Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8511/18.5T8LSB-D.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONFISSÃO
RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Provada, por reconhecimento decorrente da apresentação do devedor à insolvência, a situação de insolvência - impossibilidade de cumprir obrigações vencidas (art. 3/1 do CIRE) -, a insolvência deve ser declarada (art. 28 do CIRE).

II. Segundo posição doutrinária e jurisprudencial maioritária, no recurso contra a sentença que declarou a insolvência, os recorrentes apenas podem discutir se, face aos elementos apurados/provados, a declaração de insolvência não devia ter sido proferida (art. 42/1 do CIRE), o que, no caso, levaria à improcedência do recurso sem mais, face aos factos provados.

III. Mesmo que se seguisse a posição minoritária, isto é, de que “a impugnação por via de recurso pode servir para defender que os ‘elementos apurados’ no processo não correspondem aos factos que o tribunal considerou provados”, no caso chegar-se-ia à conclusão de que não há nos autos elementos que provem que, ao contrário do dado como provado, o insolvente podia cumprir as suas obrigações vencidas.
Decisão Texto Parcial:Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

C–Fundo Especial de Investimento, gerido e legalmente representado por B-SA, apresentou-se à insolvência, alegando, em síntese, que se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.
Depois de, face à prova documental junta aos autos, e por confissão, se considerar assente que (1) o requerente é um fundo de gestão de património imobiliário, (2) foi constituído em 20/03/2008, por um prazo de 7 anos e (3) assume ter um passivo no valor total de 322.099,48€, não possuindo liquidez para o satisfazer, foi declarada a insolvência do mesmo, tendo em conta, no que importa e em síntese, o disposto no art. 3/1 do CIRE (: é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas) e no art. 28 do CIRE (: a apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada). A sentença ainda faz referência ao nº 2 do art. 3 do CIRE (no caso de o devedor ser uma pessoa colectiva, é também considerado insolvente “quando o seu passivo seja manifestamente superior ao seu activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”) e diz também que “A situação confessada pelo Fundo subsume-se, assim, na situação de insolvência prevista no artigo 3, n.ºs 1 e 2 e compagina-se com os factos-índice ou presuntivos elencados na alínea a) do n.º 1 do artigo 20, ambos do CIRE.”
D e E, que são titulares de 2660 e 2966 unidades de participação do Fundo, respectivamente, sendo assim titulares dos valores mobiliários representativos do capital do Fundo, pelo que, analogicamente se assemelham aos sócios de uma sociedade e por isso têm legitimidade para tal (arts. 40/1-d e 42/1 do CIRE), vieram recorrer de tal sentença, para que seja revogada, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem na parte minimamente útil mantendo-se ainda assim as inúmeras e incontáveis repetições:
[…]
VII. A sentença padece de erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto proferida.
VIII. Da prova produzida nos presentes autos não resultou provada que o Fundo tenha um “…passivo total de 322.099,48€, não possuindo liquidez para o satisfazer.”
IX. Com efeito, não são se encontram juntos aos autos quaisquer documentos comprovativos do alegado passivo.
X. Ora, para prova deste facto, o tribunal a quo baseia-se apenas na confissão/assunção desse facto por parte do Fundo. Contudo, não restam dúvidas de que a prova deste fato não se basta com o reconhecimento / confissão do mesmo.
XI. Apesar do previsto no art. 28 do CIRE, deve chamar-se aqui à colação a nossa lei adjectiva geral, e designadamente ao funcionamento de efeitos cominatórios reportados à confissão da matéria de facto por revelia aqui aplicados analogicamente o disposto nos arts 567 e 568 do CPC.
XII. Ou seja, não basta a sua alegação e reconhecimento por parte do devedor que se apresenta à insolvência para considerar provados factos cuja prova se exija documento escrito, como é o caso.
XIII. Com efeito, o requerente não apresenta qualquer prova documental do passivo que alega existir.
[…]
XV. O mesmo se diga quanto à falta de liquidez para satisfazer o alegado passivo.
XVI. Apesar do alegado na petição inicial quanto a este facto, em momento algum o Fundo faz prova do mesmo, designadamente, das eventuais diligências de promoção de venda ou rentabilização do activo do requerente, bem como das alegadas tentativas de financiamento junto da banca e das recusas da mesma.
[…]
XIX. Resulta, contudo, provado documentalmente nos autos, que o valor líquido global do Fundo ascende a 4.234.595,33€, conforme documentos 8 a 33 juntos com a petição inicial e a composição discriminada da sua carteira junto aos autos com o requerimento apresentado a 12/04/2018 com a referência 28989943.
