Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1737/2007-6
Relator: AGUIAR PEREIRA
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. As decisões de mérito proferidas num processo, na medida em que confirmem ou constituam situações jurídicas, podem, em certos casos, ser vinculativas noutro processo em que se pretenda a apreciação ou constituição de outras situações jurídicas com ela conflituantes.
2. A força do caso julgado impede que numa nova acção se reconheça expressamente que a declaração de nulidade do registo não prejudica o direito da autora quando na acção anterior, em que ela foi parte como ré, foi definitivamente decidido afastar da decisão tal limitação ao direito então reconhecimento.
3. Ao deixar de deduzir na acção anterior a defesa que agora pretende apresentar como fundamento da acção, a então ré e ora autora viu precludida a possibilidade de invocar as razões de facto e de direito que deveria ter invocado na contestação e de cuja procedência resultaria agora a limitação dos efeitos da decisão ali proferida.

(A.P.)
Decisão Texto Integral:
EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I – RELATÓRIO
Nº do processo: Apelação em Acção Ordinária nº 1737/07 – 6 da 6ª Secção Cível;
Recorrente: Maria G S F;
Recorrido: Imobiliária D, Ldª;

a) MARIA G S F, divorciada, com domicílio profissional na Rua (…) em Oeiras demandou IMOBILIÁRIA D, Ldª, com sede na Rua (…) em Oeiras visando com a procedência da acção que fosse decretado que a declaração judicial de nulidade do averbamento feito em 1 de Junho de 1983 à inscrição da “constituição do regime de propriedade horizontal” (feita em 29 de Março de 1976) do prédio urbano sito no Parque (…) em Oeiras, referente às fracções JY, DX, EU, EV e JT e todos os registos subsequentes com base naquele averbamento, não prejudica o direito de propriedade plena da autora em relação à fracção JY, com o consequente cancelamento do averbamento de 13 de Abril de 2004 que determinou o cancelamento do averbamento 2 à inscrição F-Dois e anotou à descrição da fracção JY a sua inutilização.
Alega a autora, em síntese, que é proprietária da aludida fracção JY – sendo a ré proprietária das fracções JV e JT – do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal denominado “…”, tendo adquirido tal fracção em 22 de Maio de 1985. Mais alega que a escritura de constituição de propriedade horizontal foi celebrada em 14 de Março de 1975 e posteriormente rectificada em 26 de Março de 1976 e em 13 de Outubro de 1976, tendo nesta data sido criada a fracção de que é proprietária e alterada a descrição das fracções propriedade da ré.
Alega ainda que a ré intentou uma acção contra a autora e outros em que pediu fosse declarada a nulidade do averbamento feito a 1 de Junho de 1983 e através do qual foi registada a rectificação à escritura de constituição da propriedade horizontal operada pela escritura de 13 de Outubro de 1976. Tal acção foi julgada procedente e, por via disso, viria a ser oficiosamente inscrito na descrição do prédio a inscrição F2, sendo averbado que se considera inexistente a fracção JY.
Mais alega a autora que a decisão que decretou a nulidade da escritura de alteração da propriedade horizontal não afecta os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé no caso de o registo ser anterior à data da propositura da referida acção, o que é o caso em relação á fracção cuja propriedade se encontrava registada a favor da autora.
b) Citada, a ré contestou o pedido feito pela autora, invocando a excepção do caso julgado e impugnando factos alegados pela autora e pedindo a sua condenação como litigante de má fé.
c) A autora apresentou ainda articulado de resposta.
d) Findos os articulados foi proferida decisão que considerou procedente a excepção do caso julgado (autoridade do caso julgado – efeito preclusivo – proibição de contradição) e absolveu a ré do pedido.
e) Inconformada com tal decisão dela recorreu a autora, que remata as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
(…)
f) A ré apresentou contra alegações em que defende a manutenção do decidido e cujas conclusões aqui se dão por reproduzidas.
g) Colhidos os vistos legais cumpre agora apreciar e decidir, ao que nada obsta.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
São os seguintes os factos essenciais, tal como descritos na decisão recorrida:
1. Em 16 de Setembro de 1994, a ora ré propôs acção declarativa de condenação, que correu os seus termos sob o nº 1340/1994, do 3º Juízo Cível de Oeiras, contra a ora Autora (aí identificada como 3a ré) e outros, pedindo seja declarado nulo e de nenhum efeito o averbamento de 1 de Junho de 1983 levado a cabo na Conservatória do registo Predial de Oeiras, e correspondente ao registo da escritura de rectificação da constituição da propriedade horizontal do prédio urbano sito no (…) em Oeiras, de 13 de Outubro de 1976, e todos os registos subsequentes com base naquele averbamento. Invocou, para tanto, que é dona das fracções designadas pelas letras "JV" e "JT" do prédio urbano indicado, constituído em propriedade horizontal em 14 de Março de 1975, as quais adquiriu à 2a Ré, (…) em 1980, e que inscreveu a seu favor na Conservatória do Registo Predial em 2 de Março de 1981. Mas refere que 2ª ré (…), procedera à rectificação da respectiva escritura de constituição da propriedade horizontal e, em 13 de Outubro de 1976, procedeu a uma nova rectificação apenas registada na CRP em 1 de Junho de 1983, sendo certo que com a rectificação de 13 de Outubro de 1976 foi criada uma nova fracção, "JY", correspondente à anterior "JT", e alteradas a composição e permilagens de várias fracções, nomeadamente as indicadas "JT" e "JV". Por outro lado, a 2a Ré vendeu à 3ª Ré, ora Autora, a fracção "JY" em 1985.
2. No processo referido em a) a ora Autora, ali 3ª Ré, não apresentou contestação.
3. No processo referido em a), foi proferida sentença, em 15 de Julho de 2003, no processo sumário, onde se decidiu:
“1 – Declaro nulo o averbamento de 1 de Junho de 1983 à inscrição da "Constituição do Regime da Propriedade Horizontal" realizada em 29 de Março de 1976 do prédio urbano sito no (…) Oeiras, e referente às fracções autónomas "JY", "DX", "EU", "EV" e "JT", e todos os registos subsequentes com base naquele averbamento, sem prejuízo dos direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da presente acção.
2 – Oficie em conformidade, à Conservatória do Registo Predial competente.”
4. Por acórdão proferido, em 26 de Fevereiro de 2004, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado em 15 de Março de 2004, decidiu-se: “Assim, é nosso entendimento que foi cometida a nulidade prevista no artigo 6680 nº 1 e) parte final) do Código de Processo Civil, dando como não escrita a sentença na parte com os dizeres "sem prejuízo dos direitos adquiridos a titulo oneroso por terceiro de boa fé se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da presente acção.
(…)
Termos em que se acorda julgar parcialmente procedente a apelação, dando-se como não escrita a parte final da sentença recorrida e que acima transcrevemos. No mais, confirma-se a mesma sentença ( ... )".
5. Na presente acção, instaurada em 3 de Março de 2006, a autora alega ter comprado a Sociedade (…) Ldª, por escritura de compra e venda outorgada no dia 22 de Maio de 1985, pelo preço de 3.5000.000$00, a fracção "JY", referida em a), tendo tal aquisição sido registada na Conservatória do Registo Predial de Oeiras no dia 8 de Outubro de 1985, sendo que a essa data desconhecia, sem obrigação de conhecer, qualquer invalidade ou irregularidade do averbamento ao registo da propriedade horizontal da escritura pública de rectificação da propriedade horizontal que havia criado a sua fracção. Pede, a final, que seja "decretado que a declaração de nulidade do averbamento de 1de Junho de 1983 à inscrição da "Constituição do Regime da Propriedade Horizontal" realizada em 29 de Março de 1976 do prédio urbano sito no (…) Oeiras e referente às Facções autónomas "JY", "DX", "EU", "EV" E "JT", e todos os registos subsequentes com base naquele averbamento, proferida por decisão judicial transitada em julgado, não prejudica o direito de propriedade plena da Autora sobre a fracção "JY"; e (...) em consequência, [seja] ordenado o cancelamento da AP 13/13042004 que incide sobre a descrição do prédio e sobre a fracção autónoma "JY", na parte em que (i) determinou o cancelamento do AVERBAMENTO 2 à inscrição F-Dois; (ii) considerou inexistente a fracção "JY" e (iii) anotou à descrição da fracção "JY" a sua inutilização”.
B) O DIREITO
1. As conclusões das alegações apresentadas pela apelante delimitam, como é sabido, o objecto do recurso.
E de acordo com as aludidas conclusões a questão central a decidir nesta sede é a da verificação dos fundamentos para que se estendam a estes autos os efeitos preclusivos do caso julgado formado pela decisão proferida na acção anteriormente intentada pela ora ré.
2. Com base nos factos apurados a douta decisão recorrida considerou que, no caso dos autos, não havia identidade entre o pedido formulado na acção e o pedido formulado na acção 1340/94 do 3º Juízo Cível de Oeiras nem identidade de causa de pedir entre ambas as acções.
Conclui, em conformidade, que não se verificava a excepção do caso julgado que foi invocada pela ré.
Considerou-se, no entanto, na douta decisão recorrida que se estendiam à pretensão da autora os efeitos típicos do caso julgado.
È contra tal entendimento que se insurge a autora ora apelante.
3. É sabido que as decisões de mérito proferidas num determinado processo, na medida em que confirmem ou constituam situações jurídicas, podem, em certos casos, ser vinculativas num outro processo – não podendo nele ser negadas ou contrariadas – em que se pretenda a apreciação ou constituição de outras situações jurídicas com ela conflituantes.
Para tal importa que exista entre o objecto de uma e outra acção uma relação (de identidade, prejudicialidade ou de concurso) tal que implique a possibilidade de divergência ou contradição da decisão anterior com a decisão a proferir na acção intentada posteriormente.
A força do caso julgado assenta, pois, na necessidade de assegurar a certeza das situações jurídicas apreciadas, nos termos em que o foram, que é inerente às decisões definitivamente julgadas.
4. Aparentemente o pedido formulado na presente acção não se encontra prejudicado pela decisão proferida no processo anterior já que, apesar de tal decisão não salvaguardar expressamente os direitos adquiridos por terceiro de boa fé a título oneroso – que a autora alega ser o seu caso – sempre tais direitos se mostram, em abstracto, tutelados pelo artigo 17º nº 2 do Código de Registo Predial e/ou pelo artigo 291º do Código Civil.
No caso dos autos, porém, tal conclusão é meramente aparente, na medida em que, a ter procedência o pedido da autora, ficaria alterado o direito tal como foi definido na decisão anterior.
E melhor se compreenderá o que acaba de ser dito se se atentar que a decisão proferida em primeira instância foi alterada pelo Tribunal da Relação no sentido de deixar de figurar no dispositivo aquilo que não tinha sido pedido pelas partes e que a ora apelante pretende seja reconhecido: que a declaração de nulidade não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiros de boa fé.
Nesta perspectiva é de concluir que entre a decisão proferida no processo anterior e aquela que se pretende seja proferida nestes autos existe uma conexão tal que impede que aquela decisão seja contraditada nestes autos.
5. Mas a questão que a douta decisão impugnada suscita é, porém, algo diversa.
Trata-se de saber quais as consequências que tem para este processo a circunstância de a então ré não ter deduzido qualquer oposição ao pedido de declaração de nulidade do averbamento de 1 de Junho de 1983 através do qual se efectuou o registo da escritura de rectificação da constituição de propriedade horizontal – de que resultou a criação da fracção JY – e dos registos subsequentes.
6. Segundo o artigo 489º nº 1 do Código de Processo Civil toda a defesa deve ser deduzida na contestação.
A ora apelante, apesar de regularmente citada na acção nº 1340/1994 do 3º Juízo Cível de Oeiras não contestou o pedido ali formulado pela ora ré.
A decisão condenatória proferida no citado processo transitou em julgado e dela não constava, porque tal pedido não foi feito, qualquer ressalva resultante da procedência dos factos agora alegados.
7. Decidiu-se na douta sentença impugnada que se encontrava definitivamente precludida a possibilidade de invocação dos meios de defesa que poderia ser feita nessa acção.
Referia-se a douta decisão impugnada aos factos agora alegados pela ora apelante e que constituem a causa de pedir na presente acção (a validade da aquisição com base no regime aplicável à sua qualidade de adquirente de boa fé cujo direito se mostra registado e a sua oponibilidade à então autora).
8. A douta decisão impugnada louvou-se na doutrina de Lebre de Freitas (Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil – 2002 a página 462 e 463) e de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil – Coimbra Editora 1976 a página 323) que claramente ensinam que quando a sentença condenatória tiver reconhecido o direito do autor ficam precludidos todos os meios de defesa do réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir.
Também o Prof. Miguel Teixeira de Sousa a página 349 do seu “Estudos Sobre o Novo Processo Civil” – Editora Lex Março/Julho de 1996 escreve: “Quanto ao âmbito da preclusão que afecta o réu, há que considerar que lhe incumbe o ónus de apresentar toda a defesa na contestação (artigo 489º nº 1), pelo que a preclusão que o atinge é independente do caso julgado: ficam precludidos todos os factos que podiam ser invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada e, por isso, com aquela que foi apreciada pelo tribunal.”.
Aqui chegados e com o apoio da doutrina citada, logo se antevê que a decisão impugnada não merece qualquer censura.
9. Alegava o ora réu na acção anterior que a fracção autónoma que passou a ter a designação de “JY”, cuja propriedade se encontrava registada em nome da ora apelante, resultou de uma alteração – declarada nula e de nenhum efeito – à escritura de constituição da propriedade horizontal e à custa da fracção “JT”, propriedade da ora ré.
Nesse processo, apesar de regularmente citada, a ora apelante não apresentou qualquer contestação.
Com os factos agora alegados pretende a apelante que a nulidade decorrente da alteração da constituição da propriedade horizontal não afecta o seu direito de propriedade sobre a fracção “JY”.
Trata-se de matéria de excepção cuja alegação e prova na acção anterior teria conduzido à declaração expressa – se pedida – na sentença que o direito de propriedade da apelante não era prejudicado pela nulidade decretada.
Ao deixar de deduzir na acção anterior a defesa que agora pretende apresentar, a ora apelante viu precludida a possibilidade de invocar contra a ora ré as razões de facto e de direito que deveria ter invocado na contestação e de cuja procedência resultaria agora a limitação dos efeitos da decisão ali proferida.
10. Bem andou, por isso, a douta decisão impugnada ao considerar processualmente inadmissível, porque abrangida pela preclusão inerente ao não exercício do direito de defesa na anterior acção e por extensão e força do caso julgado, a alegação nos presentes autos dos factos que então deveria ter alegado.
Improcedem pois as conclusões da apelação, confirmando-se a douta decisão recorrida.
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e em confirmar a douta decisão impugnada.
Custas pela apelante.
Lisboa, 21 de Junho de 2007

Manuel José Aguiar Pereira
Gilberto Martinho dos Santos Jorge
Maria da Graça de Vasconcelos Casaes Moreira Araújo