Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2246/18.6T8FNC-A.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: EMBARGOS
AUDIÊNCIA PRÉVIA
LIVRANÇA
GERENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) No caso de pretender conhecer integralmente do mérito da causa, o juiz apenas poderá dispensar a realização da audiência prévia, depois de auscultadas as partes e usando dos mecanismos de gestão processual e de adequação formal, em conformidade com o disposto nos artigos 6.º e 547.º do CPC.
II) O princípio da adequação formal, ínsito no artigo 547.º do CPC, permite ao juiz, precisamente, adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, cabendo no seu exercício a aludida possibilidade de não realização de audiência prévia para os fins de conhecimento integral do mérito da causa.
III) A finalidade de ambas as alíneas – b) e c) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC – é semelhante – no sentido de proporcionar às partes a discussão sobre as suas posições – muito embora, enquanto a alínea c) considera apenas a discussão com vista à delimitação dos termos do litígio, ao suprimento de falhas na exposição da matéria de facto, já a alínea b) comporta, não só a discussão de facto, mas também, a discussão de direito dos termos da causa, no todo ou em parte (do mérito ou de exceções dilatórias).
IV) Não se mostra violado o disposto no artigo 593.º do CPC se, não sendo caso de designação da audiência em conformidade com a al. c) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC, o Tribunal entender que o processo se encontra em condições de conhecer, de imediato, da integralidade do mérito da causa e, por isso, ao convocar a realização de audiência prévia não mencionar no correspondente despacho senão que a audiência se destina ao fim a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC.
V) O juiz conhecerá – total ou parcialmente – do mérito da causa no despacho saneador quando não houver necessidade de provas adicionais, para além das já processualmente adquiridas nos autos, encontrando-se, por tal, já habilitado, de forma cabal, a decidir conscienciosamente.
VI) Tendo a letra e assinatura respeitantes ao aval da embargante sido imputadas a esta, justificando a sua demanda e não tendo sido colocada em questão a subscrição formal do título pela embargante, a declaração de desconhecimento respeitante ao título dado à execução, vale como confissão, de harmonia com o previsto no n.º 3 do artigo 574.º do CPC.
VII) O termo de reconhecimento presencial de assinatura, notarialmente efetuado, integra um ato autêntico, assistindo-lhe a força probatória do documento autêntico, no sentido de que fica feita a prova plena da autoria do documento. Essa prova plena só será afastada pela arguição e prova da falsidade do reconhecimento, nos termos do artigo 372.º do CC.
VIII) São inoponíveis a terceiros cláusulas estatutárias limitativas dos poderes dos administradores. As limitações oponíveis são apenas as que respeitam ao objecto social (fixado nos estatutos) e se verificada a situação (conhecimento do terceiro com quem a sociedade contrata) prevista no nº 2 do artigo 409º do CSC.
IX) Do facto de administrador da embargante ter intervindo isoladamente na subscrição do aval, quando o contrato social exigiria uma pluralidade de assinaturas, não tem quaisquer efeitos na vinculação dessa sociedade perante terceiros, não tornando o acto inválido ou ineficaz.
X) Nos termos do artigo 6º n. º 3 do CSC, considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
XI) Detendo a embargante um capital social superior a 95% da sociedade garantida, o que lhe confere uma relação de domínio, em conformidade com o disposto no artigo 486º n.º 2, al. a) do CSC, a prestação de aval pela embargante (sociedade dominante) à embargada (sociedade dominada) não é contrária ao seu fim social, presumindo-se, por tal relação de domínio, o interesse justificado na prestação de garantia.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
DUMONT DOS SANTOS, SGPS, S.A. veio, por apenso à ação executiva que LISGARANTE – SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, S.A. lhe move, deduzir oposição à execução por embargos, alegando, em suma, por exceção, que impugna, por desconhecimento, a livrança dada à execução, bem como a própria letra e assinaturas nela apostas, e as assinaturas constantes no verso não vinculam a embargante que é uma sociedade anónima, cuja administração compete a um Conselho de Administração com três administradores, obrigando-se com assinaturas conjuntas de dois administradores, com assinaturas conjuntas de um administrador e de um mandatário ou procurador da sociedade, no cumprimento do respetivo mandato ou, com assinaturas conjuntas de um administrador e de um administrador delegado, dentro dos limites dos seus poderes, conforme estabelecido no pacto social, impendendo sobre a Exequente o ónus da prova da veracidade das aludidas assinaturas e da suficiência e poderes dos seus subscritores para representar a Embargante, o que constitui exceção perentória que importa a absolvição total do pedido, nos termos do artigo 576.º do CPC.
Mais alegou que, mesmo que a assinatura fosse de um administrador da Embargante, sempre estaria em falta a assinatura de outro administrador, para efeitos de representação e vinculação da sociedade Embargante, sendo parte ilegítima na execução, o que constitui exceção dilatória de ilegitimidade, nos termos da alínea e) do artigo 577.º do CPC, em conjugação com a alínea c) do artigo 729.º e 731.º do mesmo diploma legal, pelo que a presente execução não pode prosseguir contra a ora Embargante, devendo quanto a ela ser suspensa.
Para além disso, a embargante invocou que, em qualquer caso, o titulo é nulo, porque, de acordo com o disposto no n.º 3, do artigo 6.º, do Código das Sociedades Comerciais, as garantias reais ou pessoais prestadas por sociedades comerciais a favor de terceiros consideram-se contrárias ao fim da sociedade, sendo por isso nulas, pelo que a garantia (aval) que pudesse ter sido titulada pela livrança apresentada à execução é, na verdade, nula, inexistindo um justificado interesse próprio da Embargante em realizar esse putativo negócio, nem existindo deliberação do conselho de administração ou da própria assembleia-geral da Embargante a autorizar a prestação desta garantia por parte da sociedade.
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Os embargos foram liminarmente recebidos, nos termos do despacho de 29-01-2019.
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A exequente contestou, alegando ter prestado a garantia autónoma solicitada pela sociedade Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, SA a favor do Banif Banco Internacional do Funchal, SA, que procedeu ao pagamento da quantia de 421.875,00 euros a esta entidade bancária no cumprimento da garantia prestada, que lhe foi entregue a livrança dada à execução e que a embargante se constituiu como avalista, sustentando que a embargante era titular de 95,1% do capital social da sociedade Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, SA à data da celebração do contrato e do aval e que os accionistas mandataram FD… para representar a outorga da escritura referente ao contrato de prestação de garantia.
Concluiu pela improcedência da oposição deduzida e peticionando a condenação da embargante como litigante de má-fé, a pagar à Embargada indemnização a fixar a final, nos termos do nº 3 do artigo 543º do CPC.
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Após exercício de contraditório, em 27-09-2019 foi proferido o seguinte despacho:
“(…) Compulsados os autos com vista ao seu saneamento, constata-se que os mesmos já contêm todos os elementos necessários e, por isso, aventa-se a possibilidade de ser proferida decisão final de mérito sem necessidade de realização da audiência prévia e de produção ulterior de prova.
Tomando como premissa o articulado dos embargos de executado, conclui-se serem dois os fundamentos essenciais de defesa: o primeiro prende-se com a impugnação, por desconhecimento, da genuinidade da livrança e da assinatura imputada pela exequente à embargante; o segundo prende-se com a nulidade da prestação da garantia e a consequente falta de vinculação do acto.
Quanto à primeira questão, uma vez que a embargante refere expressamente que FD… (a pessoa a quem a exequente imputa a assinatura) integra o seu Conselho de Administração, a mera impugnação por desconhecimento tem o mesmo efeito da confissão, por se tratar de um facto pessoal que não podia ser desconhecido (artigo 574º n.º3 do CPC).
No que respeita à segunda questão, entendemos que a mesma reveste natureza essencialmente jurídica, sendo que o respectivo substracto fáctico poderá ser encontrado nos documentos já juntos aos autos.
Face ao exposto, tomando como premissa os princípios da adequação formal e da gestão processual, determino a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem sobre a possibilidade aventada pelo Tribunal, no prazo de 10 dias.”
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Na sequência, a embargante veio apresentar aos autos, em 10-10-2019, requerimento consignando “que não se conforma com o entendimento do Tribunal, pretendendo reclamar daquele despacho, para o que requer a realização da audiência prévia, designadamente nos termos do artigo 593.º, n.º 3, do CPC (aplicável ex vi art. 732.º, n.º 2, do CPC)”.
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Em 21-10-2019 foi proferido o seguinte despacho:
“Em face da posição manifestada pela embargante, o Tribunal designa o dia 12/11/2019, às 14h30m, para a realização da audiência prévia a que alude o artigo 591º n.º1 b) do CPC, designadamente para facultar às partes a discussão de facto e de direito, visto que se tenciona conhecer imediatamente do mérito da causa.
Notifique.”.
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Em 12-11-2019 teve lugar audiência prévia, constando da respetiva ata, designadamente, o seguinte:
“Iniciada a diligência pelas 14:35 horas, o Mm. Juiz de Direito indagou os Ilustres Mandatários das partes sobre a possibilidade de obter uma solução conciliatória (artigos 591.º, n.º 1, alínea a) e 594.º do Código de Processo Civil), o que não se verificou.
Após, pelo Mm. Juiz de Direito foi dada a palavra aos Ilustres Mandatários para a discussão da matéria de facto e de direito da causa, por ter considerado a possibilidade de proferir, de imediato, decisão final.
(As declarações do Ilustre Mandatário da Embargante/Executada ficaram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:42:07 horas e o seu termo pelas 14:57:33 horas. As declarações do Ilustre Mandatário da Embargada/Exequente tiveram início pelas 14:57:36 horas e o seu termo pelas 15:12:57 horas).
Seguidamente, pelo Mm. Juiz de Direito foi proferido despacho no sentido de, oportunamente, ser aberta conclusão para proferir decisão.
(O douto despacho ficou gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15:17:32 horas e o seu termo pelas 15:17:38 horas).
Do presente despacho ficaram todos os presentes devidamente notificados.
Pelas 15:18 horas, o Mm. Juiz de Direito declarou encerrada a diligência.”.
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Em 03-12-2019, o Tribunal proferiu saneador-sentença, fixando o valor à causa, julgando improcedente excepção dilatória de ilegitimidade passiva invocada, julgando totalmente improcedentes os embargos de executado deduzidos e, bem assim, o pedido de condenação da embargante como litigante de má-fé.
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Não se conformando com esta decisão, dela apela a embargante, formulando as seguintes conclusões:
“A. O presente recurso vem interposto do douto despacho de 21.10.2019 e da douta Sentença de 02.07.2019, nos autos n.º …/…T8FNC, mais precisamente por entendermos que o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 593.º, n.º 2, do CPC, com evidente prejuízo para a parte, que assim viu comprimido o seu direito de defesa e a um processo justo e equitativo, assim como incorreu em erro de julgamento, quanto à seleção da matéria de facto e quanto à interpretação e aplicação do Direito;
B. Em concreto, a Apelante impugna a matéria de facto, entendendo que o Mmo. Juiz a quo não podia ter dado como provados os factos selecionados em D., F., G., H., I., J. e P., os quais resultam de um notório déficit de julgamento, que importa corrigir;
C. Finalmente, a Apelante entende que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à interpretação e aplicação do Direito, mais precisamente ao ter considerado que a impugnação da Apelante quantos aos factos e documentos juntos aos autos constituiu uma confissão, nos termos do artigo 574.º, n.º 3, do CPC, e bem assim ao ter considerado que FD… do título executivo ou que a sua ilegitimidade não seria oponível à exequente, fazendo, uma incorreta interpretação e aplicação, ao caso concreto, do disposto nos artigos 155.º e 49.º, n.º 1, do Código do Notariado e nos artigos 373.º, n.º 2, 405.º e 406.º, do Código das Sociedades Comerciais;
D. No que respeita ao despacho de 21.10.2019, a Apelante entende que ao ter requerido a convocação da audiência prévia potestativa a que alude o artigo 593.º, n.º 3, do CPC, o Tribunal a quo devia ter convocado essa audiência precisamente para os fins nele previstos e não para efeitos de “conhecer imediatamente do mérito da causa”;
E. Com o devido respeito, não deixa de nos impressionar, num sistema constitucional democrático, a convocação judicial de uma audiência para “conhecer imediatamente do mérito da causa”, sobrepondo o julgador à própria lei e à própria vontade das partes;
F. Mais a mais quando nos autos existem vários factos controvertidos que careciam de uma melhor ponderação do julgador, uma vez facultada às partes a produção de prova, em sede de audiência de julgamento;
G. Pelo que deve o douto despacho de 21.10.2019 ser revogado e substituído por outro que convoque as partes para a audiência prévia, nos termos do artigo 591.º, n.º 1, al. c), do CPC; Por outro lado,
H. No que respeita à matéria de facto, o Tribunal a quo não podia ter considerado como provado que RD… era gerente da sociedade “Leuimport da Madeira, SGPS, S.A.”, em 09/05/2011, conforme consta na alínea P., de factos provados, quanto é facilmente visível através da respetiva certidão de matrícula que a sua nomeação para a gerência daquela sociedade apenas veio a ocorrer em 04.04.2015, conforme Insc. 5, AP. 1/20150502;
I. De igual modo, a Apelante entende ainda que os factos selecionados em D., F., G., H., I., J., não poderiam ser dados como provados, precisamente por não se poder extrair essa conclusão dos vários documentos juntos aos autos;
J. Conforme exposto nas alegações supra, FD… atuou sempre isoladamente, na qualidade de gerente da “Leuimport da Madeira, Lda.”, e sem o conhecimento, decisão e vinculação dos restantes membros do Conselho de Administração da aqui Apelante;
K. De resto, não existe nos autos absolutamente nenhum elemento de prova do conhecimento dos factos – i.e., do contrato de mútuo, do pacto de preenchimento e da livrança oferecida à execução – por parte do Conselho de Administração da Apelante, que era ainda composto por MD… e por RD…;
L. FD… não podia representar a aqui Apelante nos contratos que terá alegadamente subscrito com a Exequente, carecendo de qualquer legitimidade para tal, pois não estava autorizado pelo Conselho de Administração e tão-pouco intervieram nesses atos dois administradores;
M. Legitimidade essa que não só decorre da própria lei – cfr. arts. 373.º, n.º 2, 405.º e 406.º, do Código das Sociedades Comerciais – como está esclarecida na própria certidão de matrícula da “Dumont dos Santos, SGPS, S.A.”, a qual reproduz o pacto social onde se consagra imperativamente o regime ou a regra da conjuntividade;
N. Inclusive, nunca foi sequer discutido e/ou aprovado em sede de Conselho de Administração a prestação deste aval, muito menos os concretos termos do pacto de preenchimento que a Exequente veio juntar aos autos e que a ora Apelante impugnou;
O. Acresce que, em sede de contraditório, a ora Apelante impugnou, no seu requerimento 12.03.2019, apresentado sob a ref.ª citius 31827894, os documentos bancários apresentados pela Exequente, os quais eram do total desconhecimento dos restantes administradores da identificada Dumont dos Santos, SGPS, S.A., assim como impugnou o instrumento notarial de reconhecimento de assinaturas, invocando a sua nulidade;
P. Do mesmo modo, o instrumento notarial de reconhecimento daquela assinatura que a Exequente juntou aos autos não é válido, considerando-se nulo por violação do disposto nos artigos 155.º e 49.º, n.º 1, do Código do Notariado, conforme acima se fundamenta;
Q. Mais se entende que o Tribunal a quo não podia ter deixado de reconhecer os efeitos processuais decorrentes da impugnação apresentada pela Apelante quanto aos documentos 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 juntos ao requerimento/contestação que a Exequente juntou em 25.02.2019, sob a ref.ª citius 31660778, e que estão estritamente relacionados com a prestação da garantia autónoma bancária e da livrança utilizada como título executivo, pois nunca teve conhecimento de tais cartas!!
R. Assim como a própria impugnação da genuinidade, letra e assinatura do documento 2, desse mesmo requerimento/contestação, nos termos do artigo 444.º, do CPC, por se tratar de uma mera cópia onde nem sequer são percetíveis as assinaturas nessas apostas, desconhecendo-se a sua autoria, suficiência de poderes e respetivos registos postais;
S. Tão-pouco se sabe se esse cheque foi alguma vez apresentado a pagamento e se o seu valor foi efetivamente debitado da conta bancária da Exequente, tendo sido por isso impugnado, nos termos e para os efeitos do artigo 574.º, n.º 3, do CPC;
T. Por sua vez, a Embargada “Lisgarante, S.A.” tinha o ónus de verificar e confirmar a competência e capacidade de representação dos órgãos sociais de quem estaria a prestar o aval, posto que tinha acesso a todos os documentos para esse efeito;
U. Não podendo descurar a importância da forma de obrigar da Embargante, principalmente tendo em conta a atividade que exerce, tinha uma obrigação especial acrescida de fazer essa verificação, posto que celebra este tipo de negócios correntemente;
V. Pelo que, salvo melhor opinião, não podia o Mmo. Juiz a quo ter considerado provados os factos selecionados em D., F., G., H., I., J. e P., de factos provados, sem antes ter promovido a devida audiência contraditória;
W. Finalmente, entendemos que a impugnação dos documentos juntos aos autos pela Exequente/Embargada, conforme fez a ora Apelante, no exercício do contraditório, não pode deixar de ter os efeitos previstos no artigo 346.º, do Código Civil, de tal modo que os autos não continham todos os elementos necessários à prolação de uma decisão final, sem antes ser realizada uma audiência de julgamento, conferindo-se assim oportunidade às partes de produzir os elementos de prova necessários;
X. Sendo assim inaplicável, ao caso concreto, a norma prevista no artigo 574.º, n.º 3, do CPC, relativamente aos fatos e documentos juntos pela embargada, os quais foram legitimamente contrariados e impugnados pela ora Apelante;
Y. Tão-pouco se poderia considerar a existência de um hipotético abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, tal como sugere o Mmo. Juiz a quo, na sua douta Sentença, precisamente porque toda a factualidade e todos os documentos juntos aos autos são do desconhecimento do Conselho de Administração da “Dumont dos Santos, SGPS, S.A.”, que, repete-se, nunca teve qualquer contacto com o negócio e os documentos ajustados e outorgados por FD…;
Z. Entendemos, assim, que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto, suprimindo a realização da audiência de julgamento, assim como incorreu em erro de interpretação e aplicação do Direito, mais precisamente o disposto nos artigos 155.º e 49.º, n.º 1, do Código do Notariado, nos artigos 373.º, n.º 2, 405.º e 406.º, do Código das Sociedades Comerciais e no artigo 574.º, n.º 3, do CPC;
AA. Pelo que, deve este Venerando Tribunal da Relação de Lisboa revogar a douta sentença e substituí-la por outra que julgue os presentes embargos totalmente procedentes, por provados, absolvendo a ora Apelante do pedido ou da instância, ou, subsidiariamente, devolvendo o processo ao Tribunal a quo a fim de conceder às partes a oportunidade de apresentação dos seus elementos de prova a ser produzida em sede de audiência de julgamento e assim demonstrarem, por um lado, a total falta de legitimidade de FD… para representar a ora Apelante na subscrição dos documentos de prestação de aval e bem assim para que se percebe, efetivamente, se a quantia exequenda foi já ou não paga à instituição bancária garantida”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Admitido liminarmente o requerimento recursório e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso - , as questões a decidir são:

A) Delimitação do objecto do recurso.
B) Se o despacho de 21-10-2019 deve ser revogado e substituído por outro que convoque as partes para audiência prévia nos termos do artigo 591.º, n.º 1, al. c) do CPC?
C) Se o estado do processo permitia o conhecimento imediato do mérito da causa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 595.º do CPC?
D) Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao ter considerado que FD… interveio com legitimidade na subscrição do título executivo ou que a sua ilegitimidade não seria oponível à exequente, por violação do disposto nos artigos 155.º e 49.º, n.º 1, do Código do Notariado e nos artigos 373.º, n.º 2, 405.º e 406.º, do Código das Sociedades Comerciais?
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3. Enquadramento de facto:
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Factos Provados (com relevo para a decisão)
A. Foi dada como título executivo uma livrança com o n.º …, na qual constam os dizeres “507.420,09 €”, “Lisboa”, “2018/02/07” e “2018/02/19”, nos campos relativos ao valor, local, data de emissão e data de vencimento, respectivamente.