XX. Ora, o valor líquido global do Fundo corresponde ao capital do Fundo e é calculado valorizando todos os activos que compõem a sua carteira.
[…]
XXV. Pela análise da sentença em crise, verifica-se ainda que o tribunal a quo considerou que o Fundo confessou a sua situação de insolvência, bastando-se com tal confissão para declarar a mesma.
XXVI. Com base apenas no parco relatório e por mera adesão aos fundamentos aduzidos na petição inicial o julgador sustentou uma decisão de declaração de insolvência do Fundo
[…]
XXVIII. Não resultam provados factos que permitam subsumir a situação do Fundo nos factos índices previstos no art. 20/1-a do CIRE e concluir-se que se encontra provada a situação de insolvência.
XXIX. De acordo com o último valor líquido global do fundo publicado, em Março de 2018, o Fundo apresentava o montante líquido de 4.234595,33€.
XXX. Sem se prescindir quanto ao supra alegado quanto a esta matéria, o passivo indicado é de 322.099,48€.
XXXI. Pelo que, ainda que assim se considerasse, a verdade é que o valor indicado é manifestamente inferior ao activo do fundo.
XXXII. Em síntese, o activo do Fundo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis, é manifestamente superior ao seu passivo.
XXXIII. Pelo que, resulta de forma clara que não se encontra verificada a situação de insolvência ali prevista (art. 3/2 do CIRE).
XXXIV. Alega, contudo, a sociedade gestora que o Fundo à se encontra numa situação de insolvência por se encontrar impossibilitado de cumprir com as suas obrigações vencidas, sem fazer prova desse facto.
XXXV. A sociedade gestora alega que não é de todo possível recorrer a financiamento, invocando as hipotecas, por um lado e por outro, aqueles que não estão onerados são activos pouco líquidos e que perderam, inclusive, capacidade construtiva.
XXXVI. Contudo, alega tais factos sem fazer qualquer prova dos mesmos.
XXXVII. Como resulta dos documentos juntos aos autos, os imóveis que compõem a actual carteira do Fundo foram adquiridos já com as referidas hipotecas (conforme docs. nºs 8 e 33 juntos com a petição inicial)
XXXVIII. Sendo que já se encontrava registada uma hipoteca sobre quatro imóveis pela Ap. 23 de 29/04/1987 a favor do Município de X pelo montante máximo assegurado de 150.000€ e,
XXXIX. Uma outra hipoteca registada sobre dezasseis imóveis pela Ap. 4 de 1988/11/07 a favor do Município de X pelo montante máximo assegurado de € 500.000€.
XL. O referido ónus é de valor manifestamente diminuto face ao valor dos imóveis em causa.
XLI. Contudo, a sociedade gestora nada fez nesse sentido, o que provocou uma manifesta depreciação dos referidos activo do Fundo.
XLII. Acresce que, resulta claro dos documentos juntos aos autos que o Fundo é titular de bens imóveis desonerados, cuja venda seria suficiente para proceder ao pagamento das despesas correntes do mesmo.
XLIII. Com efeito, como ficou exposto e comprovado o activo do Fundo é manifestamente superior ao alegado passivo e, por outro lado, o Fundo apresenta uma situação financeira positiva que lhe permite a negociação de eventuais financiamentos e/ou a venda de activos para fazer face às suas obrigações correntes.
[...]
XLVIII. Acresce que ao longo da sua petição inicial alega a incapacidade de gerar liquidez, tendo contudo um activo avaliado em mais de quatro milhões de euros.
[…]
LII. Considerando que a lei exige que a decisão de decretação de insolvência seja devidamente fundamentada em factos que confirmem situação de insolvência da devedora, a não verificação de fundamentação determina desde logo uma nulidade, como resulta do disposto no art. 615/1-b do CPC, aplicável ex vi do art. 17 do CIRE, o que desde já se invoca.
[…]
LIV. Ora, o simples facto de o devedor supostamente não ter cumprido as respectivas obrigações perante os alegados credores indicados na petição inicial, realçando-se que a sociedade gestora que apresenta o Fundo à insolvência é, igualmente, a sua maior credora, não quer dizer que não tenha ou não tivesse capacidade para cumprir as respectivas obrigações.
