Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2009/06.1TBAMD-D.L1-7
Relator: DINA MONTEIRO
Descritores: INVENTÁRIO
DIVÓRCIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
CONTA BANCÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Dissolvido o casamento, no caso pela prolação da sentença de divórcio, cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges impondo-se, assim, a respectiva partilha dos bens do casal e a conferência do respectivo património comum, por forma a que cada interessado – ex-cônjuge -, receba na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, a ser realizada de acordo com o regime de bens que tiver vigorado entre o casal.
II - Tendo presente que a transferência dos respectivos fundos bancários, por parte de cada um dos seus titulares, pode determinar a lapidação do património comum a favor de quaisquer um deles, com o que se impede a respectiva conferência que é imposta no momento da partilha com vista à liquidação da comunhão, entendemos que é neste processo de inventário que, recorrendo ao mecanismo da compensação de patrimónios, se deve operar a conferência legalmente determinada pelo artigo 1689º do Código Civil.
III - É no momento da partilha que cada um dos ex-cônjuges deve conferir o que deve ao património comum, realizando as respectivas compensações nos casos de enriquecimento do seu património à custa do património do outro, procedendo às imputações respectivas, quer na sua meação, quer nos bens próprios, no caso de insuficiência daqueles, por forma a que a massa comum corresponda aos bens de ambos os ex-cônjuges - artigos 1682º nº 4, 1687º, nº 2 e 1689º do Código Civil.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO

No âmbito dos autos de inventário para partilha de bens em Casos especiais, instaurado por A… contra o seu ex-cônjuge, B…, aquela apresentou reclamação contra a relação de bens comuns apresentada por este último, na qualidade de cabeça-de-casal.

Nessa reclamação alegou para tanto, e em súmula, no que ora importa conhecer neste recurso, que o cabeça-de-casal não relacionou o saldo de duas contas bancárias, de que ambos eram titulares na Caixa Geral de Depósitos, sendo que uma delas – aquela que está em discussão no presente recurso -, apresentava o saldo € 42.415,39 em 14 de Outubro de 2004. Mais alegou que esta conta foi movimentada sem o seu conhecimento e autorização, desconhecendo o paradeiro de tais importâncias. Conclui pedindo o relacionamento desta quantia com vista à sua partilha.

O Requerido pronunciou-se pelo seu não relacionamento alegando que se trata de um bem que não existia à data da instauração da acção de divórcio. Referiu ainda que se trata de uma importância que se destinou a liquidar uma dívida do ex-casal.

Produzida a prova indicada pelas partes, foi proferida decisão que indeferiu a reclamação apresentada, sem que previamente tivessem se fixado os respectivos factos dados como provados e não provados.

