, uma vez que os fundamentos alegados na petição inicial estão em oposição com a decisão.
7- O demandante pode interpor recurso de apelação do despacho, nos termos do disposto no artigo 644/2-c do CPC.
8- Pelo que o despacho recorrido deve ser revogado e ser ordenado o prosseguimento do processo.
*
Questão que importa decidir: se o despacho é nulo por falta de fundamentação; se a acção não se deve considerar suspensa e se, por isso, o processo deve prosseguir.
*
Os factos que interessam à decisão desta questão são as ocorrências descritas no relatório deste acórdão.
*
Da nulidade
A decisão é clara de forma suficiente: com as transcrições, itálicos e sublinhados, o tribunal recorrido demonstra que entende que a instância fica suspensa, por força da lei, quando decorrer do conjunto das posições das partes, apareçam estas sob a forma de acções ou de omissões, que o objectivo pretendido pelo senhorio poderá colocar os arrendatários em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Ora, como o autor dizia que arrendamento era para habitação e que os réus não pagavam as rendas e pretendia o despejo dos arrendatários, o tribunal entende, bem ou mal não interessa para já, que fazer prosseguir o processo, perante estes factos provados por falta de impugnação, prosseguimento que poderia implicar uma decisão que declarasse a resolução do contrato e a condenação dos réus a entregaram a fracção arrendada, era colocar os arrendatários em situação de fragilidade (sem habitação por não terem conseguido pagar as rendas).
Assim, não se verifica nenhum das duas nulidades arguidas; os factos que justificam a decisão constam do despacho e os fundamentos invocados são coerentes com o entendimento do tribunal de que a instância está suspensa.
*
Da suspensão
Mas o despacho está errado.
Por um lado, porque se o processo fica suspenso perante a conjugação do que foi alegado pelo autor e não impugnado pelos réus, feita pelo tribunal, retirando daí a conclusão de que os factos admitidos por acordo permitem entender que o prosseguimento do processo poderá colocar os réus numa situação de fragilidade, não se vê como é a suspensão do processo pode resultar apenas da lei, sem que haja alguém que faça aquela conjugação e tire aquela conclusão.
Ou seja, perante a argumentação utilizada pelo tribunal, vê-se que o melhor entendimento da lei não é o da automaticidade da suspensão decretada na legislação covid-19, mas sim o da necessidade de um despacho judicial que pondere a situação em que os arrendatários podem ser colocados perante a cessação do contrato e a condenação da entrega da fracção arrendada.
Por outro lado, os factos que se podem considerar admitidos por acordo - que são só: i/ o arrendamento foi para habitação dos réus; ii/ os réus não pagam as rendas - não permitem a conclusão de que o prosseguimento do processo poderá colocar os réus em situação de fragilidade: desde logo não é possível afastar a hipótese de que os réus tenham, quando tal acontecer, uma outra habitação para onde possam ir morar.
Daqui decorre que são os réus que, naturalmente, saberão qual é a situação em que serão colocados perante a execução de uma decisão final que declare a resolução e condene na entrega da fracção arrendada, pelo que serão eles que terão de alegar os factos respectivos.
Tendo em conta o texto da lei, transcrito pela decisão recorrida, e o que antecede, entende-se pois, ao contrário do que se defende na decisão recorrida, que a suspensão do processo não decorre da própria lei, mas sim de uma decisão judicial que, perante a prova produzida de forma contraditória de factos oportunamente alegados pelos arrendatários, considere preenchida a supra referida previsão legal da suspensão do processo.
Tudo como também se defendeu no ac. do TRP de 09/12/2020, proc. 1570/19.5YLPRT.P1, cujo sumário se transcreve por conter a referência correcta às várias versões da legislação covid-19 aplicável (que podem ser confrontas com a publicação consolidada da mesma no DRE):
II - Na Lei 1-A/2020 de 19/03, considerando nela quer a sua versão inicial quer as decorrentes de alterações a ela feitas (pela Lei 4-A/2020 de 06/04 e pela Lei 16/2020 de 29/05), não há qualquer preceito que determine só por si, autonomamente, a suspensão do andamento do procedimento especial de despejo, pois, como se vê das sucessivas previsões (art. 7/10 na sua redacção inicial; art. 7/11 na sua redacção decorrente das alterações introduzidas pela Lei 4- A/2020; e art. 6-A/6-c, na sequência das alterações introduzidas pela Lei 16/2020), a suspensão do andamento de tal processo estava e está dependente da verificação do circunstancialismo ali exigido: que o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria (versão inicial da Lei) ou possa ainda ser colocado naquela situação de fragilidade por outra razão social imperiosa (versão da Lei com as alterações introduzidas pela Lei 4- A/2020 e pela Lei 16/2020).
III - A prova daquele circunstancialismo - para se decidir sobre a sua eventual verificação e consequente suspensão do processo - incumbe ao arrendatário, pois é a si que o mesmo aproveita.
Bem como no ac. do TRL de 11/02/2021, proc. 955/20.9YLPRT.L1 (acórdão que cita no mesmo sentido vários estudos entretanto publicados sobre a questão).
*
Acrescente-se que a Lei 4-B/2021 de 01/02 - que estabelece um regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrente das medidas adoptadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando a Lei 1-A/2020, de 19/03 -, vem agora, ao mesmo tempo que revoga o art. 6-A da Lei 1-A/2020, estabelecer expressamente no seu art. 6.°-B/11, que substitui aquele, o seguinte:
São igualmente suspensos os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família ou de entrega do locado, designadamente, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que tais actos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Dá ideia que se quis pôr fim à controvérsia que se criou à volta desta questão, esclarecendo a situação, no sentido do que se defende acima.
*
Assim sendo, não tendo havido qualquer decisão judicial que tenha considerado preenchida a previsão legal da suspensão do processo prevista na legislação covid-19, e sendo ela necessária, tem que se concluir que o processo não estava suspenso quando foi proferido o despacho que indeferiu o prosseguimento do processo requerido pelo autor. E não estando suspenso o processo, não tem sentido, nem efeito, o despacho que mantém uma suspensão inexistente, pelo que o despacho de indeferimento do requerido pelo autor deve ser revogado.
*
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido, devendo, por isso, o processo prosseguir a sua sequência legal normal (já que o processo não está suspenso).
Custas, na vertente de custas de parte, pelos réus (que são quem retiraria proveito da manutenção do despacho recorrido).

Lisboa, 25/02/2021
Pedro Martins [as normas da Lei 4-B/2021 foram lembradas pela Sr3 juíza desembargadora 1.a adjunta]
Inês Moura
Laurinda Gemas