LV. Não pode aliás deixar de se ter presente, como bem salientam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação ao referido art. 20, que na interpretação sobre se os factos de cada caso permitem concluir pelo preenchimento daqueles “factos índice”, “o que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
[…]
LX. Conforme o ordenamento jurídico português, a verificação da insolvência e a sua decretação carecem de uma ponderação da situação patrimonial da empresa.
[…]
LXII. A sentença em apreço é nula por violação da mesma disposição legal (art. 615/1-b-d do CPC, aplicável ex vi do art. 17 do CIRE), porque os parâmetros legais necessários para definir uma situação de insolvência e suportarem a sua declaração foram completamente preteridos em função da mera confissão e de remissão e adesão genérica ao articulado pelo requerente da insolvência na sua petição inicial, não se tendo pronunciado sobre questões que devia ter apreciado designadamente, o valor do activo do Fundo.
O insolvente contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
*
Questões que importa decidir: se se verificam as nulidades da sentença invocadas pelos recorrentes e se não devia ter sido declarada a insolvência do Fundo.
*
Das nulidades
É manifesto que não se verifica nenhuma das nulidades da sentença: ela contém a fundamentação de facto e de direito que justifica a decisão (o facto: a impossibilidade de cumprir as suas obrigações, concretizado suficientemente no ponto 3 dos factos provados, que preenche a previsão normativa do art. 3/1 do CIRE), o que afasta o preenchimento da previsão de nulidade do art. 615/1-b do CPC. E, verificada a situação do art. 3/1 do CIRE, o juiz não se tinha que pronunciar, fosse a que título fosse (o que já se desenvolverá), sobre o activo do Fundo, pois que a previsão do art. 3/3 é uma excepção ao disposto no art. 3/2 do CIRE e não ao art. 3/1 do CIRE. O que afasta o preenchimento da previsão da nulidade do art. 615/1-d do CPC.
*
Da declaração de insolvência
A impossibilidade de cumprir as suas obrigações (“um passivo total de 322.099,48€, não possuindo liquidez para o satisfazer”) é uma situação de insolvência (art. 3/1 do CIRE) que a lei diz expressamente ser reconhecida pela apresentação do devedor à insolvência (art. 28, primeira parte, do CIRE).
Mas a lei nem precisava de o dizer. Como explicam Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, Quid Juris, 3.ª edição, 2015, pág. 231: “Pode dizer-se que a primeira das estatuições [do art. 28/1 do CIRE] é redundante. Com efeito, se o devedor se apresenta a requerer a sua declaração de insolvência, esse procedimento não pode deixar de envolver, para ele, o reconhecimento da existência de impossibilidade de cumprimento de obrigações […] que caracteriza[] a situação de insolvência nos termos do art. 3.”
No mesmo sentido, dizem Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões: “A apresentação à insolvência por parte do devedor tem como efeito legal o reconhecimento por este da sua situação de insolvência: trata-se de confissão de factos desfavoráveis, nos termos dos arts. 352, 355 e 356 do CC […]” (CIRE anotado, 2013, Almedina, pág. 106).
E o ac. do TRC de 12/01/2010, proc. 1743/09.9TBMGR.C1: O reconhecimento da situação de insolvência inerente à apresentação à insolvência constitui uma confissão de um complexo factual que permite firmar essa conclusão. No mesmo sentido, veja-se o ac. do TRG de 13/03/2012, proc. 4551/11.3TBGMR-A.G1, citado pelo insolvente: “1- O reconhecimento da situação de insolvência inerente à apresentação dos devedores à insolvência constitui uma confissão de um complexo factual que permite firmar essa conclusão […]” E acrescenta o acórdão, no seu texto: “[…] nas circunstâncias dos autos, o reconhecimento (confissão) por parte dos requerentes de que “não dispõem de bens suficientes para responder pelas dívidas relativas aos empréstimos contraídos”, traduz, no fundo, um juízo ou uma conclusão sobre matéria de facto, e, como tal deve ter o tratamento de facto. Aliás, neste mesmo sentido, ensina Antunes Varela, in RLJ, ano 122, pág. 220, que só quando o juízo de valor apele, na sua formulação, para a sensibilidade ou intuição do jurista ou para a formação especializada do julgador, é que se poderá dizer que se está fora da órbita factual, para se entrar no campo da conclusão de direito. Sendo assim, impõe-se concluir que a factualidade alegada pelos requerentes constitui indiciação bastante quer da falta de cumprimento das obrigações vencidas, quer da insusceptibilidade de os mesmos cumprirem as suas obrigações, ou seja, do facto-índice a que alude a alínea b do n.º 1 do art. 20 do CIRE.” (no mesmo sentido, vejam-se ainda os acs. do TRL de 24/06/2010, proc. 177/10.7YLSB-F.L1-8, que, pela positiva, se basta com factos que não vão mais longe, no essencial, dos que foram dados como provados nestes autos; e do TRG de 21/09/2017, proc. 4173/17.5T8GMR.G1).