Inconformada com o assim decidido, a Requerente interpôs recurso de Apelação no âmbito do qual formulou as seguintes conclusões:
1. Recorrente e recorrido foram casados entre si, no regime da comunhão de adquiridos, tendo tal casamento sido dissolvido por sentença proferida nos autos principais em Setembro de 2009.
2. Na Caixa Geral de Depósitos, recorrente e cabeça-de-casal, titulavam uma conta bancária com n.º …, da Caixa Geral de Depósitos, que em 14/10/2004 apresentada o saldo de 39.624,58€ (cfr doc. de fls....)
3. Tal conta foi movimentada em 14/10/2004, pelo cabeça-de-casal, que procedeu à transfe­rência de todo o saldo para a conta á data de 42.415,00€ titulada apenas em seu nome — cfr doc. de fls. 146.
4. Concluindo-se que, o cabeça-de-casal não dividiu com a ora recorrente o saldo da referida conta, da qual esta era também titular.
5. A comunicabilidade do referido saldo, e o montante, não foram impugnada pelo cabeça-de-casal; limitando-se a referir que o mesmo serviu para pagar uma divida a um particular a quem pedira emprestada a quantia de 40.000,00€
6. Para que o saldo da conta não fosse considerado na partilha, deveria o cabeça-de-casal ter a comunicabilidade da divida, que alega
7. O entendimento de plasmado na decisão recorrida, viola além do mais, a previsão do artigo 1725.º do C Civil, não se aceitando que o disposto na parte final do artigo 1789.º do CC, tenha aplicabilidade neste caso.
8. Já assim não seria, no caso das obrigações patrimoniais assumidas pelos cônjuges, outros­sim no caso de estar a discutir-se a administração de bens comuns, já que aí, seria a data da instaura­ção do divórcio a delimitar a des/responsabilidade de quem administra e de quem se obriga.
9. De tal dispositivo, não se retira nenhuma conclusão relativa a determinar quais os bens que eram comuns, quando deixaram de o ser (no caso, só com a partilha, posterior à sentença de divórcio) e, muito menos, defender-se que daqui resulta que, se á data da entrada em juízo da acção de divórcio não existem os bens, estes não poderão ser já partilhados.
10. Seguindo o entendimento do MM Juiz a quo, fácil era delapidar o património comum, bastando para tal, movimentar contas bancárias em determinada data e propor a acção de divórcio meses ou anos depois, impedindo assim o outro cônjuge de reivindicar o que existia e existiu durante o casamento.
Pelo que,
11. O saldo da conta bancária em causa, é um bem comum, não só pela presunção de co­municabilidade prevista no artigo 1725.º do CC, mas também pelo facto de a dita conta bancária ser titulada por ambos os cônjuges.
12. Uma vez apurado que tal dinheiro era um bem comum, cabia ao cabeça-de-casal, de­monstrar que o saldo bancário, foi usado em prol do casal, o que não aconteceu, sendo que, nesse caso, a sentença recorrida "pecaria", por falta de fundamentação, pois nada refere quanto aos argu­mentos usados pelo cabeça-de-casal, na resposta á reclamação da Relação de Bens, limitando-se a uma apreciação de direito.
13. Assim, entende a recorrente que para além de consagrar uma interpretação errada do disposto no artigo 1789.º do CC, a decisão recorrida viola o disposto no artigo 1725.º do Código Civil e artigo 1404.º, 1 do CPC.
Concluiu, assim, pela revogação da decisão re­corrida e pela inclusão na Relação de Bens comuns do saldo da conta bancária com o …, da Caixa Geral de Depósitos, e que em 14/10/2004 apresentava o saldo de 42.415,39€.

O Apelado contra-alegou sustentando a manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. FACTOS PROVADOS
1. Por despacho de 13 de Junho de 2011 foi proferida a seguinte decisão:
“I - Sobre reclamação apresentada contra a relação de bens constante de fls. 35-36:
1. Tendo presente o teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas em 31/05/2011 NV, CA e AB, cuja razão de ciência assenta , no caso do primeiro , na relação de grande proximidade e convivência que mantêm designadamente com a Reclamante, de quem é filho e no caso das restantes na relação de amizade e convivência regular desde há muitos anos mantida com o cabeça-de-casal, de quem foram, também, colegas de trabalho, conjugados entre si e com o teor dos documentos e informações requisitado/as constantes de fls. 20 , 33 , 147 e 149 dos autos , conclui-se que o valor indicado na relação de bens de fls. 13-14 para o imóvel é o valor tributável, como tal o correcto em face do disposto no artigo 13462 , n2 2 , do C.P.C. e que as duas contas bancárias identificadas abertas na C.G.D. de que os Interessados são co-titulares não apresentavam qualquer saldo na data de 05/04/2006, a qual é a relevante ao abrigo do disposto no artigo 17892 , n.º 1 , 2.ª parte, do Código Civil, decide-se julgar totalmente improcedente a reclamação acima referenciada;

Custas pela Interessada/Reclamante A.:
Notifique e registe. AMADORA , D.S”.
2. Apelante e Apelado foram casados um com o outro no regime de comunhão de adquiridos, tendo o respectivo casamento sido dissolvido por divórcio.
3. A acção de divórcio referida no ponto anterior deu entrada em Tribunal no dia 05 de Abril de 2006.
4. Apelante e Apelado eram titulares de uma conta bancária na Caixa Geral de Depósitos, com n.º … que, em 14 de Outubro de 2004, apresentada o saldo de € 39.624,58.
5. Ouvida a prova indicada pelos interessados, o senhor Juiz de 1.ª Instância não fixou os factos provados e não provados.

