Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
475/10.0YXLSB.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DEPÓSITO DA RENDA
LOCAL DE PAGAMENTO
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Realizada pelo locatário a consignação em depósito das rendas, sem fundamento legal para tanto, mas sem que a locadora tenha procedido à sua impugnação nos termos do art.º 21.º do NRAU, não pode nessas circunstâncias, a locadora exigir a resolução do contrato por falta de pagamento de rendas.
II - O não acatamento, por parte da locatária, da indicação dada pela locadora, quanto ao local de pagamento da renda, sem qualquer razão justificativa, causando incómodos e prejuízos à locadora, constitui um incumprimento de tal modo grave que torna inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, constituindo fundamento para a resolução do contrato.
(MDC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
Maria intentou a presente acção sob a forma ordinária contra “S, S.A.”, pedindo a resolução do contrato celebrado com a Ré, com o consequente despejo e a condenação da Ré a pagar á A. o valor das rendas de Setembro de 2009 a Fevereiro de 2010, no valor total de 3.333,00€, acrescido de juros à taxa legal.
Para tanto alega, em síntese, que é senhoria de determinada fracção arrendada à Ré, identificada nos autos, ficando estipulado no contrato o local de pagamento da renda como sendo a residência do senhorio ou o local onde o mesmo indicasse. Refere, porém, que em determinada altura e a pedido de uma funcionária da Ré, a A. passou a deslocar-se à loja arrendada, comunicando a A. à Ré tal alteração, porém, em Julho de 2009 a A. por não se encontrar em Lisboa, referiu à Ré que apenas se deslocaria ao locado no dia 13, mas a Ré sem aguardar, acabou por depositar a renda, comunicando tal facto à A.. Alega que, em Agosto de 2009, a A. comunicou à Ré que a renda deveria ser paga por transferência bancária, porém, a Ré não aceitou tal alteração por entender que era uma alteração unilateral do contrato, dizendo ainda que a A. não impugnou o depósito em tempo, pelo que seria de manter tal situação, pelo que face a esta situação estão em divida as rendas, desde Setembro de 2009 a Fevereiro de 2010, obrigando a A. a proceder ao levantamento na CGD e a receber uma quantia inferior em 5% do seu valor.

Citada a Ré, a mesma contestou e reconveio, alegando que a consignação em depósito foi feita para evitar que a Ré ficasse em mora, pois a A. já havia intentado uma acção de despejo contra a ré em momento anterior, pelo que se justificava a desconfiança da Ré, e nunca esta recebeu atempadamente qualquer notificação de alteração ou de impugnação do depósito efectuado, impugnando o demais alegado.
Em reconvenção, alega que por força das obras levadas a cabo pela A. no locado, a Ré deixou de poder usufruir do mesmo, sendo que no locado a Ré cede o espaço para a apresentação de produtos de terceiros, tendo deixado de auferir cerca de 20.000 €. Além disso, refere que as obras não foram efectuadas correctamente, tendo a Ré tido necessidade de despender os valores de 605,00 € e 266,20 €, e ainda outras que se venham a apurar em execução de sentença.
A ré juntou aos autos os depósitos efectuados na CGD, desde Agosto de 2009 a Março de 2010.

A A. respondeu mantendo o alegado em sede de petição inicial, e referindo que a mora recai sobre a Ré não sendo o depósito liberatório, pois a partir do 1º depósito efectuado, a A. alterou o local de pagamento. Impugnou ainda a matéria da reconvenção, pugnando pela sua improcedência.

Decorridos todos os trâmites legais, foi realizado o julgamento e proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:
a) Resolver o contrato de arrendamento em causa nos autos entre A. e Ré;
b) Condenar a Ré a entregar o locado livre e devoluto de pessoas e bens à Autora;
c) Condenar a Ré a pagar à A. o valor das rendas vencidas, desde Setembro de 2009 a Fevereiro de 2010, e pagamento das rendas vincendas desde essa data e até à entrega efectiva do locado;
d) Condenar ainda a Ré a pagar à A. os juros vencidos e vincendos sobre cada uma das rendas vencidas e não pagas, á taxa legal, até integral pagamento;
e) Julgar o pedido reconvencional improcedente por não provado e, consequentemente absolver a A. do mesmo.