Bastava assim aquela norma para tirar razão aos recorrentes quando dizem, sem minimamente o tentarem fundamentar com base na lei, que o passivo não está provado, tal como não o estaria a impossibilidade de cumprir esse passivo, porque seriam factos que tinham de ser provados documentalmente. Estão provados, sim, por confissão. Isto por um lado.
Por outro, os factos provados sob 3 são suficientes para concretizar uma situação de insolvência a ser reconhecida pela conduta processual do devedor que se apresenta à insolvência e a constituir suporte suficiente da declaração de insolvência.
*
É certo, entretanto, que a sentença ainda fez referência ao nº 2 do art. 3 do CIRE: no caso de o devedor ser uma pessoa colectiva, é também considerado insolvente “quando o seu passivo seja manifestamente superior ao seu activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis” e que diz que “A situação confessada pelo Fundo”, também se “compagina[…] com os factos-índice ou presuntivos elencados na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º, ambos do CIRE.”
Mas trata-se de um excesso de fundamentação, sem relevo.
Com efeito, e como diz Catarina Serra, “a insolvência pode revestir a forma de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas (cf. art. 3/1) ou de situação patrimonial líquida manifestamente negativa […].” (Lições de Direito da insolvência, Almedina, 2018, pág.120).
Mas se pode revestir duas formas, basta que revista uma delas. E se os factos que foram dados como provados não suportam a segunda forma [porque a sentença apenas consignou os referentes à primeira forma, apesar de o devedor ter alegado factos também para a segunda], por um lado não se pode/deve falar nela (e daí que se diga que se trata de um excesso de fundamentação da sentença), mas, por outro, é irrelevante que se aleguem factos para a pôr em causa (desde que a primeira forma esteja preenchida).
Ora, sendo assim, são também irrelevantes, todos os factos (designadamente o valor do activo) que os recorrentes invocam para infirmar a forma de insolvência que está em causa no art. 3/2 do CIRE.
Pois que, estando provada a situação do n.º 1 do art. 3 do CIRE, tanto bastava para a insolvência ser declarada, não importando que o activo fosse (ou não) superior ao passivo.
Tal como diz o ac. do TRC de 06/12/2016, proc. 1414/15.7T8ACB-D.C1:
V - A situação de a empresa estar impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas não fica desmentida com a circunstância de a mesma ter património suficiente para liquidar todo o seu passivo, pois que mesmo que assim se prove, a superioridade do activo da empresa relativamente ao respectivo passivo não será suficiente a, per se, afastar o aludido fundamento da insolvência.
VI - Se o devedor, por falta de capacidade creditícia, estiver impossibilitado de cumprir pontualmente a generalidade das suas obrigações, incorre na situação de insolvência, mesmo dispondo de um activo superior ao passivo.
*
Quanto à referência aos factos-índice ainda menos se justificava que a sentença falasse neles: se a situação de insolvência está provada por confissão, tanto basta, e não tem sentido falar, nem havia necessidade de o fazer, em índices da mesma que poderão ser ilididos, tanto mais que a sentença não tinha consignado, nos factos provados, quaisquer factos que servissem de factos-índice.
O mesmo resulta do que a outro propósito diz Catarina Serra, obra citada, págs. 120-121: “No caso de apresentação à insolvência é suficiente a mera alegação da insolvência […] (conf. art. 28), mas quando a insolvência é requerida por outro sujeito, existem requisitos especiais a observar na petição inicial, tendo o requerente da declaração de insolvência de alegar e provar a verificação de um ou de alguns dos factos enunciados, taxativamente, na norma do n.º 1 do art. 20. […] A ocorrência do facto dá origem, porém, tão-só, a uma presunção relativa: o devedor pode sempre impedir a declaração de insolvência mostrando que, apesar da ocorrência do facto, a insolvência não existe (cf. art. 30/3). O fundamento único da declaração de insolvência não deixa, portanto, de ser a situação de insolvência […]”
Mas o facto de a sentença o ter feito consubstancia apenas um excesso de fundamentação que não tira relevo à verificação da situação de insolvência.