III. FUNDAMENTAÇÃO

A única questão que está em discussão no presente recurso é a de se saber se deve ser ou não ser relacionada a importância de € 39.624,58 existente em 14 de Outubro de 2004 na conta bancária com o n.º …da Caixa Geral de Depósitos, da titularidade de ambos os interessados, àquela data casados um com o outro no regime de comunhão de adquiridos.

Os dados para responder a esta questão, e que importa reter, são os seguintes:
- A sentença de divórcio dos ora interessados foi proferida em Setembro de 2009 tendo a respectiva acção dado entrada em Tribunal no dia 05 de Abril de 2006.
- A conta bancária em apreciação foi movimentada pelo ora cabeça-de-casal, em 14 de Outubro de 2004 que dali retirou a totalidade do saldo então existente.
Ora, dissolvido o casamento, no caso pela prolação da sentença de divórcio, cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges impondo-se, assim, a respectiva partilha dos bens do casal e a conferência do respectivo património comum, por forma a que cada interessado – ex-cônjuge -, receba na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, a ser realizada de acordo com o regime de bens que tiver vigorado entre o casal.
No presente caso, os ora interessados foram casados um com o outro no regime de comunhão de adquiridos, presumindo-se que, relativamente aos bens móveis (em que se inclui a conta bancária em discussão), estes se consideram comuns – artigos 1689.º, n.º 1, 1717.º e 1725.º do Código Civil.
Os efeitos da cessação das relações patrimoniais retroagem-se à data da propositura da acção de divórcio (ou à data da cessação da coabitação entre os cônjuges, situação esta última que não é, porém, a dos presentes autos) – artigos 1788.º, 1688.º, 1689.º, n.º 1 e 1795.º-A do Código Civil.
Ou seja, no presente caso, a composição dos bens a considerar deve ter por referência temporal a data da propositura da acção de divórcio, no caso, o dia 05 de Abril de 2006.
O levantamento bancário em discussão, ocorrido a 14 de Outubro de 2004, foi efectuado na vigência do casamento entre os interessados, de uma conta bancária titulada por ambos, e cujo saldo se presume comum, atento o regime de bens vigente, conforme acima já deixamos expresso.
Porém, saber se o respectivo saldo deve ou não ser relacionado não se prende, salvo o devido respeito, com a circunstância de, à data da instauração da acção de divórcio, saber se a conta em questão apresentava ou não um saldo zero, conforme é defendido pelo Apelado.
Com efeito, no momento em que é efectuada a partilha dos bens deve não só proceder-se à entrega dos bens próprios ao outro ex-cônjuge, como à liquidação do património comum, com as respectivas operações de pagamento das dívidas e realização das respectivas compensações entre patrimónios – artigo 1689.º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil.
E é exactamente neste ponto que surge a dificuldade de resolução da questão em apreço uma vez que é nesta fase de liquidação do património comum que surge a questão da apreciação do comportamento tido pelo ex-cônjuge administrador em relação aos bens comuns, em que se inscreve o levantamento da quantia bancária ora em apreciação.
E é assim que, muito embora quaisquer dos cônjuges seja administrador do património comum, no que se reporta aos actos de gestão ou administração ordinária, tal não significa que o outro cônjuge que não tenha exercido essa administração fique desprotegido nos casos em que tenha havido uma actuação dolosa por parte do outro cônjuge, de que resulte prejuízos para administração dos seus bens próprios e/ou dos bens do casal, a ser exercida nos meios comuns - artigos 1678.º, n.º 3, 1679.º, 1681.º e 483.º, n.º 1, do Código Civil.
Porém, no que se reporta à movimentação de contas bancárias por parte dos casais, nos casos em que as mesmas são solidárias, entendemos que tal indagação não necessita do recurso a uma outra acção podendo, e devendo, ser feita no âmbito do processo de inventário.
Assim, tendo presente que a transferência dos respectivos fundos bancários, por parte de cada um dos seus titulares, pode determinar a lapidação do património comum a favor de quaisquer um deles, com o que se impede a respectiva conferência que é imposta no momento da partilha com vista à liquidação da comunhão, entendemos que é neste processo de inventário que, recorrendo ao mecanismo da compensação de patrimónios, se deve operar a conferência legalmente determinada pelo artigo 1689.º do Código Civil.
É, pois, no momento da partilha que cada um dos ex-cônjuges deve conferir o que deve ao património comum, realizando as respectivas compensações nos casos de enriquecimento do seu património à custa do património do outro, procedendo às imputações respectivas, quer na sua meação, quer nos bens próprios, no caso de insuficiência daqueles, por forma a que a massa comum corresponda aos bens de ambos os ex-cônjuges - artigos 1682.º, n.º 4, 1687.º, n.º 2 e 1689.º do Código Civil.
Trata-se, assim, de operar a compensação entre o patrimónios de cada um dos ex-cônjuges e a massa patrimonial comum por forma a que não se verifiquem situações de enriquecimento ilegítimo e se consiga obter a compensação entre essas massas patrimoniais.
Assim sendo, sempre importava saber se aquela conta bancária comum foi ou não movimentada com o acordo e/ou consentimento do outro co-titular, no caso, a ora Apelante e/ou, se se destinou ou não a satisfazer uma dívida do casal, conforme alegado pelo Apelado. Ora, a estas questões, que foram suscitadas na reclamação de bens e na respectiva resposta à mesma, com a indicação da prova por parte dos interessados, o Tribunal de 1.ª Instância não deu resposta, tanto mais que não fixou os factos provados e não provados.
A reclamação de bens constitui um incidente do inventário e, como tal, a sua tramitação obedece às regras gerais impostas pelos artigos 302.º e sgts. do Código de Processo Civil, impondo-se, assim, a produção de prova indicada pelas partes e a respectiva fixação dos factos apurados, por parte do Tribunal.
Apenas com a resposta às questões acima referidas – que têm ou não de resultar da prova realizada, segundo o ónus de prova respectivo -, é que o Tribunal poderá ordenar ou não a inscrição da mencionada verba na relação de bens. E, caso considere que o montante em causa deve ser relacionado, ter-se-á tal valor em consideração, não como um saldo de conta bancária conforme requerido pela Apelante, mas sim, como um crédito da Apelante sobre o Apelado, a ser satisfeito através de compensação.
Ora, no presente caso estamos perante uma situação em que o Tribunal omitiu a prática de um acto – fixação dos factos provados e não provados –, omissão essa que é insusceptível de ser reparada por parte deste Tribunal de recurso – tanto mais que não houve, como não tinha de haver, lugar a gravação dos depoimentos prestados -, tratando-se de uma irregularidade que impede o conhecimento exacto da questão e da subsequente decisão a proferir – artigo 201.º do Código de Processo Civil.
Impõe-se, pois, a anulação de todos os actos processuais posteriores à data que designa a audição das testemunhas indicadas pelos interessados, com a consequente designação de nova data para esse efeito e a prática dos demais actos processuais que se impõem, já acima referidos.
Uma vez que a alteração da decisão a proferir baseia-se na omissão da prática de um acto judicial, e apesar da oposição manifestada pelo Apelado, entende-se não haver lugar ao pagamento de custas pelo recurso cujo conhecimento sempre se impunha a este Tribunal de recurso.

IV. DECISÃO
Face ao exposto, julga-se procedente a Apelação e, nessa conformidade, declara-se a nulidade dos actos processuais praticados depois da apresentação da resposta à reclamação de bens, devendo ser designada data para a produção de prova indicada pelas partes, com a posterior fixação da matéria de facto dada como provada e não provada e prática dos demais actos processuais.
Sem custas.

Lisboa, 17 de Abril de 2012

Dina Maria Monteiro
Luís Espírito Santo
José Gouveia Barros