Inconformada com tal sentença, a Ré interpôs recurso de apelação. Formulou as seguintes conclusões:
1) a acção de despejo de cuja sentença ora se recorre foi intentada fora do prazo previsto no art.º 20º nº 2 do NRAU, sendo consequentemente intempestiva e não deveria ter sido aceite ou procedido.
2) a acção de despejo de cuja sentença ora se recorre não contém impugnação do depósito de rendas efectuadas pela ré, presumindo-se assim a aceitação dos mesmos e esvaziando o fundamento da acção de despejo, pelo que a sentença se mostra contrária ao disposto no art.º 20º nºs 1 e 2 do NRAU.
3) por ambos estes factos a acção de despejo não deveria ter sido aceite nem procedido.
4) a sentença recorrida afigura-se nula por falta de fundamentação quanto à matéria de facto, por ausência de indicação específica quanto à relevância atribuída à prova testemunhal.
5) a sentença recorrida é nula nos termos da alínea d) do nº 1 do art.º 668º do cpc, porquanto se mostra omissa quanto a qualquer referência à prova testemunhal.          
6) as normas violadas e supra referenciadas foram interpretadas e aplicadas em sentido diverso ao da intenção do legislador pela meritíssima juíza, pelo que deverão ser aplicadas nos precisos termos em que o legislador as consagrou.
7) deve assim a sentença ser considerada nula nos termos supra invocados em 4) e 5) destas conclusões.
8) deve a decisão ser alterada julgando-se a acção improcedente atentas as conclusões 1) e 2) e por os depósitos de renda efectuados terem sido aceites.
Termos em que se deduz o presente recurso que deve ser julgado procedente com as devidas consequências legais.

Nas suas contra-alegações, a Autora pugna pela improcedência do recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II-OS FACTOS
Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A A., desde 27 de Julho de 1989, que é proprietária da fracção autónoma designada pela letra B, correspondente ao r/c esquerdo, com a entrada pelo nº 10 D, sito na Rua (…) em Lisboa;
2. Por escritura pública lavrada no 3º Cartório Notarial de Lisboa, datada de 12 de Janeiro 1988, foi celebrado entre o anterior proprietário e a “S, Lda” um contrato de arrendamento com fiança, que tinha por objecto a referida fracção, correspondente a loja, tendo como destino pela Ré de “exercer a sua actividade de produção, venda, exportação de artigos de vestuário e calçado, podendo nele ser exercida a actividade de promoção, administração e transacção de bens imobiliários, e ali funcionarem escritórios e armazém da arrendatária no estrito âmbito das actividades referidas” (tudo nos termos da cópia da escritura junta a fls. 21 a 26 cujo teor se dá por integralmente reproduzida).
3. Mais se previu que o arrendamento tinha o seu início a 1/11/87, o prazo era de seis meses, renovando-se automática e sucessivamente por iguais períodos, sendo o valor inicial da renda de 40.000$00 mensais, e prevendo-se na cláusula terceira, além do mais, que a renda deveria ser paga até ao dia 8 do mês anterior àquele a que disser respeito, e na residência do senhorio ou em qualquer outro local que ele venha a indicar, mas sempre em Lisboa;
4. Estabeleceu-se ainda na cláusula quarta que «só poderão ser efectuadas obras no local arrendado com prévia autorização do senhorio» e «Por quaisquer obras e, ou benfeitorias efectuadas no local arrendado pela arrendatária, não terá esta direito a indemnização ou a alegar qualquer retenção, ficando todas elas, desde que indestacáveis a fazerem parte integrante do local».
5. E na cláusula sétima ficou estabelecido que «Em caso de obras, benfeitorias ou pinturas do local arrendado que o senhorio pretenda efectuar, a arrendatária obriga-se a permiti-las e a facilitá-las, ficando aquele obrigado a não demorar os trabalhos além do tempo estritamente indispensável»;
6. No dia 14 de Julho de 2009, a ré enviou á A. a carta, datada de 10/07/2009, cuja cópia se encontra junta a fls. 27 e cujo teor se reproduz, na qual se refere, além do mais que «Na impossibilidade de aceitar atempadamente a renda por nós devida respeitante à sua propriedade (…) da qual somos arrendatários, vimo-nos forçados a efectuar o depósito da respectiva renda, da qual juntamos comprovativo», juntado o comprovativo cuja cópia constitui o doc. de fls. 28, que se reproduz;
7. Por carta datada de 15 de Julho de 2009, registada e enviada pela A. à ré, e cuja cópia se junta a fls. 29 e dando-se por reproduzido o seu teor, a A. vem solicitar à ré que «a partir do mês de Agosto, o pagamento da renda mensal do locado, seja feito através de depósito no balcão BPI, Av. ..., na conta nº (…), ou por transferência bancária para a conta com o NIB nº (…);
8. A ré enviou á A. a carta junta a fls. 31 cujo teor se reproduz, e na qual refere além do mais, que não aceita a alteração em relação ao pagamento das rendas e dá conhecimento do depósito da renda na CGD;
9. A ré procedeu ao depósito na CGD do valor das rendas relativas aos meses de Agosto de 2009 a Novembro do mesmo ano;
10. Ao longo de 2007, o locado foi objecto de obras por iniciativa e a cargo da A.;
11. A A., em 1998, intentou contra a ré uma acção que correu termos na 9ª Vara Cível de Lisboa, sob o nº 124/98, acção na qual pretendia a resolução do contrato de arrendamento existente entre as partes e relativa ao locado em causa, invocando para tal a falta pela ré do exercício do comércio no local arrendado, a qual foi julgada improcedente por sentença transitada em julgado a 8 /11/2002 ( cfr. Certidão junta a fls. 168 a 179 ).
12. Desde a data da aquisição do locado pela A. e até final do ano de 2005, a renda era paga pela ré na residência da senhoria ora A..
13. A partir do final do ano de 2005 e até Julho de 2009, a pedido de uma funcionária da ré, a A. passou na maioria dos meses a deslocar-se ao locado para receber o valor da renda.
14. No dia 8 de Julho de 2009, a A. comunicou à Ré que não poderia deslocar-se nesse dia ao locado, pelo que a renda deveria ser paga no dia 13 do mesmo mês e ano, data em que a A. se deslocaria a Lisboa e ao locado.
15. No dia 13 de Julho de 2009, a A. foi informada pela Ré que o valor da renda havia sido depositado.
16. A A. enviou para a morada da Ré uma carta datada de 12 de Agosto de 2009, reiterando que a renda deveria ser paga nos termos referidos em 7. e não através de depósito na CGD.
17. A Ré dedica-se à cedência temporária de espaços do locado a terceiros para apresentação de roupa, com carácter sazonal.
18. A Ré aufere pela cedência das salas do locado a terceiros cerca de 80 € por dia.

