Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6942/04.7TJLSB-B.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
CONDOMÍNIO
CONDÓMINOS
LEGITIMIDADE PASSIVA
LITISCONSÓRCIO VOLUNTÁRIO PASSIVO
TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/20/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. Na acção em que um credor peça o pagamento de dívidas contraídas pelo condomínio, apenas deve estar, como réu, o condomínio (a quem a lei atribui, para o efeito, personalidade judiciária: art. 6/e do CPC), parte legítima, representada pelo administrador, e não também, em litisconsórcio voluntário passivo com o condomínio, cada um dos condóminos.
II. “A personalidade judiciária atribuída ao condomínio é meramente formal e, no fundo, os condóminos são partes na causa, debaixo da ‘capa’ do condomínio.”
III. “A sentença proferida contra um condomínio vincula os condóminos, podendo ser executada contra estes.”
IV. “As dívidas são dos condóminos e não do condomínio.”
V. O adquirente da fracção autónoma fica obrigado ao pagamento das despesas com a conservação das coisas comuns, mesmo que elas se tenham constituído ou vencido em momento anterior ao da aquisição: é uma obrigação que faz parte do conteúdo do direito real em causa, dele não autonomizável, e que por isso se transmite (é ambulatória) com a transmissão do direito real.
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

A “A” - Ascensores e Escadas Rolantes, SA, veio, por apenso à acção de condenação que move contra o Condomínio do edifício sito na Avenida ..., n.º ... a ..., na M..., e outros que identificou como condóminos do mesmo prédio, requerer a habilitação, como cessionários, de “B” e mulher, “C”, como condóminos adquirentes da fracção AX, comprada à ré Sociedade “D” - Construções de Imóveis, Lda.
Para tanto invoca que intentou contra o condomínio e os demais condóminos do prédio a acção principal onde diz que celebrou com a administração do condomínio do prédio, ali 1º réu, um contrato destinado a assegurar a conservação de dois elevadores instalados no edifício que pertence aos réus. A autora prestou os seus serviços, tendo posteriormente emitido as facturas que juntou e que não foram pagas na respectiva data de vencimento, continuando todos os semestres a vencer-se a obrigação de pagamento do valor de 2676,93€, pretendendo que os réus satisfaçam esse seu crédito. Como entretanto se verificou a transmissão do direito de propriedade sobre a fracção mencionada, entende que a ré inicialmente demandada [alienante] deve ser substituída na acção principal pelos requeridos [adquirentes].
Os réus da acção principal não contestaram o incidente de habilitação.
Os requeridos não impugnaram os factos mas impugnaram a transmissão do crédito reclamado na acção principal, porque, tendo-se a obrigação constituído (e autonomizado) antes de eles terem adquirido a fracção, ela não se transmitiu com a venda da fracção, por inexistência de acordo nesse sentido, tanto mais que não tinham conhecimento da existência de tal obrigação; fazem ampla referência a toda a doutrina e jurisprudência que entende do mesmo modo que eles.
Foi então proferida decisão, julgando o incidente procedente por provado e, em consequência, habilitados a prosseguir na acção principal, como adquirentes ou cessionários, no lugar da Sociedade “D” os requeridos como condóminos adquirentes da fracção AX [sic].
A fundamentação da decisão recorrida é a seguinte (em síntese e com subdivisão feitas agora):
I. O objecto do litígio [na acção principal] consiste num alegado contrato celebrado em 29/10/1998 com a administração do condomínio, ali 1º réu, nos termos do qual a autora se obrigava a assegurar a conservação de dois elevadores instalados no edifício pertencentes aos réus.
No cumprimento desse contrato, a autora terá prestado os serviços convencionados e emitiu as facturas que juntou, que datam dos anos de 2002 a 2004, as quais não foram pagas na respectiva data de vencimento.
Acresce que, todos os semestres, nos termos do contrato, continua a vencer-se a obrigação de pagamento do valor de 2676,93€.
II. Os serviços contratados pelo 1º réu à autora referem-se à conservação de partes do edifício que legalmente se presumem comuns, como é o caso dos ascensores [art. 1421/2b) do CC].
III. A administração do condomínio tem legitimidade para realizar actos conservatórios relativos às partes comuns do prédio, realizando as despesas necessárias para esse efeito e cobrando correspondentes as receitas dos condóminos [art. 1436, als b), d), e) e f) do CC].
Sucede que, o Condomínio, apesar de constituir um centro de imputação de interesses comuns, organizado e funcionalmente representado pelos seus órgãos, que são a assembleia dos condóminos e a administração (art. 1430 do CC), não goza de personalidade jurídica. E também não é um património autónomo. Estamos assim antes perante um património de afectação especial […].
É nesse pressuposto que, em todas as acções em que estejam em causa interesses comuns do Condomínio, no âmbito dos poderes de representação do administrador, designadamente na prevista no art. 1437/2 do CC, a acção pode ser instaurada contra o administrador, enquanto representante legal dos condóminos.
No caso, a autora demandou o Condomínio representado pela respectiva administração, mas demandou também todos os condóminos das fracções que compõem o edifício em causa.
O art. 1437/2 do CC não obsta a que a autora possa demandar os condóminos em conjunto com administração do Condomínio. Esta conclusão também parte da consideração de que os condomínios constituídos em propriedade horizontal não têm personalidade jurídica.
O administrador do Condomínio pode estar na acção em representação dos condóminos, mas os condóminos têm personalidade e capacidade judiciária e são partes legítimas nestas acções, por terem interesse directo em contradizer a pretensão formulada, pois é no seu património que a procedência da acção terá afinal as suas consequências (arts. 26 do CPC e 1424/1 do CC).
IV. Os adquirentes consideram que não podem ser responsabilizados por dívidas anteriores ao momento em que se transferiu para si a propriedade das fracções.
Para efeitos do incidente de habilitação de adquirente ou cessionário este argumento só releva se pudermos concluir, com base nele, que a aquisição das fracções pelos requeridos não importa, simultaneamente, a transmissão do crédito que constituiu o objecto da acção principal, ou pelo menos que não tenha por efeito a desoneração dos réus anteriormente demandados, passando a transmissão da propriedade a constituir o facto determinante da oneração exclusiva dos requeridos. Caso não haja este efeito de transmissão de responsabilidade, não poderá operar-se a substituição subjectiva que é pretendida e que serve de fundamento legal a este incidente.
Ora, em bom rigor, no caso concreto, não há qualquer transmissão da dívida. Por um lado, o credor inicial era a autora, e assim continua. Por outro, o devedor inicial era o Condomínio, 1º réu, e assim continua.
De facto, os condóminos não são os devedores directos do crédito constituído no quadro do exercício das competências funcionais da administração do Condomínio. No entanto, os condóminos são os garantes das responsabilidades patrimoniais assumidas pelo Condomínio, através dos seus órgãos representativos.
Ou seja, o que está em causa é a suficiência, ou insuficiência, do património do Condomínio para satisfazer o crédito da autora e não quem era proprietário das fracções à data da constituição original da dívida.
Nessa medida, a questão da não ambulatoriedade das obrigações propter rem, no que se refere ao pagamento pelos condóminos das suas prestações relativamente ao Condomínio, não se coloca na presente acção, porque não está em causa uma dívida dos condóminos ao Condomínio, mas sim uma dívida do Condomínio para com um terceiro.
Ora, o Condomínio, caso seja condenado na acção principal, deverá pagar à autora o crédito em causa. Mas, se não tiver meios próprios disponíveis para cumprir essa obrigação, através da sua administração, não poderá exigir o pagamento de prestações a quem já não é condómino do prédio constituído em propriedade horizontal. Nesse caso, deverá solicitar a contribuição aos condóminos actuais, nos termos do art. 1424/1 do CC.
De forma indirecta, o mesmo se passa com a credora, autora nos autos principais, relativamente aos condóminos que já venderam as suas fracções, pois esta não pode exigir daqueles o pagamento de prestações referentes a um Condomínio do qual já não fazem parte.
Em função do que foi exposto, fica claro que a aquisição das fracções pelos requeridos determina a desoneração, perante a autora e perante o 1º réu, da ré alienante, e a consequente assunção da garantia do bom cumprimento da obrigação de pagamento pelo Condomínio por parte dos requeridos adquirentes.
*
Os requeridos interpõem recurso desta decisão - para que seja revogada – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (sintetizadas aqui):
1. A sentença é nula porque os seus fundamentos estão em oposição com a decisão [art. 668/1c) do CPC]: pese embora o tribunal recorrido tenha considerado não ter ocorrido “transmissão da dívida”, admitiu a habilitação dos requeridos por entender que a aquisição, por eles, da fracção AX, determinou a desoneração da ré alienante, passando os requeridos a ser garantes do bom cumprimento da dívida.
2. A substituição do transmitente pelo adquirente ou cessionário faz-se por meio de habilitação, regulada no art. 376 do CPC, sendo que este incidente, de habilitação de adquirente ou cessionário, justifica-se unicamente quando a coisa ou direito transmitidos constituam o “objecto imediato da controvérsia a dirimir nessa mesma causa”. Ora, os recorrentes não adquiriram o direito litigioso que constitui o objecto do litígio, nem a fracção que adquiriram constitui o objecto imediato da controvérsia, pelo que jamais poderiam ter sido habilitados na posição processual de réus.
3. O tribunal a quo fez errada interpretação da norma constante do art. 1424/1 do CC, por entender que são os condóminos actuais, à data em que o crédito for declarado exigível, que respondem pelo pagamento da dívida de conservação e manutenção dos elevadores. Ora, é indiscutível que, em caso de transmissão do direito de propriedade sobre determinada fracção autónoma, as despesas referidas no art. 1424 do CC se mantêm na esfera de responsabilidade do transmitente dessa fracção, na medida em que este era titular do direito real sobre a coisa, à data da constituição da despesa.
4. O tribunal recorrido considera que a questão da não ambulatoriedade das obrigações propter rem não se coloca nesta acção, porque não está em causa uma dívida dos condóminos ao condomínio, mas sim uma dívida do condomínio para com um terceiro, o que carece de fundamento, não tem respaldo legal e decorre de uma errada interpretação do conceito de obrigação propter rem não ambulatória e sobretudo da norma constante do art. 1424/1 do CC e, por outro lado, dos fundamentos que subjazem ao incidente de habilitação de adquirente.
5. As obrigações previstas no art. 1424/1 do CC e que estão em causa nos autos principais, reconduzem-se, a um mero direito de crédito, pelo que, à luz do regime geral das obrigações, a única forma de ocorrer a transmissão do débito da ré alienante para os requeridos seria exclusivamente por via de uma assunção de dívida (cfr. arts 595 e ss. do CC) o que não sucedeu.
6. Não há que fazer distinção entre dívida dos condóminos ao condomínio, ou entre dívida do condomínio para com um terceiro, já que, em qualquer circunstância, teria que ter ocorrido transmissão da dívida reclamada pela requerente nos autos principais para os requeridos, o que não se verificou.
7. A requerente optou por demandar, a par do administrador do condomínio, os proprietários de todas as fracções que integram o imóvel em propriedade horizontal. Ao contrário do que consta na decisão recorrida, a habilitação dos recorrentes não servirá para assegurar a comparência de todos os representantes do condomínio – este sempre esteve em juízo, na pessoa do seu legal representante – mas na qualidade de proprietários de uma fracção autónoma que compõe o imóvel. Todavia, sem qualquer fundamento, porque nos termos legais, quem responde pelas dívidas em causa é o proprietário anterior.
A requerente não contra-alegou.
*
Questão que cumpre solucionar: se os requeridos não deviam ter sido habilitados no processo principal no lugar da ré alienante da fracção por eles adquirida.
*
Na decisão recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
1. Quando a autora em 15/12/2004 intentou a presente acção contra o condomínio e os seus condóminos da entrada 34, onde se encontram instalados os elevadores dos autos, a Sociedade “D” - Construções de Imóveis, Lda, era uma das condóminas.
2. A Sociedade “D” vendeu aos requeridos a fracção AX, correspondente ao 7º andar direito frente daquele edifício sito na freguesia e concelho da ..., descrito na 2ª conservatória do Registo Predial da M... sob o nº .../19961106, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., o que fez por escritura de 05/05/2005.
A estes há ainda que acrescentar aqueles que constam do relatório deste acórdão, entre eles o que se refere ao pedido feito na acção principal, ou seja, que a autora está a pedir o pagamento dos serviços prestados e a prestar no futuro, bem como a 1ª parte da fundamentação da decisão recorrida, em que se faz a descrição objectiva do objecto do litígio, sendo que nas alegações do recurso os requeridos descrevem do mesmo modo o objecto do litígio.
*
Da nulidade da decisão por oposição entre os fundamentos e a decisão [art. 668/1c) do CPC]?
A decisão recorrida estabelece uma distinção entre devedor (ou devedor directo) e garante da dívida (ou devedor indirecto). Devedor seria o condomínio. Garante seriam os condóminos. E depois diz que transmitindo--se a posição (propriedade) da qual decorre a sujeição à situação de garante, é o adquirente que passa a ser o garante. Se aquele era réu na acção, este deve substitui-lo. Não lhe interessa, por isso, a posição de devedor principal (que entende que não se transmitiu). Não há aqui contradição lógica entre esta fundamentação e a decisão final de habilitação.
Se esta fundamentação está certa ou não, já é outra questão (de eventual erro de julgamento), não de nulidade da sentença.
*
Do (im)possível litisconsórcio voluntário passivo
entre o condomínio e os condóminos
Ao contrário do que se diz na decisão recorrida, na acção em que um credor peça o pagamento de dívidas contraídas pelo condomínio, apenas deve estar, como réu, o condomínio (a quem a lei atribui, para o efeito, personalidade judiciária: art. 6/e do CPC), parte legítima, representada pelo administrador, e não também, em litisconsórcio voluntário passivo com o condomínio, cada um dos condóminos.
Isto porque, como diz Miguel Mesquita (A personalidade judiciária do condomínio nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos - anotação ao ac. do TRL de 25/06/2009, 4838/07.0TBALM.L1-8, Cadernos de Direito Privado, nº. 35, Julho/Set 2011, págs. 50 e 51):
“[O] condomínio é a face processual dos condóminos […] não fazendo valer, de forma alguma, um interesse diferente daquele que pertence a estes. No fundo, quando o condomínio assume o papel de parte, os condóminos assumem esse papel em simultâneo, mas sob a “máscara” do condomínio: não estão no processo, mas tudo se passa como se estivessem, litigando do lado activo ou do lado passivo da instância.
O condomínio é a ‘capa’ processual dos condóminos, uma ‘capa’ que visa facilitar a identificação das partes, evitar que os condóminos, um por um, tenham de ser referidos na petição inicial ou na contestação […]”
“A personalidade judiciária atribuída ao condomínio é meramente formal e, no fundo, os condóminos são partes na causa, debaixo da ‘capa’ do condomínio.” […] ‘A parte permanece o conjunto dos respectivos membros’. Por isso é que o depoimento de um condómino tem de ser visto como um depoimento de parte e jamais como um depoimento testemunhal.
[…] A pessoa meramente judiciária não se distingue, no processo, das pessoas que se encontram por detrás dela. Daí que, naturalmente, o caso julgado atinja, plenamente, estas pessoas.
Por tudo isto, deve entender-se que o condomínio não goza de nenhuma legitimidade extraordinária, uma vez que os interesses que defende são, afinal, os interesses dos próprios condóminos e a distinção entre estes e o condomínio é absolutamente artificial”.
No mesmo sentido, Sandra Passinhas (A assembleia de condóminos e o administrador na propriedade horizontal, Almedina, 2000, pág. 330), invoca M.ª del Carmen González Carrasco (Representación de la comunicad de proprietários y legitimación individual del comunero em la propriedad horizontal, Bosch, Barcelona, 1997, págs. 167 e 168):
“se se afirma que as organizações de sujeitos sem personalidade jurídica podem ser parte no processo através da representação orgânica, diz-se que são os membros do grupo a verdadeira parte, não na sua qualidade de sujeitos singulares, mas na qualidade de membros de uma organização. É esta qualidade uti socii que determina a parte, de modo que as eventuais mudanças de proprietários durante o processo não determinam a mudança processual das partes. Os poderes e deveres processuais pertencem aos membros do grupo, mas, segundo os princípios da actuação orgânica, são exercidos pelos meios de actuação deste. E os resultados do processo repercutem-se na parte - o membro - uti socius, de modo que têm a sua incidência na esfera jurídica deste.”
E depois acrescenta, invocando agora Vincenzo Cerami (Sull’impugnativa di deliberazione di assemblea di condomini, RDC, 1955, pág. 104):
“se se aceitar que o administrador é um representante orgânico, resulta excluída a legitimatio ad processum dos condóminos, quaisquer que sejam os poderes atribuídos ao administrador.”
Ora, sendo assim, aceitar a presença simultânea do condomínio e dos condóminos, é a mesma coisa que aceitar a presença simultânea, como partes distintas, dos condóminos, enquanto tal e enquanto condomínio, o que é um contra-senso. Pelo que o art. 1437/2 do CC obsta, ao contrário do que diz a decisão recorrida, a que sejam demandados, ao lado do condomínio, os condóminos.
Já agora note-se que Paula Costa e Silva (O manto diáfano da personalidade judiciária, Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão Almedina, 2008, Vol. II, pág. 1886) lembra, num caso paralelo, que:
“Os nossos tribunais afasta[m] – e pensamos que bem – a possibilidade de a pessoa colectiva se constituir como parte principal em posição litisconsorcial com a sua sucursal, agência, filial, delegação ou representação […]. Afinal, a pessoa colectiva não tem um interesse igual ao da ré; o seu interesse é o interesse da ré que, por razões pragmáticas, é uma pessoa meramente judiciária.”
E porque tudo isto é assim, continua Miguel Mesquita (anotação citada, págs. 48/49):
“[a] sentença que condene o condomínio a pagar determinada quantia vale, enquanto título executivo, contra todos os condóminos.” Ou, dito de outro modo, “a sentença proferida contra um condomínio vincula os condóminos, podendo ser executada contra estes […].”
No mesmo sentido, Sandra Passinhas (obra citada, pág. 339) diz:
“Da qualidade do administrador como representante do condomínio resulta que a sentença de condenação emitida contra o administrador constitui título válido para a execução contra os condóminos singulares, ainda que os nomes dos condóminos não venham nela individualizados. A sentença de condenação no pagamento de uma quantia pelo condomínio, chamado a juízo na pessoa do administrador, que não contenha uma especificação concreta da medida da prestação devida por cada condómino, tem perante cada um deles apenas o valor de declaração da existência do crédito (an debeatur) e não o valor líquido do quantum debeatur. Quanto à medida em que cada condómino é obrigado a responder perante o credor do débito, objecto de declaração judicial, o terceiro pode agir para obter uma pronúncia ulterior que, integrando a precedente, permite especificar a prestação devida por cada condómino e pode valer como título idóneo para a execução forçada contra os condóminos singulares.”
Tudo isto não seria diferente, se se visse no condomínio (parte formal) um substituto processual da parte material (os proprietárias dos fracções autónomas), na esteira de Paula Costa e Silva e Remédio Marques, citados por Miguel Mesquita (anotação citada, notas 19 e 22), porque entendem, respectivamente, que:
“a parte vinculada aos efeitos da decisão não é a parte processual, pessoa meramente judiciária, mas a pessoa jurídica que não é parte processual”
Ou que:
“a parte material […] acha-se vinculada por efeito de uma substituição processual. A coisa ou o ente não personificado actuam como substitutos processuais e os efeitos da acção produzem-se directamente sobre os substituídos.”
*
Dos reflexos do que antecede na habilitação
Ao contrário do que é sugerido numa das conclusões do recurso dos requeridos, de forma inconsequente (porque não tiram nenhuma consequência concreta e autónoma para o caso), o facto de os condóminos terem sido demandados em litisconsórcio voluntário com o condomínio, não tem quaisquer reflexos nesta habilitação.
Pois que este tribunal de recurso só pode discutir se o adquirente deve ser colocado no lugar de um réu na acção principal, por este ter transmitido àquele a posição de que derivava a sua legitimidade processual, não se este réu não devia ter sido demandado pessoalmente na acção principal. Especificamente, este tribunal de recurso não pode dizer que o adquirente não deve ser habilitado no lugar do réu na acção principal porque este não devia ter sido demandado na acção. Não é este o objecto deste recurso, nem se estende até aí a competência deste tribunal de recurso: este tribunal, neste incidente, tem de aceitar a relação processual concretamente existente no tribunal recorrido, bem ou mal constituída, e decidir a questão do recurso a partir desta.
E isto também vale quanto a outra questão: a doutrina também se divide quanto à questão de saber se o transmitente fica exonerado do dever de prestar, que passa a recair apenas sobre o adquirente (é a posição de José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pág. 109) ou se passam a responder ambos, em regime de solidariedade (é a posição de Miguel Assis Raimundo, na anotação citada, pág. 55, 2ª coluna, que não chega a fundamentar a afirmação da solidariedade).
Se fosse de seguir esta última posição, não haveria razão substituir o alienante pelo adquirente. Primeiro, porque nenhum dos dois devia estar no processo. Depois porque, a poderem estar no processo, poderiam estar os dois e não apenas o segundo.
Ora, mesmo que se seguisse esta última posição, não poderia este tribunal de recurso, perante o objecto do mesmo, considerar, com base neste fundamento, que a habilitação não devia ter sido admitida. Estando estabelecido, na 1ª instância, o litisconsórcio voluntário passivo entre o condomínio e os condóminos, tratava-se apenas de saber, neste incidente de habilitação, se a transmissão da propriedade de um dos condóminos para terceiro implica a transmissão, também, do dever de pagar as despesas com a conservação de partes comuns do edifício. Se implica e se por isso ele fica (também) obrigado, tem que se aceitar que é correcta a habilitação do mesmo determinada pela decisão recorrida (mesmo que os fundamentos não estejam certos e mesmo que, assim, se retire do processo, por vontade da requerente, aquele – o alienante - que também podia ser considerado vinculado pela obrigação).
*
Os condóminos como garantes das dívidas do condomínio?
Independentemente do interesse que possa ter, para determinados fins ou situações, a admissão da possibilidade do condomínio ser sujeito de relações jurídicas, mesmo sem ter personalidade jurídica (por exemplo, Sandra Passinhas, obra citada, págs. 172 a 178, com aplicação, por analogia do regime das associações sem personalidade jurídica), o que ocorrerá apenas figurativamente, para facilitação do exercício de direitos (relativamente a “obrigações colectivas, isto é, a obrigações assumidas por um conjunto delimitado e organizado de pessoas que formam uma colectividade sem personalidade jurídica e em que as obrigações são normalmente assumidas através de uma representação unitária”, nos termos descritos por Januário Gomes, Assunção fidejussória de dívida, sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Almedina, 2000, pág. 172), a verdade é que, como regra, a afirmação contrária é que é verdadeira, isto é, os condomínios, não sendo pessoas, não tendo personalidade jurídica, não podem ser sujeitos de relações jurídicas e por isso não se pode dizer que são eles os obrigados.
Neste sentido, por exemplo, veja-se Pedro Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, Lex, 1999, pág. 123): “o fundo comum [das associações] tem uma certa autonomia patrimonial. Embora pertença aos associados e não à associação, que não tem personalidade jurídica e como tal não pode ser titular de situações jurídicas […]”. Ou Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1996, pág. 333): “não é possível identificar qualquer autonomia no que respeita à responsabilidade por dívidas, mesmo em relação a encargos comuns. As dívidas são dos condóminos e não do condomínio […]”.
Assim, a fundamentação da decisão recorrida não convence quando diz que o sujeito passivo da obrigação peticionada pela requerente é o condomínio; nem quando faz a distinção entre obrigados directos e indirectos, dizendo que a dívida é do condomínio e que os condóminos são apenas garantes dela.
Além disso, é contraditório, qualificar os condóminos como garantes das responsabilidades patrimoniais assumidas pelo condomínio, e ao mesmo tempo dizer que é no seu [dos condóminos] património que a procedência da acção terá afinal as suas consequências. Um garante (devedor secundário ou provisório) não pode ser ao mesmo tempo o devedor primário ou definitivo.
A decisão recorrida também não convence quando diz que a questão da não ambulatoriedade das obrigações propter rem não se coloca – pois que é essa a questão principal destes autos e aliás foi com base na ambulatoriedade de uma “responsabilidade” que a decisão recorrida considera fazer parte do conteúdo do direito de propriedade horizontal que decidiu o incidente de habilitação.
Ou quando diz que o condomínio não poderá exigir o pagamento de prestações a quem já não é condómino do prédio constituído em propriedade horizontal - pois que a lei dá poderes ao administrador para demandar terceiros (art. 1437/1 do CC).
Nem quando diz que a autora não poderia exigir dos condóminos que já venderam as suas fracções o pagamento de prestações referentes a um condomínio do qual já não fazem parte - pois que se se reconhecesse que eles eram devedores, não se vê porque é que não poderiam ser demandados pela credora.
*
Da responsabilidade dos adquirentes de fracções autónomas com prestações de condomínio já vencidas.
A questão coloca-se pois nos termos em que os requeridos a colocaram na contestação à habilitação, sendo que a jurisprudência e parte da doutrina têm ido no sentido defendido pelos requeridos, entendendo que o adquirente de uma fracção autónoma não é responsável por prestações já ven­cidas à data da aquisição, ou seja, no caso pela despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns (ascensores) do edifício – arts. 1424/1 e 1421/2b do CC – sendo-o antes o alienante da fracção.
Os argumentos a favor de tal posição têm sido os seguintes (são retirados da anotação de Miguel Assis Raimundo referida abaixo, com menção de acórdãos e doutrina neste sentido; os mesmos argumentos são invocados, aliás, pelos requeridos):
1 – aquelas prestações são objecto de obrigações propter rem nas quais, diferentemente dos ónus reais, "o titular da coisa só fica vinculado às obrigações constituídas na vigência do seu direito”, enquanto que nos ónus reais, "[...] o titular da coisa fica obrigado mesmo em relação às prestações anteriores, por suceder na titularidade de uma coisa a que está visceralmente unida a obrigação."
2 – ou então aquelas prestações seriam objecto de obrigações propter rem que se teriam autonomizado do direito real que lhe dá origem, pelo que não se transmitiam automaticamente com este direito, ao contrário de outras obrigações propter rem não autonomizadas (estas últimas seriam as ambulatórias, isto é, transmitir-se-ia com o direito real). E não seriam ambulatórias, porque só as obrigações propter rem que consistam numa prestação de facere (ou seja, que impõem ao sujeito passivo a prática de actos ma­teriais sobre a coisa que é objecto do direito real do qual são acessórias) ou numa prestação de dare cujos pressupostos materiais se encontrem ob­jectivados na coisa sobre que o direito real incide é que seriam ambulatórias.
3 – estas prestações (do condomínio, já vencidas) estariam menos "visceralmente" ligadas à coisa e mais ligadas ao gozo que o titular do direito real retirou (ou poderia ter retirado) dessa coisa: seriam uma contrapartida de um gozo potencial ou efectivo das partes comuns do edifício: um condómino não deve pagar aquilo que para ele não constitui qualquer vantagem.
4 – Como não existe publicidade da existência e do valor das prestações de condomínio em dívida, se se aceitasse a responsabilidade do comprador da fracção pelas prestações em dívida, estar-se-ia a obrigá-lo a pagar duas vezes por essas prestações: a primeira quando as paga dissimuladas com o resto do preço (porque, por exemplo, dos 100 000€ que o vendedor recebeu, 2000€ deveriam ter sido para este pagar as prestações de condomínio em dívida) e a segunda quando as paga ao condomínio. Ou dito de outro modo: quando o vendedor alienou, já considerou no preço o aumento de valor correspondente ao serviço ou bem de que as prestações de condomínio constituem o pagamento, pelo que obrigar o comprador a suportar essa dí­vida equivaleria, então, a obrigá-lo a pagar duas vezes a mesma coisa.
5 - Quando se visita um imóvel com intenção de o comprar, sabe-se imediatamente se o imóvel e as partes comuns estão em bom estado, se precisam de obras a curto ou médio prazo, e toma-se em conta essa eventual desvalori­zação na fixação do preço. O mesmo não acontece com as prestações de condomínio em dívida.
*
Antes de prosseguir, se bem se reparar, a lógica desta posição implicaria, sem mais, a admissão parcial da habilitação dos requeridos. É que, no caso, na acção principal é também pedido o valor das despesas com a conservação futura dos elevadores, ou seja, relativamente a um período de tempo em que os requeridos já estão a usufruir dos mesmos…
Seja como for.
*
Uma anotação de Miguel Assis Raimundo a um acórdão do TRP de (09/07/2007 – 0753550 -, publicada com o titulo de Responsabilidade do adquirente de fracção autónoma por prestações de condomínio já vencidas, nos Cadernos de Direito Privado, nº 26, Abril/Junho 2009, págs. 51 a 63), vem, a partir da posição de outra parte da doutrina (também mencionada na anotação), sistematizar críticas à posição da jurisprudência e assumir a posição contrária.
Diz o seguinte (tenta-se sintetizar a anotação em causa, para referir apenas aquilo que interessa ao caso dos autos; não se colocam aspas porque a síntese nem sempre será ipsis verbis):
A categoria das obrigações propter rem, obrigações reais ou obrigações ob rem é um meio-termo en­tre os direitos reais e as obrigações. A obrigação propter rem é a que imposta, em atenção a certa coisa, a quem for titular de um direito real. O sujeito passivo da obrigação não se determina pessoalmente, mas "realmente", isto é, em virtude de uma sua posição jurídica em relação à coisa. Nesta medida, a obri­gação propter rem é uma espécie do género constituído pelas situações jurídicas reais ou propter rem, género que abrange igualmente os ónus reais.
O regime (estatuto) desse direito real ocasiona, em certas situações, mesmo contra a vontade do seu titular, o surgimento de deveres de prestar: a obrigação do condómino de contribuir para as despesas de conservação das partes comuns (art. 1424) e a obrigação do usuário de efec­tuar reparações ordinárias e de suportar as despesas ou encargos anuais (art. 1489/1) são exemplos pacíficos de obrigações propter rem.
A obrigação de contribuir para os gastos co­muns do condomínio é uma forma de harmonizar direitos reais concorrentes sobre a mesma coisa, ou dito de outra forma, um meio de resolução de confli­tos de sobreposição. É a expressão jurídica de uma solidariedade necessária, e necessária a vários tí­tulos: porque imposta pela natureza das coisas (o objecto do direito real dos condóminos é em parte comum a todos eles, e isso determina que, de um ponto de vista de justa repartição dos interesses, todos devam de algum modo contribuir) e porque, sem o cumprimento atempado desse dever de prestar por todos os condóminos, fica em xeque a própria subsistência do objecto do direito real, porque a subsistência do que é privado (a fracção) depende da subsistência do que é comum (as partes comuns).
Um tal dever de prestar não se coloca, pois, "fora" do direito real que lhe dá origem, antes surge como parte do conteúdo do mesmo, da forma mais radical que é a de estabelecer - e manter - uma ligação real, ou seja, uma ligação com a coisa, e não pessoal, ou seja, com aquele que é o proprietário da coisa num dado momento, que seria o momento do surgimento da dívida (sem prejuízo da manutenção da responsabilidade do alienante). E isto é assim por uma questão de clareza e de protecção da posição do condomínio, que deve poder contar com a ligação - ligação objectiva, da natureza das coisas - que existe entre uma certa fracção e os gastos comuns que servem, ou serviram no passado, aquela fracção.
É extremamente discutível o critério utilizado para atribuir ou negar a ambulatoriedade às obrigações propter rem. Trata­-se de critério formal, ou mesmo puramente verbal, e por isso de resultados imprevisíveis e facilmente manipuláveis perante os dados do caso, com prejuízo óbvio para a Ciência do Direito e para a justiça das decisões.
Não se encontra qualquer justificação para a separação proposta entre obrigações que consistam em prestações de facere e em prestações de dare, sendo apenas as primeiras obrigações ambulató­rias, em princípio. Estas últimas estariam, de acordo com esta distinção, menos "visceralmente" ligadas à coisa e mais ligadas ao gozo que o titular do direito real retirou (ou poderia ter retirado) dessa coisa; mas, numa análise mais aprofundada, não se compreende porquê. Entenda-se: compreendemos perfeitamen­te que a obrigação de A, usufrutuário de um prédio rústico, de repor (prestação de facere) alguns pés de árvores de fruto que lá existiam e pereceram enquanto A era usufrutuário (art. 1453/2) se transmita a B, que adquire de A o usufruto; o que não compreendemos é qual é a dife­rença essencial entre essa situação e aquela em que A, proprietário de uma fracção, que tem três prestações de condomínio em atraso, vende a B essa fracção; diferença que seria tão essencial, no en­tender da doutrina e jurisprudência maioritárias, que permitiria afirmar que, neste último caso, B nada deve ao condomínio. Prestação de facere ou prestação de dare, ambas têm conteúdo económico em última análise, o que as iguala juridicamente: supondo que o obrigado propter rem se recusa terminantemente a realizar a prestação de facere, o credor poderá ter de recorrer a terceiros para a executar, imputando esse custo ao obrigado (art. 828): converte-se uma prestação de facere em prestação de dare. Não nos parece que algo de essencial se tenha alterado.
Por outro lado, são demasiadas, para um crité­rio cientificamente aceitável, as aberturas e espaços vazios do critério utilizado. O critério é sempre afirmado "em princípio", pontuado de ressalvas obscuras ou que infirmam o próprio critério, como a que se refere à admissibilidade do carácter ambulatório de obrigações de dare, cujos pressupostos materiais se en­contrem objectivados na coisa (?), ou a que se refere à possibilidade de responsabilizar o subadquirente de condómino que tenha prestações de contribuição para o fundo de reserva em dívida pela totalidade do montante em falta por fracção, e há uma inacei­tável abertura aos "interesses", que torna o critério flutuante, porque sensível ao carácter impressivo (ou não) dos dados de facto.
Assim, por exemplo, já se admitiu que se entre a deliberação de realizar as obras e a conclusão da res­pectiva empreitada, mas antes de determinado condómino pagar a parte que lhe compete, um condómino proceder à transmissão da sua fracção, será o novo condómino o responsável pela liquidação da parte do preço imputado à fracção de que é titular, salvo acordo em contrário entre o comprador e o vendedor, afir­mando-se que "[...] este entendimento é o que parece mais razoável em face de quem tira proveito do gozo do bem. Assim, no que concerne ao alienante, não se justifica que ele tenha de contribuir para uma despesa de que nenhum proveito lhe poderá advir, uma vez que deixou de usufruir do gozo do prédio. Porém, já parece inteiramente justificável que o adquirente se sujeite ao pagamento de uma despesa de que ele irá de futuro ter benefício".
Contudo, se é este o crité­rio, não há critério, pois pode perfeitamente aconte­cer - e normalmente acontece - que o montante das prestações em dívida à data da aquisição se destine a cobrir despesas das quais, em maior ou menor grau, o adquirente também beneficiará: o pagamento da úl­tima revisão bienal dos ascensores […]; muitos outros exemplos poderiam ser dados.
Também é questionável a tendência para associar excessivamente a respon­sabilidade pelos encargos de condomínio com o aproveitamento (potencial ou efectivo) que os condóminos fazem das partes comuns do prédio, tendência que, mesmo aderindo ao ponto de vista da corrente dominante, é insustentável, pois não permite explicar alguns aspectos do regime da contribuição dos condóminos para as despesas comuns.
Assim, já se entendeu que há diferenças na trans­missão da dívida consoante a prestação de condomí­nio em dívida seja uma contribuição extraordinária para obras ou corresponda à normal contribuição, fixada anualmente - mas a contribuição ordinária pode ser calculada, como muitas vezes é, com par­celas destinadas a cobrir previstas ou imprevistas obras, passadas ou futuras. Não é aceitável e praticável este tipo de resultado, este tipo de complexidade, que se apresenta como apto, por exemplo, a gerar insuperáveis dificuldades de prova e litígios apenas resolúveis com um, mais ou menos assumido, recurso à equidade.
O critério de distribuição da responsabilidade por prestações de condomínio que assenta na concepção da prestação de condomínio como contrapartida de um gozo potencial ou efectivo das partes comuns do edifício conduz a resultados inaceitáveis quando dele se procura retirar uma pretensa "autonomia" da obrigação de contribuir para os encargos comuns.
Suponha-se que em 2009, quatro anos depois de alguém adquirir uma fracção reconhece que a empresa X é credora do condomínio, por serviços de limpeza prestados nas partes comuns do condomínio em 2000; este crédito, por existir um litígio, ainda não tinha sido considerado como despesa no valor fixado no orçamento anual para as prestações de condomínio - de acordo com o argumento que se critica, o actual condómino (em 2009) pode sim­plesmente recusar-se a pagar a parte da sua quota de condomínio que vai servir para pagar à em­presa X, alegando que não gozou, nem podia ter gozado, as partes comuns do prédio na altura a que se refere o crédito.
Mais exemplos inaceitáveis, mas im­plicados, em linha recta, pelo critério criticado:
- C, que vendeu uma fracção, exige agora do condomí­nio 2500€, correspondentes à parcela da quota condominial, que pagou atempadamente durante dez anos, destinada ao fundo de reserva do condomínio, que nunca foi usado enquanto C foi condómino, porque entende que, se no futuro o fundo de reserva for usado, C estará a pagar algo de que não beneficia, nem pode beneficiar.
- D, condómina há dois meses no prédio X, recusa-se a pagar a parte da quota de condomínio que vai custear a inde­mnização por cessação sem justa causa do contrato de trabalho da funcionária da limpeza, por entender que não beneficiou dos serviços desta durante os 15 anos em que exerceu funções no condomínio, mas apenas nos últimos dois meses.
É certo que, para fugir a esta crítica, poderia recor­rer-se ao argumento, mais uma vez puramente formal, que consistiria em dizer: mas, nestes exemplos, a dí­vida (de prestações ao condomínio) só se constitui no momento em que o condomínio fixa, em assembleia de condóminos, o valor da prestação (ordinária ou extra­ordinária) que vai ser imputado ao pagamento da dívi­da, pelo que o critério está respeitado: cada condómino só responde pelas dívidas constituídas enquanto é proprietário. Só que argumentar dessa forma, como é evidente, permite perceber que carecem de fundamen­to as razões que a doutrina e a jurisprudência invocam para justificar que o pagamento está indexado ao gozo ou à possibilidade de gozo das partes comuns: é que não se pode dizer, simultaneamente, sem incorrer em contradição, que um condómino que foi proprietário de uma fracção entre 2002 e 2007 só paga aquilo de que gozou ou pôde gozar entre 2002 e 2007 e dizer depois que se o "custo" dos serviços ou despesas que permitiram esse gozo for exigido aos condóminos só em 2008 ou 2009, ao proprietário seguinte da fracção, este é que vai pagar esse custo, porque só se cons­tituiu a dívida na esfera do novo proprietário.
O que se diz não significa obliterar que a quo­ta de condomínio é sempre idealmente uma repre­sentação de uma possibilidade de gozo das partes comuns; mas também seria errado exagerar esse aspecto, com as consequências perniciosas acima refe­ridas. Com efeito, essa possibilidade de gozo é objecti­va e refere-se mais propriamente à fracção do que ao seu (concreto e transitório) proprietário: o proprietá­rio de uma fracção autónoma sita no segundo andar do prédio paga os encargos com os ascensores, quer os utilize, quer não.
O argumento da inexistência da publicidade, não resiste a um exame atento. A obrigação propter rem de contribuir para as despesas do condomínio é parte integrante do estatuto do direito real do proprietário de fracção autónoma. O registo do direito de propriedade sobre a fracção é suficiente para dar a conhecer que, por força do regime legal do direito real do condómino (ou do título constitutivo), pode haver quantias em dívida.
Claro que não existe publicidade formal do mon­tante de prestações de condomínio em dívida pela fracção "X" ou "Y" em cada momento - mas este argumento, manifestamente, prova demais: também não está sujeito a registo (para retomar o exemplo dado supra) o facto de A, usufrutuário de prédio rústico, estar obrigado propter rem a uma prestação de facere para repor três, ou quatro, ou cin­co pés de árvores de fruto perecidas (art. 1453/2); nem por isso deixa a doutrina de afirmar convic­tamente (e bem) que, se B adquirir de A o usufruto do prédio, fica obrigado a repor as árvores, por muito que prove que desconhecia, sem culpa, que tal obrigação existia.
Além disso, há múltiplas situações no nosso Direito onde se verifica que são oponíveis a terceiros de boa fé posições jurídicas das quais não poderiam ter tido conhecimento sem que a sua contraparte as tivesse dado a conhecer: sirvam de exemplos a oponibilidade plena a terceiros da cláusula de reserva de propriedade aposta em contratos de compra e venda de bens móveis não sujeitos a registo; e, mesmo no âmbito da transmissão de bens imóveis, sujeitos a um sistema de publicidade, veja-se a oponibilidade a terceiros do arrendamento de duração não superior a seis anos, que não carece de ser registado, mas nem por isso deixa de ser oponível ao adquirente do bem locado (art. 1057 do CC e art. 5/5 do CRegP, a contrario sensu).
Quanto ao argumento que compara as dívidas de condomínio com a necessidade de obras, sendo as primeiras "invisíveis" e as segundas "visíveis". Será que se pode afirmar, com serieda­de, que a necessidade de obras é normalmente (pre)visível? Um adquirente de uma fracção sabe se a cobertura do prédio está a precisar de reforço? Visita essa parte do prédio antes de comprar a fracção? Sabe se os elevadores irão precisar de renovação bre­ve? Tem conhecimentos técnicos para o saber? Actualmente, é, porventura, mais fácil tomar conhecimento das dívidas de condomínio do que da necessidade de reparações das partes comuns.
O contributo do direito comparado nesta matéria apresenta-se sugestivo.
- Assim, o direito espanhol consagra a responsabilidade do adquirente de fracção autónoma pelas respectivas prestações de condomínio vencidas e não pagas, embora com um limite de valor: o correspon­dente às prestações já vencidas no ano do contrato de alienação, e até esse contrato, e no ano imediatamente anterior; a própria fracção é garante desse pagamento (com preferência face a outros credores do adquiren­te) e a lei consagra deveres de informação e menções obrigatórias ao montante das dívidas existentes nos instrumentos que titulem os contratos de alienação das fracções.
- Regime semelhante resulta do art. 63, § 2.°, das disposizioni di attuazione do CC italiano, que estabelece a responsabilidade solidária do alienante e do adquirente pelas prestações respeitantes ao ano da transmissão e ao ano imediatamente anterior, embora sem vincular o imóvel ao pagamento. Regime que constitui uma decisão do legislador de limitar o carácter real da situação jurídica em causa, por razões que se prendem com o entendimento de que, quanto mais afastadas no tempo da data da aquisição as prestações em dívida a suportar pelo adquirente, menos elas correspondem a despesas das quais esse adquirente beneficiará. Repa­re-se até que o próprio art. 1104 do Codice, no que diz respeito às despesas comuns na compropriedade, estipula a responsabilidade daquele que adquire a quota de comproprietário anterior por tais despesas, sem limite de valor, o que reforça que o legislador italiano entendeu simplesmente que esta regra não seria inteiramente adequada à situação das dívidas de condomínio, se fosse aí aplicada irrestritamente (como aconteceria, por força da remissão do art. 1139 do Codice, se não existisse aquele art. 63).
- No direito brasileiro, a Lei nº 4.591/64, na redac­ção inicial do seu art. 4.°, afirmava, para lá de qual­quer dúvida, que o adquirente de fracção autónoma respondia pelas prestações já vencidas perante o con­domínio. Contudo, em 1984, a redacção do preceito foi alterada, passando agora o mesmo a dispor apenas, no seu parágrafo único, que "[a] alienação ou trans­ferência de direitos de que trata este artigo [ou seja, a alienação do direito de propriedade sobre a fracção] dependerá de prova de quitação das obrigações do alie­nante para com o respectivo condomínio". A alteração gerou compreensíveis dúvidas, mas o entendimento uniforme na doutrina e na jurisprudência é hoje o de que, tendo aquela norma um escopo de protecção do condomínio, a mesma não pode ser interpretada em sentido contrário a esse escopo, pelo que se entende que, mesmo na alienação de fracção autónoma na qual não tenha sido dada conta da quitação das dívidas face ao condomínio, o adquirente é responsável perante este pelas respectivas prestações já vencidas à data da compra e ainda não pagas; e isto sem prejuízo do direito de regresso sobre o alienante, em relação ao montante pago ao condomínio.
Tudo isto não significa que a questão do conhecimento ou desconhecimento da existência de dívidas de condomínio seja irrelevante, ou que o comprador de fracção autónoma fique numa posição completamente inde­fesa. O nosso ordenamento jurídico oferece as ferramentas necessárias para explicar a relação entre o comprador e o vendedor de fracção autónoma e corrigir aspectos patológicos da mesma.
Assim, o adquirente (a título oneroso) de frac­ção autónoma que suporte prestações de condomínio em dívida relativamente à fracção por si adquirida, das quais não tivesse nem devesse ter conhecimento aquando da celebração do contrato, pode fazer valer face ao alienante o regime da compra e venda de bem onerado (arts. 905 e segs.). Com efeito, a responsabilização do adquirente por dívidas que poderia não conhecer enquadra-se perfeitamente naquele que é um "conceito amplíssimo" de "ónus ou limitações que excedam os limites normais ineren­tes aos direitos da mesma categoria" constante do art. 905.
*
Todos estes argumentos (acabados de transcrever, de Miguel Assis Raimundo) são irrespondíveis e convencem que a solução correcta é a de considerar que o adquirente da fracção autónoma fica obrigado ao pagamento das despesas com a conservação das coisas comuns, mesmo que elas se tenham constituído ou vencido em momento anterior ao da aquisição: é uma obrigação que faz parte do conteúdo do direito real em causa, dele não autonomizável, e que por isso se transmite (é ambulatória) com a transmissão do direito real.
Assim, embora por outros fundamentos, é de manter a decisão recorrida.
*
(…)
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, embora com fundamentos diversos dos da decisão recorrida.
Custas pelos requeridos.

Lisboa, 20 de Junho de 2013

Pedro Martins
Eduardo José Oliveira Azevedo
Lúcia Sousa