B. Da livrança consta ainda a seguinte indicação: “Titulação da garantia autónoma …”.
C. No local destinado aos subscritores constam os dizeres “Leuimport da Madeira – Com- Automóvel, Ld.ª”, uma assinatura e o carimbo desta sociedade.
D. No verso da livrança encontra-se aposta (entre outras) a assinatura de FD…, por cima do carimbo com os dizeres “Dumont dos Santos SGPS, SA – A Administração”, e com a indicação de “bom para aval à empresa subscritora”.
E. A livrança dada à execução foi entregue pela Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Ld.ª à exequente para garantia do cumprimento das obrigações resultantes do escrito particular denominado “Emissão de garantia autónoma à primeira solicitação em nome e a pedido da Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Ld.ª e a favor do Banif – Banco Internacional do Funchal, SA”, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
F. Tal escrito particular foi outorgado, a 09/05/2011, pela exequente, pela Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Ld.ª, por AA… (na qualidade de avalista) e, ainda, por FD… numa tríplice condição: a título pessoal, enquanto avalista; em representação da Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Ld.ª; como administrador da sociedade embargante, na qualidade de sociedade avalista.
G. As assinaturas de FD… no referido escrito particular foram reconhecidas notarialmente.
H. Através deste escrito particular, a exequente (a pedido da Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Ld.ª) declarou obrigar-se a prestar uma garantia autónoma, à primeira solicitação, a favor do Banif – Banco Internacional do Funchal, SA, até ao montante máximo de €562.500,00, assegurando “o bom e atempado cumprimento da obrigação de reembolso quanto a 75% do capital mutuado em dívida em cada momento do tempo, emergente do contrato de empréstimo celebrado nesta data, entre o BANCO e a EMPRESA, no montante de €750.000,00 (…)”.
I. A cláusula 4ª do referido escrito particular apresenta a seguinte redacção: “Para garantia de todas as responsabilidades que para a EMPRESA emergem do presente contrato, deverão: - entregar, nesta data, à SGM livrança em branco subscrita pela vossa EMPRESA e avalizada pelas entidades abaixo identificadas, as quais expressamente e sem reservas dão o seu o seu acordo ao presente contrato e às responsabilidades que para si emergem do mesmo. A referida livrança ficará em poder da SGM, ficando, desde já, expressamente autorizada, quer pelo subscritor quer pelos avalistas, a completar o preenchimento da livrança quando o entender conveniente, fixando-lhe a data de emissão e de vencimento, local de emissão e de pagamento e indicando como montante tudo quanto constitua o seu crédito sobre a EMPRESA (…)”.
J. Da acta (n. º12) da Assembleia-Geral da embargante, datada de 23/03/03/2011, resulta o seguinte teor: “(…) reuniram em Assembleia Geral os accionistas da sociedade comercial Anónima – DUMONT DOS SANTOS SGPS, S.A. (…). Elaborada e rubricada a lista de presenças verificou-se que estava presentes ou representados todos os accionistas, estando, por isso, representada a totalidade do capital social. PONTO ÚNICO - Apreciar, discutir e votar o Aval a prestar à LISGARANTE, ao BANIF, ao IDE para integral cobertura das responsabilidades assumidas pela Leuimport da Madeira, Lda. Entrando no ponto da ordem de trabalhos foi dado conhecimento da necessidade de prestar o Aval ao financiamento MLP que o BANIF faz à Leuimport da Madeira, Lda., no montante de €750.000,00 a amortizar em 36 prestações de periodicidade Trimestral constantes de capital exclusivamente para investimento. Que o montante de garantia da LISGARANTE é até de 75% do montante de capital de um financiamento com um máximo absoluto de €562.500,00. Como ninguém mais quisesse usar da palavra, o senhor Presidente da Mesa submeteu à votação o ponto único o qual foi aprovado por unanimidade, ou seja, pelos votos correspondentes a cem por cento do capital social. Mais mandataram o Dr. FD… para representar a Sociedade na outorga da escritura”.
K. A embargante é uma sociedade anónima, que tem por objecto social a gestão de participações sociais de outras sociedades como forma indirecta de exercício de actividades económicas.
L. O Conselho de Administração da embargante é constituído por MD… (Presidente), FD… (Vogal) e RD… (Vogal).
M. A embargante obriga-se pelas assinaturas conjuntas de dois administradores, pelas assinaturas conjuntas de um administrador e de um mandatário ou procurador da sociedade, no cumprimento do respectivo mandato, ou pelas assinaturas conjuntas de um administrador e de um administrador delegado, dentro dos limites dos seus poderes.
N. FD… integra o Conselho de Administração desde a data da constituição da sociedade (29/12/2000).
O. A sociedade Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Ld.ª é uma sociedade por quotas, que se dedica às actividade de importação, exportação, comercialização e reparação de veículos automóveis, peças, acessórios e combustíveis.
P. À data de 09/05/2011, FD… e RD… exerciam a gerência da sociedade Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Ld.ª.
Q. À data de 09/05/2011, a embargante era titular de quotas no valor global de 1.075.678,38 euros da sociedade Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Ld.ª, cujo capital social era de 1.131.102,40 euros.
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O Tribunal recorrido consignou que: “A restante matéria alegada pelas partes é de direito, conclusiva ou simplesmente irrelevante para a decisão, nos termos que se explanarão na fundamentação de direito”.
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4. Enquadramento jurídico:
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A) Delimitação do objecto do recurso:
Na alegação, a recorrente invoca que:
“O presente recurso vem interposto do douto despacho de 21.10.2019 e da douta Sentença proferida nos autos n.º 2246/18.6T8FNC-A, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, por entendermos que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à seleção da matéria de facto e quanto à interpretação e aplicação do Direito;
O presente recurso tem, assim, por objeto:
a) A impugnação do despacho de 21.10.2019, por violação do disposto no artigo 593.º, n.º 3, do CPC;
b) A impugnação da matéria de facto selecionada na Sentença de 03.12.2019; e
c) O erro de julgamento quanto à matéria de direito, mais precisamente no que respeita à interpretação e aplicação, ao caso concreto, do disposto nos artigos 155.º e 49.º, n.º 1, do Código do Notariado, nos artigos 373.º, n.º 2, 405.º e 406.º, do Código das Sociedades Comerciais e no artigo 574.º, n.º 3, do CPC”.
Sucede que, na conclusão A, a apelante enuncia que “o presente recurso vem interposto do despacho de 21.10.2019 e da Sentença de 02.07.2019, nos autos n.º …/…T8FNC, mais precisamente por entendermos que o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 593.º, n.º 2, do CPC, com evidente prejuízo para a parte, que assim viu comprimido o seu direito de defesa e a um processo justo e equitativo (…)”.
Considerando o referido, verifica-se que a menção constante da conclusão A se deve a manifesto erro de escrita, ao mencionar-se uma decisão respeitante a outros autos que não os presentes, não podendo o objeto do recurso incluir um tal objeto.
A instância de recurso não constitui, de facto, uma ação a título principal, mas sim, um incidente processual procedimentalmente autónomo, enxertado ou apensado numa instância prévia produtora da decisão impugnada.
Como salienta Rui Pinto (Manual do Recurso Civil, AAFDL, 2020, p. 171): “Não há recurso fora de uma ação a que diga respeito”, pelo que a referida menção – certamente devida a lapso – não importa o conhecimento de qualquer questão relacionada com a dita decisão do processo …/…T8FNC, limitando-se à decisão proferida nos autos de embargos em apreço, mas comportando a apreciação da sentença neles proferida e a prolação do despacho exarado em 21-10-2019.
Assim, consigna-se que o presente recurso tem por objecto o saneador-sentença proferido nos presentes autos em 03-12-2019 e o despacho de 21-10-2019.
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B) Se o despacho de 21-10-2019 deve ser revogado e substituído por outro que convoque as partes para audiência prévia nos termos do artigo 591.º, n.º 1, al. c) do CPC?
Entende a recorrente que, na sequência da prolação do despacho de 27-09-2019, tendo requerido a convocação da audiência prévia nos termos do artigo 593.º, n.º 3, do CPC, o Tribunal devia ter convocado essa audiência precisamente para os fins nele previstos e, não, como o fez, para efeitos de conhecer imediatamente do mérito da causa.
Como decorre do supra exposto, o Tribunal em 27-09-2019 evidenciou junto das partes que, em seu entender, os autos continham todos os elementos necessários à prolação de decisão final de mérito “sem necessidade de realização da audiência prévia e de produção ulterior de prova”.
A embargante insurgiu-se contra tal entendimento do Tribunal dizendo pretender “reclamar daquele despacho, para o que requer a realização da audiência prévia, designadamente nos termos do artigo 593.º, n.º 3, do CPC (aplicável ex vi art. 732.º, n.º 2, do CPC)”.
Na sequência, o Tribunal veio a proferir, em 21-10-2019, o seguinte despacho:
“Em face da posição manifestada pela embargante, o Tribunal designa o dia 12/11/2019, às 14h30m, para a realização da audiência prévia a que alude o artigo 591º n.º1 b) do CPC, designadamente para facultar às partes a discussão de facto e de direito, visto que se tenciona conhecer imediatamente do mérito da causa.
Notifique.”.
Entende a ora embargante que o Tribunal deveria, pura e simplesmente, ter marcado audiência prévia nos termos e para os efeitos do artigo 593.º, n.º 3, do CPC e, não, para conhecer imediatamente do mérito da causa.
Vejamos:
Na fase imediatamente ulterior à apresentação dos articulados das partes, o Código do Processo Civil regula, no artigo 590.º e ss., os termos da gestão inicial do processo e da audiência prévia.
Nesta fase, com diversos e amplos objetivos, o juiz assume um papel determinante, assumindo a direção do processo, procura verificar a regularidade da instância ao nível dos pressupostos processuais e eventuais exceções dilatórias, promovendo pelo seu suprimento, convida as partes à erradicação de irregularidades e deficiências verificadas nos articulados, podendo ainda determinar a junção de documentos, o que ocorre no âmbito do despacho pré-saneador.
Ultrapassados estes eventuais entraves ao prosseguimento da causa, é convocada a audiência prévia, por despacho que indique concretamente as finalidades da sua realização.
Como refere Francisco Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, vol. II, 2015, p. 190): “Uma vez executado o despacho pré-saneador (ou seja, uma vez concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº 3 do artº 590º - correcção das irregularidades formais dos articulados), ou, não tendo a ele havido lugar, logo que o processo lhe seja feito concluso, após a fase dos articulados, o juiz, observado o preceituado pelo artº 151º, nºs 1 e ss., designa dia para a audiência prévia indicando o seu objecto e finalidade de entre os constantes do nº 1 do artº 591º, a realizar num dos 30 dias subsequentes, salvo se ocorrer alguma das hipóteses previstas no artº 592º (em que a mesma não pode ex-lege realizar-se) ou no artº 593º (em que o juiz a entenda dispensável). Conforme a exposição de motivos da Reforma de 2013, «a audiência prévia é, por princípio, obrigatória. Porquanto só não se realizará: - nas acções não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante; - nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados» (sic). E obviamente que também se não realizará no caso de revelia absoluta (operante) do réu, hipótese em que haverá lugar ao julgamento abreviado previsto no artº 567º, por reporte ao artº 56º.»
Assim, “por princípio, no processo comum de declaração, é obrigatória a realização de audiência prévia” (cfr. João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira; Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, Coimbra, 2013, p. 73) referindo os mesmos Autores (ob. cit., p. 77) que, “(…) sempre que o juiz projecte conhecer no despacho saneador de uma excepção peremptória ou de algum pedido (independentemente do possível sentido da decisão), deverá convocar audiência prévia para os efeitos do artº 591º.1.b)”, considerando estar em causa o assegurar do contraditório, designadamente, na acepção do direito a produzir alegações antes de uma decisão final.
A audiência prévia contempla um vasto leque de finalidades possíveis, segundo o preceituado no artigo 591.º.
Assim, a audiência prévia pode comportar uma tentativa de conciliação, embora esta possa, ainda, ser tentada numa fase processual posterior.
Para além disso, outra finalidade da audiência prévia é a promoção da discussão de questões a decidir de imediato relativas a exceções dilatórias ou ao mérito da causa e assim fazer cumprir o contraditório, tal como pode também ser convocada no intuito de possibilitar a discussão das posições das partes sobre a delimitação dos termos do litígio e proporcionar a supressão de deficiências ao nível da exposição da matéria de facto que ainda subsistam.
Na audiência prévia pode, igualmente, ser proferido o despacho saneador que será ditado para a ata e poderá ainda haver lugar à programação da audiência final que terá lugar na fase seguinte, com a designação das respetivas datas, número de sessões previsivelmente necessárias e programação dos atos a desenvolver em cada uma delas.
A audiência prévia pode também ter cabimento para a possibilidade de determinação da adequação formal, da simplificação ou da agilização processuais que pode consistir na adoção da tramitação processual mais adequada e na adaptação do conteúdo e da forma dos atos processuais, em função das particularidades do caso e uma vez ouvidas as partes.
Finalmente, um dos fins da audiência prévia é também o de nela se proceder à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova.
A audiência prévia poderá não se realizar em duas situações: quando a lei assim o determine ou quando o juiz dispense a sua realização. Assim, estabelece o artigo 592.º do CPC que não há lugar à realização da audiência prévia quando em ações não contestadas a revelia seja inoperante e também sempre que o juiz entenda que deve proferir despacho saneador a julgar procedente exceção dilatória debatida nos articulados e assim absolver o réu da instância.
Para além disso, o juiz pode considerar, por via de despacho devidamente fundamentado, que não se justifica a realização desta audiência quando se destine apenas a proferir despacho saneador, a determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processuais ou a proferir despacho que identifique o objeto do litígio e enuncie os temas da prova, situação em que proferirá esses despachos nos vinte dias subsequentes ao termo da fase dos articulados.
Conforme se mencionou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-02-2018 (Pº 3054-17.7T8LSB-A.L1-6, rel. CRISTINA NEVES), “no NCPC (Lei 41/2013), passou a dispor-se como regra a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, agora previsto no artº 591 do C.P.C., nomeadamente quando “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.” (nº1 b). A lei processual apenas autoriza o juiz a dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º. A dispensa da audiência prévia fora destes casos, só é possível por via do mecanismo da adequação formal prevista no artº 547 e 6 do C.P.C. sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC”.
De todo o modo, conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-10-2018 (Pº 1121/13.5TVLSB.L1-1, rel. RIJO FERREIRA): “A realização da audiência prévia não deve ser abordada numa dicotomia maniqueísta entre obrigatório ou facultativo, mas numa ponderação finalística: a realização da audiência prévia deve ter lugar sempre que for a forma mais adequada de realizar os fins por ela visados; na impossibilidade de alcançar esses fins ou se eles já tiverem sido alcançados de outra forma ou possam vir a ser mais adequadamente alcançados de outra forma a audiência prévia não deve realizar-se. Essa ponderação é deixada fundamentalmente ao juiz, no exercício do seu dever de gestão processual, numa estreita interacção com as partes, e que em última análise têm de ser convencidas do bem fundado da opção do juiz”.
Assim, “a decisão de dispensa da audiência prévia, sendo uma decisão de gestão processual, é reveladora do uso de um poder discricionário do juiz, como tal não admite recurso. No entanto, uma vez notificadas dos despachos previstos nas als. b) a d) do n.º 1 do artigo 591.º, podem as partes deles reclamar e assim introduzir, por meio de requerimento, a realização da denominada audiência prévia potestativa (anteriormente dispensada pelo juiz), na qual as reclamações serão apresentadas, contrapostas pela parte contrária e decididas pelo juiz” (Lília Sofia Marques de Oliveira; A Condensação do Processo: Do questionário aos temas da prova; FDUC; 2016, p. 61, consultado em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/41201/1/A%20condensa%C3%A7%C3%A3o%20do%20processo.pdf).
No caso de o juiz pretender conhecer do mérito da causa, há que distinguir consoante esse conhecimento seja parcial ou total.
Sobre o ponto discorrem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil; Vol. I, Almedina, 2013, p. 494) o seguinte: “A audiência prévia é de realização necessária, com o fim de facultar às partes a discussão de facto e de direito, quando o juiz tencione conhecer parcialmente do mérito da causa (art. 591.º, n.º 1, al. b) ), se a questão parcelar não tiver sido debatida nos articulados. O conhecimento da totalidade do mérito não é de considerar, pois não satisfaz o primeiro requisito da norma habilitadora da dispensa: ‘ações que hajam de prosseguir’.
A audiência prévia é de realização necessária quando o juiz tencione conhecer de todo o mérito da causa, se a questão não tiver sido debatida nos articulados, o que vele dizer que pode ser dispensada no caso oposto (art. 547.º). Esta decisão de dispensa deve, todavia, ser precedida da consulta das partes (art. 3.º, n.º 3), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, como também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa”.
Assim, no caso de pretender conhecer integralmente do mérito da causa o juiz apenas poderá dispensar a realização da audiência prévia, depois de auscultadas as partes e usando dos mecanismos de gestão processual e de adequação formal, em conformidade com o disposto nos artigos 6.º e 547.º do CPC.
O princípio da adequação formal, ínsito no artigo 547.º do CPC, permite ao juiz, precisamente, adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, cabendo no seu exercício a aludida possibilidade de não realização de audiência prévia para os fins de conhecimento integral do mérito da causa, desde que, verificadas as condições, acima mencionadas, para tal efeito.
Por outro lado, nos termos do n.º 2 do artigo 591.º do CPC, o juiz, no despacho que marque a audiência prévia deve indicar o seu objeto e finalidade, mas o mesmo não constitui caso julgado quanto à possibilidade de imediata apreciação do mérito da causa.
Refere Paulo Pimenta (Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 225.) que, “a marcação da audiência é feita por meio de despacho, o qual deve indicar, concretamente, o seu objecto e finalidade (art. 591º 2). O teor desse despacho é muito importante. Na realidade, a previsão desta audiência no nosso processo civil resulta do reconhecimento das vantagens do diálogo proporcionado pelo contacto directo dos intervenientes no processo. Tal diálogo só será proveitoso se todos forem preparados para o mesmo.
Ora, essa preparação supõe que as partes e seus mandatários saibam o que vai acontecer, o que vai discutir-se, o que vai tratar-se na audiência prévia. Disso devem ser informados pelo despacho que marca a audiência. O mesmo é dizer que o juiz deve ter o cuidado e o rigor de indicar, expressamente, o objecto da audiência prévia, tanto mais que, podendo, em abstracto, a audiência prévia cumprir diversas finalidades, há que definir quais as finalidades a considerar em cada concreto processo.
Nessa conformidade, se pretender procurar a conciliação das partes, o juiz deve referir isso no despacho. Se pretender ouvir as partes acerca de uma excepção dilatória, deve identificar a excepção. Se a audiência tiver por fim esclarecer este ou aquele ponto de facto alegado nos articulados deve ser dada nota disso. Se o juiz projectar conhecer do mérito da causa e houver vários pedidos formulados (originais ou reconvencionais) ou houver excepções peremptórias, é indispensável indicar de qual aspecto do mérito da causa pretende conhecer-se, para que as partes preparem a sua intervenção sobre esse tema (…)”.
Mais adiante (ob. cit., p. 230 e ss.) o mesmo Autor salienta que, “quando o juiz, findo o período dos articulados e considerando o estado do processo, entender que dispõe de condições para decidir já o mérito da causa, decisão que, a ter lugar, será incluída no despacho saneador, a proferir, em princípio, nessa audiência [arts. 591º l.d), 595º l.b) e 595º 2], a audiência prévia será então destinada a facultar às partes uma discussão sobre as vertentes do mérito da causa que o juiz projecta decidir. É de toda a conveniência que o juiz não decida o litígio sem um debate prévio, no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais, de facto e de direito, acerca do mérito da causa, sendo que o âmbito dessas alegações depende do caso concreto. Assim, nessas alegações, as partes poderão fazer os considerandos que tenham por convenientes, no sentido de justificar e fundamentar a procedência das respectivas pretensões. Além disso, as alegações poderão servir também para as partes tomarem posição sobre eventuais excepções peremptórias não discutidas nos articulados, mas que o juiz entenda poder conhecer oficiosamente. Acresce que deve ser proporcionada às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir o mérito da causa num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos articulados.
A convocação das partes para a audiência prévia, no contexto da alínea b) do n.º 1 do art. 591º, é pertinente a vários títulos. Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art. 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito. Expressão disso mesmo é a segunda parte do n.º 2 do art. 591º, referindo que o despacho determinativo da audiência prévia para este efeito não constitui caso julgado sobre a possibilidade de apreciação imediata do mérito da causa, de modo a não vincular o juiz à intenção por si manifestada. Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações complexas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da acção e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria”.
