Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
469/2008-7
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
ACÇÃO DE DESPEJO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: A conjugação do disposto nos art.ºs 14, n.ºs 3 a 5, 1048, n.ºs 1 e 3 e 1084, n.º3, todos do NRAU, permite concluir que a acção declarativa de condenação por falta de pagamento de rendas no âmbito de um contrato de arrendamento continua a constituir meio que pode ser utilizado pelo senhorio para fazer cessar a relação de arrendamento, pois que a resolução extrajudicial do contrato com base em tal fundamento encontra-se perspectivada na lei enquanto mera faculdade concedida ao senhorio.
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa,


I – Relatório

1. A propôs acção de despejo contra M pedindo que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento referente ao rés-do-chão esquerdo do prédio urbano sito no Barreiro, e a Ré condenada no despejo imediato do arrendado e no pagamento da quantia de € 700,00, a título de rendas e juros vincendos a partir da citação, e nas rendas que se vencerem na pendência da acção até efectivo despejo.

            Fundamentaram a acção na falta de pagamento das rendas a partir de Maio de 2006.

2. Citada a Ré não deduziu contestação.

3. Considerando confessados os factos o tribunal a quo proferiu saneador e elaborou sentença que julgou a acção procedente, declarando resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a Autora e a Ré, tendo condenado esta a entregar o arrendado livre e desocupado de pessoas e bens e a pagar à Autora as rendas vencidas até à popositura desta acção no valor de € 700,00, bem como as que entretanto se venceram e vincendas até integral pagamento.

4. Da sentença apelou a Ré pretendendo a revogação da sentença, formulando as seguintes conclusões:
1. A recorrida intentou acção de despejo sob a forma sumária;
2. À data de entrada da PI inicial já vigorava a Lei 6/2006;
3. A resolução do contrato de arrendamento ao abrigo do NRAU faz-se por comunicação à contraparte;
4. Da análise da pretensão da recorrida resulta claro a inidoneidade do meio processual utilizado;
5. Dispõe o número 1 do artigo 199 do CPC que o erro da forma de processo importa a anulação dois actos que não possam ser aproveitados.
6. Todo o processado é nulo.

5. Em contra alegações a Autora defende a manutenção da sentença.

II – Enquadramento fáctico


O factualismo com interesse para a decisão consta do relatório supra e há que considerar provado, por confissão, o factualismo articulado pela Autora com interesse para o recurso, consignando-se o mesmo nos seguintes termos:

Ø Por contrato, datado de 1.04.2006, a Autora deu de arrendamento à Ré o r/c esquerdo do prédio sito no Barreiro.

Ø Foi convencionada a renda mensal de € 100.

Ø A Ré não paga a renda desde Maio de 2006, totalizando à data da entrada da acção (11-12-2006) o montante de € 700, correspondente aos meses de Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro.

III – Enquadramento jurídico

A questão colocada pela Recorrente neste âmbito é a de saber se ocorre nulidade de todo o processado por total inadequação processual.

            Defende a Ré que tendo a acção sido proposta na vigência da Lei 2/2006, não podia o tribunal conhecer a pretensão da Autora uma vez que aquele diploma legal veio estabelecer um regime processual especial para as situações de despejo por falta de pagamento e rendas – comunicação por parte do senhorio à contraparte, nos termos do n.º1 do art.º 1084 do Código Civil.

            Considera a Ré que o legislador pretendeu retirar da esfera de decisão dos tribunais, remetendo apenas para o campo privado, as situações de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de renda, que opera tão só por comunicação, sendo o despejo apenas passível de ser decretado em acção executiva[1].

            Carece a Recorrente de razão.

            Vejamos.

1. Não oferece dúvida a aplicabilidade do novo regime do arrendamento urbano[2] – (Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro – NRAU) - à situação sub judice, já que a presente acção judicial - despejo com fundamento na falta de pagamento de rendas por parte do arrendatário - não se mostra excepcionada pelo art.º 26 da citada lei (cfr. art.ºs 59, n.º1 e 60, n.º1, da referida Lei).

            No arrendamento, a renda fixada no contrato constitui a contrapartida estipulada pelas partes para o direito de fruição, gozo e utilização do arrendado, pelo que não podia o legislador deixar de manter a faculdade do senhorio resolver o contrato com fundamento na falta de pagamento das rendas.

            Manteve ainda o legislador o princípio de conceder ao arrendatário a possibilidade de efectuar o pagamento das rendas em atraso (embora com acréscimos decorrentes do atraso no pagamento), impedindo a cessação do contrato de arrendamento com esse fundamento.

            No que se refere à forma de operar a cessação do contrato de arrendamento por parte do senhorio fundada na falta de cumprimento do dever do arrendatário de proceder ao pagamento da renda, o novo regime prevê que a mesma seja processada por via extrajudicial através de comunicação à contraparte – art.ºs 1047, 1048 e 1084, do Código Civil[3].

            Dispõe o n.º 3 do art.º 1083 do C. Civil, que É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas; por sua vez o n.º 1 do art.º 1084 do mesmo código prevê que a resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista no n.º 3 do artigo anterior (…) operam por comunicação à contraparte, onde fundamentalmente se invoque a obrigação incumprida.

            A questão que se coloca é por isso a de saber se a lei ao estatuir que a resolução do contrato com base na falta de pagamento de renda com mora do arrendatário superior a três meses opere extrajudicialmente, contempla a possibilidade de recurso à acção de despejo para se obter a resolução judicial do contrato de arrendamento com esse fundamento, independentemente da duração da mora.

2. A acção de despejo encontra-se prevista no artº.14, da referida Lei 6/2006, de 27.02, onde se estatui que a acção de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento, sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação e segue a forma de processo comum declarativo.

No nº 3 determina-se que na pendência da acção de despejo, as rendas vencidas devem ser pagas ou depositadas nos termos gerais; o nº 4 reporta-se às situações em que o arrendatário não pague ou deposite as rendas vencidas por um período superior a três meses (é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito, acrescida da importância devida, sofrendo a condenação nas respectivas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito). No n.º5 foi estabelecida a possibilidade do senhorio pedir certidão dos autos relativamente nos casos em que os montantes não sejam pagos ou depositados no prazo legal, constituindo título executivo para efeitos de despejo do local arrendado no processo executivo comum para entrega de coisa certa

Embora o legislador não tenha feito qualquer referência directa no preceito ao fundamento de despejo da falta de pagamento das rendas, não podemos considerar que se trata de omissão que permita concluir que os nºs 3 a 5, do art. 14º, do NRAU, não se reportam também à acção de despejo interposta com fundamento na falta de pagamento das rendas (o facto de o seu nº 2 fazer referência tão só à falta de residência permanente, a epígrafe acção de despejo consubstancia conceito abrangente integrando necessariamente as acções instauradas com a finalidade de obter o despejo do arrendatário, independentemente da causa).

Sobre o alcance a dar a este preceito desde logo se impõe ter em atenção a circunstância da sua epígrafe Acção de despejo. Trata-se de um conceito que tem de ser entendido de um modo amplo, integrando as acções instauradas judicialmente com a finalidade de obter o despejo do arrendatário, independentemente da causa, isto é, tanto se aplica às acções de despejo instauradas pelo senhorio no caso de resolução do contrato de arrendamento com fundamento na mora e falta de pagamento das rendas, como numa situação de falta de residência permanente ou outro fundamento.

            Por sua vez há que ter em conta o disposto no art.º 1048, do C. Civil, que no n.º1 prescreve: o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca logo que o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da acção declarativa, ou para a oposição à execução, destinadas a fazer valer esse direito, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no n.º1 do artigo 1041l 

Da conjugação destes preceitos com o n.º3 do art.º 1084, do mesmo Código, retira-se a conclusão de que a acção declarativa de condenação por falta de pagamento de rendas no âmbito de um contrato de arrendamento continua a constituir um meio que pode ser utilizado pelo senhorio para fazer cessar a relação de arrendamento com base em tal circunstância.

Note-se que nada na Lei 6/2006 (cfr. art.º 21 nos termos do qual o senhorio para impugnar o depósito de renda necessita de o fazer, obrigatoriamente, por via judicial, isto é, em acção de despejo), incluindo o próprio teor do art.º 1084, n.º3 (através da expressão quando opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda – sublinhado nosso), permite concluir que se tenha querido impor ao senhorio a forma extrajudicial de resolver o contrato de arrendamento com fundamento no não pagamento de renda.

Entendemos pois que continua a ser possível o recurso à acção de despejo, prevista no artº.14, da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, para se obter a resolução judicial do contrato de arrendamento com tal fundamento, sendo que a resolução extrajudicial do contrato encontra-se perspectivada na lei enquanto faculdade concedida ao senhorio, mas não como uma imposição.

Com feito, tal como se encontra sublinhado no acórdão desta Relação de 23 de Outubro de 2007 (processo n.º 6397/2007, acessível através das bases documentais do ITIJ), o recurso à acção de despejo pode, em muitos casos, constitui uma via mais vantajosa, pois que:

- não necessita do prazo de espera de mais 3 meses, subsequentes à comunicação do senhorio, para eventual purgação da mora (art.º1084, nº3) e para a exigibilidade da desocupação do locado (art.º1087);

- impede a suspensão da execução para entrega de coisa certa nas situações em que seja válida a oposição à execução (art.º 930-B, nº1, al. a), do CPC);

- permite a cumulação do pedido de resolução com o de indemnização ou rendas e com o de denúncia, quando esta tenha de operar pela via judicial (art.º1086), permitindo ainda a cumulação de vários fundamentos de resolução

- permite a dedução de pedido reconvencional por parte do arrendatário, evitando-se que a discussão dessa matéria seja relegada para a oposição à execução.

- viabiliza que seja discutido no mesmo processo o pedido de pagamento de rendas vencidas e vincendas contra o fiador.

Não se verificando qualquer obrigatoriedade legal de recurso à via extrajudicial para cessação do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de renda, mostra-se plenamente válida a alternativa à via judicial levada a cabo pela Autora através da presente acção, falecendo, por isso, na sua totalidade, as conclusões das alegações.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

            Custas pela Apelante.


            Lisboa, 25 de Fevereiro de 2008

    Graça Amaral
   Orlando Nascimento
    Ana Maria Resende

______________________________________________________________
[1] Desta forma e segundo a Recorrente, não constituindo a acção de despejo o meio idóneo para fazer cessar o contrato de arrendamento, existiria erro na forma do processo com não aproveitamento de todos os actos, incluindo a própria petição inicial, determinando a nulidade de todo o processo.
[2] A Lei contempla a sua aplicação aos contratos celebrados na vigência do RAU (aprovado pelo Decreto-Lei nº 321º-B/90, de 15 de Outubro), com as especificidades constantes do artº. 26.
[3] Através da nova lei, a matéria relativa ao arrendamento foi retirada do RAU e repôs a mesma (a parte substantiva) no Código Civil e no (a parte processual) Código de Processo Civil.