Assim, não importa discutir se se verificam ou não os factos-índice, nem se se verificam outros factos, alegados pelos recorrentes, para contra-pôr aos factos-índice, pois que tal não afastará a situação de insolvência confessada pelo Fundo: a impossibilidade de cumprir as suas obrigações já vencidas (um passivo no valor total de 322.099,48€, não possuindo liquidez para o satisfazer).
*
Do âmbito do recurso contra a sentença que declarou a insolvência
No caso, pois, os recorrentes apenas poderiam pôr em causa a declaração de insolvência, se afastassem a situação de insolvência decorrente da impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.
Ora, aqui há que ter em conta que, a posição maioritária da doutrina e da jurisprudência vem entendendo, face ao disposto no art. 42/1 do CIRE, que, no recurso, apenas se pode discutir se, face aos elementos apurados – isto é, factos provados -, a declaração de insolvência não devia ter sido proferida.
Neste sentido, por exemplo, dizem Carvalho Fernandes e João Labareda:
“Retomou o Código actual o sistema de dupla reacção à sentença de declaração de insolvência acolhido no Código de Processo Civil, ao tempo da respectiva vigência, em matéria de falência e insolvência.
Há, contudo, uma importante diferença no plano da delimitação destas modalidades de reacção. Agora, uma – os embargos – é exclusivamente destinada à arguição de factos ou ao requerimento de provas não consideradas, susceptíveis de abalar, na expressão da lei ‘os fundamentos da declaração de insolvência’; outra – o recurso de que aqui se trata – está unicamente vocacionada para sustentar a oposição baseada em fundamentos de direito, que se reconduzem à inadequação da sentença à realidade apurada e, como tal, considerada no processo.
[…]
A partir do exposto, e em paralelo com o que sucede nos embargos, se o recurso é baseado em razões que não lhe cabem, seja porque se alega matéria de facto nova, seja porque o recorrente intenta que o tribunal considere factos que o processo já evidencia mas a sentença não levou em conta, há lugar a indeferimento […].
[…]” (obra citada, págs. 285/286).
No mesmo sentido, diz Maria do Rosário Epifânio:
A interposição de recurso apenas pode ter como fundamento a alegação de que, perante os factos apurados, não deveria ter sido proferida a sentença […] (Manual de Direito da Insolvência, 3ª ed., Coimbra, 2011, pág. 52 – esta autora foi aqui citada através do acórdão referido a seguir).
No mesmo sentido, diz Catarina Serra, obra citada, pág. 134: Os embargos servem para alegar factos novos ou para requerer novos meios de prova (art. 40/2) e o recurso destina-se à discussão de razões de direito (art. 42/1).
E também o ac. do TRC de 14/02/2012, proc. 6000/11.8TBLRA-C.C1, que, depois de citar os dois primeiros autores acabados de referir diz, no que importa:
“Enquadrada a situação do recurso nestes termos, tendo presente que a sentença aqui pretendida apelar resultou da apresentação da sociedade devedora à insolvência, com a consequente declaração imediata dessa insolvência, assente no reconhecimento pelo devedor da sua situação (artigo 28 do CIRE), importará ponderar que esse resultado decisório – esse reconhecimento confessório – se referiu ao seguinte acervo de factos [e passa a transcrever os factos que se teve como apurados/provados, dizendo de seguida o seguinte:] ponderando que os factos reconhecidos preenchem os pressupostos de declaração de insolvência, não vemos que a sentença apelada tenha procedido incorrectamente ao decretar a insolvência da requerente/devedora.”
Tal como o ac. do TRC de 06/12/2016, proc. 1414/15.7T8ACB-D.C1:
II - Os meios de reacção, que podem ser cumulados, assentam em fundamentos diferentes: os embargos alicerçam-se, necessariamente, em razões de facto, traduzidos em factos novos ou novos meios de prova (art. 40/2, do CIRE), que não estavam disponíveis, ou que não foram considerados, enquanto o recurso assenta em razões de direito (art. 42/1, última parte, do CIRE), v.g., “…por inadequação da decisão à factualidade apurada por má aplicação da lei”.
E o ac. do TRE de 30/11/2016, proc. 1545/12.5TBCTX-G.E1 e de 02/02/2011, proc. 134/10.3TBPSR-C.E1.
Ora, se assim for, o recurso, face ao já dito, devia agora, sem mais, também ser julgado improcedente.
No entanto, aquela posição maioritária é contraditada pela obra de Ana Prata e outros, já citada, que na pág. 146, anotação 2, 3º§, diz o seguinte:
O recurso pode ser, nos termos gerais, relativo a elementos de facto ou de direito […]. Discordamos, assim, de Carvalho Fernandes e João Labareda [obra e local citados supra]. Nada, quer na letra quer no espírito da lei, permite concluir neste sentido. A impugnação por via de recurso pode, assim, servir para defender que os “elementos apurados” no processo não correspondem aos factos que o tribunal considerou provados. O que é exigido é que, no objecto do recurso, não estejam em causa factos ou elementos novos, mas uma valoração alegadamente incorrecta dos factos ou elementos do processo – sejam eles elemento de facto ou de direito.”
Aceitando como possível esta interpretação da lei, tendo-a em considerando e voltando ao início, então os recorrentes só poderiam pôr em causa a declaração de insolvência se afastassem a situação de insolvência decorrente da impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, o que só poderiam fazer com os elementos que constassem do processo (art. 42 do CIRE).
Ou seja, teriam que demonstrar, com invocação e aplicação de normas jurídicas que, dos elementos de prova que constam do processo resultava que, contrariamente à confessada situação de insolvência (a confissão só faz prova plena contra o próprio Fundo: art. 358/1 do CPC), o Fundo tinha meios de obter liquidez suficiente para cumprir as suas obrigações já vencidas.
Ora, os recorrentes não indicam quaisquer elementos de prova que imponham a conclusão (por terem o valor de prova plena) de que o Fundo tem bens que possam – também no sentido de ser mesmo viável de facto a sua venda, designadamente por haver compradores para o efeito - ser vendidos e que o possam ser por um valor suficiente para o pagamento daquelas dívidas, ou que o Fundo tem possibilidade de recorrer a financiamento para o efeito.
Ou seja, como não está em causa uma oposição por embargos (art. 40 do CIRE), os recorrentes (sempre se for de aceitar a interpretação da obra citada de Ana Prata e outros), teriam que se limitar ao que está no processo e, como se disse, eles não demonstram minimamente que do processo constem elementos de prova com força legal suficiente para provar o contrário do que foi dado como provado por confissão (e, por isso, como é evidente, não era o Fundo que tinha que alegar e provar que tinha feito diligências de promoção de venda ou rentabilização do activo ou de financiamento junto da banca e das recusas da mesma).                               
Pelo que, mesmo assim, o recurso seria improcedente.
*
Não estando em causa qualquer situação de revelia, mas um reconhecimento de um facto derivado da apresentação do devedor, não tem qualquer aplicação o disposto nos arts. 567 e 568 do CPC, sobre os efeitos da revelia e sobre as excepções a estes. Nem os recorrentes tentam sequer justificar a analogia das situações em causa (que são, pelo contrário, opostas: num caso, uma situação de revelia, grosso modo uma ausência ou falta de resposta, noutro, uma situação de apresentação).
Isto, por sua vez, nada tem a ver com qualquer efeito cominatório pleno decorrente de qualquer confissão dos factos: a lei não diz, nem a sentença o disse, que ficando provados factos alegados, a insolvência tinha que ser declarada, fossem quais forem esses factos e mesmos que eles não consubstanciem qualquer situação de insolvência.
O que a lei diz e a sentença aplicou, é que, apresentando-se o devedor à insolvência, reconhece a sua situação de insolvência. Ora, estando provada, por confissão (art. 352 do CC) a situação de insolvência, a declaração da insolvência resulta da aplicação do art. 3/1 do CIRE ao facto reconhecido, e não de qualquer aplicação automática da lei a quaisquer factos.
No mesmo sentido, dizem Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões: “A apresentação à insolvência por parte do devedor tem como efeito legal o reconhecimento por este da sua situação de insolvência […] o que tem como consequência, em termos do processo, que o juiz, se concluir que não há razão para despacho de indeferimento ou despacho de aperfeiçoamento, deve declarar imediatamente a insolvência.” (CIRE anotado, citado, pág. 106).
E o já citado ac. do TRG de 13/03/2012, proc. 4551/11.3TBGMR-A.G1: “1º - O reconhecimento da situação de insolvência inerente à apresentação dos devedores à insolvência constitui uma confissão de um complexo factual que permite firmar essa conclusão e que implica a declaração imediata da situação de insolvência nos termos do artigo 28 do CIRE […].”
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Os recorrentes, por terem decaído, vão condenados a pagar as custas de parte do insolvente neste recurso (e perdem as suas).
Lisboa, 20/09/2018
Pedro Martins
Laurinda Gemas
Gabriela Cunha Rodrigues
Decisão Texto Integral: