Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2102/23.6T8FNC-A.L1-7
Relator: ALEXANDRA DE CASTRO ROCHA
Descritores: EXECUÇÃO
CESSÃO DE CRÉDITOS
COMUNICAÇÃO
LIVRANÇA EM BRANCO
PREENCHIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A comunicação da cessão de créditos ao devedor, a que alude o art.º 583º nº1 do Código Civil, pode ser feita por meio de citação para acção executiva intentada pelo cessionário.
II – Na oposição a uma execução intentada contra o subscritor de uma livrança, cabe ao embargante, nos termos do art.º 342º nº2 do Código Civil, provar factos impeditivos, modificativos ou extintivos da sua responsabilidade pelo pagamento do montante incorporado no título – responsabilidade essa resultante do art.º 78º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
III – A falta de comunicação, ao subscritor de livrança em branco, do preenchimento desta, não implica a existência de preenchimento abusivo do título se tal comunicação não for imposta pelo pacto de preenchimento.
IV – A omissão daquela comunicação não constitui violação do princípio da boa fé, ínsito no art.º 762º nº2 do Código de Processo Civil, se o subscritor da livrança é o mutuário no contrato de mútuo subjacente, encontrando-se já vencidas todas as prestações pelo decurso dos prazos fixados para cada uma delas e sendo a data de vencimento aposta no título ulterior à do vencimento daquelas prestações. Neste caso, a comunicação do preenchimento da livrança nada acrescentaria àquilo de que o devedor já tem, forçosamente, conhecimento – a partir das cláusulas contratuais, sabe previamente quais os montantes que deixou de pagar e as datas em que os mesmos se venceram.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO:
X…, S.A., intentou a acção executiva que corre como processo principal, para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, contra V…, pretendendo a cobrança coerciva de €184.280,03. Apresentou, como título executivo, uma livrança, na qual figuram, como beneficiário, o Banco D… e, como subscritor, o executado. Alega, por referência aos documentos que junta, que aquela livrança diz respeito aos créditos emergentes de um contrato de mútuo celebrado entre o executado e o D…, tendo este vindo a ceder aqueles créditos à sociedade E… e tendo esta última, ulteriormente, cedido os mesmos créditos à exequente. Refere que, atento o incumprimento do contrato de mútuo, preencheu a livrança e disso deu conhecimento ao executado, por carta datada de 17/2/2023, não tendo este procedido ao pagamento. Conclui que lhe é devido o valor inscrito na livrança (€184.280,03), acrescido de juros, à taxa de 4%, contabilizados «desde a data de apresentação da livrança a pagamento até à presente data e ainda juros legais vincendos até integral e efectivo pagamento».
Citado, veio o executado, no presente apenso A, deduzir oposição à execução, mediante embargos, alegando, em síntese, que:
- desconhece como é que a exequente «chegou» ao valor inscrito na livrança, não sabendo quais as parcelas que compõem aquele valor;
- desconhece e nunca foi notificado das cessões de créditos;
- desconhece a existência de qualquer notificação de resolução do contrato por incumprimento definitivo, bem como a existência de interpelação para pagamento;
- desconhece ter sido notificado do preenchimento da livrança;
- a inexistência de interpelação admonitória não permite converter a alegada mora em incumprimento definitivo, pelo que o contrato nunca foi resolvido;
- como garantia do contrato, além da entrega de livrança em branco, foi constituído penhor genérico de activos financeiros titulados pelo executado junto do Banque L… (Suisse), no montante de €1.450.000,00;
- apesar de ter dado instruções para que o Banque L… procedesse à venda dos activos financeiros, com vista à liquidação do mútuo, o executado deixou, a partir de 2011, de ter acesso à conta da Suíça, desconhecendo o destino que foi dado aos activos financeiros objecto de penhor, não sabendo se foram, ou não, vendidos e por que valor;
- nunca foi notificado ou informado de qualquer incumprimento que pudesse motivar a resolução do contrato e estava ciente de ter cumprido todas as suas obrigações;
- a exequente nunca o informou de qualquer valor em dívida antes da entrada da acção executiva;
- a exequente não indica em que data deixou o executado de liquidar as suas prestações, em que data é que se venceu o capital alegadamente em dívida ou qual o montante já entregue pelo executado;
- parte do crédito reclamado, a existir, encontra-se prescrito, atento o disposto no art.º 310º d), e) e g) do Código Civil, prescrevendo ao fim de cinco anos as prestações de um empréstimo que envolvam o pagamento conjunto de juros e capital amortizável com juros.
Notificada, a exequente contestou, alegando que o embargante foi informado das cessões de créditos por cartas de 10/11/2016 e 29/12/2021. Por outro lado, refere que, em 17/2/2023, remeteu ao embargante uma carta, com aviso de recepção, informando-o do preenchimento da livrança exequenda, tendo, nesse preenchimento, aplicado ao capital em dívida (€125.507,93) a taxa legal de juros de mora de 4% (€58.772,10). De todo o modo, mesmo que não tivesse existido interpelação, esta teria sido substituída pela citação para a execução e, ainda assim, seria desnecessária, atendendo a que a falta de realização de uma prestação importa o vencimento das seguintes. Defende, ainda, que o vencimento das prestações futuras, além de tornar todas as prestações vincendas imediatamente exigíveis, faz com que o valor da dívida fique sujeito ao prazo ordinário de prescrição. Juntou, com a contestação, cópia das cartas e aviso de recepção que afirma terem sido remetidos ao executado.
O embargante veio impugnar aqueles documentos, afirmando que nunca os recebeu e que desconhece se o aviso de recepção que foi junto respeita à missiva enviada em 17/2/2023, dado que esta nunca foi por si recebida.
Realizou-se audiência prévia, após o que foi proferido despacho saneador-sentença, que julgou improcedentes os embargos e determinou o prosseguimento da execução.
Não se conformando com aquela decisão, dela recorreu o embargante, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
«Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou os embargos de executado improcedentes.
Ora, no entender do Recorrente, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento sobre a matéria de facto e de direito, uma vez que:
a) o Tribunal a quo errou ao considerar que a falta de notificação da cessão ao executado não é óbice à instauração da execução;
b) a falta de notificação judicial ou extrajudicial da cessão de créditos não pode nem deve ser ultrapassada com a citação para a execução;
c) à citação não podem ser atribuídos os efeitos que o n.º 1 do artigo 583.º do Código Civil determina para a notificação do devedor;
d) antes da notificação ou aceitação, o cessionário não está legitimado a exigir o crédito ao devedor e a instaurar contra o mesmo a respetiva ação executiva;
e) a cessão de créditos para ser válida ou produzir efeitos perante o devedor tem de lhe ser notificada ou por este aceite (art.º 583.º n.º 1 do CC);
f) o credor-cessionário para poder propor a ação contra o devedor terá previamente de o notificar (judicial ou extrajudicialmente), não se podendo atribuir tal valor à citação desta ação;
g) não se pode considerar equivalente à notificação o facto de o cessionário se limitar a instaurar contra o devedor ação de cobrança de crédito;
h) o Executado nunca foi notificado da cessão de créditos feita pelo D… à E…, nem nunca foi notificado da cessão de créditos feita entre a E… e a ora Exequente;
i) a violação de lei e a ineficácia são agravadas, no caso concreto, porquanto estamos perante duas cessões de crédito consecutivas (e não apenas de uma) que nunca foram notificadas ao Executado (judicial ou extrajudicialmente);
j) o Tribunal a quo errou ao entender que o Embargante (ora Recorrente) não impugnou devidamente as cartas de interpelação juntas aos autos pela Exequente como Documentos n.ºs 3 e 4 da contestação;
k) ficou demonstrado que, no dia 07/09/2023, o Recorrente apresentou um requerimento aos autos (Ref. Citius 5391188) onde expressamente impugnou os documentos n.ºs 1, 2, 3 e 4 da contestação e os factos vertidos nos artigos 1.º, 2.º e 9.º da contestação;
l) o facto vertido no artigo 1.º da contestação e respetivo Doc. 1 foram impugnados expressamente pelo Recorrente porque, não obstante se fazer referência que essa missiva foi enviada por carta registada com aviso de receção, nenhum registo ou aviso de receção foi junto aos autos para comprovar o envio e/ou receção dessa missiva;
m) o facto vertido no artigo 2.º da contestação e respetivo Doc. 2 foram impugnados expressamente pelo Recorrente porque as assinaturas apostas nesse documento parecem ser imagens coladas no texto, sem correspondência com a realidade, bem como, porque, tal como na missiva anterior, não obstante se fazer referência que essa missiva foi enviada por carta registada, nenhum registo ou comprovativo de receção foi junto pela Exequente aos autos;
n) o facto vertido no artigo 9.º da contestação e respetivo Doc. 3 também foram impugnados expressamente pelo Recorrente porque a alegada carta de interpelação admonitória/aviso de preenchimento de livrança não se encontra assinada (como aliás é reconhecido pelo Tribunal a quo na sentença), bem como, porque não obstante se fazer referência que essa missiva foi enviada por carta registada com aviso de receção, nenhum registo foi junto aos autos para comprovar o envio dessa missiva e porque esta nunca foi recebida pelo Recorrente (vide parte final – art.º 16.º da pi);
o) o Recorrente impugnou expressamente o aviso de receção junto pela Exequente como Doc. 4 da contestação, uma vez que não resulta desse documento qualquer prova ou evidência de que efetivamente o mesmo respeita à missiva indicada como Doc. 3 da contestação;
p) não ficou demonstrada nos autos qualquer comunicação, notificação ou interpelação feita ao Recorrente, quer relativamente às duas cessões de créditos operadas, quer para possibilitar o pagamento da alegada dívida e/ou avisá-lo que a livrança em branco seria preenchida e por que valor;
q) o Recorrente impugnou, de forma devida e expressa, quer os factos quer os documentos juntos pela Exequente com a contestação, e manifestou, de forma evidente, a sua discordância e não aceitação dos factos e dos documentos em questão, cuja prova cumpria a Exequente fazer;
r) “não tendo sido feita prova do envio de qualquer carta ao oponente, não podia este invocar qualquer outra factualidade que não fosse a de que tinha havido omissão da sua interpelação, exigir-lhe mais era subverter todas as regras normais de alegação e prova dos factos”;
s) não se podia exigir ao Recorrente a prova de factos negativos, isto é, a prova de que efetivamente não foi interpelado ou não recebeu as alegadas cartas referidas pela Exequente, porquanto isso seria subverter as regras do ónus da prova e colocar o Recorrente numa situação de prova diabólica;
t) não tendo existido qualquer interpelação ou comunicação que cumpra os requisitos de uma interpelação admonitória, não existiu, no caso concreto, qualquer conversão de alegada mora em incumprimento definitivo;
u) o contrato de mútuo objeto dos autos nunca foi definitivamente resolvido e a alegada resolução jamais operou perante o ora Recorrente;
v) ao estarmos perante um título executivo em branco, sem que dele resulte fixado prazo certo para preenchimento, tem o Exequente o dever de interpelar o Executado, reclamando o cumprimento da obrigação emergente do contrato subjacente à subscrição do título;
w) a exigibilidade perante o avalista duma livrança subscrita em branco, pressupõe a necessária interpelação prévia daquele, por só assim ele ter conhecimento do montante exato da dívida e da data em que se vence a garantia prestada;
x) à exequente, perante a invocação por parte do executado de que não houve interpelação prévia, cabia demonstrar o modo como ela foi realizada;
y) a interpelação não pode deixar de considerar-se um ato relevante para o efetivo exercício do direito da exequente, pelo que lhe caberá, a ela, fazer a prova de ter praticado os atos consentâneos a tal desiderato (cfr. art.º 342.º n.º 1 C.C.);
z) o Tribunal a quo errou ao fazer uma apreciação e valoração inapropriada e incorreta dos factos e do Direito aqui aplicáveis, valoração essa que, no entender do mesmo, deveria ter conduzido a uma decisão diversa da encontrada, designadamente, à procedência dos presentes embargos.
Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso e com o douto suprimento de V. Exas., deve a sentença ora recorrida ser revogada, com todas as consequências legais, assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!».
A embargada contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta dos arts. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao da causa de pedir e do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões formuladas pelo recorrente nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso (garantido que seja o contraditório e desde que o processo contenha os elementos a tanto necessários – arts. 3º nº 3 e 5º nº 3 do Código de Processo Civil). Note-se que “as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa”. Por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 2022 – 7ª ed., págs. 134 a 142).
Tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes as questões que cumpre apreciar:
- falta de notificação das cessões de créditos e respectivas consequências;
- falta de interpelação para pagamento e suas consequências.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A decisão sob recurso considerou como provados os seguintes factos:
«1. A 10 de abril de 2023, foi apresentado à execução n.º 2102/23.6T8FNC, em apenso, uma livrança, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, na qual consta, como data de emissão “2009-12-07”, e como data de vencimento “2023-03-06”.
2. A importância aposta na livrança foi de 184.280,03€ (cento e oitenta e quatro mil, duzentos e oitenta Euros e três cêntimos).
3. Na livrança surge como subscritor o executado e aposta a sua assinatura nessa qualidade.
4. No requerimento executivo não se discriminam os cálculos subjacentes ao preenchimento da livrança».
Encontram-se, ainda, assentes os seguintes factos, com relevância para a decisão[1]:
a) Em 7/12/2009, o Banco D… e o executado celebraram entre si um acordo intitulado de «contrato de mútuo», mediante o qual o primeiro declarou emprestar e o segundo declarou receber de empréstimo a quantia de €1.450.000,00, pelo prazo de 36 meses, com início em 7/12/2009 e termo em 7/12/2012 – documento 3 do requerimento executivo  (que aqui se dá por integralmente reproduzido) e acordo das partes nos articulados;
b) Naquele documento foi acordado que o capital emprestado venceria juros, sendo estes a pagar semestralmente, em seis prestações semestrais, iguais e sucessivas, cada uma no montante estimado de €18.843,00, e que o reembolso do capital seria efectuado numa única prestação, em 7/12/2012.
c) A cláusula 10ª nº 1, daquele acordo, tem a seguinte redacção:
«Como garantia do bom e pontual pagamento do capital ora financiado e respectivos juros e encargos, o segundo outorgante (executado), no acto da assinatura do presente contrato entrega do Banco (D…) uma livrança de caução por si subscrita, ficando o Banco, por esse instrumento expressa e irrevogavelmente autorizado a, em caso de não cumprimento de quaisquer responsabilidades emergentes da presente operação de financiamento, preencher livremente a dita livrança, nas condições abaixo convencionadas, através de qualquer um dos seus funcionários, designadamente no que se refere às datas de emissão e do vencimento, ao local de pagamento e aos valores assumidos e ora financiados pelo presente contrato, incluindo capital e juros, qualquer que seja a sua natureza, impostos, comissões e outros encargos que sejam devidos, podendo o Banco descontar essa livrança e utilizar o produto do desconto para titulação do seu crédito».
d) Em 21/9/2016, o Banco D… e E…, celebraram entre si um acordo intitulado «contrato de cessão de créditos», mediante o qual o primeiro declarou vender e a segunda declarou comprar uma carteira de empréstimos, com todos os seus direitos, título e garantia, na qual se incluiu o crédito referido em a) – documento 1 do requerimento executivo e acordo das partes nos articulados.
e) Em 3/4/2020, E…, e X…, S.A., celebraram entre si um acordo intitulado de «compra e venda», mediante o qual a primeira declarou vender e a segunda declarou comprar os créditos mencionados em d) – documento 2 do requerimento executivo e acordo das partes nos articulados.
f) A livrança referida em c) é a livrança exequenda, a qual veio a ser preenchida pela aqui exequente – acordo das partes nos articulados.
MÉRITO DO RECURSO
A presente oposição tem por fim obstar à prossecução da acção executiva intentada pela exequente, que ali apresentou uma livrança, na qual consta como beneficiário o Banco D… (doravante, D…), figurando na mesma o embargante como subscritor.
De acordo com o art.º 10º nº5 do C.P.C., toda a execução tem por base um título. O documento exequendo é um título extrajudicial, a que é conferida exequibilidade por virtude do art.º 703º nº1 c), do mesmo diploma.
Segundo o disposto no art.º 731º, também do C.P.C., «não se baseando a execução em sentença (…) além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729º, na parte em que sejam aplicáveis, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração».
O recorrente reporta-se, em primeiro lugar, ao facto de não ter sido notificado de qualquer cessão de créditos, questão que contende, directamente, com a da legitimidade da exequente.
Com efeito, conforme resulta do art.º 53º nº 1 do diploma adjectivo, «a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor». Trata-se de uma legitimidade exclusivamente formal, aferida pela literalidade do título.
E o certo é que, na livrança apresentada como título executivo quem figura como credor é o D… e não a exequente.
Acontece que, o art.º 54º, também do Código de Processo Civil, se prevêem excepções à regra geral da determinação da legitimidade das partes na acção exeuctiva. Assim, de acordo com o nº1, daquela norma, «tendo havido sucessão no direito (…), deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor (…) da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão».
É o que ocorre no caso dos autos, em que a exequente, no requerimento executivo, afirma ter adquirido, por cessão, o crédito exequendo, sendo certo que faz acompanhar aquela processual dos contratos a que aludem as alíneas d) e e) dos factos assentes.
De acordo com os arts. 577º e 578º do Código Civil:
«Artigo 577.º
(Admissibilidade da cessão)
1. O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.
2. A convenção pela qual se proíba ou restrinja a possibilidade da cessão não é oponível ao cessionário, salvo se este a conhecia no momento da cessão.
ARTIGO 578.º
(Regime aplicável)
1 - Os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base.
2 - Salvo o disposto em lei especial, a cessão de créditos hipotecários, quando não seja feita em testamento e a hipoteca recaia sobre bens imóveis, deve constar de escritura pública ou de documento particular autenticado».
Assim, não existindo qualquer garantia hipotecária para o crédito exequendo, não se vislumbrando a existência de qualquer proibição de cessão e não sendo necessária a autorização do devedor, temos que, face ao teor dos documentos referidos nas alíneas d) e e) dos factos assentes, o crédito exequendo se considera cedido à exequente, estando, desta forma, garantida a legitimidade activa na execução.
Claro que o embargante veio invocar não lhe ter sido notificada a cessão. E, de facto, de acordo com o art.º 583º nº1 do Código Civil, «a cessão só produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite». Acontece que, mesmo que não o tenha sido anteriormente, a cessão foi notificada ao embargante com a citação para a execução.
A este respeito, coloca-se a questão de saber se, quando o citado art.º 583º nº1 se reporta à notificação da cessão, esta pode, ou não, ser efectuada através da citação para acção mediante a qual o (novo) credor pretende cobrar o crédito (cedido).
Ora, como se refere no Ac. STJ de 7/9/2021[2], «a questão de direito dos presentes autos opõe duas teses: aquela (…) que equipara a citação do devedor para o incidente de habilitação (ou para a acção executiva) à notificação exigida pelo artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil como requisito de eficácia da cessão de créditos em relação ao devedor cedido e, uma outra tese mais exigente quanto aos formalismos, segundo a qual a comunicação ao devedor da cessão de créditos deve ter lugar em momento anterior à propositura da acção e que a notificação da cessão constitui um facto a alegar nos articulados e integrador da causa de pedir da acção. Esta segunda tese, todavia, não se revela adequada nem à letra nem à finalidade da lei. Por um lado, o artigo 583.º, n.º 1 não prevê uma enumeração taxativa dos meios pelos quais o devedor obtém o conhecimento da cessão e, por outro, o objectivo da lei com a cessão é precisamente o de promover as vantagens associadas à livre circulação de créditos num tempo em que estes assumem uma importância económica crescente. A tese que exige que a notificação seja anterior à acção executiva surge como um corpo estranho no regime jurídico da cessão de créditos, que admite que a notificação da cessão pode ser extrajudicial e não está sujeita a forma. Conforme defendido por Vaz Serra, «Cessão de Créditos e de outros direitos», BMJ, n.º especial, 1955, p. 222, «(…) (a) notificação não é um negócio jurídico, pois por ela não se exprime uma vontade dirigida a efeitos jurídicos determinados: quer-se apenas informar terceiros do facto da cessão. Mas, isto não obsta a que lhe sejam aplicáveis, por analogia, (…) as normas relativas aos negócios, uma vez que é uma acção voluntária lícita com efeitos semelhantes aos dos negócios jurídicos». A notificação constitui, assim, uma declaração receptícia através da qual é dado a conhecer ao devedor cedido o facto da transmissão do crédito. Esta declaração não está sujeita a forma especial, podendo ser feita de forma expressa ou tácita (artigos 217.º e 219.º, ambos do Código Civil). A isto acresce que a lei se basta, para a eficácia da cessão em relação ao devedor, com o seu conhecimento, não exigindo a sua autorização (artigo 577.º, n.º 1, do Código Civil). Assim, não há motivos legais nem práticos que impeçam que o conhecimento do devedor se adquira ou concretize através de várias formas, entre as quais se conta a citação para a acção. Com efeito, apesar das diferenças normalmente apontadas entre a notificação e a citação, é inegável que ambas produzem o conhecimento da transmissão do crédito por parte do devedor, sendo o conhecimento o único elemento constitutivo da eficácia da cessão em relação ao devedor. A circunstância de o conhecimento da cessão só operar no momento da citação e não em momento prévio não afecta a confiança que o regime da cessão de créditos, consagrado nos artigos 577.º do Código Civil e seguintes, pretende tutelar: a confiança do devedor cedido que paga a um credor aparente, desconhecendo a cessão (Pestana Vasconcelos, A Cessão de Créditos em Garantia e a Insolvência – Em particular da Posição do Cessionário na Insolvência do Cedente, Coimbra editora, Coimbra, 2007, p. 405). Note-se que, se o devedor pagou a dívida ao cedente antes do conhecimento da cessão, a lei considera o pagamento liberatório, cabendo ao cessionário provar que o devedor teria adquirido esse conhecimento por outros meios, exigindo-se a demonstração do conhecimento efectivo do devedor, não bastando um desconhecimento culposo deste (cfr. Ana Taveira da Fonseca, “Anotação ao artigo 583.º”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 610). Ademais, para protecção do devedor cedido, a lei faculta-lhe a possibilidade de na contestação impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, nos termos do artigo 356.º, n.º 1, al. a), do CPC. A jurisprudência reconhece, ainda, nos termos da lei, ao devedor cedido, o direito de “(…) invocar como meio de defesa geral contra o cessionário, a ineficácia em sentido amplo do negócio-acto de cessão de créditos (causa próxima) convencionado com a cedente, em adição à oponibilidade das vicissitudes (excepções) do negócio subjacente ao crédito cedido (causa remota), licitamente invocáveis contra o cedente nos termos do art.º 585.º do CC.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-05-2021, proc. n.º 348/14.7T8STS-AV.P1.S1). Não vê, portanto, o devedor, os seus meios de proteção diminuídos, em virtude de ter conhecido a cessão através da citação».
Conclui-se, assim, que, mesmo que as cessões de créditos não tenham sido anteriormente comunicadas ao embargante (sendo que a verificação dessa anterioridade dependeria da produção de prova), tal facto é irrelevante, porque tais cessões, com a comunicação efectuada com a citação para a execução, se tornaram eficazes. Sendo ainda certo que o embargante não impugnou a validade das cessões, nem invocou que as mesmas tenham sido efectuadas para onerarem a sua posição processual, é forçoso considerar que, por via dessas cessões, a titularidade do crédito exequendo se transmitiu para a ora embargada e, deste modo, esta é parte legítima na execução.
Note-se, também, que, conforme resulta do art.º 582º nº 1 do Código Civil, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, pelo que, por essa via, é a exequente legítima portadora da livrança subscrita em garantia das obrigações emergentes do contrato cujos créditos foram cedidos (cfr., entre outros, os Ac. RG de 5/4/2018 e STJ de 6/12/2018[3]).
Improcede, pois, a excepção de ilegitimidade invocada e, nessa medida, improcedem as conclusões de recurso.
Isto posto, figurando a exequente nos autos como sucessora do beneficiário da livrança exequenda e figurando o embargante como subscritor daquele título, para obstar à execução, o executado teria (considerando o disposto no art.º 342º nº2 do Código Civil) de alegar e provar factos impeditivos, modificativos ou extintivos da sua responsabilidade pelo pagamento do montante ali inscrito – responsabilidade essa resultante do art.º 78º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
A este respeito, alega o embargante que nunca foi interpelado para o pagamento, quer dos montantes atinentes ao contrato subjacente à livrança (o qual, por isso, nunca foi considerado definitivamente resolvido e não foi resolvido), quer da própria livrança.
Deve, desde logo, dizer-se que a livrança exequenda foi subscrita e entregue ao beneficiário em branco, para garantia dos créditos emergentes de contrato de mútuo celebrado entre o subscritor e o beneficiário do título (cfr. art.º 1142º do Código Civil).
Nos termos do art.º 10º (aplicável por força do art.º 77º) da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, sendo admissível uma livrança em branco, o seu ulterior preenchimento deverá fazer-se de harmonia com o chamado pacto de preenchimento, que pode ser expresso, ou tácito.
Cabe, no entanto, ao embargante, nos termos do art.º 342º nº2 do Código Civil, o ónus da prova do desrespeito desse pacto[4].
Ora, da cláusula 10ª nº1 do contrato subjacente à livrança consta expressamente que o credor poderia, em caso de incumprimento de quaisquer responsabilidades, preenchê-la quanto à data de vencimento (livremente determinada) e quanto ao valor, correspondendo este aos créditos emergentes do contrato de mútuo, referentes a capital, juros, impostos, comissões e demais encargos.
Assim, incumbia ao embargante a alegação e prova de factos concretos dos quais se pudesse concluir que aquela autorização foi desrespeitada, designadamente, que não era devido o valor aposto na livrança (em razão, v.g., de ter ocorrido pagamento total ou parcial), ou que não se encontrava vencida a obrigação de o pagar.
Refere o embargante, primordialmente, que nunca foi interpelado para pagar e, portanto, não existiu incumprimento definitivo, nem resolução, do contrato de mútuo.
Acontece que, por um lado, as prestações resultantes do contrato celebrado tinham data certa de vencimento – os juros deveriam ser pagos trimestralmente (em Março e Dezembro de 2010, 2011 e 2012) e o capital deveria ser pago em 7/12/2012. Não havia, pois, qualquer necessidade de interpelação para o pagamento das prestações, considerando-se estas vencidas nas datas fixadas no contrato – cfr. art.º 805º nº2 do Código Civil.
Ora, face ao vencimento de cada uma das prestações contratuais (aliás, todas em data anterior à data de vencimento constante da livrança) pelo decurso dos respectivos prazos individuais de pagamento[5], e não tendo o embargante, neste recurso, pugnado pela apreciação de factos integrantes de qualquer excepção de pagamento ou de erro no cálculo da quantia ali aposta, não está configurado qualquer preenchimento abusivo do título. Note-se que, em conformidade com o pacto celebrado, o preenchimento da livrança não pressupunha que existisse resolução do contrato, podendo o credor limitar-se a exigir o cumprimento deste – cfr. arts. 406º nº1, 762º nº1 e 817º do Código Civil[6].
Resta a invocada falta de interpelação para pagamento da livrança, ou seja, falta de comunicação, ao subscritor, do preenchimento do título.
Compulsada a cláusula contratual relativa ao pacto de preenchimento, verifica-se que dela não consta a imposição, ao credor, da efectivação de qualquer comunicação ao subscritor, prévia ou posterior ao preenchimento – o que significa que, ainda que não tenha existido qualquer comunicação ao executado, não está configurada a existência de preenchimento abusivo.
Também não existe qualquer norma cambiária – maxime, na LULL – que imponha tal comunicação.
Poderia, no entanto, esta questão contender eventualmente com a do vencimento da obrigação – atendendo a que a livrança foi entregue em branco e que foi dada autorização para que o credor nela preenchesse o valor e a data do vencimento, poderia considerar-se que decorre do princípio da boa fé, ínsito no art.º 762º nº 2 do Código Civil, que o beneficiário deveria comunicar o preenchimento ao obrigado cambiário. Se assim não fosse, este não saberia, nem teria como saber, qual o montante em dívida ou a data em que teria de o pagar. Nesta medida, caso não tivesse sido efectuada a comunicação, os juros apenas seriam devidos a contar da data da citação, que é quando o obrigado cambiário toma conhecimento dos elementos preenchidos pelo credor. Este raciocínio pode valer, é certo, para o caso do mero avalista do título em branco (que, usualmente, não é parte na relação jurídica fundamental e, portanto, não tem conhecimento das suas vicissitudes)[7], ou até para casos em que, pelo preenchimento do título, se operou o vencimento antecipado de prestações do contrato subjacente. Mas já não tem aplicação numa situação, como a dos autos, em que o subscritor da livrança é o próprio mutuário no contrato de mútuo subjacente, relativamente ao qual todas as prestações se encontram já vencidas pelo decurso dos prazos fixados para cada uma delas, e em que a data de vencimento aposta no título é até ulterior à do vencimento daquelas prestações. Neste caso, a comunicação do preenchimento da livrança nada acrescentaria àquilo de que o devedor já tem, forçosamente, conhecimento – mesmo sem comunicação, o executado-devedor já sabe, previamente, a partir das cláusulas contratuais, quais os montantes que deixou de pagar e as datas em que os mesmos se venceram.
Acresce, por outro lado, que uma eventual falta de apresentação da livrança a pagamento, como se refere no Ac. RL de 20/1/2011[8], não lhe retiraria a exequibilidade, bastando que não tenha sido paga pelo subscritor, na data nela aposta, já que a lei dispensa a apresentação a pagamento da livrança ao subscritor – cfr. arts. 78º §1 e 53º §1, a contrario, aplicável por força do art.º 77º, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
Assim, ainda que se provasse que o preenchimento da livrança não foi previamente comunicado ao embargante e que a livrança não lhe foi apresentada a pagamento, nenhumas consequências daí adviriam para o crédito exequendo.
Deste modo, está a apelação votada ao insucesso.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente – arts. 527º do Código de Processo Civil e 6º nº 2, com referência à Tabela I-B, do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 05-03-2024
Alexandra de Castro Rocha
Paulo Ramos de Faria
Carlos Oliveira
_______________________________________________________
[1] Que aqui se aditam, ao abrigo do disposto no art.º 662º nº1 do Código de Processo Civil.
[2] Proc. 348/16, disponível em http://www.dgsi.pt.
[3] Ambos proferidos no proc. 653/14 e disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4] Cfr., entre muitos outros, os Ac. STJ de 24/5/2005 e 11/10/2022, proc. 05A1347 e 3070/20, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[5] E já não por aplicação do art.º 781º do Código Civil.
[6] A latere, diga-se que, no caso do contrato de mútuo, não é necessária a existência de incumprimento definitivo para que a resolução possa operar – cfr. art.º 1150º do Código Civil. De qualquer forma, sendo a resolução um direito potestativo destinado à destruição de um vínculo contratual vigente, no caso dos autos não faz sequer sentido mencionar a necessidade de resolução, porquanto o contrato já se encontra extinto pelo decurso do prazo nele previsto.
[7] Cfr., entre outros, o Ac. RL de 12/5/2022, proc. 1516/14, disponível em http://www.dgsi.pt.
[8] Proc. nº1847/08.5TBBRR-A.L1-6, disponível em http://www.dgsi.pt; no mesmo sentido, e disponíveis no mesmo sítio, podem ver-se os Ac. RL de 14/9/2017, proc. 818/15, e de 10/2/2009, proc. 9001/2008-1.