A respeito do n.º 2 do art. 591.º do CPC referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3.ª Edição, Almedina, 2017, p. 646) que, “o facto de o juiz considerar possível o conhecimento imediato do pedido e o indicar como finalidade da convocação da audiência prévia não o vincula a fazê-lo no despacho saneador. É o que se quer significar, no n.º 2, com a negação da constituição de “caso julgado sobre a possibilidade de apreciação do mérito da causa” (...). O juiz permanece, pois, livre de, no despacho saneador, após a discussão entre as partes ou mesmo que esta acabe por não ter lugar, entender que o processo deve prosseguir”.
Assim, conclui-se como se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-03-2018 (Processo 1920/14.0YYLSB-A.L1-6, rel. TERESA SOARES):
“I. Em face do NCPC, a audiência prévia apresenta-se como diligência praticamente obrigatória.
II. A dispensa de audiência prévia apenas está consentida quanto às ações que hajam de prosseguir os seus termos (artigo 593.º do Código de Processo Civil Revisto), sendo ainda concebível, mas apenas no quadro da aplicação do princípio da adequação formal, por via do artº 547º do NCPC, sendo que, nesse caso, será exigível que a questão já esteja suficientemente debatida nos articulados, e isto sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC.
III. Fora destes apertados limites que consentirão a dispensa da audiência prévia, a sua não realização terá como inevitável consequência a verificação de uma nulidade processual, por prática de acto não permitido por lei com influência no exame ou decisão da causa, a enquadrar no artº 195º do NCPC”.
O despacho subsequente que seja proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final. “A lei impõe, portanto, a clara sujeição ao princípio geral enunciado no artigo 644.º, n.º 3 de recorribilidade diferida e acessória dos despachos interlocutórios” (assim, Rui Pinto; Código de Processo Civil Anotado; Vol. II, Almedina, 2018, p. 135, nota 14).
Salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 692, nota 9) que: “A inércia das partes, não requerendo a realização da audiência prévia, significa que se conformam com o decidido pelo juiz quanto à dispensa da audiência prévia e quanto ao teor dos mencionados despachos, sendo certo que, como decorre da lei, a eventual reação contra o despacho saneador apenas poderá fazer-se por via recursória, nos termos gerais do art. 644.º, n.º 1”.
Ora, revertendo à situação dos autos, verifica-se que o juiz anunciou às partes pretender conhecer do mérito da causa, com dispensa da realização da audiência prévia, o que fez, referindo tomar “como premissa os princípios da adequação formal e da gestão processual”.
A ora recorrente pronunciou-se, no exercício do direito de contraditório, sobre tal anúncio.
Na sequência, o Tribunal, no mencionado despacho de 21-10-2019, designou data para a realização de audiência prévia.
Considera a recorrente que o Tribunal deveria, pura e simplesmente, ter designado a realização de audiência prévia, para os fins previstos no n.º 3 do artigo 593.º do CPC, ao contrário do que fez (tendo o Tribunal designado a realização da “audiência prévia a que alude o artigo 591º n.º1 b) do CPC, designadamente para facultar às partes a discussão de facto e de direito, visto que se tenciona conhecer imediatamente do mérito da causa”).
Ora, conforme resulta das considerações precedentes, afigura-se que não assiste razão à recorrente, pois, de facto, não se vislumbra ter sido cometida qualquer nulidade ou irregularidade procedimental.
De facto, o Tribunal utilizou, nos termos em que os comandos legais lho permitiam, da faculdade de pretender não realizar audiência prévia, assinalando às partes que, em seu entender, o processo comportava todos os elementos para o conhecimento integral do mérito da causa.
Como se viu, o único caso em que o poderia fazer seria lançando mão dos institutos da gestão processual e da adequação formal, o que foi, precisamente, o caso.
Após, perante a posição da embargante, o Tribunal designou data para a realização da audiência prévia.
Obviamente que a necessidade de marcação da audiência prévia, nos moldes em que foram determinados, derivou da manifestação de reclamação apresentada pela embargante, apresentada em conformidade com o disposto no artigo 593.º, n.º 3, do CPC.
Todavia, ao contrário do que parece pressupor a embargante, este último normativo não prescreve conteúdo algum obrigatório sobre o despacho que designa a realização de audiência prévia potestativa para além dos seus estritos termos.
Conforme decorre do preceito – o referido artigo 593.º, n.º 3, do CPC – a audiência prévia “destina-se a apreciar as questões suscitadas e, acessoriamente, a fazer uso do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 591.º”.
Ora, no requerimento da embargante de 10-10-2019, esta parte apenas manifestou não se conformar “com o entendimento do Tribunal, pretendendo reclamar daquele despacho” e, para tal, requereu “a realização da audiência prévia, designadamente nos termos do artigo 593.º, n.º 3, do CPC (aplicável ex vi art. 732.º, n.º 2, do CPC)”.
Ou seja: Este acto processual – a audiência prévia – teria de ter lugar na sequência da manifestação de vontade (potestativa) da reclamante, mas, relativamente ao seu conteúdo, a reclamante não evidenciou qualquer questão suscitada, nem concretizou os termos da discordância que assinalou.
O objeto da audiência prévia que o juiz designasse estaria assim, na falta de outra especificação, limitado ao objeto eventual e acessório, que o mesmo fixasse e a que alude a parte final do n.º 3 do artigo 593.º do CPC: “fazer uso do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 591.º”.
Ora, na alínea c) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC viabiliza-se uma discussão das posições das partes quanto ao seguinte: “delimitação dos termos do litígio”, suprimento de “insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate”.
Mas será que o Tribunal a quo não poderia consignar, como o fez no despacho de 21-10-2019, que a audiência prévia se destinaria à realização da “audiência prévia a que alude o artigo 591º n.º 1 b) do CPC, designadamente para facultar às partes a discussão de facto e de direito, visto que se tenciona conhecer imediatamente do mérito da causa”? Ou seja: Dado que a discussão não se reconduziria, na perspetiva do julgador, apenas no âmbito da alínea c) do n.º 1, do artigo 591.º do CPC, mas sim, na alínea b) do mesmo número poderia ser outro o objeto da audiência a consignar nos termos do artigo 591.º, n.º 2, do CPC?
Se bem se atentar, apesar da diversa redação, a finalidade de ambas as alíneas – b) e c) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC – é semelhante – no sentido de proporcionar às partes a discussão sobre as suas posições – muito embora, enquanto a alínea c) considera apenas a discussão com vista à delimitação dos termos do litígio, ao suprimento de falhas na exposição da matéria de facto, já a alínea b) comporta, não só a discussão de facto, mas também, a discussão de direito dos termos da causa, no todo ou em parte (do mérito ou de exceções dilatórias).
Ora, em nosso entender, no caso em apreço, não teria o despacho a proferir, no âmbito do comando ínsito no n.º 3 do artigo 593.º do CPC de ter outra consignação para além da que nele foi formulada.
Na realidade, como se viu, de acordo com o n.º 2 do artigo 591.º do CPC, o despacho que marque a audiência prévia indica o seu objeto e finalidade, o que foi estritamente observado no despacho de 21-10-2019: O objeto do conteúdo da reclamação era desconhecido para o julgador aquando da designação da audiência prévia, pelo que, não sendo caso de designação da audiência em conformidade com a al. c) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC, dado que, no entender do Tribunal, o processo se encontrava em condições de conhecer, de imediato, da integralidade do mérito da causa, não teria sentido outra consignação senão a alusão à alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC.
Conclui-se, pois, não se ter violado o aludido artigo 593.º do CPC, nem foi, de algum modo, comprimido o direito de defesa da recorrente e a um processo justo e equitativo.
Repare-se que, aliás, a embargante teve possibilidade de, no âmbito da audiência prévia - onde foram gravadas as intervenções tidas pelos Advogados de ambas as partes – intervir, discutindo com toda a amplitude a causa, usando inclusive do direito de réplica (após a intervenção do Advogado da embargada), quer em termos de facto e de direito, tendo podido apreciar toda a factualidade reunida nos autos, bem como as questões jurídicas atinentes aos autos, designadamente, abordando-as à luz do então já conhecido despacho de 27-09-2019 (onde o julgador tinha consignado as suas concretas razões em que se baseava o juízo formulado sobre a possibilidade de imediato conhecimento do mérito da causa).
Mostra-se, pois, improcedente o invocado pela embargante, não havendo motivo para revogar o despacho proferido em 21-10-2019.
Em face do exposto, improcede a questão suscitada pela embargante.
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C) Se o estado do processo permitia o conhecimento imediato do mérito da causa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 595.º do CPC?
A embargante considera que o Tribunal não poderia ter conhecido de imediato do mérito da causa, sem a realização de audiência de julgamento, concluindo, nomeadamente, que este Tribunal de recurso deve devolver o processo ao Tribunal a quo a fim de conceder às partes a oportunidade de apresentação dos seus elementos de prova a ser produzida em sede de audiência de julgamento.
Está em causa saber se o Tribunal, quando conheceu do mérito da causa, detinha todos os elementos necessários para o efeito, ou se, ao invés, tal não sucedia.
Para a resolução da questão em apreço cumpre apreciar em que condições tem de estar o julgador para poder conhecer do mérito da causa, em fase de saneamento dos autos, sem que se mostre necessária a realização de audiência de julgamento, sem a produção de quaisquer outras provas.
O CPC permite o conhecimento do mérito na fase do saneador: “O despacho saneador destina-se a: (…) b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória” (cfr. artigo 595.º, n.º 1, al. b) do CPC).
Assim, o juiz conhecerá – total ou parcialmente – do mérito da causa no despacho saneador quando não houver necessidade de provas adicionais, para além das já processualmente adquiridas nos autos, encontrando-se, por tal, já habilitado, de forma cabal, a decidir conscienciosamente.
Francisco Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, p. 204) enuncia diversos casos em que é admissível ao juiz conhecer do mérito da causa no despacho saneador. Tal sucederá quando:
“a) os factos alegados pelo autor em qualquer dos articulados legalmente admitidos forem inábeis ou insuficientes para extrair o efeito jurídico pretendido (inconcludência), caso em que o réu será absolvido do pedido;
b) todos os factos integradores de uma exceção perentória se encontrem já provados, com força probatória plena (ou pleníssima), por confissão, admissão ou documento, do que resultará a absolvição do réu do pedido;
c) se deverem ter por provados todos os factos integradores da causa de pedir por não existirem exceções perentórias, serem os factos em que se fundariam inconcludentes ou plenamente provada a inocorrência de alguns desses factos, v.g., por prova dos factos contrários (procedência do pedido);
d) se se evidenciar a inconcludência dos factos em que se funda a exceção perentória ou prova, com força probatória plena, dos factos contrários (do que resulta ter a ação que prosseguir para apuramento dos factos que integram a causa de pedir)”.
O mesmo Autor (ob. cit., p. 205) considera que constituem ainda situação admissível de imediato conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, aquela em que todos os factos probandos principais integrem causa de pedir (ou fundem exceções) apenas suscetíveis de prova documental, constituindo o documento uma formalidade legal ou ad substantiam (art.º 364.º, n.º 1, do CC) ou pelas próprias partes (art.º 223.º, n.º 1, do CC) e, como tal, ser insubstituível por qualquer outra prova (cfr. artigo 364.º, n.º 1, al. c) do CC).
“Já se os documentos forem exigidos para a prova de determinados factos (formalidade ad probationem), “podem eles ser substituídos por confissão expressa judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório” (artigo 364.º, n.º 2, do CC); pode assim, a ação ser julgada no despacho saneador se, não tendo sido apresentado o (exigido) documento, for produzido depoimento de parte (pela parte legitimada para confessar) na própria audiência prévia ou em prestação de informações ou esclarecimentos em juízo sobre factos que interessem à decisão da causa, sendo que realizando-se audiência prévia, pode para ela ser convocada – ex-officio ou a requerimento de parte contrária – a pessoa de qualquer um dos litigantes (artºs. 452.º e 453.º).” (assim, Francisco Ferreira de Almeida; Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, p. 205).
Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado; Vol. I, Almedina, 2018, pp. 696-698) referem que “a antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente de a mesma favorecer uma ou outra das partes”, enumerando diversas situações em que o juiz pode conhecer do mérito da causa no despacho saneador, o que sucederá sempre que não existam matéria controvertida suscetível de justificar a elaboração de temas da prova e de realização da audiência final.
Tal sucederá quando:
“a) Toda a matéria de facto relevante esteja provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documento: nestas circunstâncias, é inviável a elaboração de temas da prova e, por isso mesmo, mostra-se dispensável a audiência final, nada obstando a que o juiz proceda à imediata subsunção jurídica;
b) Quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com as soluções plausíveis da questão de direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito; se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum as condições de procedência da ação, torna-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil o prosseguimento da ação para audiência final; mutatis mutandis quando se trate de apreciar de que forma os factos alegados pelo réu poderão interferir na decisão final, pois se tais factos, enquadrados na defesa por exceção, ainda que provados, se revelam insuficientes ou inócuos para evitar a procedência da ação, inexiste qualquer razão justificativa para o adiamento da decisão;
c) Quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental, caso em que o juiz proferirá despacho saneador-sentença (…). Com efeito, a audiência final, em torno dos factos abarcados pelos temas da prova, não se destina no essencial à apresentação de documentos, antes à produção de outros meios de prova, sujeitos a livre apreciação, pelo que se impõe a antecipação da decisão sobre o mérito da causa;
d) Nem sequer está afastada a possibilidade de apreciação do mérito, apesar da existência de outras soluções plausíveis sustentadas em matéria de facto ainda controvertida, desde que o juiz esteja ciente da segurança da sua decisão, embora neste caso deva avaliar os riscos de uma posterior anulação pela Relação, com fundamento na necessidade de ampliação da matéria de facto (art. 662.º, n.º 2, al. c), in fine); na verdade, a sua eventual revogação (…) pode prejudicar o efeito de aceleração emergente da antecipação parcial da apreciação do mérito da causa; é aqui que a utilização do prudente critério do juiz pode servir para selecionar os casos em que, apesar das divergências, se justifica o julgamento antecipado, no confronto com aqueles em que será preferível a enunciação dos temas da prova e a posterior atividade instrutória, com vista ao apuramento dos factos que interessem à correta e completa integração jurídica; como critério geral de atuação, deve o juiz optar entre proferir a decisão de mérito da causa ou relegá-la para depois da audiência final, depois de fazer um juízo de prognose acerca da relevância ou não dos factos ainda controvertidos;
e) Tratando-se de pedido único, conquanto a lei admita a decisão parcial, julgamos que, em regra, o juiz deve abster-se de tal decisão e deixá-la para final, opção que reflete o equilíbrio entre a celeridade do processo e a coerência das decisões; tratando-se de um pedido principal (v.g. capital mutuado ou reivindicação de prédio) e de pedido acessório (v.g. juros de mora ou avaliação dos prejuízos decorrentes da ocupação ilegal), parece ser mais vantajoso o conhecimento antecipado daquela pretensão; o mesmo ocorrerá quando tenham sido cumulados diversos pedidos principais ou quando tenha sido formulado um pedido principal e um pedido subsidiário e existam fundamentos para conhecer do primeiro”.
Em síntese, conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-05-2019 (Pº 3610/18.6T8MTS.P1, rel. NELSON FERNANDES): “I - O conhecimento do mérito no despacho saneador pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito. II - Face ao referido em I, apesar do juiz se considerar habilitado a conhecer do mérito da causa segundo a solução que julga adequada, com base apenas no núcleo de factos incontroversos, caso existam factos controvertidos com relevância para a decisão, segundo outras soluções também plausíveis de direito, deve abster-se de conhecer, na fase de saneamento, do mérito da causa”.
Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que o Tribunal recorrido consignou, em sede de prolação do despacho saneador o seguinte: “Considerando que as questões suscitadas pela embargante podem ser respondidas através dos elementos já constantes dos autos, sem necessidade de produção ulterior de prova, o tribunal passa a proferir saneador-sentença”.
No despacho proferido em 27-09-2019, o Tribunal a quo tinha assinalado o seguinte:
“Compulsados os autos com vista ao seu saneamento, constata-se que os mesmos já contêm todos os elementos necessários e, por isso, aventa-se a possibilidade de ser proferida decisão final de mérito sem necessidade de realização da audiência prévia e de produção ulterior de prova.
Tomando como premissa o articulado dos embargos de executado, conclui-se serem dois os fundamentos essenciais de defesa: o primeiro prende-se com a impugnação, por desconhecimento, da genuinidade da livrança e da assinatura imputada pela exequente à embargante; o segundo prende-se com a nulidade da prestação da garantia e a consequente falta de vinculação do acto.
Quanto à primeira questão, uma vez que a embargante refere expressamente que FD… (a pessoa a quem a exequente imputa a assinatura) integra o seu Conselho de Administração, a mera impugnação por desconhecimento tem o mesmo efeito da confissão, por se tratar de um facto pessoal que não podia ser desconhecido (artigo 574º n.º 3 do CPC).
No que respeita à segunda questão, entendemos que a mesma reveste natureza essencialmente jurídica, sendo que o respectivo substracto fáctico poderá ser encontrado nos documentos já juntos aos autos.”.
A embargante não colocou em causa este enquadramento de questões assinalado pelo Tribunal, apesar da reclamação que fez sobre a intenção de conhecimento imediato do mérito da causa.
Ora, para se concluir se o Tribunal recorrido procedeu a um correto enquadramento das questões a decidir vejamos o que foi alegado na petição de embargos:
A embargante invocou a seguinte defesa:
“I. Por exceção
1º No requerimento executivo, a Exequente limita-se a descrever os factos da seguinte forma: “A obrigação resulta expressa e exclusivamente do título executivo (Livrança).”.
2.º E analisando o título executivo, apenas conseguimos perceber que a Exequente apresenta à execução uma livrança subscrita por terceiros, em 07.02.2018, e em representação da sociedade comercial denominada Leuimport da Madeira - Comércio Automóvel, Lda., no valor de € 507.420,09 (…), com data de vencimento em 19.02.2018.
3.º No entanto, não se percebe – porque a Exequente nada explica! – qual a verdadeira natureza da dívida exequenda e que conexão terá com a Embargante.
4.º Certo é que a Embargante nada tem que ver com o título executivo e muito menos com a dívida exequenda, mais a mais quando não contraiu nenhum financiamento à Exequente.
5.º Pelo que a Embargante se vê obrigada a impugnar, por desconhecimento, a genuinidade do documento, bem como a própria letra e assinaturas apostas no título executivo, o que faz designadamente nos termos dos artigos 444.º e 574.º, n.º 3, do CPC. (…).
6.º No verso do título executivo, constam ainda duas assinaturas com as menções “bom para aval à empresa subscritora”, o que, à partida, indiciaria a constituição de uma garantia pessoal para pagamento da livrança, assegurando o cumprimento da dívida em apreço, sendo o aval “um ato pelo qual um terceiro ou um signatário da letra garante o pagamento dela por parte de um dos subscritores” (…).
7.º No entanto, esclarece-se que essas assinaturas não vinculam a ora Embargante à quantia exequenda.
8.º Isto porque, sendo a Embargante uma sociedade anónima, a sua administração compete a um Conselho de Administração que é composto por três administradores, sendo o Presidente, MD…, e os dois Vogais FD… e RD…, conforme consta na certidão permanente atualizada da sociedade que se junta e se dá por integralmente reproduzida como Doc. 1.
9.º A Embargante obriga-se, portanto, com: “A) Assinaturas conjuntas de dois administradores; B) Assinaturas conjuntas de um administrador e de um mandatário ou procurador da sociedade, no cumprimento do respetivo mandato; C) Assinaturas conjuntas de um administrador e de um administrador delegado, dentro dos limites dos seus poderes.”, conforme estabelecido no pacto social e publicitado no registo comercial, mais precisamente na Ap. 8/20010525 (cfr. Doc. 1 e 2).
10.º No caso concreto, o (alegado) título executivo não se encontra subscrito por quem tenha poderes para vincular a ora Embargante, indo também assim impugnado o título e a obrigação subjacente.
11.º Com efeito, resulta do n.º 1, do artigo 408.º, do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que: “Os poderes de representação do conselho de administração são exercidos conjuntamente pelos administradores, ficando a sociedade vinculada pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos administradores ou por eles ratificados, ou por número menor destes fixado no contrato de sociedade.”.
