Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3878/2007-6
Relator: AGUIAR PEREIRA
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
ESTADO
OBRIGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/20/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: 1. As prestações asseguradas pelo Estado a título de alimentos a menores que não sejam satisfeitos pelas pessoas judicialmente obrigadas a prestá-los é autónoma e tem natureza diferente da obrigação de prestação de alimentos que impende sobre estas.
2. Enquanto esta obrigação assenta na existência de relações parentais e nos vínculos de solidariedade que elas contêm, as prestações a cargo do Estado têm a natureza de uma prestação de carácter social destinada a garantir aos cidadãos menores mais carenciados e incapazes de prover ao seu sustento, condições mínimas de bem estar, incluindo os alimentos sem os quais não poderiam subsistir.
3. Porque a obrigação do Estado depende da declaração judicial de incumprimento do devedor originário, da verificação da impossibilidade do progenitor responsável pelo pagamento dos alimentos ao menor satisfazer a prestação alimentar e do apuramento da situação económica do agregado familiar do alimentado, tal obrigação do Estado nasce no momento em que tal reconhecimento judicial é feito.
(A.P.)
Decisão Texto Integral: EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
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I – RELATÓRIO
Nº do Processo: Recurso de Agravo nº 3878/07 – 6 da 6ª Secção;
Recorrente: Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social;
Recorrida: Maria M S A R;

a) MARIA M S A R, residente na Rua (…) na Amadora, mãe dos menores A F S R e M S R deduziu, por apenso ao processo de Regulação do Poder Paternal nº 242/95 da 2ª Secção do 1º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Lisboa o incidente de incumprimento por parte de JOSÉ B G R da decisão proferida naqueles autos no que se refere ao pagamento da quantia de 10.000$00 (dez mil escudos) a partir de Setembro de 2003.
Este, regularmente notificado, nada disse.
Teve oportunamente lugar a conferência de pais (fls. 44), após o que foi realizado o relatório social referente aos pais dos menores.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de se encontrar comprovado o incumprimento, com as legais consequências.
Foi então proferida decisão que deu como provado que o requerido deixou de contribuir com qualquer pensão a título de alimentos aos menores desde Setembro de 2003, sendo calculado o total da sua dívida para com os menores em € 3.441,70 (três mil quatrocentos e quarenta e um euros e setenta cêntimos).
Mais foi decidido que, não sendo conhecidas fontes de rendimento ao requerido e visto o disposto na Lei 75/98 de 19 de Novembro e no Decreto Lei 164/99 de 13 de Maio era incumbência do Estado garantir as prestações de alimentos até ao cumprimento da obrigação respectiva, responsabilidade essa que integrava não só as prestações vincendas como também as já vencidas.
Em conformidade foi o Fundo de Garantia dos Alimentos devidos a Menores condenado a pagar as prestações de alimentos vincendas, no montante de € 50,00 (cinquenta euros) mensais a favor do menor M R e de € 300,00 (trezentos euros) mensais relativamente às prestações já vencidas.
b) Inconformado com tal decisão dela interpôs recurso de agravo o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, pretendendo a revogação da decisão e a sua substituição por outra que a condene a pagar as prestações apenas a partir do mês seguinte ao da notificação.
A agravante remata as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“1. A douta sentença recorrida interpretou e aplicou de forma errónea, ao caso sub judice, o artigo 1º da Lei 75/98 de 19/11 e o artigo 4° nº 4 e 5 do Decreto Lei nº 164/99 de 13 de Maio;
2. Com efeito, o entendimento do douto Tribunal a quo, de que no montante a suportar pelo FGADM devem ser abrangidas as prestações, por conta dos alimentos vencidos (desde Setembro de 2003) e não pagos pelo progenitor judicialmente obrigado a prestar alimentos) - Que não pagou porque não quis, uma vez que - como ele próprio afirma e o Tribunal "a quo" logrou a sua convicção a partir da confissão do requerido - apenas desde Janeiro de 2004, deixou de trabalhar e auferir salário, no valor global de € 3 441,70, não tem, salvo o devido respeito, suporte legal;
3. O Decreto Lei nº 164/99 de 13 de Maio é taxativo quanto ao início da responsabilidade do Fundo pelo pagamento das prestações;
4. No nº 5 do artigo 4º do citado diploma, é explicitamente estipulado que "o centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal, nada sendo dito quanto às prestações em dívida pelo obrigado a prestar alimentos;
5. Existe urna delimitação temporal expressa que estabelece o momento a partir do qual o Fundo deve prestar alimentos ao menor necessitado;
6. Não foi intenção do legislador dos supra mencionados diplomas legais, impor ao Estado, o pagamento do débito acumulado pelo obrigado a prestar alimentos;
7. Constituiu, pelo contrário, preocupação dominante, nomeadamente do Grupo Parlamentar que apresentou o projecto de diploma, evitar o agravamento excessivo da despesa pública e um aumento do peso do Estado na sociedade portuguesa;
8. Tendo presente o preceituado no artigo 9º do Código Civil, ressalta ter sido intenção do legislador, expressamente consagrada, ficar a cargo do Estado, apenas o pagamento de uma nova prestação de alimentos a fixar pelo Tribunal dentro de determinados parâmetros – artigo 3º nº 3 e artigo 4º nº 1 do Decreto Lei 164/99 de 13/5 e artigo 2º da Lei 75/98 de 19/11;
9. A prestação que recai sobre o Estado é, pois, uma prestação autónoma, que não visa substituir definitivamente a obrigação de alimentos do devedor, mas, antes, proporcionar aos menores a satisfação de urna necessidade actual de alimentos, que pode ser diversa da que determinou a primitiva prestação;
10. Não há qualquer semelhança entre a razão de ser da prestação de alimentos fixada ao abrigo das disposições do Código Civil e a fixada no âmbito do Fundo. A primeira consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do poder paternal; a última visa assegurar, no desenvolvimento da política social do Estado, a protecção do menor, proporcionando-lhe as necessárias condições de subsistência;
11. Enquanto o artigo 2006º do Código Civil está intimamente ligado ao vínculo familiar – artigo 2009º do CC – e daí que quando a acção é proposta, já os alimentos seriam devidos, por um princípio de Direito Natural, o Decreto Lei 164/99 "cria" uma obrigação nova, imposta a uma entidade que antes da sentença não tinha qualquer obrigação de os prestar.
12. Muito bem decidiu o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – agravo nº 1386/01 de 26­06-01- no sentido de o Estado não responder pelo débito acumulado do obrigado a alimentos, tratando­-se de prestações de diversa natureza. No mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos citados no ponto 26 das presentes alegações.
13. Não colhe o argumento de que o menor não pode ficar à mercê das contingências do processo e seu arrastamento pelos Tribunais, porquanto, como é do conhecimento geral, no entretanto, e enquanto o processo se encontra pendente do Tribunal, a verdade é que alguém tem de alimentar o menor, sob pena de este não sobreviver.
14. O legislador não teve em vista uma situação que a médio prazo se tornasse insustentável para a despesa pública, face à conjuntura sócio-económica já então perfeitamente delineada;
15. E não se diga que se trata de argumentos de pendor economicista daqueles a quem cabem atribuições de cariz social, pois importa salientar que as atribuições de cariz social do Estado não se esgotam no FGADM, o qual constitui uma ínfima parte das mesmas, sendo certo que a todas o Estado tem de dar satisfação.
16. Os diplomas em apreço apenas se aplicam para o futuro, não tendo eficácia retroactiva – artigo 12º do Código Civil;
17. Não pode proceder-se à aplicação analógica do regime do artigo 2006º, dada a diversa natureza das prestações alimentares.
18. O FGADM somente deverá ser responsabilizado pelo pagamento das prestações fixadas e devidas a partir da prolação da sentença judicial, e não pelo pagamento do débito acumulado do obrigado a alimentos, a partir da data da proposição da acção.
19. O que se entende facilmente se atentarmos na finalidade da criação do regime instituído pelos supra citados diplomas legais, que é o de assegurar (garantir) os alimentos devidos a menores e não o de substituir a obrigação alimentícia que recai sobre o obrigado a alimentos.”
c) Maria M S R apresentou as suas contra alegações defendendo a manutenção do decidido e argumentando, em síntese, que é ao Estado que cabe assegurar a protecção da criança e o seu desenvolvimento e garantir que elas possuem condições mínimas de subsistência e que dos diplomas que regulam a matéria não consta referência expressa ao momento a partir do qual são devidas pelo Estado as prestações, sendo o artigo 4º nº 5 do Decreto Lei 164/99 de 13 de Maio uma norma de natureza puramente administrativa de onde não decorre que não sejam devidas todas as prestações já vencidas e não pagas.
d) O Exmº Sr. Juiz manteve, tabelarmente, a decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A. DOS FACTOS
1. Os factos a ter em conta na apreciação do recurso de agravo são os que se encontram já descritos no relatório desta decisão.
Relembrando, está, no essencial, provado:
1 – M S R e A F S R nasceram, respectivamente, a 1 de Setembro de 1990 e 16 de Fevereiro de 1988;
2 – Por sentença, transitada em julgado, datada de 14.02.1996, proferida nos autos principais, foi determinado que o requerido contribuiria, a favor dos ditos (então) menores, com a quantia mensal de 10 000$00, para cada um;
3 – O requerido deixou de contribuir com qualquer pensão de alimentos desde Setembro de 2003, inclusive;
4 – Não é conhecida, a partir de Janeiro de 2004, inclusive, qualquer profissão remunerada ao requerido;
5 – Em 31 de Março de 2004, os ditos M e A viviam com a requerente e uma irmã uterina, de 9 anos de idade;
6 - Na referida data, a requerente apurava, para o agregado familiar, um rendimento líquido de cerca de € 200,00 mensais, acrescidos das prestações familiares de dois menores, no valor de €60,00, bem como de apoio monetário por parte da família alargada, em valor não apurado, sendo a deduzir as despesas relativas a consumos domésticos, no valor de € 65,00;

B. DO DIREITO
1. A única questão a decidir nos presentes autos é a de saber a partir de que momento são devidas pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, instituição gerida pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, as prestações alimentares fixadas ao abrigo do disposto na Lei 75 / 98 de 19 de Novembro e no Decreto Lei 164 / 99 de 13 de Maio que regulamenta aquela lei.
A questão tem sido objecto de decisões desencontradas na jurisprudência, variando as soluções dadas desde a adoptada na decisão recorrida – considerar o Estado responsável pelo pagamento de todas as prestações em dívida pelo originário devedor e pelas posteriores ao reconhecimento do incumprimento – até à defendida pelo agravante e que considera o Estado responsável apenas a partir do mês seguinte ao da notificação da decisão, louvando-se no disposto no artigo 4º nº 5 do Decreto Lei 164/99 de 13 de Maio.
Entre estas duas posições surge a corrente que considera que o Estado apenas deve garantir o pagamento das prestações a partir da verificação da impossibilidade do devedor originário satisfazer as prestações a que está obrigado, ainda que algumas decisões façam retroagir ao momento da propositura do incidente de incumprimento a obrigação do Estado aplicando analogicamente a regra do artigo 2006º do Código Civil.
2. Está em causa o cumprimento de uma obrigação alimentar do Estado, em substituição do devedor originário.
Nos termos do artigo 1º da Lei 75/98 de 19 de Novembro, “quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida (…) e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação”.
Por sua vez o artigo 2º do mesmo diploma estipula que as prestações atribuídas são fixadas pelo tribunal e que não podem exceder mensalmente por cada devedor o montante de 4 Unidades de Conta, devendo atender-se à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.
Dos preceitos acabados de citar resulta, pois, que apesar de ter como referência a pensão fixada previamente pelo Tribunal, a prestação a que o Estado fica obrigado é dela perfeitamente autónoma quer quanto ao respectivo montante, que não tem que corresponder ao montante fixado, quer quanto à sua natureza.
Na verdade enquanto a obrigação de alimentos dos pais em relação aos filhos deriva directamente da existência de relações parentais que justificam que sejam os pais, principais e originários responsáveis pela subsistência dos menores, a assegurar a prestação de alimentos, a prestação alimentar de que agora se trata tem a natureza de uma prestação de carácter social que impõe à sociedade e ao Estado, na ausência de prestação de alimentos pelos pais, e no cumprimento de um dever com raiz constitucional, a obrigação de proporcionar aos cidadãos menores incapazes de prover ao seus sustento e mais carenciados, condições mínimas de bem estar, incluindo a prestação de alimentos sem os quais não poderiam subsistir.
3. A Lei 75/98 de 19 de Novembro foi regulamentada pelo Decreto Lei 164/99 de 13 de Maio, de cujo preâmbulo resulta claramente a natureza autónoma da prestação a que o Estado fica obrigado.
A ser assim, como é, não faria sentido que o Estado ficasse, sem mais, obrigado a suportar todas as prestações pela simples circunstância de elas não terem sido pagas pelo devedor originário.
4. Por outro lado nem a Lei 75/98 de 19 de Novembro nem o Decreto Lei 164/99 de 13 de Maio estabelecem o momento a partir do qual fica o Estado obrigado a pagar a prestação alimentar.
È certo que o artigo 4º nº 5 do Decreto Lei 164/99 de 13 de Maio dispõe, expressis verbis, que o Estado, através dos organismos competentes, “inicia o pagamento das prestações (…) no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal” de fixação das prestações.
Sendo esta norma, enquadrada num diploma regulamentar, justificada por razões burocrático – administrativas relativas ao processamento das prestações, dela não se extrai que é esse o momento em que o Estado fica constituído na obrigação de pagamento da prestação em substituição do devedor originário.
Por outro lado a aplicação ao caso dos autos do disposto no artigo 2006º do Código Civil parece ficar afastada pela diferente natureza da obrigação imposta ao Estado e pelo carácter excepcional e autónomo que ela assume em relação à obrigação de alimentos a prestar pelas pessoas expressamente mencionadas no artigo 2009º nº 1 do Código Civil.
5. Resta então indagar qual o momento a partir do qual é devida a prestação do Estado.
E tal momento não pode ser outro senão aquele em que, por decisão judicial, se reconheça a verificação, no caso concreto, das condições de que depende a obrigação de pagamento da prestação social por parte do Estado, isto é, da declaração do incumprimento e da impossibilidade do progenitor responsável pelo pagamento dos alimentos ao menor satisfazer a obrigação a que se encontra vinculado e do apuramento da situação económica do agregado familiar do alimentado.
Só nesse momento nasce a obrigação do Estado pagar a prestação prevista na Lei 75/98 de 19 de Novembro.
Neste sentido também se decidiu no acórdão de 10 de Março de 2005 desta secção e Tribunal publicado na CJ – 2005 – Tomo II a páginas 74 e 75.
6. O presente recurso merece, por isso, parcial provimento, devendo ser revogada a douta decisão recorrida que será substituída por outra que condene o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a pagar ao menor Marcelo Rodrigues as prestações vencidas desde 7 de Novembro de 2006 e as prestações vincendas, todas no valor de € 50,00 (cinquenta euros) mensais.

III – DECISÃO
Por tudo o exposto acordam em:
a) Conceder parcial provimento ao agravo;
b) Revogar o segmento da decisão impugnada que condenou o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a suportar o pagamento das prestações vencidas no valor de € 300 (trezentos euros) mensais até perfazer o montante de € 3.441,70 (três mil quatrocentos e quarenta e um euros e setenta cêntimos);
c) Manter tudo o mais que foi decidido, incluindo a condenação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a pagar as prestações vincendas a partir de Novembro de 2006, inclusive, à razão de € 50 (cinquenta euros) mensais.
Custas pela agravante e agravada na proporção de 1/10 para a primeira e de 9/10 para a segunda.
Lisboa, 20 de Setembro de 2007

Manuel José Aguiar Pereira
Gilberto Martinho dos Santos Jorge
Maria da Graça de Vasconcelos Casaes Moreira Araújo