III - O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição, as questões que importa apreciar são as seguintes:
1 - Nulidade da sentença
2 - Prazo previsto no art.º 21º n.º 2 do NRAU
3 - Fundamento legal para a resolução do contrato de arrendamento.

Como questão prévia cumpre referir que, não obstante a transcrição dos depoimentos das testemunhas constante de fls. 321-375, a verdade é que não se cumprem quaisquer dos requisitos previstos no art.º 685-B n.º1 do CPC, ou seja, não se indicam os pontos de matéria de facto que se considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que impunham decisão diferente da recorrida, sobre tais pontos de facto. Resulta antes das alegações da Recorrente uma exposição confusa que mistura a matéria de facto com os respectivos meios probatórios. Nestas circunstâncias, cremos que nem sequer se trata de rejeitar o recurso sobre a decisão da matéria de facto, pois, na verdade, não terá havido sequer intenção de recorrer dessa decisão. O que se pretendeu foi invocar a nulidade da sentença, como consta das conclusões. Demonstrativa dessa confusão mencionada é o facto de se invocar como motivo de nulidade da sentença a falta de fundamentação quanto à matéria de facto, “por ausência de indicação específica quanto à relevância atribuída à prova testemunhal” e porque “se mostra omissa quanto a qualquer referência à prova testemunhal”. Da invocação dessas nulidades se tratará seguidamente.
1 - A Apelante conclui que a sentença recorrida é nula “por falta de fundamentação quanto á matéria de facto, por ausência de indicação específica quanto à relevância atribuída à prova testemunhal” e por “se mostrar omissa quanto a qualquer referência à prova testemunhal
Ora, nos termos da alínea b) do n.º1 do art.º668.º do CPC será nula a sentença “ quando não especifique os fundamentos de facto (…) que justificam a decisão”. Não é, claramente, o caso da sentença recorrida que descreve todos os factos provados que constitui a fundamentação de facto da sentença.
Por sua vez a fundamentação, relativamente à decisão sobre a matéria de facto e que não tem de constar da sentença, mas sim dessa mesma decisão, consta de fls.288-290. Nela se faz pormenorizada referência ao depoimento das testemunhas, na medida em que serviram para formar a convicção do Juiz relativamente a cada um dos factos que deu como provados.
Não há assim, qualquer fundamento para a invocação de nulidade da sentença pelo indicado motivo.

2 - Importa agora apreciar a questão da invocada caducidade da acção por não ter sido proposta no prazo de 20 dias previsto no art.º 21.º n.º2 do NRAU[1].
Estipula o art.º 21.º n.º1 do NRAU[2] que “a impugnação do depósito deve ocorrer no prazo de 20 dias contados da comunicação, seguindo-se, depois, o disposto na lei de processo sobre a impugnação da consignação em depósito.” Ora, de acordo com o art.º 1027.º do Código de Processo Civil (CPC) os fundamentos da impugnação podem ser a inexactidão do motivo invocado, ser maior ou diversa a quantia ou coisa devida ou ainda ter o credor qualquer outro fundamento legítimo para recusar o pagamento.
No caso em apreço em que é instaurada acção de despejo com fundamento na falta de pagamento de rendas, o que verdadeiramente está em causa é o depósito das rendas que a locadora entende não ser liberatório, discordando que haja fundamento legal para o referido depósito. Portanto, o senhorio logo que lhe foi comunicado o depósito da renda, deveria ter procedido à impugnação do depósito, no prazo previsto no art.º 21.º n.º1, ou seja, 20 dias contados dessa comunicação do depósito. E uma vez que pretendia resolver judicialmente o contrato de arrendamento por não pagamento das rendas, diz o art.º 21.º n.º2 que essa impugnação deve ser efectuada “em acção de despejo a intentar no prazo de 20 dias contados da comunicação do depósito”.
Ora, aplicando, automaticamente, o referido preceito legal, ao caso em apreço, chegaríamos a uma solução absurda, ou seja, o senhorio para evitar a caducidade do seu direito de accionar o locatário, teria de propor a acção de despejo numa data em que apenas se encontraria em atraso a renda de um único mês. Ora, parece-nos que tal solução não foi desejada pelo legislador, considerando, em confronto, o que dispõe o art.º 1083.º n.º3 do Código Civil.
Ou seja, se o legislador estabeleceu como critério legal de inexigibilidade da manutenção do vínculo contratual, a mora do inquilino, por período superior a três meses, tal significa, por outro lado, que considera como razoável tal período de três meses para que ocorra uma regularização da relação contratual, sem recurso à via litigiosa. Claramente, o legislador fomenta a manutenção dos vínculos contratuais, o que muito favorece a estabilidade jurídica e a paz social, ao estabelecer no art.º 1084.º n.º3 do C.Civil que “a resolução pelo senhorio, quando opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de três meses”.
Então, perante o pensamento do legislador constante destes preceitos acabados de citar, conclui-se que seria incongruente impor ao senhorio que no caso sub judice, instaurasse acção de despejo, sob pena de caducidade do direito, numa data em que apenas estava em atraso a renda de um único mês.
Uma vez que estamos no âmbito da interpretação de um preceito legal não podemos perder de vista o disposto no art.º 9.º n.º1 do Código Civil segundo o qual “ a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…)”, bem como o disposto no n.º3 “ na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
Assim, face ao que fica exposto, cremos que não se aplica ao caso em apreço, o prazo previsto no art.º21.º n.º2. O prazo em causa, considerando a interpretação que tem em conta a unidade do sistema jurídico e visto o regime previsto nos preceitos supra mencionados, só poderá aplicar-se caso o depósito que se pretende impugnar diga respeito a três ou mais rendas em dívida.
Improcedem, portanto, a este respeito as conclusões da Apelante.
                       
3 - Por fim, importa analisar a questão se saber se há fundamento para resolução do contrato, por falta de pagamento das rendas.
Cumpre desde logo acentuar o seguinte: nunca a locatária deixou de pagar qualquer renda. O que se passou foi que, a determinado momento, decidiu passar a depositar as rendas em vez de as pagar directamente ao senhorio. Vejamos em que circunstâncias e qual a consequência jurídica desse facto.
Como consta da matéria de facto assente, desde a data da aquisição do locado pela A. e até final do ano de 2005, a renda era paga pela Ré na residência da senhoria ora A. Porém, a partir do final do ano de 2005 e até Julho de 2009, a pedido de uma funcionária da Ré, a Autora passou na maioria dos meses a deslocar-se ao locado para receber o valor da renda. Sucede que, no dia 8 de Julho de 2009, a A. comunicou à Ré que não poderia deslocar-se nesse dia ao locado, pelo que a renda deveria ser paga no dia 13 do mesmo mês e ano, data em que a A. se deslocaria a Lisboa e ao locado.
Perante esta comunicação por parte da Autora, que fez a Ré? Em vez de esperar que a Autora, no dia 13, fosse receber a renda, como entendemos que seria razoável, a Ré, num excesso de zelo, apressa-se a depositar a renda, comunicando esse facto à Autora que, no dia 13 de Julho de 2009, foi informada pela Ré que o valor da renda havia sido depositado.
Afigura-se-nos que não havia fundamento legal para o depósito da renda pois a Autora tinha comunicado que iria recebê-la no dia 13 de Julho, pelo que só a partir dessa data, caso não se concretizasse a deslocação da senhoria ao locado, se poderia considerar que a mora do credor poderia justificar a consignação em depósito, conforme decorre do disposto no art.º 841.º b) do Código Civil.
Porém, a verdade é que a Autora não impugnou o depósito nos termos do art.º 21.º n.º1 do NRAU e até procedeu ao levantamento dessa renda, aceitando inclusivamente no art.º 40.º da petição inicial que pudesse haver algum fundamento para esse depósito de Julho de 2009. Não nos vamos, portanto, deter mais nesta renda, pois não constitui ela o fundamento da presente acção, mas sim o comportamento posterior da Ré.
Importa, assim, prosseguir na análise do comportamento das partes, após o supra descrito episódio. Salienta-se que, por carta datada de 15 de Julho de 2009, e que a Ré recebeu, a Autora solicita à Ré que “ a partir do mês de Agosto, o pagamento da renda mensal do locado, seja feito através de depósito no balcão do Banco BPI, Av.ª de ..., na conta n.º…. ou por transferência bancária para a conta com o NIB ……..”
E perante, esta carta qual o procedimento da Ré? Em vez de dar satisfação à pretensão legítima da Autora, a Ré continuou a consignar em depósito as rendas.
Destaca-se, do contrato de arrendamento, a cláusula 3.ª que interessa especialmente para a decisão em apreço onde se estipula que a renda deveria ser paga até ao dia 8 do mês anterior àquele a que disser respeito, e “na residência do senhorio ou em qualquer outro local que ele venha a indicar, mas sempre em Lisboa”.
A Autora tinha, portanto, o direito de estabelecer a alteração do local de pagamento e exerceu-o em termos perfeitamente razoáveis e que envolveria maior comodidade para ambas as partes. Com efeito, a transferência bancária é o meio mais expedito de proceder ao pagamento das rendas, com a vantagem de prevenir a eclosão de litígios desnecessários como aquele que deu origem a este processo.
Assim, não se vislumbra o motivo pelo qual a Ré continuou a proceder à consignação em depósito das rendas subsequentes. Mais uma vez, a consignação em depósito não tem qualquer fundamento legal, pois também aqui não se verificam os respectivos pressupostos previstos no art.º 841.º do C.C. Também não tem aplicação o disposto no art.º 20.º do NRAU, desde logo porque não subsistiu a causa do depósito. Ainda que se aceite que, em Julho de 2009, atento o facto de haver um ambiente de desconfiança entre as partes, a Ré tenha receado ser considerada em mora, o que a levou a depositar a renda em vez de esperar que a senhoria fosse receber a renda, já a partir de Agosto, não se justificava tal receio. Portanto, ainda que se considerasse tal facto justificativo do depósito, essa causa sempre teria deixado de subsistir. A partir do momento em que a Autora comunica à Ré que a renda deverá ser paga por transferência bancária – o que fez por carta datada de 15 de Julho de 2009- seria essa a forma de pagamento que a Ré deveria ter usado logo em relação à renda vencida em 1 de Agosto de 2009. Não se vislumbra o motivo da recusa em assim proceder, por parte da Ré, enredando-se as partes num conflito sem qualquer explicação lógica. Na verdade, proceder à consignação em depósito, além de não haver qualquer fundamento legal para tanto, só traz mais incómodos para ambas as partes e despesas para a Autora. Inclusivamente para a Ré seria mais prático e simples proceder ao pagamento por transferência bancária, em vez de, mensalmente, se deslocar à Caixa Geral de Depósitos para proceder ao depósito da renda à ordem do Tribunal cível de Lisboa.
Posto isto, verificadas as circunstâncias em que foi realizada a consignação em depósito, vejamos as consequências jurídicas da situação exposta.
Como já foi realçado supra, sublinha-se que o caso em análise não é um caso de falta de pagamento de rendas. A Ré nunca deixou de pagar qualquer renda. Sucede apenas que passou a fazer a respectiva consignação em depósito. Já vimos que a mesma não tem qualquer fundamento legal, mas por isso mesmo a Autora deveria ter procedido à sua impugnação nos termos do art.º 21.º do NRAU. Não o tendo feito, afigura-se-nos que não poderá exigir a resolução do contrato por falta de pagamento de rendas[3].
Contudo, tal não quer dizer que a conduta da Ré possa ser sancionada e não tenha consequências jurídicas.
Independentemente da discussão jurídica em torno da consignação em depósito, a verdade é que a Ré manifestou, reiteradamente, pelo menos desde Agosto de 2009 até Março de 2010, a sua recusa em alterar o local de pagamento da renda, conforme comunicação que lhe foi feita pela Autora, em conformidade com a cláusula 3.ª do contrato. Concomitantemente, sem qualquer explicação, a Ré persistiu no incumprimento daquela cláusula contratual. Dúvida não há, portanto, que a Ré entrou em incumprimento contratual, bem patente na posição que evidenciou na carta datada de 7 de Agosto de 2009, dirigida à Autora:” por entendermos que a pretensão de V.Ex.ª em relação ao pagamento das rendas prefigura uma alteração unilateral ao contrato de arrendamento entre nós celebrado, vimos comunicar a não aceitação dessa alteração e damos conhecimento do depósito efectuado na C.G.D. da qual anexamos a respectiva cópia.” Ora, tal atitude é reveladora de um flagrante incumprimento contratual, pois como a Ré tinha perfeito conhecimento, ao abrigo da cláusula 3.ª do contrato, a Autora tinha toda a legitimidade para, unilateralmente, alterar o local de pagamento da renda, desde que esse local se situe em Lisboa.
Nos termos do art.º 1083.º n.º1 do Código Civil “qualquer das partes pode resolver o contrato nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.” E acrescenta-se no n.º2 do mesmo preceito legal que “é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”.
O não acatamento da indicação dada pela locadora, quanto ao local de pagamento da renda, por parte da Ré, atentas as circunstâncias, sem qualquer razão justificativa, causando incómodos e prejuízos à Autora, constitui um incumprimento de tal modo grave que torna inexigível á outra parte a manutenção do arrendamento.
É insustentável manter-se uma relação contratual de arrendamento, nas condições descritas. Como se disse e bem na sentença recorrida: “No caso em apreço, deve-se concluir, ser inexigível aos autores a manutenção do arrendamento. Ora, como se reconhecerá, não está em apreciação uma conduta isolada da recorrente, um incumprimento ocasional, insignificante. Do que se trata, é de um comportamento reiterado, repetido mês após mês, ao longo de vários meses, traduzindo-se inequivocamente num incumprimento grave que torna insuportável para o senhorio a manutenção do arrendamento, pois de forma injustificada manteve o depósito das rendas, sem que tenha atendido á alteração de local de pagamento perfeitamente legitima imposta pela senhoria. E nem sequer se vislumbra qual seria o prejuízo da ré em proceder ao pagamento por depósito bancário, tal como pretendia a senhoria ora A., quando o faz através de depósito, com prejuízo para a A. na dificuldade acrescida no seu levantamento.”
Improcedem, pois as conclusões da Apelante e deve ser confirmada a sentença recorrida embora, com fundamentação não inteiramente coincidente.
                       
IV-DECISÃO
Face ao que fica exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

Lisboa, 15 de Novembro de 2012

Maria de Deus Correia
Teresa Pardal
Tomé Ramião
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[1] Aprovado pela Lei n.º6/2006 de 27 de Fevereiro e que se aplica ao presente contrato, por força do disposto nos artigos 26.º, 27.º e 59.º da mesma Lei.
[2] Serão deste diploma todos os preceitos que doravante sejam citados sem indicação de proveniência.
[3] Neste sentido Laurinda Gemas/Albertina Pedroso/ João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, 3.ª edição, Quid Juris, p.82, nota 4.