12.º Neste sentido, é pacífico na jurisprudência portuguesa que, “(…) tendo o executado-embargante impugnado a autoria da assinatura que consta da letra dada à execução, cabe ao exequente-embargado o ónus da prova dessa autoria”,2 entendimento que, aliás, resulta do interpretação do n.º 2 do artigo 374.º do Código Civil: “Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade.”
13.º Tal que, impende agora sobre a Exequente o ónus da prova da veracidade das aludidas assinaturas e da suficiência e poderes dos seus subscritores para representar a Embargante no acto.
14.º E assim, indo impugnadas as assinaturas apostas no verso do título executivo, enquanto supostos representantes da ora Embargante, esta última deixa de estar cambiariamente vinculada por ela, porquanto a livrança é inexequível em relação a si.
15.º O que constitui um facto que impede o efeito jurídico do que foi articulado pela Exequente e que consubstancia uma exceção perentória que importa a absolvição total do pedido, nos termos do artigo 576.º do CPC.
16.º Mais a mais, e mesmo considerando, por mera hipótese, que alguma destas assinaturas seria, porventura, a de um administrador da Embargante, sempre estaria em falta a assinatura de outro administrador, para efeitos de representação e vinculação da sociedade Embargante.
17.º Ora, não tendo sido respeitada a forma contratualmente prevista para vincular a sociedade Embargante (ou seja, a assinatura de dois administradores), informação que é também possível consultar através da análise da certidão permanente da sociedade, a Embargante não está vinculada à livrança, sendo também assim parte ilegítima nesta ação executiva.
18.º O que constitui uma exceção dilatória de ilegitimidade, nos termos da alínea e) do artigo 577.º do CPC, em conjugação com a alínea c) do artigo 729.º e 731.º do mesmo diploma legal.
19.º Pelo que a presente execução não pode prosseguir contra a ora Embargante, devendo quanto a ela ser suspensa (…).
- Da nulidade da prestação da garantia pela Embargante
21.º Sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que, mesmo que o título executivo tivesse sido devidamente subscrito por pessoa com capacidade para vincular a Embargante, seria o mesmo nulo.
22.º Isto porque, de acordo com o disposto no n.º 3, do artigo 6.º, do Código das Sociedades Comerciais, as garantias reais ou pessoais prestadas por sociedades comerciais a favor de terceiros consideram-se contrárias ao fim da sociedade, sendo por isso nulas.
23.º Principalmente quando se trata da prestação de garantias a título gratuito, como seria o caso, pois a Embargante nada recebeu ou beneficiou da devedora principal Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Lda.
24.º E seguindo essa ordem de ideias, será forçoso concluir que a garantia (aval) que pudesse ter sido titulada pela livrança apresentada à execução é, na verdade, nula, inexistindo um justificado interesse próprio da Embargante, ora sociedade garante, em realizar esse putativo negócio.
25.º A isto acresce o facto de não existir qualquer deliberação do conselho de administração ou da própria assembleia-geral da Embargante a autorizar a prestação desta garantia por parte da sociedade. Mais a mais,
26.º Sempre se dirá que a Exequente também não podia desconhecer a forma de obrigar a Embargante. Vejamos,
27.º A Exequente apresenta-se como uma sociedade de “garantia mútua”, e tem como modelo de negócio a oferta de um “sistema mutualista de apoio às Micro, Pequenas e Médias Empresas (PME), que se traduz fundamentalmente na prestação de garantias financeiras para facilitar a obtenção de crédito em condições adequadas aos investimentos e ciclos de atividade dessas empresas.”
28.º Portanto, o core-business da Exequente passa por facilitar o acesso ao crédito pelas pequenas e médias empresas, através da emissão de garantias, a fim de melhorar as condições de custo e prazo dos empréstimos e aumentar a capacidade de financiamento das empresas.
29.º Ou seja, a Exequente emite uma garantia que os seus clientes – neste caso, empresas como a Embargante – utilizam para garantir o cumprimento das obrigações com que se comprometeram perante alguma instituição bancária.
30.º E para prestar tal garantia e melhorar as condições de financiamento dos seus clientes perante Instituições Bancárias ou Financeiras, a Exequente é naturalmente remunerada.
31.º Destarte, a Exequente está mais do que habituada a celebrar este tipo de negócios com sociedades que pretendem financiamento a curto prazo.
32.º E neste sentido, não podia descurar saber, nomeadamente, quem obriga as sociedades com quem as mesmas celebram negócios no dia-a-dia.
33.º Pois como é bom de ver, os terceiros têm a: “ (…) possibilidade e o dever de verificar se quem age como representante da sociedade o é efetivamente: ou seja, se o Senhor A ou B se apresente como gerente, Administrador ou Diretor de uma sociedade, os terceiros estão obrigados a controlar se isso é assim. Para o fazerem, podem recorrer aos meios previstos na lei para publicidade dos atos sociais.”
34.º O mesmo valerá, evidentemente, em termos quantitativos, isto é, no que diz respeito ao número de Administradores que precisam de intervir em determinado ato para representar e vincular a sociedade.
35.º E terá, porventura, sido essa falta de diligência, que é exigível à credora, ora Exequente, que a impediu de conhecer como a sociedade Embargante se fazia representar.
36.º Ora, tendo em conta o serviço prestado pela Exequente e atendendo ao tipo de negócio que é pela mesma frequentemente celebrado, esta tinha uma obrigação especial acrescida de verificar se a sociedade a quem estava a prestar a referida garantia, estava efectiva e devidamente representada, vinculando-se àquele negócio.
37.º No fundo, a lei dá prevalência aos interesses da sociedade, no caso concreto, da Embargante, em relação a terceiros, quanto aos atos praticados pelos Administradores fora dos limites impostos pelo contrato social, e a Embargada não podia desconhecer que o título executivo não se encontrava subscrito por quem tinha efetivamente poderes para vincular a sociedade.
38.º O que forçosamente nos obriga a concluir que a Embargante não está vinculada à livrança, muito menos à obrigação dela decorrente.
II. Por impugnação
39.º Conforme acima já se referiu, a Embargante desconhece a alegada dívida exequente, designadamente no que diz respeito à sua natureza, finalidade, data e montante, impugnando-a frontalmente.
40.º Certo é que a Embargante nunca deu o seu aval à livrança que alegadamente serviu de título executivo nos presentes autos, conforme já acima se demonstrou.
41.º Pois que a constituição de tal garantia nunca foi analisada pelo conselho de administração; não existe nenhuma deliberação da Embargante no sentido de prestar a aludida garantia e nos seus arquivos não existe nenhum documento respeitante à quantia exequenda.
42.º Pelo que a Embargante não está cambiariamente vinculada à livrança que foi dada como título executivo, assim como se opõe à quantia exequenda, que desconhece”.
Do teor da petição de embargos, verifica-se que a apreciação efetuada pelo Tribunal se centrou nas questões dela constantes, designadamente, o efeito da declaração de desconhecimento da subscrição da livrança e a vinculação ou não da embargante pela subscrição realizada, as quais, como se viu foram objeto do despacho prolatado em 27-09-2019 e que foram objeto de apreciação - conjuntamente com a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, com a questão da nulidade da prestação da garantia, por contrariedade ao fim social nos termos do artigo 6º n. º3 do CSC (e com a questão da litigância de má fé, esta, na decorrência da alegação da embargada) - no despacho saneador-sentença de 03-12-2019 sob recurso.
Como resulta da alegação da embargante, esta, insurge-se contra o decidido, considerando:
- Que o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento, ao ter considerado que a impugnação da Apelante quantos aos factos e documentos juntos aos autos constituiu uma confissão, nos termos do artigo 574.º, n.º 3, do CPC;
- Que o Tribunal não deveria ter dado como provados os factos selecionados em D., F., G., H., I., J. e P.
Para se responder à questão colocada, cumpre, pois, apreciar o seguinte:
Será que o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento, ao ter considerado que a impugnação da Apelante quantos aos factos e documentos juntos aos autos constituiu uma confissão, nos termos do artigo 574.º, n.º 3, do CPC e se não deveria ter dado como provados os factos selecionados em D., F., G., H., I., J. e P. (sendo certo que, a impugnação de facto a que a embargante declara proceder, na medida em que não teve lugar a produção probatória em sede de audiência de discussão e julgamento, se entende na existência ou não de elementos probatórios que permitiam a formação da convicção positiva sobre tais factos)?
Conforme decorre da petição de embargos, nela a embargante veio declarar “impugnar, por desconhecimento, a genuinidade do documento, bem como a própria letra e assinaturas apostas no título executivo”.
Na contestação de embargos, a embargada juntou diversos documentos.
Na sequência, a embargante tomou posição sobre esses documentos, nos termos constantes do requerimento de 12-03-2019 (requerimento este que foi, aliás, mantido nos autos, conforme despacho proferido em 27-09-2019) dizendo que:
- O documento n.º 1 junto com a contestação, que “impugna, também não vincula a embargante”, sendo que, o mesmo “não foi do conhecimento da embargante, nunca foi discutido pela embargante e tão-pouco se encontra arquivado na embargante, pelo que se impugna o seu teor e carácter probatório;”, desconhecendo o autor da sua redação;
- “a Embargante desconhece, também, a existência do alegado pacto de preenchimento da livrança que a exequente veio agora juntar aos autos, mas que se impugna para todos os efeitos legais, desde logo por total e absoluto desconhecimento”;
- “a Embargante impugna também os documentos 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 que estão estritamente relacionados com a prestação da garantia autónoma bancária e da livrança utilizada como título executivo, pois nunca teve conhecimento de tais cartas”; e
- “impugna a genuinidade, letra e assinatura do documento 2, da contestação, nos termos do artigo 444.º, do CPC, por se tratar de uma mera cópia onde nem sequer são percetíveis as assinaturas nessas apostas, desconhecendo-se a sua autoria, suficiência de poderes e respetivos registos postais;”
Vejamos:
O processo executivo alicerça-se no título executivo, no documento que lhe serve de base (cfr. art. 703.º do CPC), cabendo ao exequente instruir o requerimento executivo com cópia ou o original do título executivo (cfr. art. 724.º, n.º 4, CPC).
Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva - art. 10.º, n.º 5, do CPC.
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, p. 33): “O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão executiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui, assim, a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação”.
As espécies de títulos executivos estão enunciadas no artigo 703.º do CPC, entre eles se encontrando, entre outros, os títulos de crédito (cfr. al. c) do n.º 1 do referido preceito legal).
Os títulos de crédito, ainda que mero quirógrafos, constituem base para a demanda executiva, muito embora, neste último caso, os factos constitutivos da relação subjacente devem constar do próprio documento ou ser alegados no requerimento executivo.
Título de crédito é o “documento necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado” (assim, Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, p. 3), muito embora numa definição em sentido estrito apenas são aqueles documentos que incorporam o direito a uma prestação em dinheiro (letras, livranças, cheques).
“Não existindo o direito cartular nem a correspondente obrigação cambiária (por exemplo, porque a ação cambiária prescreveu), não se está perante um título de crédito (em sentido próprio), mas sim perante um documento particular despido das caraterísticas da incorporação, literalidade e autonomia, que caraterizam e são essenciais à própria definição de título de crédito” (assim, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, 2014, p. 185). Neste caso, a força executiva dependerá de a relação causal ou subjacente à sua emissão constar do documento ou ser alegada no requerimento executivo.
No caso em apreço, o título dado à execução é uma livrança, com o n.º …, na qual constam os dizeres “507.420,09 €”, “Lisboa”, “2018/02/07” e “2018/02/19”, nos campos relativos ao valor, local, data de emissão e data de vencimento, respectivamente, bem como a seguinte indicação: “Titulação da garantia autónoma …”. No local destinado aos subscritores constam os dizeres “Leuimport da Madeira – Com- Automóvel, Ld.ª”, uma assinatura e o carimbo desta sociedade. No verso da livrança encontra-se aposta (entre outras) a assinatura de FD…, por cima do carimbo com os dizeres “Dumont dos Santos SGPS, SA – A Administração”, e com a indicação de “bom para aval à empresa subscritora”.
É regra basilar do ónus de impugnação, a de que o réu, ao contestar, “deve tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor” – nº 1 do art. 574º do CPC.
Este princípio é aplicável em sede de processo executivo (cfr. artigo 551.º do CPC).
Do mencionado princípio vertido no artigo 574.º, n.º 1, do CPC deriva que, “não vale como tal a assunção de uma postura dúbia sobre os factos; e a indefinição que o sistema não consente, tanto pode traduzir-se na pura e simples falta de tomada de posição sobre os factos (ressalvada a hipótese destes não admitirem confissão ou só poderem ser provados por documento escrito) – nº 2 da mesma norma -, como na declaração de que desconhece se os mesmos são reais quando estejam em causa factos pessoais do réu ou de que este deva ter conhecimento - nº 3 do preceito. Na primeira das aludidas hipóteses considera a lei que há admissão por acordo, na segunda tem os factos por confessados” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-10-2019, Pº 617/14.6YIPRT.L1.S1, rel. ROSA RIBEIRO COELHO).
Sobre este preceito referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª edição, pág. 572-573) o seguinte:
“Direta ou indireta, a impugnação repousa normalmente numa certeza. O réu afirma que o facto alegado pelo autor não se verificou ou que se verificou outro facto com ele incompatível. A afirmação e negação constituem declarações de ciência, que são informações sobre a realidade, baseadas no conhecimento do declarante: trata-se de manifestações da esfera cognoscitiva sobre fragmentos da realidade que é objeto do conhecimento. Mas pode acontecer que o réu esteja em dúvida sobre a realidade de determinado facto e, neste caso, a expressão dessa dúvida é suficiente para constituir impugnação se não se tratar de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento, valendo como admissão no caso contrário (nº 3). Constitui facto pessoal ou de que o réu deve ter conhecimento, não só o ato praticado por ele ou com a sua intervenção, mas também o ato de terceiro perante ele praticado (…), ou o mero facto ocorrido na sua presença, e ainda o conhecimento do facto ocorrido na sua ausência (…)”.
Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado, volume III, pág. 60) afirmava, a propósito do art. 494º do CPC então vigente o seguinte:
“Como exigir que o réu impugne o facto, sob pena de o aceitar como verdadeiro, se não tem conhecimento dele, se nada sabe a respeito da ocorrência material narrada pelo autor?
O § 1º do artigo resolve a dificuldade. Admite a declaração, por parte do réu, de que não sabe se o facto é exacto; e atribui à declaração valor diverso, conforme se trata de facto pessoal ou de facto de que o réu deva ter conhecimento, ou se trata de facto que não esteja nestas condições: no 1º caso a declaração vale como confissão, no 2º vale como impugnação. (…)
Quanto aos equívocos e lapsos de memória, note-se que o texto se refere a factos pessoais ou de que o réu deva ter conhecimento. Esta restrição parece que é garantia bastante contra quaisquer perigos. Trata-se de factos que, pela sua própria natureza, não podem deixar de estar presentes ao espírito da pessoa”.
Atenta a literalidade que resulta do título dado à execução divisam-se incontestáveis os factos provados vertidos nas alíneas A a D.
Pode o invocado desconhecimento da embargante sobre tal título, conduzir ao resultado que a mesma pugna no presente recurso, ou, ao invés, decidiu bem o Tribunal recorrido ao considerar como confessória uma tal declaração da embargante?
Na decisão recorrida pode ler-se, a este respeito, o seguinte: “(…) estando em causa actos imputados a FD…, que integra o Conselho de Administração da embargante, a impugnação/invocação de falsidade por desconhecimento equivale a confissão, tal como decorre do artigo 574º n. º3 do CPC.
Os factos relativos à livrança e ao sobredito escrito particular referem-se a um dos membros do Conselho de Administração da embargante, que não pode naturalmente escudar-se na sua natureza de pessoa colectiva para alegar desconhecimento sobre tais realidades”.
Na realidade, este entendimento do Tribunal recorrido não merece censura.
Conforme se refere no Acórdão do STJ de 09-02-2011 (Pº 2971/07.7TBAGD-A.C1.S1, rel. LOPES DO REGO) “se o título executivo for (…) um mero documento particular assinado, é, desde logo, aplicável a norma substantiva constante do art. 374º do CC, da qual decorre que :
- a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular só se consideram, em regra, verdadeiras quando não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado;
- se a parte contra quem o documento foi apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade;
- só o documento particular cuja autoria seja reconhecida nestes termos faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor, (sem prejuízo da possibilidade de este excepcionar a falsidade do documento) –só então servindo de efectivo meio de demonstração dos factos constitutivos do crédito exequendo, impugnado pelo executado/opoente”.
Ora, a subscrição cambiária de uma livrança de um administrador de uma sociedade anónima – independentemente de qualquer questão de vinculação conjuntiva maioritária, a que se reporta o n.º 1 do artigo 408.º do Código das Sociedades Comerciais – é um acto inerente à representação social que tal representante tem para com a sociedade, constituindo, no que ora interessa, um acto que se reflete na esfera jurídica desta última.
Na realidade, a capacidade de exercício das sociedades comerciais, é determinada pela atuação dos seus próprios órgãos, isto porque, não sendo as pessoas coletivas dotadas de vontade própria é imprescindível a existência de órgãos sociais que por ela formem e manifestem tal vontade.
Nesta medida, aos titulares dos órgãos das sociedades comerciais são conferidos, além dos poderes de gestão e administração os necessários poderes de representação que permitem a vinculação jurídica das entidades societárias perante terceiros.
A doutrina discutiu se os órgãos das pessoas coletivas eram verdadeiros órgãos ou meros representantes, surgindo a este respeito duas teorias: a da representação (de Savigny) e a organicista (de Von Gierke).
Para a primeira, os órgãos das sociedades comerciais seriam apenas representantes das mesmas, distinguindo-se juridicamente da pessoa jurídica, já para a segunda os órgãos da sociedade identificar-se-iam com a sociedade, fazendo parte integrante da mesma e, logo, quaisquer atos por eles praticados seriam diretamente imputados à sociedade.
É esta última teoria que tem expressão no nosso direito societário, pelo que, a atuação dos órgãos da sociedade projeta-se na esfera jurídica da mesma.
Isso mesmo se espelha em face da prescrição contida nos artigos 6.º, n.ºs. 4 e 5 do CSC – considerando que as cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos não limitam a capacidade da sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade no dever de não excederem esse objecto ou de não praticarem esses actos e que a sociedade responde civilmente pelos actos ou omissões de quem legalmente a represente, nos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos comissários – e nos artigos 409.º e 260.º do Código das Sociedades Comerciais quanto às sociedades anónimas e quanto às sociedades por quotas, respetivamente.
Quanto a sociedades anónimas, nos termos do artigo 405.º n.º 2 do CSC “o conselho de administração tem exclusivos e plenos poderes de representação da sociedade”.
Assim, os actos praticados por um administrador refletem-se, necessariamente, como actos imputáveis à sociedade, designadamente quando, como é o caso, em que o administrador subscreve o título dado à execução – para além de o assinar no verso, sem outra indicação – apõe nele a expressão manuscrita “bom por aval à empresa subscritora”, aí também constando um carimbo com os dizeres “Dumont dos Santos SGPS, SA – A Administração”.
Tanto nas sociedades por quotas como nas sociedades anónimas, o órgão social a quem compete a “formação, exteriorização e execução da vontade juridicamente imputável” (assim, José Engrácia Antunes; Direito das Sociedades, Parte Geral, Porto, 2016, p. 273) no âmbito da celebração de negócios jurídicos e da atuação perante terceiros é o órgão de gestão, isto é, à gerência, no caso das primeiras (cfr. artigo 259.º do CSC) e o conselho de administração (ou administrador único), no caso das segundas (cfr. artigo 405.º do CSC).
No entanto, para exteriorizarem o produto do desempenho das suas funções, os órgãos de gestão necessitam de ser representados por “pessoas humanas” (a expressão é de Pais de Vasconcelos; Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 141), ou seja, pelos gerentes, nas sociedades por quotas, e pelos administradores, nas sociedades anónimas.
Assim, as regras relativas à representação das sociedades comerciais devem exprimir o modo como a sociedade atua no mundo exterior.
“Quando os órgãos de gestão têm uma composição singular não se suscitam problemáticas no que respeita à sua intervenção em negócios sociais. O gerente ou administrador único decide e, imediatamente, passa à execução do ato representando a sociedade e vinculando-a através da prática do ato fundado na sua decisão.
Quando os órgãos de gestão têm uma composição plural, a forma como os seus membros intervêm nos negócios sociais é mais complexa. Nas sociedades por quotas, em regra, os gerentes não reúnem colegialmente – o que, porém, não os exclui da possibilidade de o fazerem - passando, em regra, diretamente à execução do ato em si. Assim, não sendo necessária a prévia deliberação dos gerentes a sociedade deve ser representada, no âmbito da prática do ato, pela maioria dos seus gerentes ou de um número inferior ou superior, desde que previsto nos estatutos.
Nas sociedades anónimas, por excelência, o órgão de gestão reúne colegialmente, deliberando sobre determinado ato, sendo que, uma vez vertida em ata o sentido da decisão, caberá a um qualquer administrador em funções passar à prática do ato deliberado. No entanto, quando estejamos perante um ato de gestão corrente não deverá existir a necessidade de proceder a uma deliberação prévia pelo que, à partida, poderão os administradores também passar à execução do ato propriamente dito. Assim em atos não deliberados previamente ou em atos da gestão corrente da sociedade, a sociedade é representada na prática do ato pela maioria dos administradores ou (diferentemente do que sucede no regime das sociedades por quotas) de um número deles inferior à maioria, o qual deverá ser estipulado nos estatutos” (assim, Frederico Ferreira da Silva; A (in)suficiência da representação na vinculação societária; A propósito do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/02/2015, UCP, Maio 2019, pp. 18-19).
Ora, conforme bem se assinalou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-09-2011 (Pº 4537/04.4TVPRT-A.P1.S1, rel. GREGÓRIO SILVA JESUS), “no que tange à vinculação da sociedade, o regime estabelecido no art. 409.º, n.º 4, para as sociedades anónimas, não é substancialmente diferente do estabelecido no art. 260.º, n.º 4, ambos do CSC, para as sociedades por quotas: as sociedades ficam vinculadas com a assinatura do representante, com indicação dessa qualidade. O objectivo das normas indicadas – arts. 260.º, n.º 4, e 409.º, n.º 4, do CSC – é o de conseguir uma distinção clara entre os actos escritos que vinculem as pessoas a título individual e aqueles que vinculem a sociedade em nome de quem porventura essas pessoas intervenham, permitindo destrinçar as esferas jurídicas dos sujeitos em que os efeitos jurídicos dos actos praticados se vão repercutir. Sempre que a intervenção da pessoa em concreto permita percepcionar, com segurança bastante, que o acto praticado é da sociedade, e não da pessoa singular, esse acto efectivamente repercutir-se-á naquela, vinculando-a, não exigindo a lei um procedimento estandardizado para se concluir por essa vinculação, a qual, aliás, se pode inferir tacitamente”.
De acordo com o disposto nos mencionados preceitos, “os gerentes vinculam a sociedade, em actos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade” (quanto às sociedades por quotas – cfr. artigo 260.º, n.º 4 do CSC) e “os administradores obrigam a sociedade, apondo a sua assinatura, com a indicação dessa qualidade” (quanto às sociedades anónimas – cfr. artigo 409.º, n.º 4 do CSC).
Mas, esta referida “indicação da qualidade” (de administrador), basta-se de modo tácito, ou, ao invés, terá de ser expressa?
Quanto a actos não escritos o entendimento sempre foi consensual.
Ou seja, neste tipo de actos, tal indicação tanto pode ser expressa como tácita, conforme o disposto no n. º1, do artigo 217.º do CC.
No entanto, para actos escritos tal unanimidade não se verificou. Para parte da doutrina e da jurisprudência, a indicação da qualidade de administrador teria de ser expressa (assim, João Espírito Santo; Sociedade por Quotas e Anónimas – Vinculação : objecto social e representação plural, Almedina, 2000, p. 470, nota 1278 e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05-11-1998, 02-06-1999 e de 22-06-1999, publicados, respectivamente, no Boletim do Ministério da Justiça, n.ºs 481, p. 498, n.º 488, p. 365, e na Colectânea de Jurisprudência,1999, Ano VII, tomo 2, p. 15 e, bem assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-05-1992, in Colectânea de Jurisprudência, 1992, Ano XVII, tomo 3, p. 337). Para outra parte da doutrina e da jurisprudência entendia-se que da letra dos preceitos mencionados não se retirava nenhuma exigência de que tal indicação tinha de ser expressa, sendo essencial que os “destinatários normais” do acto escrito, pudessem lê-lo e deduzirem que o mesmo era imputável à sociedade, ou seja, a vinculação da sociedade pode resultar do texto do documento, que, assinado pelo seu gerente, não indicou expressamente que procedeu nessa qualidade. (neste sentido, vd., na doutrina, Alexandre Soveral Martins; “Capacidade e representação das sociedades comerciais”, in Problemas do Direito das Sociedades, 2002, p. 478; Carolina Cunha; “Vinculação cambiária de sociedades: algumas questões”, in Os 20 anos do Código das Sociedades Comerciais, pp. 381ss, e Coutinho de Abreu; “A vinculação das sociedades comerciais”, in Estudos em Homenagem ao Professor Oliveira Ascensão, Vol. I., 2007, p. 1215 e, na jurisprudência, o Acórdão do Supremo de 24-10-1996, in Colectânea de Jurisprudência,1996, Ano IV, tomo 3, p. 78).
A questão veio a ser dirimida pelo Acórdão do STJ para Uniformização de Jurisprudência, n.º 1/2002 (Processo n.º 3370/2000 - 6.ª Secção, publ. Diário da República n.º 20/2002, Série I-A, de 2002-01-24, pp. 498-503) uniformizando-se a jurisprudência nos seguintes termos: “A indicação da qualidade de gerente prescrita no n.º 4 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais pode ser deduzida, nos termos do artigo 217.º do Código Civil, de factos que, com toda a probabilidade, a revelem” (cfr. também, sobre o ponto, o ulterior Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-07-2011, Pº 544/10.6T2STC.S1, rel. FONSECA RAMOS).
Apesar do sobredito acórdão uniformizador não se referir às sociedades anónimas, por maioria de razão, a conclusão a que chegou é igualmente aplicável ao seu regime (cfr., neste sentido, Ana Otília Esteves da Costa Pereira; Vinculada ou não vinculada, eis a questão! - A vinculação das sociedades comerciais por quotas e anónimas: análise do seu regime à luz da Lei e da Jurisprudência Portuguesa, dissertação de Mestrado em Direito na área de Ciências Jurídico-Empresariais, FDUC, 2017, p. 41, consultada em https://eg.uc.pt/bitstream/10316/83873/1/Tese%20Ana%20Ot%C3%ADlia%20-%20Vincula%C3%A7%C3%A3o%20Sociedades.pdf).
Alguns exemplos de indicações tácitas da qualidade de administrador podem assinalar-se (seguindo-se aqui a exemplificação dada por Coutinho de Abreu; “A vinculação das sociedades comerciais…” ob. cit., p. 1216):
a) em letra de câmbio aparece como sacada uma sociedade (identificada pela firma) e no lugar do aceite aparecem assinaturas de administradores da mesma – sem mais indicações, ou acompanhadas de carimbo da sociedade;
c) Em cheque figura determinada sociedade como titular da conta e no lugar destinado à assinatura do sacador consta (sem mais indicações) a assinatura de administrador daquela sociedade;
e) em escrito enformando contrato de cessão de gozo de prédio não é identificada a sociedade cessionária nem a assinatura do administrador desta vem acompanhada de menção expressa a essa qualidade, mas o administrador havia comunicado à contraparte que o prédio se destinava à sociedade (e nas negociações preliminares ele apresentou-se sempre como administrador da sociedade).
Assim, conclui-se que a intervenção cambiária do referido administrador da sociedade avalista e ora embargante comportou uma atuação em representação daquela.
Ora, ao invés do que pretende a embargante, a afirmação de que a mesma desconhece a subscrição – como avalista – do título dado à execução, não configura uma impugnação, dado que, na realidade, a intervenção da embargante na assinatura constante do título advém de um facto pessoal que à mesma respeita e que derivou da intervenção da pessoa do administrador que nele apôs a assinatura.
No caso, a letra e assinatura respeitantes ao aval da embargante foram imputadas a esta, justificando a sua demanda.
Não tendo sido colocada, por qualquer modo, em questão a subscrição formal do título pela embargante, verifica-se que a declaração de desconhecimento respeitante ao título dado à execução, assim como relativamente aos demais documentos atinentes à vida da sociedade subscritora da livrança, equivale a confissão, como foi entendido – e assim em perfeita correção - pelo Tribunal recorrido.
A assinatura do título trata-se, pois, de facto que tem de considerar-se como pessoal da embargante, não podendo esta, em virtude dessa natureza, deixar de conhecê-lo.
Daí que o seu alegado desconhecimento dos factos equivalha, por força do nº 3 do art. 574º do CPC, a confissão dos factos referentes ao título cambiário em questão, levando à prova plena dos factos respeitantes a tal documento.
A embargante – em sede de alegações do presente recurso – vem alegar o seguinte:
-“não estão em causa atos validamente praticados pela ora Apelante e muito menos atos que fossem do comprovado conhecimento da ora Apelante ou sequer atos que tivessem chegado ao conhecimento da Apelante”;
- “todos os referidos atos sustentados em todos os documentos juntos aos autos pela Embargada, foram sempre praticados por terceiros, ou seja, quer pela sociedade “Leuimport da Madeira, Lda.”, quer por FD…, sem nunca ter comunicado ou sequer dado conhecimento à ora Apelante”;
- “Nenhum dos restantes membros do Conselho de Administração da “Dumont dos Santos, SGPS, S.A.” teve sequer conhecimento de tais actos e de tais responsabilidades, posto que, nem MD…, nem RD…, tiveram qualquer intervenção direta ou pessoal nesses atos, desconhecendo-os in totum”;
- O “administrador RD… nada tinha que ver com a sociedade “Leuimport da Madeira, Lda.”, não sendo sócio, nem gerente dessa sociedade, à data dos factos”;
- “FD… também não é parte nesta ação e tão-pouco está em causa a posição pessoal que este último possa ter quanto ao objeto da lide, dado que este administrador se afastou da administração há vários anos”;
Ora, esta alegação é insubsistente, não logrando obter a finalidade almejada pela embargante.
De facto, como resulta do exposto, qualquer dessas alegações respeita a factos referentes à vida interna da embargante e às relações entre administradores, mas não à representatividade da sociedade para efeitos externos, perante terceiros.
Não releva, de facto, saber, para efeitos do juízo formulado pelo Tribunal sobre a posição da embargante sobre o título executivo, se o administrador da embargante FD… tinha ou não poderes para subscrever, como fez, a livrança, se deu conhecimento aos demais administradores da embargante ou estes tiveram um tal conhecimento ou intervenção, tal como é irrelevante se o reconhecimento da sua assinatura foi ou não corretamente efetuado, quando é certo que o mesmo espelha a sua subscrição e a pretensão de atribuição de efeitos, do acto subscrito, à ora embargante, sendo certo que, por isto, não é correto dizer que “todos os referidos atos sustentados em todos os documentos juntos aos autos pela Embargada, foram sempre praticados por terceiros (…) pela sociedade “Leuimport da Madeira, Lda.” (…) por FD… (…)”. Finalmente, também é irrelevante, para o aludido fim, a posição de parte processual de FS…, dado que, o que está em questão é a sua posição de administrador – à data da subscrição do título cambiário – da ora embargante, facto indesmentível e que permite viabilizar a conclusão alcançada pelo Tribunal recorrido.
E que dizer quanto à posição da embargante sobre os demais documentos juntos aos autos na contestação da embargada?
Os documentos 1 a 8 juntos com a contestação da embargada foram por esta referenciados nesse articulado, com a seguinte alegação:
- Que no exercício da sua actividade, a Reclamante celebrou, em 9 de Maio de 2011, com a sociedade Leuimport da Madeira - Comércio Automóvel, Lda., um contrato a regular os termos e condições em que a Reclamante prestou, em nome e a pedido daquela sociedade, a garantia autónoma n.º …, a favor do BANIF - Banco Internacional do Funchal, S.A., tendo a embargada prestado a garantia autónoma com o n.º …, a favor daquele banco, no valor de € 562.500,00, correspondente a 75% do capital mutuado, destinando-se a mesma a garantir o cumprimento das obrigações emergentes do contrato de empréstimo celebrado entre aquele Banco e a referida empresa e para garantia a empresa Leuimport da Madeira - Comércio Automóvel, Lda. entregou à Embargada uma livrança em branco, por si subscrita e avalizada pela Dumont dos Santos, SGPS, S.A., aqui Embargante, e por FD… e AA… (Doc.1);
- Que na sequência do incumprimento por parte da Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Lda. das obrigações assumidas com o Beneficiário da garantia, BANIF - Banco Internacional do Funchal, S.A., este resolveu o contrato de mútuo e declarou vencidas todas as prestações, comunicou àquela o vencimento antecipado da obrigação de amortização do capital mutuado e, ao abrigo do disposto na alínea c) dos Termos e Condições do contrato, solicitou à aqui Reclamante o pagamento do montante de € 421.875,00 (DOC. 2);
- Que atendendo às obrigações assumidas pela celebração do contrato e da solicitação efetuada pelo BANIF - Banco Internacional do Funchal, S.A., a Embargada pagou àquele Banco o valor acima referido (DOC. 3);
- Que em consequência do pagamento que vem de ser referido, a Embargada procedeu à interpelação da Empresa, Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Lda. para esta proceder ao pagamento dos montantes supra mencionados (DOC. 4);
- Que não tendo a empresa Leuimport da Madeira - Comércio Automóvel, Lda. pago o valor em dívida, conforme lhe era contratualmente exigido, a Exequente/Embargada interpelou a empresa Leuimport da Madeira - Comércio Automóvel, Lda. e os avalistas, entre os quais a ora Embargante, para o preenchimento da livrança e para procederem ao pagamento das quantias em divida, mediante cartas registadas com aviso de recepção, enviadas para as moradas constantes do contrato subscrito pelas partes, nomeadamente, para procederem ao pagamento do montante global de €507.420,09, relativos ao valor da livrança, e ainda da quantia de € 2.537,10 relativa ao valor do imposto do selo suportado com o preenchimento do título cambiário, sendo que as cartas dirigidas à empresa subscritora, à ora Embargante e ao avalista A… foram entregues aos respectivos destinatários e a carta dirigida ao avalista F… foi devolvida ao remetente, por não ter sido reclamada, sendo que a não recepção da carta, por não reclamada, deve-se a facto a ele única e exclusivamente imputável (DOCS. 5 a 8);
A embargante, como se viu, declarou impugnar “os documentos 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 que estão estritamente relacionados com a prestação da garantia autónoma bancária e da livrança utilizada como título executivo, pois nunca teve conhecimento de tais cartas” (artigo 17.º do req. de 12-03-2019) e “a genuinidade, letra e assinatura do documento 2, da contestação, nos termos do artigo 444.º, do CPC, por se tratar de uma mera cópia onde nem sequer são percetíveis as assinaturas nessas apostas, desconhecendo-se a sua autoria, suficiência de poderes e respetivos registos postais” e, bem assim, declarou impugnar “o pagamento alegado no artigo 18.º, da contestação, e o respetivo documento n.º 3, mais a mais quando se constata que foi junto aos autos um cheque emitido em dezembro de 2014, sacado do ex-Banco Espírito Santo, numa altura em que essa instituição já não operava no mercado, dada a medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal, em 03 de agosto de 2014, como é do conhecimento comum;” (cfr. artigos 18.º e 19.º do req. de 12-03-2019) e “21. Tão-pouco se sabe se esse cheque foi alguma vez apresentado a pagamento e se o seu valor foi efetivamente debitado da conta bancária da embargada, indo assim impugnado, nos termos e para os efeitos do artigo 574.º, n.º 3, do CPC;”.
Contudo, conforme resulta da sentença recorrida, nela não foi considerada provada qualquer factualidade derivando da apreciação sobre os documentos n.ºs. 2 a 8, sendo certo que, não obstante as questões que a embargante suscita sobre tais documentos, elas não foram objeto da apreciação judicial efetuada em 1.ª instância, que considerou que – para além dos factos provados que selecionou – “a restante matéria alegada pelas partes é de direito, conclusiva ou simplesmente irrelevante para a decisão, nos termos que se explanarão na fundamentação de direito”.
A embargante também não se insurge contra tal.
E, de facto, este juízo do Tribunal recorrido não merece qualquer censura, pois, como se disse, na economia dos embargos de executado – onde o embargante suscita questões que colocam em causa o título dado à execução (cfr. artigo 731.º do CPC) - não se divisa que a apreciação do Tribunal sobre os referidos documentos fosse necessária para a formulação de um juízo sobre as questões a decidir nos presentes autos.
Tratam-se, de facto, de elementos laterais, que procuram explicitar a fonte e a natureza da obrigação cartular exigida, mas que, não foram, na realidade, objeto de apreciação valorativa pelo Tribunal, dado que, para fundamentar a respetiva decisão de Direito, não teve de neles se apoiar, sem que ocorresse qualquer violação ou postergação do disposto nos artigos 152.º, 579.º, 595.º, 607.º ou 608.º do CPC.
E, daí, a sua desconsideração no âmbito da apreciação do Tribunal recorrido sobre a factualidade apurada que, aliás, em sede de motivação da decisão de facto teve o cuidado de assinalar o seguinte:
“A decisão do tribunal quanto ao acervo de factos provados resulta exclusivamente dos documentos constantes dos autos: livrança exequenda; escrito particular datado de 09/05/2011 e respectivo termo de autenticação das assinaturas; acta (n.º 12) da Assembleia-Geral da embargante; certidões permanentes da sociedade embargante e da Leuimport Madeira – Comércio Automóvel, SA.”.
Relativamente ao documento n.º 1 junto com a contestação – o contrato celebrado em 09-05-2011 - o mesmo é referenciado expressamente como fonte de convicção do Tribunal sobre os factos provados, mas o mesmo acha-se coberto pelas considerações supra expendidas relativamente ao título executivo, na medida em que o referido documento se acha subscrito pelo representante da ora embargante, facto pessoal que a mesma não pode desconhecer. Os factos alegados a respeito do mesmo mostram-se, pois, admitidos por acordo, dado que o desconhecimento invocado pela embargante (cfr. artigos 1.º e ss. do requerimento apresentado em 12-03-2019) sobre o teor do mesmo, não têm o efeito impugnatório invocado – cfr. artigo 574.º, n.º 3, do CPC.
Sobre a questão recorde-se o que referiu o Tribunal recorrido:
“A embargante impugnou, por desconhecimento, a genuinidade da livrança exequenda, da letra e das respectivas assinaturas.
De igual modo, a embargante afirmou desconhecer o escrito particular datado de 09/05/2011.
Todavia, estando em causa actos imputados a FD…, que integra o Conselho de Administração da embargante, a impugnação/invocação de falsidade por desconhecimento equivale a confissão, tal como decorre do artigo 574º n. º3 do CPC.
Os factos relativos à livrança e ao sobredito escrito particular referem-se a um dos membros do Conselho de Administração da embargante, que não pode naturalmente escudar-se na sua natureza de pessoa colectiva para alegar desconhecimento sobre tais realidades.
Consequentemente, impunha-se dar como provadas as realidades constantes das alíneas A) a I).
Ademais, não tendo sido impugnada nem invocada a falsidade da acta (n.º 12) da Assembleia-Geral da embargante (tendo sido apenas defendido que a mesma não vincula a embargante), também era obrigatório dar como provado o facto constante da alínea J).
A restante factualidade dada como provada (factos K a Q) resulta da análise da certidão permanente e da escritura de constituição da embargante (com o respectivo documento complementar) e, ainda, da análise da certidão permanente da sociedade Leuimport da Madeira – Comércio Automóveis, Ld.ª.
A escritura de constituição da embargante e a respectiva certidão permanente indicam o seu objecto social, a constituição do Conselho de Administração e a “forma de obrigar”.
Por seu turno, a certidão permanente da sociedade Leuimport da Madeira – Comércio Automóveis, Ld.ª é demonstrativa do objecto social, dos órgãos de gerência, do capital social e do valor das quotas tituladas pela embargante, à data de 09/05/2011.
Por este acervo de motivos, não podia ser outra a decisão do tribunal”.
Em face disso, será que – como pretende a embargante – o Tribunal não deveria ter dado como provados os factos selecionados em D, F, G, H, I, J e P?
Relativamente ao facto D, o mesmo resulta – como é claro e já foi evidenciado – do teor literal do título dado à execução, não merecendo censura a sua valoração probatória nos termos consignados pelo Tribunal a quo.
No que concerne aos factos F, G, H e I os mesmos resulta da valoração efetuada sobre o escrito de 09-05-2011, relativamente ao qual, como se viu, a impugnação esgrimida pela embargante não produziu os efeitos por si pretendidos.
E, relativamente ao que foi enunciado em tais pontos de facto – resultando da literalidade dos documentos neles referidos – nenhum relevo tem, como se viu e apenas na estrita medida de poder colocar em crise o ali vertido, qualquer das questões sobre a suficiência de poderes, legitimidade ou validade do reconhecimento notarial.
Nenhum reparo merece, pois, o ali vertido pelo Tribunal recorrido.
Quanto ao facto provado em J, a alegação da embargante foi a seguinte:
“Quanto ao Documento 10 junto naquele mesmo requerimento/contestação, como “Ata número 12” do livro de atas, este tão pouco vincula a ora Apelante, por várias razões que adiante se explanarão;
Vejamos,
Esta ata, como é bom de ver, respeita a uma deliberação da Assembleia-Geral da Apelante;
Sucede que, a decisão de prestação de aval não pode ser tomada pela Assembleia-Geral, mas tão-só pelo Conselho de Administração;
Conforme o preceituado no artigo 406.º, do Código das Sociedades Comerciais (CSC): compete ao conselho de administração deliberar sobre qualquer assunto da administração da sociedade, nomeadamente sobre (…) f) a prestação de cauções e garantias pessoais ou reais pela sociedade.
Sendo o aval uma garantia pessoal, é evidente que a sua prestação sempre teria de ser discutida e aprovada pelo Conselho de Administração da Apelante, o que nunca sucedeu;
A prestação de um aval por parte da aqui Apelante é um ato que onera a sociedade, competindo ao Conselho de Administração deliberar sobre em que termos este é prestado, a que contrato de empréstimo está associada a garantia e todas as respetivas condições;
Quem administra a sociedade é o Conselho de Administração, enquanto órgão autónomo e com competências próprias e especiais; Não são os senhores accionistas quem administra a sociedade, sobretudo numa sociedade anónima;
Tanto assim é que todos os outros avais prestados pela “Dumont dos Santos, SGPS, S.A.” foram sempre discutidos e aprovados pelo Conselho de Administração e nunca pela Assembleia Geral dos acionistas;
Como refere a doutrina dominante, existe um princípio de autonomia decisória que pauta a relação entre os acionistas e os administradores das sociedades do tipo anónima, ou seja, uma absoluta separação funcional entre “ownership and control” (propriedade das participações sociais e controlo);
Nesse sentido, o Conselho de Administração da Apelante era o único órgão estatutário dotado de legitimidade e poder para tomar a decisão de prestação de avais a terceiros;
E numa sociedade do tipo anónima, tal como é a Apelante, os acionistas só deliberam sobre as matérias que lhe são especialmente atribuídas pela lei ou pelo contrato e sobre as que não estejam compreendidas nas atribuições de outros órgãos da sociedade, como estatuído no n.º 2, do artigo 373.º, do CSC;
Ora, resulta dos estatutos da sociedade (cfr. Doc. 1, da p.i.), que cabe ao Conselho de Administração: “c) adquirir, onerar, locar ou permutar quaisquer direitos ou bens, imóveis ou móveis, incluindo quotas, quinhões, ações e obrigações de outras sociedades.”
Nesse sentido, nunca os acionistas poderiam decidir, por si, onerar a sociedade, uma vez que essa competência não lhes é atribuída nem pela lei, nem pelo contrato social (!), posto que os acionistas só podem deliberar sobre matérias de gestão a pedido do órgão de administração, uma vez que a iniciativa de gestão cabe ao Conselho de Administração. (vd. art. 373.º, n.º 3, do CSC).
No que diz respeito à representação da sociedade, a lei diz-nos que o Conselho de Administração tem exclusivos e plenos poderes de representação da sociedade, conforme também preceitua o n.º 2, do artigo 405.º, do CSC;
Para além disso, os poderes de representação são necessariamente exercidos, pelo menos, por dois dos Administradores, ou por um Administrador e outra pessoa com poderes para o efeito, conforme contratualmente estabelecido (cfr. Doc. 1, da PI);
Na verdade, o Doc. 10 junto pela Embargada, à sua contestação, ainda que possa ser uma cópia certificada da ata extraída do livro de atas da Assembleia-Geral, não valida nem torna eficaz o negócio jurídico praticado;
No entendimento do Professor Doutor COUTINHO DE ABREU, In Curso de Direito Comercial, Vol. II, 4ª Edição, referindo-se ao artigo 409.º, do CSC, “se (…) os poderes de representação têm de ser exercidos por dois ou mais administradores, atua sem poderes o administrador que atuar sozinho (“não dentro dos poderes que a lei lhe confere.)” (sublinhado e negrito nossos).
O autor continua afirmando que “(…) não é tarefa espinhosa para os terceiros saber quem pode vincular a sociedade (v. o CRCom., artigo 70.º n.º 1, a), 2 – publicações obrigatórias – 73.º e 74.º - caráter público do registo). O cuidado e esforço exigidos a um terceiro que pretenda confirmar a qualidade de administrador são praticamente os mesmos cuidados e esforços exigidos para se perceber por quem fica a sociedade vinculada (…)”;
E acrescenta, por último, que “(…) quando vigora a conjunção, é a lei que impede a vinculação social por negócios concluídos por um só administrador (arts. 261.º, n.º 1, 408.º, n.º 1), logo, a confiança de terceiros não pode ser invocada, porque não há confiança legítima contra o que dispõe a lei.” (sublinhado e negrito nossos).
Ou seja, vigorando legal e estatutariamente a conjunção maioritária, isto é, a necessidade de a sociedade se vincular com a assinatura da maioria dos Administradores (e sendo, no caso concreto, o Conselho de Administração da Embargante constituído por três Administradores), “(…) tais atos são ineficazes relativamente à sociedade.” (cfr. Coutinho de Abreu, Op. supra)
Assim, é forçoso concluir-se que, nestes atos tendentes à prestação do aval pela ora Apelante, como aquele que ora se discute, apenas o Administrador FD…, interveio;
E fê-lo de forma insuficiente, contra o disposto na lei e nos próprios estatutos, e nesse sentido se conclui que a sociedade não se considera vinculada pelos negócios representados isoladamente por este último;
Por sua vez, a Embargada “Lisgarante, S.A.” tinha o ónus de verificar e confirmar a competência e capacidade de representação dos órgãos sociais de quem estaria a prestar o aval, posto que tinha acesso a todos os documentos para esse efeito;
Não podia descurar a importância da forma de obrigar da Embargante! Principalmente tendo em conta a atividade que exerce, tinha uma obrigação especial acrescida de fazer essa verificação, posto que celebra este tipo de negócios correntemente;
Mesmo que assim não se entenda,
E mesmo que a Assembleia-Geral pudesse deliberar sobre a constituição e imposição deste ónus à “Dumont dos Santos, SGPS, S.A.”, ao contrário daquilo que veio alegado pela Embargada na sua contestação, os acionistas da Apelante não deram qualquer autorização, expressamente e por unanimidade, em Assembleia-Geral convocada para o efeito, para a prestação daquele aval e para a subscrição da livrança que é título executivo nestes autos;
Ao contrário do que foi sugerido pela Embargada, jamais a expressão “(…) mandatam o Dr. FD… para representar a sociedade na outorga da escritura” poderia ser interpretada extensivamente a “todos os atos tendentes à concessão do aval autorizado” (artigo 69.º da contestação);
Na verdade, a prestação do aval que aqui se discute e ainda mais a assinatura de uma livrança em branco (!!), por representar um enorme encargo e pesado ónus no património da sociedade, carecia sempre de uma discussão por parte dos accionistas e sobretudo do Conselho de Administração – que note-se, nem sequer ficou consignada em ata –, parecendo até tratar-se de uma deliberação pouco significativa para os cofres da Apelante, o que não se pode admitir;
Mais a mais,
No corpo do referido documento lê-se que: “(…) a presente Assembleia-Geral foi realizada nos termos do artigo 54.º do Código das Sociedades Comerciais, sem prévia convocatória, tendo sido deliberado por unanimidade dos presentes realizar esta Assembleia (…).”;
Portanto, há uma óbvia contradição entre aquilo que foi alegado no articulado de contestação da Embargada (artigo 69.º), e do documento que a mesma junta para prova desse facto, o que suscita dúvidas legítimas da administração sobre a regularidade da deliberação em apreço;
Na verdade, o também presidente da mesa da Assembleia-Geral, FD…, sem qualquer respeito pelo formalismo a que deveria obedecer uma deliberação em ata, omitiu relevantíssimos elementos que a fazem cair por terra;
Ademais, não resulta do Doc. 1 junto com a contestação qualquer prova de que esteve efetivamente presente ou representado todo o capital social da “Dumont dos Santos, SGPS, S.A”;
Acresce a tudo o exposto que tal deliberação sempre padeceria de várias irregularidades, pois nem contém a discriminação dos elementos respeitantes à subscrição da livrança por parte da Apelante;
Situação que configura um vício procedimental muito grave, porque afastaria dos acionistas o direito de participar de forma informada e esclarecida na deliberação sobre um ato que onera de tal forma o património da “Dumont dos Santos, SGPS, S.A.”;”.
Ora, não obstante esta extensa alegação sobre o aludido documento n.º 10 junto pela embargada, certo é que a embargante reconhece um facto indesmentível: Trata-se de uma cópia certificada da ata extraída do livro de atas da Assembleia-Geral da apelante e, foi a enunciação do ali escrito que, na sua literalidade e materialidade, foi consignado no facto J.
Para o estrito efeito de saber se bem procedeu o Tribunal ao considerar provado o facto J, são irrelevantes todas as demais considerações da apelante, pois, as mesmas não se prendem com o facto vertido naquela alínea, mas sim, com os efeitos substantivos do ali constante para os efeitos de vinculação – ou não –da embargante.
Em face do exposto, conclui-se que bem andou o Tribunal ao considerar enunciados os factos provados em D, F, G, H, I, J da forma como o fez.
Relativamente ao facto P, tem razão a embargante.
De facto, de acordo com a certidão permanente da “Leuimport da Madeira, Lda.” junta aos autos, a respetiva gerência, à data de 09-05-2011, era exercida por FD… e AA…, o qual veio a renunciar às suas funções apenas em 08-05-2015, conforme Insc. 1, Av. 1, AP. 1/20150519;
E de tal documento resulta que, RD…, apenas foi designado gerente daquela sociedade em 04-04-2015, conforme Insc. 5, AP. 1/20150502.
Deve, pois, alterar-se o facto provado em P, passando a ter a seguinte redação:
“À data de 09/05/2011, FD… e AA… exerciam a gerência da sociedade Leuimport da Madera – Comércio Automóvel, Lda.”;
Mas, atento o referido e neste conspecto, a alteração determinada sobre o facto P mostra-se inócua, não determinando alteração do juízo sobre a valoração positiva do facto principal – a identificação dos gerentes da LEUIMPORT à data de 09-05-2011 – que nele, correspondentemente, consta enunciado.
Não se evidenciando erro de julgamento sobre a matéria de facto e, atento o facto de as demais problemáticas colocadas nos autos se restringirem, em exclusivo, a questões de direito, os elementos dos autos viabilizavam, como se fez, o imediato conhecimento do mérito da causa.
Estamos, pois, em condições de responder afirmativamente à questão C) acima colocada.
*
D) Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao ter considerado que FD… interveio com legitimidade na subscrição do título executivo ou que a sua ilegitimidade não seria oponível à exequente, por violação do disposto nos artigos 155.º e 49.º, n.º 1, do Código do Notariado e nos artigos 373.º, n.º 2, 405.º e 406.º, do Código das Sociedades Comerciais?
Subsiste a questão de saber se o Tribunal recorrido decidiu bem ao aplicar o Direito aos factos apurados.
Entende a embargante negativamente, considerando que ocorreu erro de julgamento por o tribunal não ter considerado a ilegitimidade de FS… na subscrição do título ou que a sua ilegitimidade não seria oponível à exequente, considerando que foram violados os artigos 155.º e 49.º, n.º 1 do Código do Notariado e os artigos 373.º, n.º 2, 405.º e 406.º do Código das Sociedades Comerciais.
Vejamos:
Lê-se na decisão recorrida, nomeadamente, o seguinte:
“(…) não estando prescrito o direito de acção (artigo 70º da LULL), conclusão a que facilmente se chega pelo confronto das datas do vencimento da livrança e da interposição da acção, não necessitava a exequente de alegar a relação material subjacente nem tampouco de explicar a natureza da dívida ou o valor peticionado (cfr. artigo 703º n. º1 c)).
Uma livrança subscrita em branco, uma vez preenchida, constitui título executivo, não tendo de ser acompanhada da convenção de preenchimento, pois que o título cambiário vale como título executivo, constituindo um documento particular assinado pelo devedor, que importa a constituição de uma obrigação pecuniária.
Em segundo lugar, no que respeita à invocada nulidade da prestação da garantia e à eventual falta vinculação da embargante, é mister trazer à liça os artigos 6º n. º3 e 409º n.ºs 1 e 2 do CSC.
Nos termos do artigo 6º n. º3 do CSC, considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
Ora, detendo a embargante um capital social superior a 95% da sociedade garantida (à data de 09/05/2011), o que lhe confere uma relação de domínio (artigo 486º n. º2 a) do CSC), não poderá qualificar-se contrária ao seu fim a prestação do aval em causa nos autos.
No que tange à vinculação da embargante, o artigo 409º n.ºs 1 do CSC é claro ao dispor que “os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas”. O n. º2 deste artigo consagra ainda que “a sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objecto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos accionistas”. Este preceito estabelece dois regimes distintos: um para o caso de actos praticados pelos administradores fora dos limites impostos pelo objecto da sociedade (n.º 2) e outro para o caso de actos praticados pelos administradores, em representação da sociedade e dentro dos limites que a lei lhes confere, não obstante as limitações do pacto social que não se reportem ao objecto social (n. º1). O caso em crise insere-se no perímetro do artigo 409º n. º1 do CSC, na medida em que a eventual inobservância da “forma de obrigar” não consubstancia uma violação do objecto social da embargante, pelo que nunca seria oponível à exequente. Este regime visa acautelar os interesses de terceiros, por forma a diminuir os riscos de serem confrontados com situações em que a representação aparente não coincide com as regras estatutárias ou com as deliberações entretanto tomadas pelos sócios.
Neste sentido, entre outros, pronunciou-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/03/2006, acessível in www.dgsi.pt: “O art. 409, nº2, do C.S.C. veio consagrar a prevalência dos interesses da sociedade em relação terceiros, quanto aos actos praticados pelo administradores fora dos limites impostos pelo objecto societário. Em tais situações, desde que se mostre registada a cláusula relativa ao objecto social, a sociedade não se considerará vinculada, se o terceiro conhecer que o administrador excedeu esses limites. Mas semelhante cautela não foi expressa quanto à intervenção dos administradores, em representação da sociedade, resultando do mencionado art. 409, nº1, a vinculação da sociedade anónima pelos actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos limites que a lei lhes confere, não obstante as limitações constantes do pacto social que não se reportem ao objecto social. Aos interesses da sociedade ou dos titulares do respectivo capital sobrepõem-se os de terceiros que com a sociedade se relacionam, mantendo-se a validade dos efeitos jurídicos dos actos outorgados em nome da sociedade, dentro dos limites do objecto social, apenas por um dos administradores, ainda que sem a intervenção de outro ou outros, exigida pelos estatutos. É claro que fica salvaguardado à sociedade o direito de responsabilizar o administrador que interveio sem os demais, pelos danos causados, nos termos do art. 72 da C.S.C., bem como o direito dos sócios agirem directamente, em conformidade com o disposto no art. 77 do mesmo diploma”.
Neste sentido, pronunciou-se ainda o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/09/2009, acessível in www.dgsi.pt: “A exigência estatutária da intervenção de dois administradores para obrigar a sociedade anónima não é oponível a terceiro legítimo portador de livrança em que, por essa sociedade e como subscritora da mesma, apenas assina um seu administrador, a não ser que actue fora do objecto social e essa situação seja conhecida ou cognoscível (tendo em conta as circunstâncias) do terceiro portador. Tal facto não constitui vício de forma despoletador da nulidade do aval dado, por terceiro, à sociedade subscritora”.
E ainda que assim não se entendesse, estando demonstrado que os accionistas da embargante, reunidos em Assembleia-Geral, votaram favoravelmente a prestação do aval, sempre haveria de considerar a existência de abuso do direito, na modalidade “venire contra factum proprium” (cfr. artigo 334º do CC), na medida em que a actuação da embargante criou naturalmente a expectativa na exequente de que pretendia prestar o aval.
Por último, cumpre referir que, para além dos argumentos já conhecidos, não foi alegado qualquer (outro) facto concreto passível de integrar a excepção peremptória de preenchimento abusivo da livrança exequenda, cujo ónus de alegação e demonstração cabia exclusivamente à embargante (cfr. artigo 342º n. º2 do CC).
Em suma, mesmo que viessem a ser dados como provados todos os factos alegados pela embargante, nunca poderia ser declarada a nulidade da garantia nem tampouco poderia concluir-se que esta não se encontra vinculada pela actuação do administrador FD….
Assim, à luz de todos estes considerandos, nada mais resta ao tribunal senão julgar parcialmente procedente a oposição à execução, sem necessidade de produção ulterior de prova, já que o sentido da decisão final de forma algum seria alterado.”.
A embargante não esclarece na alegação em que assenta a nulidade que reporta ao reconhecimento presencial da assinatura de FS…. Contudo, entende que o mesmo é nulo, por violação do disposto nos artigos 155.º e 49.º do Código do Notariado.
No requerimento de 12-03-2019, a embargante tinha invocado, nomeadamente, o seguinte:
“8. Transcrevendo o que é referido no reconhecimento presencial da assinatura, FD… assinou “(…) na qualidade de Vogal do Conselho de Administração da sociedade Dumont dos Santos, SGPS, S.A.”, com poderes para o ato, qualidade e suficiência de poderes que certificado em face da certidão permanente (…) e da ata número 12 lavrada aos 23/053/2011”. (nosso sublinhado)
9. Ora, por razões que não são imputáveis à aqui Embargante, a assinatura isolada de um dos seus Administradores foi equivocamente reconhecida como suficiente para representar a sociedade, o que não se concebe!
10. É que a Senhora Adjunta do Notário que reconheceu essa assinatura tinha todos os elementos para concluir que a assinatura isolada desse Administrador não se bastava para representar nem vincular a sociedade ao acto em questão – a saber, a prestação do aval e subscrição de livrança – desde logo pela consulta da própria certidão permanente que determina expressamente com quantos administradores pode a sociedade ficar vinculada:”.
Vejamos se mostra incumprida alguma prescrição notarial.
O artigo 155.º do Código do Notariado estabelece o seguinte:
“1 - O reconhecimento deve obedecer aos requisitos constantes da alínea a) do n.º 1 do artigo 46.º e ser assinado pelo notário.
2 - Os reconhecimentos simples devem mencionar o nome completo do signatário e referir a forma por que se verificou a sua identidade, com indicação de esta ser do conhecimento pessoal do notário, ou do número, data e serviço emitente do documento que lhe serviu de base.
3 - Os reconhecimentos com menções especiais devem conter, além dos requisitos exigidos no número anterior, a menção dos documentos exibidos e referenciados no termo.
4 - O reconhecimento da assinatura a rogo deve fazer expressa menção das circunstâncias que legitimam o reconhecimento e da forma como foi verificada a identidade do rogante.
5 - É aplicável à verificação da identidade do signatário ou rogante o disposto no artigo 48.º.
6 - Os abonadores que intervierem em reconhecimentos presenciais devem assiná-los antes do notário”.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 49.º do Código do Notariado estabelece sobre a representação de pessoas colectivas e sociedades que:
“A prova documental da qualidade de representante de pessoa colectiva sujeita a registo e da suficiência dos seus poderes faz-se por certidão do registo comercial, válida por um ano, sem prejuízo de o notário poder solicitar ainda outros documentos por onde complete a verificação dos poderes invocados”.
Convoque-se, ainda, o disposto no artigo 46.º do Código do Notariado:
1 - O instrumento notarial deve conter:
a) A designação do dia, mês, ano e lugar em que for lavrado ou assinado e, quando solicitado pelas partes, a indicação da hora em que se realizou;
b) O nome completo do funcionário que nele interveio, a menção da respectiva qualidade e a designação do cartório a que pertence;
c) O nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, bem como das pessoas singulares por estes representadas, a identificação das sociedades, nos termos da lei comercial, e das demais pessoas colectivas que os outorgantes representem, com menção, quanto a estas últimas, das suas denominações, sedes e números de identificação de pessoa colectiva;
d) A referência à forma como foi verificada a identidade dos outorgantes, das testemunhas instrumentárias e dos abonadores;
e) A menção das procurações e dos documentos relativos ao instrumento que justifiquem a qualidade de procurador e de representante, mencionando-se, nos casos de representação legal e orgânica, terem sido verificados os poderes necessários para o acto;
f) A menção de todos os documentos que fiquem arquivados, mediante a referência a esta circunstância, acompanhada da indicação da natureza do documento, e, ainda, tratando-se de conhecimento do imposto municipal de sisa, a indicação do respectivo número, data e repartição emitente;
g) A menção dos documentos apenas exibidos com indicação da sua natureza, data de emissão e entidade emitente e, ainda, tratando-se de certidões de registo, a indicação do respetivo número de ordem ou, no caso de certidão permanente, do respetivo código de acesso;
h) O nome completo, estado e residência habitual das pessoas que devam intervir como abonadores, intérpretes, peritos médicos, testemunhas e leitores;
i) A referência ao juramento ou compromisso de honra dos intérpretes, peritos ou leitores, quando os houver, com a indicação dos motivos que determinaram a sua intervenção;
j) As declarações correspondentes ao cumprimento das demais formalidades exigidas pela verificação dos casos previstos nos artigos 65.º e 66.º;
l) A menção de haver sido feita a leitura do instrumento lavrado, ou de ter sido dispensada a leitura pelos intervenientes, bem como a menção da explicação do seu conteúdo;
m) A indicação dos outorgantes que não assinem e a declaração, que cada um deles faça, de que não assina por não saber ou por não poder fazê-lo;
n) As assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento.
2 - Se no acto intervier um substituto legal, no impedimento ou falta do notário, deve indicar-se o motivo da substituição.
3 - Nas escrituras de repúdio de herança ou de legado deve ser mencionado, em especial, se o repudiante tem descendentes.
4 - Se algum dos outorgantes não for português, deve fazer-se constar da sua identificação a nacionalidade, salvo se ele intervier na qualidade de representante, ou na de declarante em escritura de habilitação ou justificação notarial.
5 - O disposto na alínea e) do n.º 1 não é aplicável aos pais que outorguem na qualidade de representantes de filhos menores.
6 - Os instrumentos de actas de reuniões de órgãos sociais são lavrados pelo notário, com base na declaração de quem dirigir a assembleia, devendo ser assinados pelos sócios presentes e pelo notário, quando relativos a sociedades em nome colectivo ou sociedades por quotas, e pelos membros da mesa e pelo notário quanto às demais.
7 - O notário pode inserir, nas actas a que se refere o número anterior, qualquer declaração dos intervenientes que lhe seja requerida para delas constar”.
Sobre a nulidade dos atos notariais interessam ainda os artigos 70.º e 71.º do Código do Notariado onde se dispõe o seguinte:
Artigo 70.º
Casos de nulidade por vícios de forma e sua sanação
1 - O acto notarial é nulo, por vício de forma, apenas quando falte algum dos seguintes requisitos:
a) A menção do dia, mês e ano ou do lugar em que foi lavrado;
b) A declaração do cumprimento das formalidades previstas nos artigos 65.º e 66.º;
c) A observância do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 41.º;
d) A assinatura de qualquer intérprete, perito, leitor, abonador ou testemunha;
e) A assinatura de qualquer dos outorgantes que saiba e possa assinar;
f) A assinatura do notário.
g) A observância do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º.
2 - As nulidades previstas nas alíneas a), b), d), e), f) e g) do número anterior consideram-se sanadas, conforme os casos:
a) Se, em face da omissão do dia, mês, ano ou lugar da celebração do acto, for possível proceder ao averbamento nos termos previstos no n.º 7 do artigo 132.º;
b) Se as partes declararem, por forma autêntica, que foram cumpridas as formalidades previstas nos artigos 65.º e 66.º;
c) Se os intervenientes acidentais, cujas assinaturas faltam, se encontrarem devidamente identificados no acto e declararem, por forma autêntica, ter assistido à sua leitura, explicação e outorga e que não se recusaram a assiná-lo;
d) Se os outorgantes, cujas assinaturas faltam, declararem, por forma autêntica, que estiveram presentes à leitura e explicação do acto, que este representa a sua vontade e que não se recusaram a assiná-lo;
e) Se o notário cuja assinatura está em falta declarar expressamente, através de documento autêntico, que esteve presente no acto e que, na sua realização, foram cumpridas todas as formalidades legais;
f) Se em face da inobservância do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º, ou da incorreta menção dos requisitos nele exigidos, for comprovado, mediante exibição da certidão de registo ou do correspondente código de acesso, que a mesma já existia à data da celebração do ato.
Artigo 71.º
Outros casos de nulidade
1 - É nulo o acto lavrado por funcionário incompetente, em razão da matéria ou do lugar, ou por funcionário legalmente impedido, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil.
2 - Determina também a nulidade do acto a incapacidade ou a inabilidade dos intervenientes acidentais.
3 - O acto nulo por violação das regras de competência em razão do lugar, por falta do requisito previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo anterior ou por incapacidade ou inabilidade de algum interveniente acidental pode ser sanado por decisão do respectivo notário, nas seguintes situações:
a) Quando for apresentada declaração, passada pelo notário competente, comprovativa da sua ausência na data em causa e as partes justificarem, por escrito, o carácter urgente da celebração do acto;
b) Quando as partes declararem, por forma autêntica, que as palavras inutilizadas, quaisquer que elas fossem, não podiam alterar os elementos essenciais ou o conteúdo substancial do acto;
c) Quando o vício se referir apenas a um dos abonadores ou a uma das testemunhas e possa considerar-se suprido pela idoneidade do outro interveniente”.
Ora, todos os elementos prescritos por lei para o reconhecimento de assinatura verificada constam dos documentos de reconhecimento juntos aos autos não se vislumbrando que tenha ocorrido alguma ofensa aos preceitos legais atinentes, nem que, a existir alguma falta de forma, a mesma determinasse a nulidade do ato.
A identidade, qualidade de intervenção e poderes foram declarados por atestados notarialmente, o que se mostra suficiente para a validade do reconhecimento, nos termos em que o mesmo teve lugar, independentemente da sua valia substancial.
Mas, a igual conclusão se chegaria pela aferição da natureza autêntica do documento de reconhecimento em questão.
Na realidade, em conformidade com o disposto no n.º 1, do artigo 375.º do CC, atento o reconhecimento presencial das assinaturas, as assinaturas dos documentos em questão têm-se por verdadeiras.
Como refere Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório Material – Comentado; Almedina, 2020, p. 160), “quando assim sucede, o atestador enuncia um facto que foi objeto das suas perceções, qual seja o de que o autor do documento o assinou na sua presença. Deste modo, o termo de reconhecimento integra um ato autêntico, assistindo-lhe a força probatória do documento autêntico, no sentido de que fica feita a prova plena da autoria do documento. Essa prova plena só será afastada pela arguição e prova da falsidade do reconhecimento (cf. art. 372.º), v.g. que o mesmo não ocorreu na presença de quem o atestou”.
Ora, apesar da nulidade que lhes foi assacada pela embargante, nenhuma alegação foi produzida no sentido de questionar a veracidade dos documentos de reconhecimento em questão, permanecendo, pois, intocada a veracidade das assinaturas que foram objeto da formulação desse ato notarial.
Vejamos, agora, se a decisão recorrida se mostra violadora das disposições contidas nos artigos 373.º, n.º 2, 405.º e 406.º do Código das Sociedades Comerciais.
Invoca a embargante que “a decisão de prestação de aval não pode ser tomada pela Assembleia-Geral, mas tão-só pelo Conselho de Administração; Conforme o preceituado no artigo 406.º, do Código das Sociedades Comerciais (CSC): compete ao conselho de administração deliberar sobre qualquer assunto da administração da sociedade, nomeadamente sobre (…) f) a prestação de cauções e garantias pessoais ou reais pela sociedade.
Sendo o aval uma garantia pessoal, é evidente que a sua prestação sempre teria de ser discutida e aprovada pelo Conselho de Administração da Apelante, o que nunca sucedeu;
A prestação de um aval por parte da aqui Apelante é um ato que onera a sociedade, competindo ao Conselho de Administração deliberar sobre em que termos este é prestado, a que contrato de empréstimo está associada a garantia e todas as respetivas condições;
Quem administra a sociedade é o Conselho de Administração, enquanto órgão autónomo e com competências próprias e especiais; Não são os senhores accionistas quem administra a sociedade, sobretudo numa sociedade anónima;
Tanto assim é que todos os outros avais prestados pela “Dumont dos Santos, SGPS, S.A.” foram sempre discutidos e aprovados pelo Conselho de Administração e nunca pela Assembleia Geral dos acionistas;
Como refere a doutrina dominante, existe um princípio de autonomia decisória que pauta a relação entre os acionistas e os administradores das sociedades do tipo anónima, ou seja, uma absoluta separação funcional entre “ownership and control” (propriedade das participações sociais e controlo);
Nesse sentido, o Conselho de Administração da Apelante era o único órgão estatutário dotado de legitimidade e poder para tomar a decisão de prestação de avais a terceiros;
E numa sociedade do tipo anónima, tal como é a Apelante, os acionistas só deliberam sobre as matérias que lhe são especialmente atribuídas pela lei ou pelo contrato e sobre as que não estejam compreendidas nas atribuições de outros órgãos da sociedade, como estatuído no n.º 2, do artigo 373.º, do CSC;
Ora, resulta dos estatutos da sociedade (cfr. Doc. 1, da p.i.), que cabe ao Conselho de Administração: “c) adquirir, onerar, locar ou permutar quaisquer direitos ou bens, imóveis ou móveis, incluindo quotas, quinhões, ações e obrigações de outras sociedades.”
Nesse sentido, nunca os acionistas poderiam decidir, por si, onerar a sociedade, uma vez que essa competência não lhes é atribuída nem pela lei, nem pelo contrato social (!), posto que os acionistas só podem deliberar sobre matérias de gestão a pedido do órgão de administração, uma vez que a iniciativa de gestão cabe ao Conselho de Administração. (vd. art. 373.º, n.º 3, do CSC)”.
O artigo 373.º, n.º 2, reporta-se à forma e âmbito das deliberações dos accionistas, prescrevendo que “os accionistas deliberam sobre as matérias que lhes são especialmente atribuídas pela lei ou pelo contrato e sobre as que não estejam compreendidas nas atribuições de outros órgãos da sociedade”.
Ora, a questão que nos parece ser relevante é a de saber se tais invocações são oponíveis à embargada, terceiro à vida social da embargante?
O título a que respeitam os autos é uma livrança junta aos autos de execução, respeitante a “Titulação da garantia autónoma …”, suscrita por Leuimport da Madeira – Com- Automóvel, Ld.ª”e no seu verso consta aposta (entre outras) a assinatura de FD…, por cima do carimbo com os dizeres “Dumont dos Santos SGPS, SA – A Administração”, e com a indicação de “bom para aval à empresa subscritora”.
A livrança constitui um título de crédito à ordem que consubstancia uma promessa de pagamento pela qual o emitente, subscritor ou sacador se compromete a pagar determinada importância em certa data a certa pessoa. Ao subscritor incumbe assinar a livrança, assumindo a respetiva obrigação (art.º 75.º, n.º 7, da LULL), tornando-se responsável na mesma medida que o aceitante de uma letra (art.º 78.º da LULL). Por conseguinte, assinando a livrança, torna-se um obrigado cambiário que, em primeira linha, responde pelo montante titulado no título: "Com o aceite, o aceitante assume uma obrigação abstrata que nasce exclusivamente do ato formal da sua assinatura." (Ac. TRL de 30.03.62, in Jur. Rel., 8.º, 289 e Pereira Coelho, Lições de Direito Comercial, 3.º, 9)
A livrança constitui um título de crédito rigorosamente formal, onde avultam, entre outros, os princípios da literalidade (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspecção do título cambiário), da incorporação (a obrigação e o título constituem uma unidade), da autonomia (do direito do portador que é considerado credor originário), da independência (recíproca das obrigações que estão incorporadas no título) e da abstracção (a livrança é independente da sua «causa debendi» - cfr. Abel Delgado; Lei Uniforme sobre Letras e Livranças; 6ª ed., 1990, p. 105).
Sendo o subscritor da livrança responsável nos mesmos termos do aceitante de uma letra (cfr. artigo 78º, I, da L.U.L.L.), aquele obriga-se, desde logo, a pagá-la no vencimento (cfr. Abel Delgado; ob. cit., p. 133 e Oliveira Ascenção; Direito Comercial; vol. III, 1992, p. 135 e ss.).
Assim, os subscritores de uma livrança estão, em princípio, vinculados ao pagamento da mesma.
Como se disse, uma das características dos títulos de crédito é a da abstracção. Contudo, a criação da obrigação cartular não aparece por si só, antes pressupõe uma relação jurídica anterior, que constitui a chamada “relação subjacente, fundamental ou causal”, causa remota da assunção da obrigação cambiária (assim, vd. Abel Delgado; ob. cit., p. 105).
Contudo, por força do princípio da abstracção, a causa debendi em que se traduz a obrigação subjacente encontra-se separada do negócio jurídico cambiário, decorrendo de uma convenção extra-cartular.
O que isto significa é que a obrigação cartular vincula, independentemente, dos vícios de que padeça a sua causa: as excepções causais são inoponíveis ao portador do título, pois, não assentam nele, sendo-lhes estranhas.
Só assim não será no caso das chamadas «relações imediatas» (isto é, aquelas que se estebeleçam entre um dos subscritores do título e o sujeito cambiário imediato) dado que, entre essas pessoas é conhecido o negócio causal (subjacente à emissão dos títulos de crédito) e os eventuais vícios de que ele padeça. Isso sucede, por exemplo, nas relações subscritor-tomador/ tomador-primeiro endossado, etc.
Isso mesmo é, claramente, reafirmado no artigo 17º da L.U.L.L. (preceito aplicável às livranças por força do artigo 77º), o qual dispõe que: “As pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opôr ao portador, as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”.
O aval, por sua vez, “é um negócio jurídico cambiário autónomo, que faz nascer uma obrigação materialmente autónoma, dependente da obrigação principal apenas quanto ao aspeto formal” (assim, Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, volume III, Universidade de Coimbra, 1975, p. 215).
Nos termos do art. 30.º da LULL (aplicável às livranças, ex vi do seu art. 77.º), o aval é o ato pelo qual um terceiro ou um signatário da letra garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores.
A função do aval “é uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscrito cambiário, a cobri-la e caucioná-la. (...) O fim próprio do aval, a sua função específica, é garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário; a responsabilidade de garantia é primária” (assim, Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, 7.ª edição, p. 167).
Por via da sua independência e autonomia, a obrigação do avalista, firmada perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente, mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma. O que quer dizer que, tudo o que ocorra na relação subjacente não possui a virtualidade de se transmitir à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária.
Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as exceções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento (assim, Vaz Serra, R.L.J, Ano 113.º, p. 186, nota 2; entre muitos outros, Ac. STJ de 19/6/2006, CJ. Ac. STJ, XV, 2º, 118.).
Nos termos do disposto no art. 32.º da LULL, o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, ou seja, é considerado responsável pelo pagamento da mesma forma que o aceitante.
De acordo com o mencionado artigo 32.º da LULL, não é estabelecida qualquer distinção entre o aceitante e o avalista, que responderá pelo pagamento do título, solidariamente com os demais subscritores: Conforme deriva do art. 47.º da LULL, os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador, que tem direito a acionar todas essas pessoas, individual ou coletivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram.
A obrigação do avalista molda-se na obrigação avalizada, mas a responsabilidade a cargo daquele é autónoma da do seu avalizado, não dependendo, nem da existência, nem da validade da obrigação avalizada, não se confundindo, assim, com a garantia da fiança.
Como refere Oliveira Ascensão (Direito Comercial - Títulos de Crédito, III, 1992, p. 202): “A obrigação do avalista é autónoma, não é por isso um co-aceitante. Mas isso não significa que essa obrigação seja independente da do aceitante de maneira que se confunda com a situação dos outros obrigados cambiários. O avalista responde (...) na medida objectiva da obrigação do avalizado nos termos e na quantidade em que este seria responsável. Se mesmo que a obrigação não subsistisse contra o avalizado a obrigação do avalista se mantém, por maioria de razão se mantém quando não subsiste contra terceiros, em consequência de não ter havido protesto, mas subsiste contra o aceitante”.
Ainda esse mesmo Autor (ob. cit., p. 204) considera que há dois tipos de responsáveis cambiários: Uma coisa são os responsáveis directos, outra os responsáveis por via de regresso: Aos responsáveis por via de regresso cabe uma responsabilidade que tem fonte diversa da do sacado/aceitante. Eles podem exigir a comprovação solene e literal do incumprimento por parte do aceitante. “Já o avalista toma uma responsabilidade directa: não é aceitante mas responde no lugar do aceitante. Não tem uma expectativa de que o protesto seja realizado, porque a sua obrigação envolve já tudo aquilo porque o aceitante podia responder. A declaração formal de que não houve pagamento é neste caso irrelevante”. Daí que o artº 53º da Lei Uniforme só excepcione o aceitante, precisamente porque pressupõe que o avalista responde por tudo o que responde o aceitante.
Conforme explica Pedro Pais de Vasconcelos (“Aval, informação e responsabilidade”, in Colóquios STJ – Comércio, Sociedades e Insolvências, CEJ, Abril 2020, pp- 56-57, consultado em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/04/ebook_cej_coloquioinsolvencias_abr2020.pdf):
“No campo extracambiário, regem as regras gerais dos pactos, no que tange ao pacto de preenchimento e ao pacto de aval, e regem os negócios subjacentes. Mas independentemente da enorme diversidade que podem assumir as convenções subjacentes, importa desde logo distinguir dois tipos de situações: aquelas em que o avalista é um verdadeiro terceiro face à relação subjacente e ao ato cambiário relacionado com o aval, e os casos em que o avalista participa nessa relação subjacente. Ambas as situações são frequentes, mas importa distinguir.
Há casos em que o avalista é mesmo terceiro, em que não participou no contrato ou na relação de negócio que é subjacente ao ato cambiário do avalizado. O avalizado não tem de ser necessariamente o sacador ou o aceitante da letra nem o subscritor da livrança. É mais frequente que assim seja, mas pode ser outro interveniente na cadeia cambiária, por exemplo, um qualquer dos endossantes.
Há casos em que o avalista é um puro terceiro, tanto formalmente como substancialmente. Nestes casos, não existe, entre o avalista e o portador que cobra o título, qualquer relação subjacente; o avalista e o exequente do aval estão no que, imprópria, mas tradicionalmente, se designa por “relações mediatas”.
Noutros casos, muito frequentes, o avalista participou no contrato, na relação jurídica ou mesmo no negócio que constituem a relação subjacente ao ato cambiário do avalizado. Nesses casos, existe uma relação tripartida, trilateral ou triangular que envolve o portador que cobra otítulo, o avalizado (subscritor, ou sacador, ou aceitante, ou endossante) que deve o título e o avalista. Nestes casos, o avalista encontra-se naquilo que tradicionalmente se designa por “relações imediatas” e pode deduzir, contra o portador exequente, exceções emergentes da relação subjacente em que é parte conjuntamente com ele”.
Nesta matéria foi lavrado o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 4/2013 (Ac. STJ de 11/12/2012), dele se alcançando, designadamente, o seguinte: “tratando-se de uma obrigação autónoma, independente da relação subjacente, não poderá o avalista valer-se da renovação/prorrogação do contrato de abertura de crédito para se desobrigar de uma obrigação que, pela sua abstração e literalidade, se emancipou da relação subjacente para subsistir como obrigação independente e autónoma.
O avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, mas tão só ao pagamento da quantia titulada no título de crédito. A obrigação firmada pelo avalista é perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente.
Do que ficou dito supra, o avalista não se obriga perante o avalizado, mas sim perante o titular da letra ou livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança.
A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária, perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra. A circunstância da relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária.
A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal”.
Em suma, pode dizer-se, como refere Pedro Pais de Vasconcelos (“Aval, informação e responsabilidade”, in Colóquios STJ – Comércio, Sociedades e Insolvências, CEJ, Abril 2020, p. 53, consultado em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/04/ebook_cej_coloquioinsolvencias_abr2020.pdf) que:
“A posição cambiária do avalista é duma simplicidade e singeleza como dificilmente se encontra fora do direito cambiário: o avalista tem de pagar, sem discutir. Só pode recusar-se no caso de a sua assinatura ser falsa ou de vício de forma (artigo 32.º II LULL), ou em caso de prescrição (artigo 70.º LULL)”.
Ora, conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-12-2016 (ECLI:PT:TRC:2016:1419.13.2TBMGR.A.C1.D3, http://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2016:1419.13.2TBMGR.A.C1.D3, rel. ANTÓNIO CARVALHO MARTINS)
1.- Em princípio, o avalista da subscritora de uma livrança posiciona-se fora das relações imediatas que se estabelecem entre o emitente desta e a subscritora, encontrando-se apenas numa relação de imediação com a subscritora avalizada.
2.- Mas já estará naquelas relações imediatas, podendo defender-se com os vícios da relação fundamental perante o credor-emitente-portador da livrança, se, tendo assinado o título em branco, for envolvido por esse emitente no pacto de preenchimento, ou com ele participar numa relação extra-cartular que interfira nas condições para esse preenchimento.
3. - Em tais circunstâncias, o avalista pode sempre opor ao credor cambiário o pagamento total ou parcial do crédito causal da emissão da livrança, ainda que esse pagamento tenha sido efectuado pelo avalizado, mas sem que, todavia, se possa furtar à averiguação circunstancial de enquadramento daquele excepcionado pagamento, ou da sua viabilidade.
4.- A obrigação do avalista, como obrigação cambiária, é autónoma e independente da do avalizado – com a ressalva da projecção do vício de forma desta sobre aquela -, embora a ela equiparada.
5.- A responsabilidade do avalista é, em suma, dada pela medida objectiva da do avalizado, mas independente da deste, sendo ainda aquele, quando avalista do aceitante da letra ou do subscritor da livrança –-a par de quem se colocou e com quem se solidarizou perante os outros obrigados cambiários -, obrigado directo e não de regresso.
6.- Ao dar o aval ao subscritor de livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento, assumindo mesmo o risco de esse contrato não ser respeitado e de ter de responder pela obrigação constante do título como ela «estiver efectivamente configurada» - arts. 10º e 32º-2.
7.- Na ausência de violação do contrato de preenchimento, ou de outro pacto posterior, o preenchimento do título tem de considerar-se, em princípio, legítimo, dele decorrendo a perfeição da obrigação cambiária incorporada na letra e a correspondente exigibilidade, nomeadamente em relação aos avalistas do aceitante que se apresentam como que «co-aceitantes» e, com ele, responsáveis solidários.
8.- Quando o avalista tenha tomado parte no pacto de preenchimento de livrança em branco, subscrevendo-o, devam ser qualificadas de imediatas as relações entre ele e o tomador ou beneficiário da livrança – pois que não há, nesse caso, entre o avalista e o beneficiário do título interposição de outras pessoas -, o que confere ao dador da garantia legitimidade para arguir a excepção, pessoal, da invalidade do pacto de preenchimento.
9.- Para que se coloque uma questão de preenchimento abusivo, enquanto excepção pessoal do obrigado cambiário, é necessário que se demonstre a existência de um acordo, em cuja formação tenham intervindo o avalista e o tomador-portador do título, acordo que este último, ao completar o respectivo preenchimento tenha efectivamente desrespeitado”.
No caso em apreço, não foi colocada pela embargante qualquer questão sobre o pacto de preenchimento do título, nem sobre os montantes nele inscritos – que poderia configurar a exceção do preenchimento abusivo de livrança em branco – cfr. artigos 10.º e 77.º da LULL – apenas tendo sido invocado que a subscrição cambiária se mostra violadora dos mencionados artigos 373.º, n.º 2, 405.º e 406.º do CSC, determinando a nulidade do aval prestado.
Será assim?
Conforme decorre do documento n.º 10 junto com a contestação de embargos, todos os accionistas da embargante deliberaram no dia 23-03-2011, por um lado, aprovar a prestação de aval à Leuimport perante a ora embargada e mandatar o administrador FS… para representar a sociedade na outorga da escritura, obviamente, se incluindo em tal designação a realização dos actos inerentes a tal fim.
Ao contrário do que pugna a apelante, o que foi mandatada foi a intervenção do representante da embargante na celebração do negócio, nesse sentido se compreendendo a referência à celebração do acto previsto – a escritura – para o negócio de prestação do aval.
De todo o modo, alega a embargante que o seu pacto social determina expressamente com quantos administradores pode a sociedade ficar vinculada:
“A) Assinaturas conjuntas de dois administradores;
B) Assinaturas conjuntas de um administrador e de um mandatário ou procurador da sociedade, no cumprimento do respetivo mandato;
C) Assinaturas conjuntas de um administrador e de um administrador delegado, dentro dos limites dos seus poderes.”;
Mais entende a embargante que, assim, vigora imperativamente, a regra da conjuntividade no que toca à forma de obrigar a sociedade aqui Apelante, sendo que, “em circunstância alguma a sociedade poderia vincular-se com apenas uma única assinatura, pois nunca foi essa a vontade manifestada pelos acionistas no respetivo pacto social”.
Vejamos:
Como estabelece o artigo 408.º, n.º 1, do CSC, a sociedade fica “vinculada pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos administradores ou por eles ratificados, ou por número menor destes fixado no contrato de sociedade”.
A embargante vincula-se nos termos mencionados no pacto.
Mas estabelece o artigo 409.º, n.º 1, do CSC (à semelhança do que estabelece para as sociedades por quotas – artigo 260.º, n.º 2) que “os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas”.
E dispõe o nº 3 desse artigo que “os administradores obrigam a sociedade, apondo a sua assinatura, com a indicação dessa qualidade”.
Não está em causa que FS… era administrador da embargante e avalista, nem que actuou em sua representação e dentro dos poderes de administrador (que incluem todos os actos relativos a direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do fim social, salvo os proibidos por lei – ver artigos 6.º, n.º 1 e 405.º, n.º 2, do CSC), nos limites do objecto societário.
Por outro lado, na livrança, FS… apôs a sua assinatura com a indicação da qualidade de administrador da sociedade representada (consta o carimbo com a menção: “A Administração”), observando a forma de vinculação das sociedades (anónimas).
São inoponíveis perante terceiros cláusulas estatutárias limitativas dos poderes dos administradores. As limitações oponíveis são apenas as que respeitam ao objecto social (fixado nos estatutos) e se verificada a situação (conhecimento do terceiro com quem a sociedade contrata) prevista no nº 2 do artigo 409º do CSC.
Portanto, independentemente do número de administradores que intervenham no negócio, desde que estes actuem dentro dos respectivos poderes de administrador, fica a sociedade vinculada.
Os actos praticados pelos administradores em nome da sociedade e dentro dos seus poderes de administração vinculam-na perante terceiros, independentemente das limitações constantes do pacto social ou das deliberações dos sócios que, nesse aspecto, são inoponíveis (só produzindo efeitos nas relações internas - entre o administrador e a sociedade - em caso de violação dessas limitações por aquele).
Consequentemente, não obstante os estatutos da subscritora estipularem que esta se obriga nos termos acima mencionados, a assinatura numa livrança, em sua representação, por um só administrador vincula-a pela respectiva obrigação cartular, não podendo esta opor a qualquer portador tal limitação estatutária.
Trata-se de interpretação jurisprudencial uniforme.
Assim, pode citar-se o Ac do STJ, de 20-05-2004 (Pº 04B1522, rel. FERREIRA DE ALMEIDA) decidindo que ”os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberação dos sócios”.
Em igual sentido, no Acórdão do STJ de 14-03-2006 (Pº 06A195, rel. AZEVEDO RAMOS) concluiu-se que:
“I - O art. 409, nº2, do C.S.C. veio consagrar a prevalência dos interesses da sociedade em relação terceiros, quanto aos actos praticados pelo administradores fora dos limites impostos pelo objecto societário .
II - Em tais situações, desde que se mostre registada a cláusula relativa ao objecto social, a sociedade não se considerará vinculada, se o terceiro conhecer que o administrador excedeu esses limites .
III - Mas semelhante cautela não foi expressa quanto à intervenção dos administradores, em representação da sociedade, resultando do mencionado art. 409, nº1, a vinculação da sociedade anónima pelos actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos limites que a lei lhes confere, não obstante as limitações constantes do pacto social que não se reportem ao objecto social .
IV- Aos interesses da sociedade ou dos titulares do respectivo capital sobrepõem-se os de terceiros que com a sociedade se relacionam, mantendo-se a validade dos efeitos jurídicos dos actos outorgados em nome da sociedade, dentro dos limites do objecto social, apenas por um dos administradores, ainda que sem a intervenção de outro ou outros, exigida pelos estatutos”.
Dito ainda de outro modo: “Nos termos do art. 409.º do CSC, para que a sociedade fique vinculada perante terceiros por actos dos administradores, é necessário e suficiente: a) que os actos sejam praticados por gerentes, administradores ou directores; b) em nome da sociedade; c) dentro dos poderes que a lei lhes confere; d) salvo se a sociedade provar que o terceiro sabia, ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto praticado não respeita a cláusula contratual limitativa e desde que a sociedade não tenha assumido o acto por deliberação dos accionistas” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-10-2006, Pº 06A2006, rel. PAULO SÁ).
Especificamente sobre a relação de previsão estatutária com a subscrição de aval por um só administrador, concluiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-09-2009 (Processo: 586/08.1TBOAZ-B.P1, rel. JOSÉ FERRAZ) que “a exigência estatutária da intervenção de dois administradores para obrigar a sociedade anónima não é oponível a terceiro legítimo portador de livrança em que, por essa sociedade e como subscritora da mesma, apenas assina um seu administrador, a não ser que actue fora do objecto social e essa situação seja conhecida ou cognoscível (tendo em conta as circunstâncias) do terceiro portador. Tal facto não constitui vício de forma despoletador da nulidade do aval dado, por terceiro, à sociedade subscritora.
O facto de FS… ter intervindo isoladamente na subscrição do aval em nome da embargante, quando o contrato social exigiria uma pluralidade de assinaturas, não tem quaisquer efeitos na vinculação dessa sociedade perante terceiros, não tornando o acto inválido ou ineficaz.
A embargante alegou ainda que, “a decisão de prestação de aval não pode ser tomada pela Assembleia-Geral, mas tão-só pelo Conselho de Administração; Conforme o preceituado no artigo 406.º, do Código das Sociedades Comerciais (CSC): compete ao conselho de administração deliberar sobre qualquer assunto da administração da sociedade, nomeadamente sobre (…) f) a prestação de cauções e garantias pessoais ou reais pela sociedade. Sendo o aval uma garantia pessoal, é evidente que a sua prestação sempre teria de ser discutida e aprovada pelo Conselho de Administração da Apelante, o que nunca sucedeu;”.
Neste ponto, interessa referir que a deliberação em questão foi tomada ao abrigo do disposto no artigo 54.º do CSC.
Dispõe este preceito legal sobre “deliberações unânimes e assembleias universais” nos seguintes termos:
“1 - Podem os sócios, em qualquer tipo de sociedade, tomar deliberações unânimes por escrito e bem assim reunir-se em assembleia geral, sem observância de formalidades prévias, desde que todos estejam presentes e todos manifestem a vontade de que a assembleia se constitua e delibere sobre determinado assunto.
2 - Na hipótese prevista na parte final do número anterior, uma vez manifestada por todos os sócios a vontade de deliberar, aplicam-se todos os preceitos legais e contratuais relativos ao funcionamento da assembleia, a qual, porém, só pode deliberar sobre os assuntos consentidos por todos os sócios.
3 - O representante de um sócio só pode votar em deliberações tomadas nos termos do n.º 1 se para o efeito estiver expressamente autorizado”.
Em termos de poderes gerais de gestão, o Conselho de Administração de uma sociedade anónima tem os enunciados no artigo 406.º do CSC, mas, nos termos do artigo 405.º, n.º 1, do mesmo Código, “compete ao conselho de administração gerir as actividades da sociedade, devendo subordinar-se às deliberações dos accionistas ou às intervenções do conselho fiscal ou da comissão de auditoria apenas nos casos em que a lei ou o contrato de sociedade o determinarem”.
A delimitação estatutária da embargante – cfr. artigos 13.º e 16.º do pacto social – não enuncia a deliberação no sentido da prestação de aval a sociedade como uma competência do Conselho de Administração.
De todo o modo, também aqui a eventual desconformidade do deliberado com a previsão legal, não releva face à embargada, que é terceira e exterior à vida social, visando aquela norma regular tão-só a repartição de competências entre os vários órgãos sociais.
E, de facto, “a dinâmica da vida económica não se compatibiliza com a transferência para terceiros de um ónus, que em primeira via, deve impender sobre o colectivo de sócios, através do controlo do funcionamento dos órgãos sociais, assegurando a persistência de uma relação de confiança, que deve existir entre os titulares do capital social e aqueles que formalmente estão incumbidos das funções de representação da sociedade (…)” (assim, o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-01-2002, C.J., Tomo I, p. 80 e ss., rel. ABRANTES GERALDES).
Quanto ao mais, a alegação da embargante de que “a Embargada “Lisgarante, S.A.” tinha o ónus de verificar e confirmar a competência e capacidade de representação dos órgãos sociais de quem estaria a prestar o aval, posto que tinha acesso a todos os documentos para esse efeito; Não podia descurar a importância da forma de obrigar da Embargante! Principalmente tendo em conta a atividade que exerce, tinha uma obrigação especial acrescida de fazer essa verificação, posto que celebra este tipo de negócios correntemente;” não se enquadra na previsão ínsita no n.º 2 do artigo 409.º do CSC, no sentido de demonstrar que a embargada sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto praticado não respeitava alguma cláusula do pacto social.
De facto, não basta, para o efeito a mera publicidade do pacto (como decorre do n.º 3 do artigo 409.º do CSC), nem esse conhecimento ou obrigação de saber não deriva, ipso facto ou automaticamente, do exercício da atividade comercial da embargada (ou sequer da sua feição de sociedade financeira de garantia mútua – sujeita ao regime jurídico do Decreto-Lei n.º 211/98, de 16 de julho) e, finalmente, em concreto, a sociedade embargante tinha assumido, por deliberação expressa e unânime dos accionistas, a vontade de prestar a garantia em causa, tudo afastando a aplicação do mencionado n.º 2 do artigo 409.º do CSC.
Finalmente, atente-se que a sociedade Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Ld.ª é uma sociedade por quotas, que se dedica às actividade de importação, exportação, comercialização e reparação de veículos automóveis, peças, acessórios e combustíveis e à data de 09/05/2011, a embargante era titular de quotas no valor global de 1.075.678,38 euros da sociedade Leuimport da Madeira – Comércio Automóvel, Ld.ª, cujo capital social era de 1.131.102,40 euros (als. O e Q dos factos provados).
Nos termos do artigo 6º n. º 3 do CSC, considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
Ou seja: “Em regra, ao prestar garantias reais ou pessoais a dívidas de outras sociedades, a sociedade garante pratica atos contrários ao fim para que foi constituída, daí decorrendo a nulidade de tais atos, salvo ocorrendo duas exceções previstas no n.º 3 do art.º 6.º do CSC: a existência de “justificado interesse próprio da sociedade garante”, ou a existência de “relação de domínio ou de grupo” ” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-01-2018, Pº 29987/15.7T8PRT-A.P1, rel. CARLOS QUERIDO).
Ora, detendo a embargante um capital social superior a 95% da sociedade garantida (à data de 09-05-2011), o que lhe confere uma relação de domínio, em conformidade com o disposto no artigo 486º n.º 2, al. a) do CSC) conclui-se, como o fez a decisão recorrida, que a prestação do aval em causa pela embargante – sociedade dominante - à embargada – sociedade dependente - não é contrária ao seu fim social, pelo que também por aqui se verifica inexistir causa de invalidade do aval prestado.
E, tal relação de domínio – na medida em que expressa uma influência dominante (cfr. artigo 486.º, n.º 1, do CSC) - presume o interesse justificado na prestação de garantia pela embargante.
Neste sentido, vd. o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09-03-2017 (P.º 437/14.8TBVRS.E1, rel. MARIA JOÃO SOUSA E FARO) – cujo entendimento se subscreve - concluindo o seguinte:
“I- As sociedades podem validamente praticar actos gratuitos, nomeadamente prestar garantias a dívidas de terceiros quando a esses actos presida um interesse próprio da sociedade garante, ainda que deles não decorra uma vantagem económica imediata: Basta que haja o objectivo de alcançar um fim conveniente à prossecução de vantagens de cariz económico da sociedade e não de proporcionar uma vantagem ao credor garantido.
II- À luz do artigo 6.º, n.º 3, do C.S.C. são igualmente válidas as garantias prestadas por uma sociedade comercial a outra, com a qual esteja numa relação de domínio ou de grupo.
III- Dentro das sociedades em relação de grupo, identifica(m)-se o(s) grupo(s) constituído(s) por domínio total, o que ocorre quando uma sociedade – dita dominante – detém a totalidade das acções representativas do capital social de uma outra sociedade – dominada – podendo essa relação de domínio total ser inicial ou superveniente (cfr. artigos 488.º e 489.º do CSC);
IV- Ainda que se admita que tenha de se diferenciar entre as garantias prestadas ao abrigo de uma relação de domínio e aquelas no seio do regime das relações de grupo, o certo é que no caso em apreço estamos em presença de uma relação societária de grupo em que ocorre o domínio total da sociedade garante pela sociedade garantida.
V- Nos grupos constituídos por domínio total, o património utilizado nessa participação, é transferido para a participada e passa a ser gerido pelo órgão de administração da sociedade-mãe. E também não despiciendo para os credores, porque se a responsabilidade da sociedade dominante abrange as dívidas da dominada, significa que o acervo patrimonial da sociedade que lhes deve pode vir a sofrer algum revés. Além do que, a diluição da solvabilidade da dominada resulta, na prática, das múltiplas coligações em causa: quantas mais sociedades agrupadas, maior o número de credores e maior o número de dívidas (artigos 405.º, 501.º e 502.º, ex vi, artigo 491.º).
VI- É precisamente por causa da tutela e do regime próprio das relações de grupo que se deve basear a interpretação do artigo 6.º n.º 3. Dada a configuração do poder de direcção, o regime derrogatório das relações de grupo, a previsão expressa da lei da possibilidade de instruções desvantajosas às sociedades filiais e toda a dinâmica de recursos que a prática legitimou entre as agrupadas, não faz sentido limitar a faculdade de prestação de garantias dentro da realidade de um grupo de sociedades. Serão válidas as garantias prestadas pelas sociedades integralmente dominantes ou directoras, às integralmente dominadas ou dependentes, e vice-versa.
VII- Provando-se que (…) a sociedade garantida era detentora da totalidade do capital social da sociedade garante estando para com esta numa relação de domínio total não haveria que indagar sequer da (in) existência de interesse da sociedade autora na prestação das garantias em apreço porque este, graças à relação de grupo por domínio total com a sociedade beneficiária, se presume”.
Em face do exposto, conclui-se pela correção e justeza da decisão recorrida, sem que se mostrem violados os preceitos legais invocados pela recorrente.
Em consequência, deverá julgar-se improcedente a apelação e manter-se a decisão recorrida.
*
A responsabilidade tributária inerente incidirá sobre a embargante/apelante, que decaiu integralmente na respetiva pretensão – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
*
5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível, em:
a) Alterar o facto provado em P da decisão recorrida – passando a ter a seguinte redação: “À data de 09/05/2011, FD… e AA… exerciam a gerência da sociedade Leuimport da Madera – Comércio Automóvel, Lda.”; e
b) Julgar improcedente a apelação deduzida e, em consequência, em manter, quanto ao mais, a decisão recorrida.
Custas pela embargante/recorrente.
Notifique e registe.
*
Lisboa, 8 de outubro de 2020.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes