Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
101/15.0PAPST.L1-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: NEGLIGÊNCIA
DOLO
IRRELEVÂNCIA PENAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I–A inserção na narração da matéria de facto de um crime negligente da frase «a arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que o seu comportamento era e é proibido e punido pela lei penal», com o sentido que a jurisprudência lhe dá, não se mostra adequada uma vez que, pelo menos com algumas das expressões utilizadas, parece querer dizer-se que a arguida agiu dolosamente e tinha consciência da ilicitude do seu acto, o que é contraditório com a pretensão de negação da existência de dolo e de existência de negligência.

II–Mesmo aceitando que a arguida não foi cuidadosa ao colocar a caixa em cima do aparelho de controlo das bagagens que os passageiros transportavam consigo, fazendo que esta embatesse numa outra caixa que já aí se encontrava e que esta última caísse e atingisse a queixosa, há que contextualizar esse acto na actividade de controlo das bagagens que estava a decorrer no aeroporto, não se descurando também a insignificância da lesão da integridade física daí resultante.

III–Na verdade, os tipos incriminadores, como o aqui em causa, não tutelam lesões mínimas do bem jurídico protegido provocadas com um grau de negligência diminuto no exercício de uma actividade profissional, num momento em que existia um grande afluxo de passageiros.

IV–Há que interpretar restritivamente o tipo incriminador de forma que ele não abarque condutas como as aqui em causa, que nada justifica serem criminalizadas.

V–O comportamento da arguida não tem dignidade que justifique a intervenção do direito público sancionatório, nem existe, em relação ao mesmo, carência de tutela penal.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


1–A arguida D.F.B. foi julgada na Secção de Competência Genérica – Juiz 1 – da Instância Local de Porto Santo da comarca da Madeira e aí condenada, por sentença de 3 de Outubro de 2016, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, conduta p. e p. pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal, tendo sido dispensada de pena.

A arguida foi ainda condenada a pagar ao Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira, E.P.E. 36 €, acrescidos de juros de mora contados desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento.

Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:

1.-A arguida D.F.B. é chefe de SM, desempenhando as suas funções na área da Segurança, no rastreio de bagagem de cabine, no aeroporto da ilha do Porto Santo, sito no Sítio do Tanque.
2.-No dia 22 de agosto de 2015, sensivelmente pelas 22 horas e 37 minutos, naquele local, a arguida agarrou numa caixa azul vazia para colocação dos bens dos passageiros, que se encontrava junto ao aparelho de rastreio de bagagem de cabine, e atirou-a para cima daquele aparelho, com força, fazendo com que outra caixa azul, que se encontrava na parte dianteira desse aparelho, caísse e tivesse atingido SM  no maxilar esquerdo e na mão esquerda.
3.-Em consequência direta e necessária do comportamento da arguida, SM  sofreu dor física e padecimento, ficando chorosa e mantendo a sua anterior ansiedade e stress, sem afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
4.-Ao agir do modo descrito, a arguida D.F.B.  atuou com falta de cuidado que o dever geral de prudência aconselha, cuidado que era capaz de adotar e que devia ter adotado, violando elementares deveres de precaução e cautela, cuidados esses que devia e podia ter para evitar aquele resultado, que igualmente podia e devia prever.
5.-A arguida representou como possível que poderia colocar, como colocou, em perigo a integridade física da ofendida, causando-lhe dores físicas e, ainda assim, atuou da forma descrita, sem se conformar com essa possibilidade.
6.-A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que o seu comportamento era e é proibido e punido pela lei penal.
7.-A arguida não tem antecedentes criminais registados.

8.-Condições económicas, sociais e pessoais:
a)-A arguida aufere mensalmente cerca de 1.050,00 € líquidos como supervisora de segurança no Aeroporto de Porto Santo.
b)-Tem 2 filhos menores de 4 e 6 anos de idade.
c)-Paga mensalmente cerca de 350,00 € de empréstimo bancário e 90,00 € de despesas de educação.
d)-Tem 2 veículos automóveis, um dos quais paga cerca de 220,00 € de mensalidade de empréstimo bancário.
e)-Tem o 12.º ano de escolaridade.

9.-Na sequência do descrito de 2 a 6, a demandante, no exercício da sua actividade, prestou cuidados de saúde à utente SM, que consistiram num atendimento no Serviço de Urgência do Centro de Saúde Dr. Francisco Jardim, no dia 28 de Setembro de 2015, no valor de 36,00 € (trinta e seis euros), a qual nunca foi liquidada.

O tribunal considerou não provado que:
A.-Que o descrito em 1 tenha sucedido pelas 23 horas e 30 minutos.
B.-Que as lesões descritas em 3 tenham necessitado de um período de 30 dias para a cura.
C.-A arguida representou como possível que poderia colocar, como colocou, em perigo a integridade física da ofendida, causando-lhe dores físicas e, ainda assim, atuou da forma descrita, conformando-se com essa possibilidade.

O tribunal fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos:

A convicção do Tribunal para a determinação da matéria de facto dada como provada fundou-se na ponderação da prova produzida em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador – artigo 127.º do C.P.P. – na prova documental – auto de visionamento de imagens, de fls. 17 (complementado pela visualização, em audiência de julgamento, da gravação da vigilância do aeroporto) no tocante aos pontos (2 a 6 e A e C) relativos ao sucedido no dia e hora dos factos (esta última alterada de acordo com as referências da videovigilância) e ainda documentação clínica, de fls. 26 e 27, conjugada com a prova pericial – auto de exame médico de fls. 29 a 31 – no tocante às lesões causadas à ofendida e despesas médicas com esta (doc. nota de despesa de fls. 75) – pontos 3 e 9.

No tocante às lesões da ofendida, cumpre notar que não foi dado como provado – ponto B – que o período de cura se fixasse em 30 dias, em divergência com o constante do relatório pericial de fls. 29 a 31.

De facto, entendemos que tal divergência contende não tanto com a não prova da existência de um período extenso (indeterminado) em que a ofendida tenha sofrido de ansiedade ou stress derivado da sua relação conflituosa com a arguida, mas sim com a não prova de que tal se devesse aos específicos factos aqui em apreço.

Notemos, em nota prévia, que os dias de cura no referido relatório imputam-se a um quadro, nos termos do próprio de "ansiedade ligada ao stress", isto é, contendem estritamente com o quadro psíquico e não com as lesões físicas da ofendida – como o próprio relatório frisa, sendo impreciso, porém, na determinação da causa do referido quadro.

Assim sendo, importa fixar o início e duração do referido quadro clínico, bem como a sua causa para efeitos de ligação causal com a factualidade aqui em apreço.

Como infra veremos, do depoimento da ofendida e declarações da arguida resultou a existência de uma situação de conflito anterior entre ambas derivado de uma tensa relação laboral – a arguida é supervisora da ofendida e reportou à entidade patronal de ambas várias situações que originaram processos disciplinares, com resultados distintos.

Na data dos factos, a ofendida – no seu próprio depoimento – reconheceu sentir-se em stress, angustiada e "vítima de perseguição" (havia ocorrido um anterior processo disciplinar da autoria desta), por assim dizer, sendo que do teor do seu testemunho nunca resultou que o quadro de stress, ansiedade, decorresse dos factos aqui em apreço, mas antes que era já prévio e continuou com outros episódios posteriores entre as intervenientes. Assim sendo, se é possível afirmar que, no entender da ofendida, o seu quadro é imputável a uma conduta extensa da arguida no sentido de a humilhar e perseguir, nem por isso foi dado como provado tal, nem ainda que o referido quadro se devesse em exclusivo aos específicos factos aqui em apreço.

Neste exposto, foi dado como não provado o ponto B, em divergência não relevante com o relatório pericial. "Nem toda a divergência entre o perito e o julgador é relevante. A divergência não releva e o tribunal mantém a liberdade de apreciação da prova se a divergência se confinar aos factos em que se apoia o juízo (...)." Pinto de Albuquerque, Paulo in "Comentário do Código de Processo Penal", Universidade Católica Editora, 4.ª edição, Lisboa 2011, p. 457, nota 1.

No restante, valoraram-se as declarações da arguida – artigo 343.º do C.P.P. – e prova testemunhal, complementada com a visualização directa da câmara de vigilância quanto aos pontos relativos ao sucedido – pontos 2 a 6.

A arguida prestou declarações, nas quais referiu recordar-se que os factos ocorreram a um sábado, no embarque para o Porto ou Lisboa, quando se encontrava no controlo perto do raio X. Mais disse recordar-se apenas que – no decurso de uma prática que descreveu como corrente e praticada por todos os seus colegas de equipa, sobretudo em casos de embarques com muitas pessoas – lançou o caixote/caixa azul para o colega do raio X, PR, sendo que um funcionário R lhe referiu que o "lance" tinha tocado na ofendida SM. Referiu ter dificuldade em acreditar que tal pudesse ter acontecido, nem que se teria apercebido de tal quando a lançou, não sabendo o porquê de a ofendida o afirmar.

Relatou ainda ter alguns conflitos com a ofendida derivados da sua supervisão da mesma, pese embora refira não saber se tal possa estar relacionado com a queixa.

As declarações da arguida, como veremos, seriam parcialmente confirmadas e refutadas quer pelo restante depoimento testemunhal, quer ainda pela visualização das imagens de segurança.

Vejamos.

A ofendida SM , vigilante aeroportuária no Aeroporto de Porto Santo, há mais de 8 anos, referiu em juízo – num depoimento caracterizado pela sinceridade e espontaneidade – ter uma relação conflituosa com a arguida ("faz-me a vida negra"), cuja causa desconhece e descrevendo que, na data dos factos, a arguida lançou, de modo bruto e com força, a caixa para ela, a qual lhe acertou na mão – que em reflexo ergueu – sendo que ainda lhe bateu no maxilar, sentindo por algum tempo dores. Tal caixa – cerca de 50 cm, plástico duro, fora atirada do raio X para cima do tapete, sendo que a ofendida encontrava-se à entrada da segurança, na área de controle dos talões de embarque. Mais referiu que, então, disse à ofendida "então a caixa bateu-me" e esta nada disse. Relatou ser comum lançar a caixa, mas não com a brutalidade com que a arguida o faz.

Esta versão divergiu da arguida, como é possível constatar, nos pontos em que refere a força do lançamento da caixa e que teria falado com esta sobre tal – factos negados pela arguida. Nos dois pontos, porém, a versão da ofendida mereceu-nos credibilidade, a qual foi ainda corroborada pelo depoimento da testemunha JCB, agente da PSP a prestar serviço no Aeroporto de Porto Santo – testemunha ocular do sucedido, que depôs sempre de modo credível e isento, tendo destacado – o que igualmente nos mereceu credibilidade – que o sucedido foi um incidente derivado da natureza "enérgica da arguida" e não intencionalmente dirigido a magoar a ofendida, sendo comum de acontecer no controle de segurança, dada a rapidez e dinâmica do mesmo. Este último facto foi ainda corroborado pelas restantes testemunhas – ROP, AVP e PGR, todos integrantes da equipa de segurança no Aeroporto, encontrando-se no local à data dos factos, em posições distintas. Porém, no restante e sobretudo no tocante ao lançamento e embate da caixa na ofendida, os referidos depoimentos não revelaram segurança suficiente, denotando um constrangimento derivado do ascendente profissional da arguida sobre estes.

Crucial revelou-se, assim, o visionamento das imagens, as quais demonstraram quer a hora do sucedido, quer o lançamento pela arguida com força e pouca atenção ao mesmo, sem cuidar de ver o que já se encontrava no tampo e em quem/quê embatia e ainda que a caixa foi embater noutra, a qual acertou na ofendida, ainda que sem intenção de o fazer e denotando-se não crer que tal viesse a suceder – em termos distintos do relatado na acusação pública e que implicaram a alteração não substancial dos pontos 2 e 5 – artigo 358.º, n.º 1, do C.P.P.

No tocante aos elementos subjectivos e de censurabilidade – pontos 5 e 6 – os mesmos resultaram provados nos termos já supra referidos, sendo que, atentas as regras de experiência comum, a arguida não podia desconhecer que ao actuar do modo referido – lançamento da caixa com força e pouca atenção ao mesmo, sem cuidar de ver o que já se encontrava no tampo e em quem embatia – tal implicaria a possibilidade de que a caixa fosse embater noutra, a qual acertou na ofendida, o que sucedeu devido à inobservância pela arguida dos mais elementares deveres de cuidado que, segundo as circunstâncias lhe eram exigíveis (a colocação da caixa no tampo ou lançamento com cuidado), resultando ainda das referidas regras de experiência comum que a arguida representou como possível o perigo do modo de lançamento da caixa e, em consequência de tal conduta e embate afectasse a segurança e causasse lesões nos demais utentes, como efectivamente sucedeu, sem que a arguida se tenha conformado com essa realização.

As declarações da mesma relevaram ainda para efeitos de condições económicas, sociais ou pessoais – ponto 8.

Os antecedentes criminais resultaram do CRC junto aos autos – fls. 22 – ponto 7.

No tocante aos pontos de facto não provados, os mesmos resultaram não provados dada a ausência de prova ou a contrariedade com a prova produzida – pontos A a C.

2–A arguida interpôs recurso dessa sentença.

A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
I)-O presente recurso tem como objecto a decisão proferida a 03/10/2016, pelo J1 da Secção de Competência Genérica do Porto Santo, Comarca da Madeira, a qual considerou a acusação do Ministério Público, totalmente procedente.
II)-Resulta que, com o devido respeito, o Tribunal a quo revelou erro de julgamento da decisão de facto, por incorrecta apreciação da matéria apurada e uma incorrecta interpretação e aplicação do regime legal aplicável no caso sub judice, que, por outra via, comportaria a improcedência total daquela acusação, comprometendo a legalidade da decisão proferida;
III)-Atentos aos vários factos incorrectamente aduzidos na acusação pelo Ministério Público, verifica-se que houve negligência no inquérito, atendendo que, verificando-se a Ofendida não perdeu qualquer capacidade da vida quotidiana nem para o trabalho por qualquer período que fosse, nem por um segundo (!), poderia, com base na dispensa de pena, ter arquivado o processo nos termos do artigo 280.º/1 do CPP.
IV)-Os factos constantes da matéria dada como provada pelo douto Tribunal não estão devidamente sustentados em base probatória sólida e consistente com a verdade material, nomeadamente os pontos 1 a 6 dos factos provados, que expressamente se impugnam, com os fundamentos constantes das alegações;
V)-A alteração não substancial dos factos não ocorreu por via do número 1 do artigo 358.º do CPP, mas sim por via do número 2, atendendo que foi por via da defesa da Recorrente que se apurou que os factos acusatórios do Ministério Público estavam incorrectos, quer quanto ao carácter temporal, quer quanto ao objecto do crime, que o MP considerou que a Recorrente havia directamente atirado uma caixa que embateu na Ofendida, quando, na verdade, foi outra caixa, que não a lançada pela Recorrente que embateu na Ofendida;
VI)-A alteração produzida pela sentença a quo violou o artigo 358.º/2 do CPP e os princípios da vinculação temática à acusação e do contraditório;
VII)-Atento à prova testemunhal e ao depoimento da própria Ofendida, quanto à inexistência de danos e de padecimento e ansiedade, quer mesmo pelas imagens de vídeo vigilância, impunha-se fixação de matéria de facto diversa, devendo o ponto 3 ser alterado, para facto não provado.
VIII)-A prova testemunhal e respectivos depoimentos das partes igualmente determinam que os pontos 4. e 6. fossem considerados como não provados.
IX)-Relativamente ao ponto 5, alterado para "sem se conformar com essa possibilidade", desconhece a Recorrente qual o fundamento para essa alteração, não constando em qualquer parte da sentença, qualquer fundamentação para essa alteração, razão pela qual, padece a mesma de irregularidade, por falta de fundamentação, o que expressamente se invoca para todos os efeitos legais.
X)-Igualmente deveria constar dos factos provados que a Ofendida foi alvo de processos disciplinares na relação laboral, os quais foram iniciados pela Recorrente, enquanto supervisora daquela.
XI)-Acresce ainda que, com o devido respeito, entende a Recorrente que o tipo legal de crime que de foi a Recorrente condenada não se encontra preenchido, por inexistência de enquadramento quer no tipo subjectivo, quer objectivo, conforme justificação constante nas alegações;
XII)-Pugna assim a Recorrente pela sua absolvição.
XIII)-Por tais motivos, deve a douta decisão recorrida ser revogada, já que foram violados os artigos 148.º do Código Penal, os artigos 280.º/1 e 358.º/2, ambos do CPP e os princípios fundamentais da vinculação temática à acusação, do contraditório e in dubio pro reo.

3–Este recurso foi admitido pelo despacho de fls. 155.

4–O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 175 a 200).

II–FUNDAMENTAÇÃO.

5–A arguida recorreu da sentença que a condenou pela prática de um crime negligente de ofensa à integridade física, dispensando-a de qualquer pena, dizendo que o processo poderia ter sido arquivado pelo Ministério Público, nos termos previstos no artigo 280.º do Código de Processo Penal.

Independentemente do juízo que se fizer sobre a forma como o magistrado do Ministério Público dirigiu o inquérito, o certo é que esta questão é completamente estranha ao recurso interposto, o qual tem por objecto a sentença proferida, não podendo nele ser apreciada.

Alegou também a recorrente que a base legal para a alteração não substancial da acusação é o artigo 358.º, n.º 2, e não o n.º 1 do mesmo preceito, acrescentando que o tribunal violou os princípios da vinculação temática e do contraditório, o que parece claramente incompatível com a invocação do indicado n.º 2 do artigo 358.º do Código de Processo Penal. Se o objecto do processo tem a flexibilidade permitida pelos artigos 358.º e 359.º deste diploma e se a alteração verificada derivou de factos alegados pela defesa não se pode sustentar que aqueles princípios tenham sido violados. Seja como for, trata-se de matéria irrelevante para a alteração do decidido pelo tribunal de 1.ª instância.

Sustentou também a arguida que desconhecia o motivo pelo qual o tribunal alterou o que constava do ponto 5 da acusação, em que se dizia que ela se tinha conformado com a possibilidade de colocar em perigo a integridade física da ofendida, tendo dado como provado que ela não se tinha conformado com essa possibilidade. Sobre essa questão há que dizer que o tribunal fundamentou essa decisão, como consta da transcrição efectuada, no visionamento das imagens do DVD junto aos autos, o que, de resto, está em conformidade com a decisão do Ministério Público de deduzir acusação pela prática de um crime negligente e não doloso. Não se torna, por isso, necessário explicar aqui e agora a distinção tradicional entre o dolo eventual e a negligência consciente.

Sustentou também a recorrente que o tribunal deveria ter dado como provado que existiram processos disciplinares que foram iniciados pela arguida no exercício das suas funções de supervisão, sem que especifique a peça processual em que tal afirmação foi feita, o que obrigaria o tribunal a pronunciar-se sobre esse facto, e o relevo que isso teria para a decisão do caso.

Sobre tal alegação há que dizer que essa circunstância foi tomada em conta na fundamentação da decisão de facto, não tendo nenhum relevo autónomo para a questão da culpabilidade ou para a determinação da reacção criminal a impor, razão pela qual não se justificava que fosse integrada no elenco dos factos provados.
A recorrente não tem, portanto, qualquer razão quanto a estas questões.

6–Dito isto, apreciemos então o recurso interposto pela arguida na parte em que ela impugnou os pontos n.ºs 1 a 6 da matéria de facto provada.

Sobre o que aí é narrado há que dizer, antes do mais, que o que consta do ponto 4 é um mero juízo de valor, através do qual o tribunal apreciou a existência de violação do dever objectivo e subjectivo de cuidado, consubstanciadores da negligência que era imputada à arguida. Tratando-se de um juízo de valor e não de um facto, o que é narrado nesse ponto deve ser removido desse segmento da sentença podendo, quanto muito, transitar para o domínio da apreciação jurídica da matéria de facto.

De igual forma, há que dizer que a inserção na narração da matéria de facto de um crime negligente da frase «a arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que o seu comportamento era e é proibido e punido pela lei penal», com o sentido que a jurisprudência lhe dá, se mostra desadequado uma vez que, pelo menos com algumas das expressões utilizadas, parece querer dizer-se que a arguida agiu dolosamente e tinha consciência da ilicitude do seu acto, o que é contraditório com a negação da existência de dolo e a afirmação da existência de negligência.

Por isso também o ponto 6 deve ser eliminado da narração da matéria de facto provada.

Quanto aos restantes pontos relevantes da matéria de facto provada, resulta efectivamente do DVD junto aos autos, que contém a gravação efectuada pela câmara de segurança colocada junto ao ponto de controlo dos objectos transportados pelos passageiros, que a arguida não atirou a caixa com uma força inusitada, mas que, de uma forma um pouco mais rápida e enérgica do que o habitual, colocou a caixa em cima do aparelho aí existente para que pudesse ser utilizada pelos passageiros seguintes, fazendo-a contudo embater numa outra que se encontrava na ponta oposta, desequilibrando-a e fazendo-a cair, com o que atingiu a queixosa, tendo esta reagido levantando a mão, sinal de que foi atingida e sentiu incómodo e dor, e dando dois ou três passos em direcção ao portal de detecção de metais, dirigindo qualquer expressão para uma outra pessoa, naturalmente a arguida. Não se detecta qualquer choro ou outra alteração do comportamento da queixosa, nem se vê que, ao actuar desta forma, que não diferiu significativamente do modo de agir das restantes pessoas que aí trabalhavam, a arguida tenha equacionado a possibilidade de atingir a queixosa, provocando-lhe incómodo e dor.

Os pontos 2, 3 e 5 da matéria de facto provada devem, pois, ser alterados em conformidade.

7–Ficou, portanto, provado que a arguida de uma forma um pouco mais rápida e enérgica do que o habitual colocou a caixa em cima do aparelho aí existente, fazendo-a embater numa outra que se encontrava na outra ponta, desequilibrando-a e fazendo-a cair, com o que atingiu a queixosa, provocando-lhe incómodo e dor.

Embora a arguida, por não ter actuado com o cuidado devido naquela circunstância, tenha ofendido a integridade física da queixosa, tal não significa que ela deva ser condenada pela prática de um crime negligente de ofensa à integridade física e no pagamento de uma indemnização civil à demandante.

Começando por este último ponto, há que dizer que não se vislumbra o nexo que possa ter existido entre os factos descritos, ocorridos no dia 22 de Agosto de 2015, que atrás se narraram, e a consulta médica de urgência que teve lugar no dia 28 de Setembro. Uma caixa de plástico para colocação dos objectos dos passageiros de um avião no momento de controlo das bagagens de mão que caiu e atingiu a queixosa, provocando incómodo e dor, não justifica uma consulta de urgência mais de um mês depois.

A inexistência de nexo de causalidade, só por si, impediria a condenação da arguida no pagamento do preço da consulta.

Questão mais importante, mas menos linear, é a do preenchimento do tipo incriminador. Mesmo aceitando que a arguida não foi cuidadosa ao colocar a caixa em cima do aparelho de controlo das bagagens que os passageiros transportavam consigo, fazendo que esta embatesse numa outra caixa que já aí se encontrava e que esta última caísse e atingisse a queixosa, há que contextualizar esse acto na actividade de controlo das bagagens que estava a decorrer no aeroporto de Porto Santo, não se descurando também a insignificância da lesão da integridade física daí resultante.

Na verdade, os tipos incriminadores, como o aqui em causa, não tutelam lesões mínimas do bem jurídico protegido provocadas com um grau de negligência diminuto no exercício de uma actividade profissional, num momento em que existia um grande afluxo de passageiros. Há que interpretar restritivamente o tipo incriminador de forma que ele não abarque condutas como as aqui em causa, que nada justifica serem criminalizadas.

Ora, tendo em conta o que se disse e a matéria de facto provada, que surge de uma forma bem mais expressiva nas imagens que a gravação vídeo, com perfeita clareza, nos mostra, não se pode deixar de considerar que o comportamento da arguida não tem dignidade que justifique a intervenção do direito público sancionatório, nem existe, em relação ao mesmo, carência de tutela penal. Mal estaríamos se, na vida quotidiana, pequenas ofensas da integridade física provocadas com um reduzido grau de negligência caíssem no âmbito do direito penal. Para já não falar do que acontece no âmbito da prática desportiva, que é matéria mais complexa e envolve outra problemática, basta mencionar o que diariamente se passa nos transportes públicos, em que são frequentes os encontrões e as pisadelas que provocam dor e muitas vezes são originadas pela falta de cuidado dos passageiros.

Assim, e pelo exposto, entende este tribunal que a matéria de facto provada não consubstancia a prática de qualquer crime, razão pela qual não pode deixar de julgar procedente o recurso interposto pela arguida, absolvendo-a da prática do crime e do pagamento da indemnização civil à demandante em que tinha sido condenada pelo tribunal de 1.ª instância.

III–DISPOSITIVO.

Face ao exposto, acordam os juízes da ...ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pela arguida D.F.B., absolvendo-a do crime e da indemnização civil por que foi condenada no tribunal de 1.ª instância.
Sem custas.

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Lisboa, 15 de Fevereiro de 2017



(Carlos Rodrigues de Almeida)
(João de Moraes Rocha)