Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
68/20.3T8CSC.L1-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO DE VIDA
ADESÃO DOS CÔNJUGES
FALTA DE PAGAMENTO DE PRÉMIOS
INTERPELAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.Num contrato de seguro do ramo vida a que ambos os cônjuges aderiram, para garantir, em caso de sinistro (morte ou invalidez de qualquer deles), o pagamento da quantia mutuada a ambos por uma instituição bancária, a interpelação feita apenas a um dos cônjuges relacionada com a falta de pagamento de prémios não determina a resolução do contrato de seguro, sendo necessária a interpelação de ambos os cônjuges aderentes.

II.O instituto do abuso de direito não obsta ao accionamento desse contrato de seguro, em virtude da circunstância de os respectivos prémios, vencidos nos 7 anos anteriores, não terem sido pagos, tratando-se de mero incumprimento que não pode ter criado na seguradora a convicção ou confiança de que o contrato estaria resolvido e que o autor não o iria accionar.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

           
I.Relatório


A vem instaurar contra B, acção declarativa de condenação, peticionando:

Deve a presente ação ser julgada totalmente procedente, por provada e, em consequência:
(i)- deverá reconhecer-se que à data de participação da situação de invalidez total e permanente do Autor (04.09.2019) o contrato de seguro de vida, titulado apólice n. 000..... e certificado n.° 9......., encontrava-se perfeitamente válido e em vigor e, assim,
(ii)-Deverá a Ré ser condenada a pagar ao Banco C uma indemnização em quantia que se vier a liquidar (em liquidação em execução de sentença), correspondente ao capital em dívida no crédito à habitação n.° 7........ na data de trânsito em julgado da sentença condenatória;
(iii)-Deverá a Ré ser condenada a pagar ao Autor todas prestações, encargos e comissões com o crédito à habitação n.° 7........ em quantia que se vier a liquidar (em liquidação em execução de sentença), suportados pelo Autor (através de débito na sua conta após a data em que o Autor fez participação da situação de invalidez total e permanente (04.09.2019) até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, acrescido dos respetivos juros legais, contados à taxa legal em vigor, desde o seu vencimento e até efetivo e integral pagamento.

Alega, em síntese, o seguinte:

Por documento datado de 18.02.2004 - denominado “PROPOSTA DE ADESÃO/SEGURO” o Autor subscreveu um seguro de vida associado ao crédito à habitação n.° 7........, no montante de € 100.000,00 (cem mil euros), contraído junto da sucursal do Banco C, assumiu a qualidade de tomador e beneficiário do seguro (a favor de quem revertem as importâncias seguras decorrentes do contrato) e o Autor a qualidade de pessoa segura.
O referido seguro tem como cobertura principal a situação de morte e como coberturas complementares a situação de invalidez total e permanente (cfr. Doc. 3 - Ata adicional de certificado individual).
Nos termos das condições especiais do contrato de seguro de vida em causa, considera- se invalidez total e permanente a situação de incapacidade superior a 66,6 % de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades (cfr. Doc. 4 - condições gerais e especiais) 
Ao Autor foi atribuída uma incapacidade de 69% (sessenta e nove por cento) conforme se diz no Atestado Médico de Incapacidade de 26.07.2019 (cfr. Doc. 5 - Atestado Médico de Incapacidade)
No dia 04.09.2019 o Autor fez participação da situação de invalidez total e permanente junto da sucursal do --- (cfr. Doc. 6 - participação da situação de invalidez total e permanente).
Sucede que a Ré tem recusado o pagamento da indemnização devida ao …, correspondente ao capital em dívida no crédito à habitação n.° 7........ (Doc. 2), acrescido das prestações e encargos com o referido crédito e que têm sido suportados pelo Autor após a data de participação da situação de invalidez total e permanente junto da sucursal do ---(04.09.2019).
Numa reunião corrida no passado dia 06.08.2019, na sucursal do ---, o Autor tomou conhecimento, pela primeira vez, da suposta anulação do referido contrato de seguro com efeitos a outubro de 2013 (cfr. Doc. 7 - pedido de documentação).
O Autor ficou absolutamente surpreendido pois nunca tinha sido informado de tal situação.
Em sequência disso, o Autor solicitou o envio de documentação comprovativa da suposta resolução/anulação do referido contrato de seguro com efeitos a outubro de 2013 (cfr. Doc. 7).
A Ré alega que terá enviado várias comunicações escritas, designadamente dois supostos avisos de 19/10/2013 e de 09/11/2013 e uma carta de anulação de 21.12.2013 (cfr. Doc. 8 - carta com envio de documentação, Doc. 9 - Email com envio de documentação, Doc. 10 - os supostos avisos e carta alegadamente remetidos em anexo aos Doc. 8 e 9 e Doc. 11 - Resposta da seguradora a esclarecimentos) mas não apresenta qualquer carta dirigida ao Autor com objetivo de avisar a falta de pagamento dos prémios e resolver/anular o referido contrato de seguro com efeitos a outubro de 2013.
O Autor sabe que a sua esposa também não recebeu qualquer aviso ou carta com o objetivo de avisar a falta de pagamento dos prémios e resolver/anular o referido contrato de seguro com efeitos a outubro de 2013 (Doc. 13)
Não tendo havido qualquer anulação/resolução do contrato, confirma-se que o referido contrato de seguro se mantém perfeitamente válido e em vigor.
Se o Autor tivesse sido interpelado ou avisado da suposta falta de pagamento de prémios de seguro (conforme alega a Ré), obviamente que o Autor teria regularizado a situação com meios próprios ou com ajuda de familiares.
Além disso, verifica-se que, na versão da Ré, muito estranhamente, teria havido motivo para anular/resolver o contrato de seguro referente à apólice n.° 000..... e certificado n.° 9....... (com início em 01.08.2004), mas já não teria havido motivo para anular/resolver o contrato de seguro referente à apólice n.° GR0006.... e certificado n.° RK7....... (com início em 01.07.2008) - Doc. 18 - Certificado individual de seguro).
No primeiro caso, o capital inicial seguro era de € 100.000,00 (cem mil euros) (Doc. 1 e 2); no segundo caso, o capital inicial seguro era de € 40.000,00 (quarenta mil euros) (Doc. 18).
Em qualquer caso, a Ré não poderia unilateralmente anular/resolver um contrato de seguro sem que o Autor fosse previamente avisado/interpelado para regularizar a situação uma vez que o Autor era (e continua a ser) uma das pessoas seguras pela apólice em causa.
E se o Autor, porventura, tivesse que optar entre um seguro com uma cobertura de cem mil euros e outro com uma cobertura de quarenta mil euros, é evidente que optaria pela apólice de seguro com maior cobertura.
Ademais, é absolutamente pacífico que a interpelação por meio de carta registada é um imperativo imposto pelas boas práticas e usos no comércio jurídico para assuntos com o relevo que a resolução/anulação de um contrato de seguro de vida, naturalmente, possui.
Assim, e independentemente de saber se o prémio de seguro foi ou não pago, ou qual pessoa obrigada ao seu pagamento, verifica-se que o contrato de seguro de vida titulado apólice n.° 000..... e certificado n.° 9....... só poderia considerar-se insubsistente (por falta de pagamento do prémio) se o segurado (Autor), depois de avisado por meio de carta registada, não satisfizesse a quantia em dívida no prazo de oito dias ou noutro, nunca inferior a este, que porventura tivesse sido estipulado na apólice.
No caso em apreço, conclui-se (face aos elementos probatórios existentes) que a Ré não fez prova de envio de qualquer comunicação à esposa do Autor - sendo certo que a tal comunicação, a existir, seria irrelevante, pois não produziria qualquer efeito relativamente ao Autor, ou seja, não dispensaria a Ré de interpelar diretamente o Autor.

Citada, a ré veio contestar, excepcionando a resolução do contrato, por falta de pagamento dos prémios e o abuso de direito, impugnando motivadamente parte da factualidade vertida na petição inicial e propugnando pela improcedência da acção.

O autor veio responder à contestação, formulando o seguinte pedido:
A Ré deve ser condenada como litigante de má-fé, em multa a indemnização exemplares a favor do Autor, a fixar com prudente arbítrio deste Tribunal, porquanto ficou devidamente alegado e demonstrado que a Ré, com dolo ou culpa grave, na sua contestação
(i)-alterou a verdade dos factos e ocultou/omitiu factos e documentos que constam na petição inicial e ou que a Ré tinha perfeito conhecimento pessoal e direto (por diversos meios), para com isso tentar excluir a sua responsabilidade;
(ii)-deduziu oposição cuja falta de fundamento, em termos de facto e de direito, não devia ignorar em virtude da natureza da atividade que profissionalmente exerce e dos elevados conhecimentos e quadros técnicos que naturalmente possui.

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Foi proferido despacho saneador tabelar, com dispensa de fixação do objecto do litígio e dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, com o seguinte teor dispositivo:

Nos termos expostos julgo a acção procedente por provada e consequentemente:
VI-1-Reconheço que à data de participação da situação de invalidez total e permanente do Autor --- (04.09.2019) o contrato de seguro de vida, titulado pela apólice n. 000..... e certificado n.° 9......., encontrava-se válido e em vigor e, assim,
VI-2- Condeno a Ré ---, a pagar ao Banco C uma indemnização em quantia que se vier a liquidar (em liquidação em execução de sentença), correspondente ao capital em dívida no crédito à habitação n.° 7........ na data de trânsito em julgado da sentença condenatória, condicionada ao pagamento pelo A. à R. de todos os prémios não pagos desde a data do incumprimento até à referida data acrescidos dos juros a contar do vencimento de cada prémio à taxa aplicável a juros civis até à referida data;
VI-3-Condeno Ré a pagar ao Autor todas prestações, encargos e comissões com o crédito à habitação n.° 7........ em quantia que se vier a liquidar (em liquidação em execução de sentença), suportados pelo Autor após a data em que o Autor fez participação da situação de invalidez total e permanente (04.09.2019) até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, acrescido dos respetivos juros legais, contados à taxa legal em vigor, desde o seu vencimento e até efetivo e integral pagamento.

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Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1.Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida a fls_, no âmbito do processo supra identificado, a qual julgou procedente a acção judicial intentada, condenando a ora Recorrente no pedido formulado pelo A.
2. Ora, mantendo a ora Recorrente a profunda convicção de que existem nos autos fundamentos, de facto e de direito, que impunham, no caso concreto, decisão em sentido diverso, procurará adiante a Recorrente explicitar os motivos pelos quais interpõe o presente recurso, especificando, seguidamente, os pontos concretos que, na sua perspectiva (e com a ressalva do devido respeito, que é muito), foram, in casu, incorrectamente apreciados.
3. Assim, as presentes alegações de recurso terão por objecto quer a alteração da matéria de facto, por via da reapreciação da prova gravada e de todos os demais elementos probatórios constantes dos autos, quer a alteração da matéria de direito, pretendendo a ora Apelante.
4.Considera a Recorrente incorrectamente julgados os pontos agora transcritos da matéria de facto dada como não provada e o ponto 57 da matéria de facto dada como provada, na medida em que, da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, e dos documentos juntos aos autos não é possível, salvo o devido respeito, concluir pela procedência do entendimento dado pelo douto Tribunal a quo.
5.Tendo em conta toda a prova produzida nos autos, quer documental, quer testemunhal que foi produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, entende a ora Recorrente, salvo o devido respeito, que a matéria dada como não provada, foi incorrectamente apreciada, a qual conduziu a uma decisão injusta e incoerente com a factualidade efectivamente apurada nos autos.
6.Na verdade, a douta sentença teve simplesmente em atenção os documentos juntos aos autos, não tendo sido dada a necessária relevância aos depoimentos prestados, em especial:
7.Depoimento da testemunha D - gravado em CD, em ficheiro com referência n.° 20201105105857 4303862 2871329, com início às 10:58h e duração de 50:32 minutos.
8.Depoimento da testemunha E - gravado em CD, em ficheiro com referência n.° 20201105103426 4303862 2871329, com início às 10:34h e duração de 20:00 minutos.
9.Depoimento da testemunha F - gravado em CD, em ficheiro com referência n.° 20201105101517 4303862 2871329, com início às 10:15h e duração de 23:34 minutos.
10.Transparece claro e cristalino que o douto Tribunal não tomou em consideração o depoimento claro, preciso e isento das testemunhas da ora Ré, cujo depoimento ora se transcreveu, que, fazendo referência a diversos pormenores e consultando documentos que tinham na sua posse, nomeadamente cartas e boletins de adesão, esclareceram o douto Tribunal de todos os factos essenciais para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
11.Na verdade, e sem qualquer justificação plausível, os depoimentos das referidas as testemunhas foram, pura e simplesmente, ignorados, quando, na verdade, foram em tudo, esclarecedores e merecedores de credibilidade por parte do Tribunal.
12.Nomeadamente foram trazidos aos autos factos importantes e essenciais para a descoberta da verdade e boa decisão da causa: os AA. subscreveram novo contrato de seguro para o mesmo empréstimo, o que significa que tinham necessariamente de ter conhecimento de que o anterior seguro, apólice aqui em causa, não estava em vigor!
13.Mais, resultou provado que o A. recebeu todas as cartas referentes a um outro seguro que tinham na companhia, cujos prémios estavam igualmente em atraso, tendo procedido ao pagamento devido. Seguro esse cujo prémio era inferior.
14.Ou seja, cartas iguais, enviadas da mesma forma, para a mesma morada que o A. receberam e, de imediato, procederam ao pagamento dos prémios em atraso.
15.Pelo que, nenhum sentido faz, entender que apenas as três (três, e não uma!) cartas referentes à apólice em discussão nos presentes autos, não foram recebidas! A morada era precisamente a mesma! E não há nos autos, nem o A. alegou ou provou, nenhum factor que levasse a crer que aquelas cartas, remetidas em três meses diferentes (e nos mesmos das cartas que foram recebidas) não chegaram à morada do A. e não foram por ele conhecidas.
16.Reapreciando a prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente os depoimentos das diversas testemunhas do A. e da Ré, conforme transcritos, bem como a documentação junta aos autos, constata-se que o Tribunal não decidiu correctamente, com base na prova produzida, devendo os pontos da matéria de facto não provada constar da matéria de facto provada e o ponto 57 da matéria de facto provada ser dado como não provado.
17.De tudo quanto se encontra exposto, entende a ora Recorrente que o douto tribunal a quo fez uma incorrecta apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, na medida em que não deu por provada a matéria constante dos pontos já mencionados da matéria de facto não provada, sendo que para isso se produziu a competente prova, quer documental quer, em especial, testemunhal.
18.Ora, tendo em conta o depoimento das referidas testemunhas, verifica-se que o segurado não cumpriu com as obrigações a que estava adstrito mediante a celebração do contrato junto da R. Seguradora, nomeadamente no que respeita aos pagamentos dos prémios relacionados com a celebração de tal contrato, o que fez com que o mesmo fosse resolvido.
19.Estando em causa no presente caso a falta de pagamento dos prémios de seguro por parte do segurado, coloca-se a questão se saber que tipo de prova tem a Seguradora de fazer no que diz respeito ao envio das cartas ao segurado, onde comunica a falta de pagamento dos prémios de seguro, o montante em dívida e bem assim, a data da resolução contratual.
20.Ora, relativamente a esta questão, é inquestionável que a Seguradora tem o dever de comunicar ao segurado, mediante o envio de carta, a falta de pagamento dos prémios de seguro, porém, e quanto ao facto de tais cartas seguirem por via registada por forma a que a Seguradora possa fazer prova de tal envio, já a questão não tem, nem pode ter, o carácter de “essencialidade preclusiva” (condição sine qua non) que a douta sentença lhe quer atribuir.
21.Vejamos, quanto a esta matéria, as doutas palavras proferidas pelo Ac. TRL, de 26/05/2009 (in www.dgsi.pt).
22.Ora, face ao que supra se expôs, pese embora tais cartas não tenham de facto sido remetida com registo e AR, tendo as testemunhas feito prova do seu envio, não deveriam tais testemunhos ser considerados insuficientes e consequentemente deveriam os quesitos constantes da matéria de facto não provada ter sido dados como provados.
23.Sendo certo que, feita a prova do envio das cartas por parte da Seguradora, fica a parte contrária, ou seja, aquela que se pretende fazer valer, neste caso, do facto de não ter recebido as cartas, incumbida de provar que as não recebeu e porque motivos: inverte-se o ónus da prova.
24.No caso em apreço, tal inversão não aconteceu. Na verdade, a douta sentença decidiu que não tendo a carta de resolução do contrato sido remetida com registo e AR, não podia ser dado como provado o seu envio pela Seguradora, não havendo assim necessidade, no entender do douto Tribunal, de os segurados fazerem prova do não recebimento das mesmas.
25.De acordo com a matéria constante nos autos, deveria ter resultado provado o envio dos avisos de cobrança e respectiva carta de anulação, conforme depoimento das testemunhas D, E e F, não havendo necessidade de fazer prova da recepção das referidas cartas pelo segurado, cabendo, antes, ao A. fazer prova da sua não recepção - o que não sucedeu!
26.Verifica-se, assim, que a R. Seguradora cumpriu com as normas legais no que respeita à constituição em mora e à resolução contratual dado ter enviado, em dois momentos distintos, as cartas ao Segurado a comunicar a falta de pagamento dos montantes em dívida bem como a consequente resolução contratual caso tais montantes não fossem, como não foram, regularizados.
27.Vejamos a este respeito o teor do douto Ac. do STJ, de 21/04/2010, o qual refere que (in www.dgsi.pt).
28.Vejamos, ainda, a este respeito o recente Acórdão da Relação de Coimbra, de 14.03.2017, em    
29.Na verdade, no caso dos autos, não obstante a prova do envio das cartas por parte da Seguradora, da indispensável inversão do ónus da prova quanto a tal facto (que não foi feita) e ainda da consequente resolução contratual, a douta sentença proferida decidiu pela condenação da ora R.
30.Sendo, ainda, de reiterar e relembrar que não existiu qualquer devolução à Seguradora das cartas remetidas à esposa do A., segurada, contendo qualquer aviso de “destinatário desconhecido”. Sendo certo que, não foi enviada apenas 1 carta mas 6 cartas para a mesma morada! Três delas referente à presente apólice e outras três referentes a outra apólice, cujos prémios foram liquidados após a recepção.
31.Assim, tendo a Ré Seguradora remetido correctamente as suas comunicações para aquele que foi o único domicílio que lhe foi comunicado pela Pessoa Segura, ainda que o destinatário não tivesse tido conhecimento das comunicações por ter domicílio em local diferente, apenas a culpa própria se ficaria a dever tal desconhecimento, pois deveria ter tido o cuidado de informar o remetente da verificada alteração do seu domicílio (conforme o disposto no artigo 224° n° 2 do C.C.).
32. Ora, cumprirá, ainda, referir que a ora Ré alegou, em sede de contestação, que todas as cartas foram remetidas para aquela que foi a morada indicada pelo A. na proposta de adesão, nunca lhe tendo sido comunicado qualquer alteração ao único domicílio que lhe foi comunicado pela Pessoa Segura, e que nunca foi impugnado!
33.A verdade é que o falecido marido da A. permaneceu 7 anos sem proceder ao pagamento dos prémios de seguro a que estava obrigado. Mais, o A. recebeu as cartas referentes a outra apólice de seguro e, tendo conhecimento de que não tinha disponível dinheiro na conta, procedeu ao pagamento dos prémios em atraso através de multibanco.
34.Ou seja, ainda que se entendesse que efectivamente o A. não tivesse recepcionado as cartas remetidas pela seguradora - o que apenas se admite por mera cautela e dever de patrocínio - sempre se diria que tinha, com toda a certeza conhecimento de que a contrapartida da validade do seguro que subscreveu era o pagamento dos prémios de seguro e de que, àquela data, não tinha disponível dinheiro na conta. Pelo que, ao permanecer tantos anos sem proceder ao pagamento de um único prémio de seguro, tinha pleno conhecimento de que a apólice já não poderia encontrar-se em pleno vigor. Tanto mais que, posteriormente, veio a ser subscrita nova apólice de seguro para o mesmo empréstimo! O que é totalmente flagrante do conhecimento do A. de que a apólice em causa já não estava em vigor!
35.Aliás, parece-nos deveras ofensivo da boa-fé pretender actuar os “direitos” emergentes de um contrato de seguro, quando a pessoa segura há 7 anos que deixara de cumprir com a obrigação de pagamento dos prémios.
36.Estaríamos, portanto, perante uma actuação manifestamente abusiva, o que tornaria ilegítimo o direito da Recorrida de pedir que a Seguradora pagasse agora o capital assegurado.
37.Na verdade, de todo e qualquer contrato decorrem direitos e deveres para as partes envolvidas, devendo o mesmo assentar num verdadeiro equilíbrio das prestações devidas como contrapartida de determinado benefício.
38.Ora, não obstante a clara tendência de se sacrificar a posição contratual das Seguradoras, no pressuposto de que estas figuram, na verdade, como sendo o “lado forte” do contrato, na medida em que, em regra, encontram-se numa posição economicamente mais favorecida, não será admissível impor às Seguradoras a aceitação ou o pagamento de todo e qualquer risco/prejuízo, ainda que não recebendo a devida contrapartida a que têm direito legal, no pressuposto que estes possam ser inerentes à celebração de um contrato de seguro.
39.Na verdade, e ressalvando o devido respeito por diversa opinião, a violação do equilíbrio contratual conseguido através da estipulação de determinadas condições específicas para cada tipo de contrato, designadamente em contrapartida do prémio de seguro suportado pelo tomador, permitiria uma efectiva ameaça ao importantíssimo papel social e económico desempenhado pelas Companhias de Seguro.
40.Assim, estando em causa, nos presentes autos, o apuramento da responsabilidade da Ré, única e estritamente no âmbito contratual, não poderá ser a mesma obrigada a suportar alegados prejuízos que não se encontram, absolutamente, garantidos pelo contrato de seguro por falta de pagamento dos prémios a que os segurados estavam contratualmente obrigados.
41.Assim, para além dos factos constantes da matéria de facto não provada deverem ter sido dados como provados, e o ponto 57 dos provados, dado como não provado, nos termos do art. 685° B do CPC, violou o douto Tribunal a quo as normas jurídicas constantes dos artigos 224°, 236° e 334° do CC e os princípios gerais dos contratos de seguro, devendo a douta sentença recorrida ser alterada nos moldes supra indicados.
42.Por tudo quanto se encontra exposto, entende a ora Recorrente que a douta sentença recorrida deverá ser alterada, absolvendo-se a Ré de todos os pedidos contra si formulados.
Nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida e, em consequência, ser a Ré Seguradora absolvida do pagamento dos montantes peticionados pela Autora, só assim se fazendo JUSTIÇA!

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O recorrido apresentou as suas alegações, com as seguintes conclusões:
A)-Que Apelante/Seguradora não dirigiu qualquer carta ao Apelado/Segurado com objetivo de avisar a falta de pagamento dos prémios e resolver/anular o referido contrato de seguro com efeitos a outubro de 2013 (ver. Pontos 38 a 41 da Sentença, Doc. 8 da petição Inicial, e Docs. 3 a 5 da Contestação).
B)-Tal como se diz na Sentença em apreciação “no caso dos autos, tal comunicação ao A. apresentava-se como essencial uma vez que este contratou o seguro juntamente com a sua mulher, sendo ambos pessoas obrigadas, em primeira linha, ao pagamento dos prémios de seguro.”
C)-A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sustentado, de forma sólida e pacífica, que as comunicações devem ser dirigidas a ambos os segurados, não bastando que a declaração de resolução seja dirigida a um dos cônjuges segurados para que o outro cônjuge se considere automaticamente notificado.
D)-Por conseguinte, à data de participação da situação de invalidez total e permanente do Apelado (04.09.2019) o contrato de seguro de vida, titulado pela apólice n. 000..... e certificado n.° 9......., encontrava-se válido e em vigor.

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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos autos e com efeito meramente devolutivo.

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II.Objecto e delimitação do recurso

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
- Impugnação da decisão de facto.
- Validade da resolução do contrato celebrado.
- O abuso de direito.

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III.Os factos

Da primeira instância recebeu-se o seguinte elenco de factos provados e não provados:

A factualidade provada é a seguinte:
1.O A. nasceu em 03/05/1958 e é casado com G desde 27/08/1983.
2.Por documento datado de 18.02.2004 - denominado “PROPOSTA DE ADESÃO/SEGURO” (doc. 1 junto com a PI) o Autor subscreveu um seguro de vida e seguro multirriscos associado ao crédito à habitação n.° 7........, no montante de € 100.000,00 (cem mil euros), contraído junto da sucursal do Banco C (Doc. 2).
3.O Banco C assumiu a qualidade de tomador e beneficiário do seguro (a favor de quem revertem as importâncias seguras decorrentes do contrato) e o Autor e a sua mulher G a qualidade de pessoas seguras.
4.Ao referido seguro de vida multirriscos correspondem a apólice n.° 000..... e o certificado n.° 9........
5.O referido seguro teve início em 01.08.2004.
6.O referido seguro tem como cobertura principal a situação de morte e como coberturas complementares a situação de invalidez total e permanente (cfr. Doc. 3 - Ata adicional de certificado individual).
7.Na proposta de adesão/seguro (doc. 1 junto com a PI) figura como 1.° proponente G e como 2.° proponente o A ambos, à data, com morada na Av.---, e como tomador de seguro Banco C enquanto credor hipotecário.
8.Consta da mesma proposta que o capital total do empréstimo: €100.000,00. Ambos os proponentes subscrevem 1 única apólice de seguro pela totalidade do capital em dívida (apólice com 2 pessoas seguras). Capital a segurar; 1.° proponente: 100.000, 2.° proponentes €100.000.
9.Mais consta que a duração do seguro é válida por um ano, sendo automaticamente renovado por iguais períodos até ao final do contrato de empréstimo. Sendo a Data de início: data da escritura. Periodicidade: mensal.
10.Consta da parte final da proposta que "Ao banco C por débito na minha conta com o n.° 5009......., queiram proceder ao pagamento do prémio à B e à ---, na periodicidade acordada, relativo ao seguro contratado através da presente proposta. Na situação de pagamento de quaisquer valores à pessoa segura ou ao tomador de seguro/segurado (Multiriscos Habitação) deverá ser feito o crédito na mesma conta salvo instruções expressa em contrário".
11.A seguir a essa autorização de débito assinam ambas as 1A e 2.â pessoas seguras.
12.O A. e a Cônjuge eram ambos titulares da conta bancária referida em 10.
13.O contrato de mútuo (crédito à habitação n.° 7........) referido em 2. celebrado entre o A. e a mulher G, enquanto mutuários ambos, à data, com morada na Av.---, e Banco C enquanto mutuante, é o que consta de fls. 11 a 17, pelo qual o banco concedeu de empréstimo cem mil euros aos primeiros outorgantes para construção do imóvel hipotecado sito na R.---, que se destina habitação própria permanente.
14.Consta da clausula décima do documento complementar junto a fls. 14 a 17 que "1. Os Mutuários obrigam-se a subscrever um seguro muitirriscos do imóvel ora hipotecado em sociedade de seguros de reconhecido crédito e da confiança do Banco, a pagar atempadamente os respectivos prémios, a fazer inserir na respectiva apólice a existência desta hipoteca para o efeito de, em caso de sinistro e vencida a alguma das obrigações asseguradas, o Banco receber a respectiva indemnização, assim como a trazer pontualmente pagas as contribuições que incidirem sobre o imóvel hipotecado.
2.-Os mutuários obrigam-se a contratar um seguro de vida cujas condições constantes da respectiva apólice serão as indicadas pelo banco, em sociedade de seguros de reconhecido crédito e da confiança do banco, a pagar atempadamente os respectivos prémios, a fazer inserir na respectiva apólice que o Banco é credor hipotecário e que, em consequência, as indemnizações que sejam devidas em caso de sinistro reverterão para o Banco.(...)"
15.Foi acordado na clausula décima Primeira do mesmo documento que "1. Os mutuários obrigam-se a trazer pontualmente pagos os seguros referidos na clausula anterior.
2.-os mutuários autorizam desde já, com expressa subrogação, que, em caso de incumprimento de tais obrigações, o banco as cumpra, efectuando por conta dos mutuários todos os pagamentos necessáriosf.)
3.-Se o banco efectuar, na falta e por conta dos mutuários, o pagamento dos prémios e das contribuições em dívida, nos termos do disposto no número anterior, os mutuários autorizam desde já o banco a debitar os seus montantes em qualquer conta aberta em nome dos mutuários junto do banco C"
16.Consta do certificado individual de seguro emitido pela R. em 18/01/2013 e junto a fls. 17v que a entidade pagadora é G com morada na R.---.
17.Mais constam como pessoas seguras o A. e a mulher G, tendo como data de início 2004/08/01, tendo o prémio um vencimento mensal, sendo o valor total de €220,80, sendo o capital seguro em caso de invalidez total e permanente 86.286,72.
18.No certificado individual do seguro estipulou-se ainda que o Banco C é beneficiário irrevogável pelo montante em dívida no empréstimo associado ao crédito à habitação n. 7........ (cfr. Doc. 3 - Ata adicional de certificado individual).
19.De acordo com a cláusula 1 das condições gerais do contrato de seguro Ramo - Vida Grupo juntas a fls. 18 v e ss "para efeitos do presente contrato de seguro de vida grupo considera-se:
a)-seguradora- A B, SA;
b)-tomador de seguro- a pessoa ou entidade que celebra o contrato com a seguradora e é responsável pelo pagamento dos prémios;
c)-pessoa segura-A pessoa sujeita aos riscos que, nos termos acordados, são objecto deste contrato e que poderá contribuir para o pagamento dos prémios;
d)-beneficiário -A pessoa singular ou colectiva a favor da qual revertem as importâncias seguras decorrentes do contrato;
(...)g)proposta de adesão- o documento que titula o consentimento da Pessoa Segura na efectivação dos seguro e contém os dados individuais relativos à identificação da pessoa segura e dos beneficiários;(...)"
20.De acordo com a cláusula 12° das condições gerais do contrato de seguro Ramo - Vida Grupo juntas a fls. 18 v e ss:
"Salvo disposto em contrário nas Condições Especiais ou Particulares, os prémios, eventuais sobreprémios e encargos legais são devidos pelo Tomador de Seguro e vencem-se na data início do período a que se referem";
21. E, nos termos da Clausula o 13.°:
1.-O não pagamento do prémio, dentro de trinta dias posteriores à data do seu vencimento concede à Seguradora, nos termos legais, a faculdade de proceder à resolução do contrato ou fazer cessar as garantias conferidas em relação a uma ou mais Pessoas Seguras.
2.-A utilização da faculdade concedida no número anterior não prejudica o direito da seguradora ao prémio correspondente ao período decorrido";
22.Consta da clausula 15.° "1. O contrato e cada um dos certificados individuais poderão ser denunciados pelo tomador do seguro e pela seguradora, na respectiva data aniversária, desde que com uma antecedência mínima de 30 dias a competente comunicação escrita seja efectuada por carta registada ou outro meio para o efeito previsto na lei.
2.-contrato poderá ser resolvido nos termos do artigo 13.°(...)
3.-Após a resolução do contrato, os certificados individuais e documentos adicionais não produzem qualquer efeito."
23.Nos termos das condições especiais do contrato de seguro Ramo - Vida Grupo Invalidez Total e Permanente em causa, (art.° 1.° al. e)) considera-se invalidez total e permanente -  “A pessoa segurar encontrar-se na situação de invalidez total e permanente se, em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma actividade remunerada, com fundamento em sintomas objectivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais, nomeadamente quando desta invalidez resultar paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência de paralisia, cegueira completa ou incurável, alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho, devendo em qualquer caso o grau de desvalorização feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades ser superior a 66,6% que para efeitos desta cobertura é considerada como sendo igual a 100%" (cfr. Doc. 4 - condições gerais e especiais)
24.Consta do artigo 2.° das mesmas condições especiais da apólice quanto ao objecto de cobertura "Pelo presente contrato, a seguradora garante, em complemento das garantias da cobertura principal, o pagamento de um capital seguro, definido nas Condições Particulares ou certificado Individual da apólice, em caso de Invalidez Total e Permanente da Pessoa Segura, em consequência da doença manifestada ou de acidente ocorrido durante a vigência desta cobertura."
"o pagamento do prémio relativo a esta cobertura complementar será efectuado conjuntamente e nas mesmas condições do prémio da cobertura principal" art.° 5.° das condições especiais. E no art.° 7.° que "1. O pagamento do capital seguro será efectuado pela seguradora à pessoa segura, salvo convenção em contrário estipulada nas Condições particulares ou Certificado Individual".
25.Nos termos das condições especiais do contrato de seguro Ramo - Vida Grupo empréstimos art.° 1.° "pelo presente contrato a seguradora (...) o capital seguro estipulado no certificado individual" e no art° 2.° que " O Grupo Segurável é constituído pelo conjunto das pessoas que, sendo clientes do tomador do seguro(...) celebrem contratos de mútuo (...)" e no art.° 4.° que "1. O pagamento do capital seguro torna-se exigível no momento em que se verifique em relação á pessoa segura um dos riscos cobertos pelo contrato. A seguradora garante o pagamento de um único capital, ainda que o risco respeite a duas pessoas seguras" e o art.° 5.° n.°1 que beneficiários para efeitos do contrato até ao limite do capital seguro a entidade credora com quem a pessoa segura celebrou o contrato de mútuo com caracter irrevogável.
26.Foi atribuída ao Autor uma incapacidade de 69% (sessenta e nove por cento) conforme se diz no Atestado Médico de Incapacidade de 26.07.2019 de acordo com a TNI, aprovada pelo DL 352/2007 de 23 de Outubro nele constando como morada do A. a R. --- (cfr. Doc. 5 - Atestado Médico de Incapacidade Multiuso)
27.No dia 04.09.2019 o Autor, através do seu mandatário, que indica como morada do A. R.---, fez participação da situação de incapacidade permanente global junto da sucursal do Banco C (cfr. Doc. 6 junto com a PI) de forma a beneficiar da cobertura dos contratos Seguro Vida (crédito habitação com apólice/certificado n.° 9....... e n.° 7....... da B, solicitando fizessem chegar a participação e respectivos anexos à --- enviando:
(1)-atestado médico de incapacidade multiusos datado de 26/07/2019 supra referido;
(2)- Informação clínica datada de 14/08/2019;
(3)- relatório médico datado de 14.08.2019;
(4)-declaração do médico de família de 04/09/2019 e
(5)-declaração comprovativa da qualidade de pensionista emitida em 2019.
28.A Informação clínica datada de 14/08/2019 enviada é a que consta de fls. 79;
29.O relatório médico datado de 14.08.2019 enviado é o que consta de fls. 80;
30.A declaração do médico de família enviada é a que consta de fls. 81 nele constando como morada do A. R. ---.
31.E a declaração comprovativa da qualidade de pensionista emitida em 10/01/2019 pelo Centro Nacional de Pensões é a que consta de fls. 82, onde consta como morada do A. com morada na R. ---
32.Essa participação foi recebida pelo Banco C em mão própria em 04/09/19 tendo este declarado o recebimento da participação juntamente com cópia dos originais dos 5 documentos que a acompanham referidos em 26.
33.A Ré tem recusado o pagamento da indemnização devida ao Banco C, correspondente ao capital em dívida no crédito à habitação n.° 7........ (Doc. 2), acrescido das prestações e encargos com o referido crédito .
34.O Autor, através do seu Ilustre Mandatário, solicitou via email datado de 12/08/2019 à R. o envio:
(1)-de todos os contratos e documentos assinados e entregues pelo A. incluindo certificados de apólice, condições gerais e particulares, adendas, autorizações de débito directo, exames e relatórios médicos) relativas à apólice de seguro de vida habitação n.° 9.......;
(2)-Extractos bancários (conta 5009........) relativos ao período compreendido entre janeiro e dezembro de 2013;
(3)-cópia de toda a correspondência registada (e comprovativo de envio) remetida tanto pela seguradora ocidental como pelo Banco ao A. ou à esposa deste entre Janeiro de 2008 e dezembro de 2013, designadamente quanto ao suposto cancelamento/anulação da apólice de seguro de vida habitação n.° 9....... com efeitos a 01.10.2013 (cfr. Doc. 7 junto a fls. 25).
35.A Ré remeteu ao Ilustre Mandatário do A. em 29/08/2019 a carta junta como doc. 11 onde, além do mais, comunicou que "relativamente ao Certificado Individual 9....... (...) remetemos:
o Proposta de adesão;
o Carta com as condições gerais e especiais;
o Última Ata adicional do certificado individual remetida a 18/01 /2013;
o Pedido de revisão de tarifa e de atualização do capital em dívida;
o Envio de documentação pedida de 18/11/2009;
o Aviso por falta de pagamento de 19/10/2013;
o Aviso de anulação da apólice por falta de pagamento de 09/11/2013;
o Carta de anulação de apólice de 21/12/2013(...)" (cfr. Doc. 8 - carta com envio de documentação, Doc. 9 - Email com envio de documentação, Doc. 10 -avisos e carta remetidos em anexo aos Doc. 8 e 9 e Doc. 11 - Resposta da seguradora a esclarecimentos).
36.Na sequência do email de 30/08/2019 enviado pelo Ilustre mandatário do A. junta a fls. 26v em baixo, --- do Apoio ao Cliente Vida da R. enviou o email junto a fls. 26v onde informa que a correspondência referida na comunicação mencionada em 30. Seguiu para a morada que consta na comunicação do Mandatário.
37.Mais informa na mesma comunicação que as cartas de aviso por falta de pagamento e de anulação de apólice foram remetidas ao pagador e primeira Pessoa Segura do contrato a Exma Sra. D. G, cartas essas juntas a fls. 27 e 28.
38.Na sequência do email de 30/08/2019 enviado pelo Ilustre mandatário do A. junta a fls. 30v em baixo onde solicita o envio cópia do registo CTT/aviso de recepção das cartas de interpelação e cancelamento da apólice, --- do Apoio ao Cliente Vida da R. enviou o email junto a fls. 30v onde informa que a correspondência referida na comunicação mencionada em 30. seguiu para a morada que consta na comunicação do Mandatário.
39.Mais informa na mesma comunicação que as cartas de aviso por falta de pagamento e de anulação de apólice foram remetidas ao pagador e primeira Pessoa Segura do contrato a Exma Sra. D. G, cartas essas juntas a fls. 27 e 28.
40.O Autor não recebeu qualquer aviso ou carta com o objetivo de avisar a falta de pagamento dos prémios e resolver/anular o referido contrato de seguro com efeitos a outubro de 2013.
41.A Ré não dirigiu qualquer carta ao Autor com objetivo de avisar a falta de pagamento dos prémios e resolver/anular o referido contrato de seguro com efeitos a outubro de 2013.
42.A Ré apresenta avisos e carta tendo como destinatária esposa do Autor para a morada sita na R.---.
43.Costa de fls. 27 que a R. emitiu o aviso por falta de pagamento Risco da apólice 9....... junto a fls. 27 datado de 19/10/2013 tendo como destinatária G com morada sita na R. ---, onde, além do mais, se lê "Informamos que não foi possível efetuar a cobrança do presente recibo junto do banco C através do NIB 003300005009......., de acordo com a seguinte indicação do banco "conta sem saldo suficiente".
Solicitamos que proceda á sua liquidação através do Multibanco, Home Banking ou Cheque, utilizando as referências mencionadas abaixo.
Alertamos que a falta de pagamento do presente recibo produzirá o cancelamento da Apólice, deixando esta de garantir os riscos cobertosf..)"
44.Consta do mesmo aviso que são dados do aviso/recibo ramo vida risco; apólice n.° 9......., recibo n.° 8......., período do recibo 01-10-2013 a 01-11-2013 data de emissão 21-09-2013 valor total a pagar €220,80, data limite de pagamento 01-10-2013 data de resolução 08-11-2013.
45.Consta de fls. 28 que a R. emitiu o aviso de anulação da apólice 9....... por falta de pagamento junto a fls. 28 datado de 09/11/2013 tendo como destinatária a G com morada sita na R. --- onde, além do mais, se lê "na sequência dos avisos de cobrança anteriormente remetidos e, não se tendo verificado até ao momento o pagamento do prémio de seguro da apólice em referência, informamos que procederemos à anulação da referida apólice nos termos legais e contratuais em vigor(...)
A partir da data de resolução abaixo indicada deixam de ser garantidas as coberturas previstas nas condições gerais, especiais e particulares."
46.São dados desse aviso de anulação apólice n.° 9......., recibo n.° 8......., período do recibo 01-10-2013 a 01-11-2013 data de início da cobertura 21-09-2013 valor total a pagar €220,80, data de resolução 08-11-2013.
47.Consta de fls. 28v que a R. emitiu a carta aí junta respeitante ao certificado 9....... junto a fls. 28v datada de 21/12/2013 tendo como destinatária a G para a morada sita na R. --- onde se lê data de efeitos da anulação 2013/10/01 " nos termos da legislação em vigor e das condições contratuais aplicáveis procedemos ao cancelamento da apólice acima identificada, por falta de pagamento dos respectivos prémios e com efeitos a partir da data acima mencionada (...)"
48.As comunicações referidas em 40 a 45 foram remetidas à destinatária por carta simples (sem registo e sem A/R).
49.Não foi efectuado o pagamento à R. de qualquer prémio de seguro desde o relativo ao período de 01-10-2013 a 01-11-2013 nem o relativo a qualquer período subsequente nem pelos segurados nem pelo beneficiário.
50.No dia 17/09/2019 a R. enviou ao Ilustre mandatário do A. a carta registada com AR junta a fls. 29 (cfr. Doc. 12 - email de resposta).
51. No dia 04/09/2019 o ilustre Mandatário do A. enviou à R. o email junto a fls. 32 participando de novo a situação de invalidez total e permanente do A. solicitando o pagamento dos créditos habitação cobertos pelos períodos do contrato de seguro.

52.O Autor já tinha tentado acionar a apólice de seguro em causa por duas vezes:
• (i)- A primeira vez em 2009 (cfr. Doc. 14), em sequência da verificação de situação de incapacidade permanente para o trabalho (Doc. 15 de fls. 37v);
• (ii)- A segunda vez em 2011 (cfr. Doc. 16), em sequência da obtenção de Atestado Médico de Incapacidade - Multiuso com grau de incapacidade de 32% onde consta como morada do A. R. ---.
53.Porém, nessas situações, a Ré concluiu que não se verificavam as condições exigidas.
54.Consta de fls. 42v o certificado individual de seguro relativo a Seguro Vida Risco Crédito Habitação, com morada na R.---, tendo a apólice o n.° 0006.... e o certificado o n.° 7........
55.Constam desse certificado que são pessoas seguras o A. e a mulher G, tendo como data de início 2084/07/01, tendo o prémio um vencimento mensal, sendo o valor total de €38,73, sendo o capital seguro em caso de invalidez total e permanente €40.000,00.
56.Neste certificado individual do seguro estipulou-se ainda que o Banco C é beneficiário irrevogável pelo montante em dívida no empréstimo associado ao crédito à habitação.
57.A R. não anulou nem resolveu o contrato de seguro referente à apólice n.° GR0006.... e certificado n.° RK7....... (com início em 01.07.2008) - Doc. 18 - Certificado individual de seguro.
58.Nos termos da comunicação endereçada pela R. ao Ilustre Mandatário do A. em 12/09/2019 (fls. 50) relativa ao TAR-Seguro de vida associado ao crédito à habitação, apólice GR0006.... certificado RK7....... "na sequencia da conclusão da análise do processo de indemnização decorrente da situação de invalidez que lamentavelmente afeta o Constituinte de V. Exa. Cumpre-nos informar que houve decisão favorável à liquidação, com reconhecimento da Invalidez à data de 04-09-2019.(...)
Procedemos à regularização do processo de indemnização (...) assumindo perante o Banco Comercial Português, 54 (...) liquidação do capital em dívida no crédito imobiliário n.° 133....... a que a apólice estava associada, no montante de 28.222,08€.
Nos termos contratuais do Certificado de Seguro de Vida e até ao limite do capital seguro de 29.091,72€ procedemos ao pagamento ao Constituinte de V. Exa. Do valor remanescente de 869,64€ o qual foi liquidado através do crédito na conta bancária do Banco C associada à Apólice, com o n.° 5009.......(...).
59.Consta da PI e da procuração junta aos autos a fls. 54v que o A. tem como morada a R. ---
Estes os factos. Mais nenhum outro se provou.

E mormente não se provou que:
a)- Numa reunião corrida no passado dia 06.08.2019, na sucursal do Banco C, o Autor tomou conhecimento, pela primeira vez, da suposta anulação do referido contrato de seguro com efeitos a outubro de 2013 (cfr. Doc. 7 - pedido de documentação).
b)-As cartas referidas em 40 a 45 tenham sido recebidas pela cônjuge do A., G .
c)-Eram do conhecimento do A. o teor das comunicações referidas em 40 a 45.
d)-As Pessoas Seguras recebem mensalmente um extrato combinado, onde consta o pagamento dos prémios dos seguros que vigoram à data;
e)-aquando da anulação do contrato por falta de pagamento dos prémios, o mesmo deixa de constar do extrato.

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A impugnação da decisão de facto

Dispõe o art. 662º n.º 1 do Código de Processo Civil que A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Nos termos do art. 640º n.º 1 do mesmo Código, quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Em contrapartida, cabe ao recorrido o ónus de apontar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, e caso assim o entenda, transcrever os excertos que considere importantes, tudo isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
Acresce que muito embora se imponha o recorrente o ónus de indicar os concretos pontos da matéria de facto que entende deverem ser alterados, e o sentido de tal alteração, o Tribunal não está vinculado a optar entre alterar a decisão no sentido pugnado pelo recorrente ou manter a mesma tal como se encontra, antes goza de inteira liberdade para apreciar a prova, respeitando obviamente os mesmos princípios e limites a que a 1ª instância se acha vinculada.
Não obstante, haverá que ter presente que enquanto que a primeira instância toma contacto direto com a prova, nomeadamente os depoimentos e declarações de parte, e os depoimentos das testemunhas, com a inerente possibilidade de avaliar elementos de comunicação não verbais como a postura corporal, as expressões faciais, os gestos, os olhares, as reações perante as demais pessoas presentes na sala de audiências, etc., a Relação apenas tem acesso ao registo áudio dos depoimentos, ficando, pois privada de todos esses elementos não verbais da comunicação que tantas vezes se revelam importantes para a apreciação dos referidos meios de prova.
Por outro lado, como bem aponta o Ac. desta Relação, de 21/06/2018 (Ondina Alves), proc. 18613/16.7T8LSB.L1-2, “nunca é de mais relembrar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual, o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a Lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial.
De harmonia com este princípio, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, apenas cedendo este princípio perante situações de prova legal, nomeadamente nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, documentos particulares e por presunções legais.
Nos termos do disposto, especificamente, no artigo 396.º do C.C. e do princípio geral enunciado no artigo 607º, nº 5 do CPC, o depoimento testemunhal é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, o qual deverá avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência – v. sobre o conteúdo e limites deste princípio, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A livre apreciação da prova em processo Civil, Scientia Iuridica, tomo XXXIII (1984), 115 e seg.
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada – cfr. a este propósito ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 435-436.                          
É certo que, com a prova de um facto, não se pode obter a absoluta certeza da verificação desse facto, atenta a precariedade dos meios de conhecimento da realidade. Mas, para convencer o julgador, em face das circunstâncias concretas, e das regras de experiência, basta um elevado grau da sua veracidade ou, ao menos, que essa realidade seja mais provável que a ausência dela.
Ademais, há que considerar que a reapreciação da matéria de facto visa apreciar pontos concretos da matéria de facto, por regra, com base em determinados depoimentos que são indicados pelo recorrente.
Porém, a convicção probatória, sendo um processo intuitivo que  assenta na totalidade da prova, implica a valoração de todo o acervo probatório a que o tribunal recorrido teve acesso – v. neste sentido, Ac. STJ de 24.01.2012 (Pº 1156/2002.L1.S1)”.
Tem sido entendido que, ao abrigo do disposto no citado art. 662º, a Relação tem os mesmos poderes de apreciação da prova do que a 1ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto. Donde, deve a Relação apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão e recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido e na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Neste sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 287:
O actual art. 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava. Como se disse, através dos nºs 1 e 2, als. A) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.

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No que respeita à observância dos requisitos constantes do citado artigo 640º, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» (Ac. STJ de 01/10/2015 (Ana Luísa Geraldes); Ac. STJ de 14/01/2016 (Mário Belo Morgado); Ac. STJ, de 19/2/2015 (Tomé Gomes); Ac. STJ de 22/09/2015 (Pinto de Almeida); Ac. STJ, de 29/09/2015 (Lopes do Rego) e Acórdão de 31/5/2016 (Garcia Calejo), todos disponíveis na citada base de dados.
No que tange especificamente à impugnação da decisão de convicção negativa – factos não provados -, veja-se o Ac. do STJ de 15/2/2018 (Tomé Gomes), com a seguinte síntese: VI. No caso em que vem impugnado apenas um juízo probatório negativo, convocando-se diversos depoimentos prestados nessa sede com argumentação crítica sobre a valoração feita pela 1.ª instância e questionamento da credibilidade dada às testemunhas da A. em detrimento das da R., complementada ainda pela transcrição desses depoimentos com indicação do dia da sessão de julgamento em que foram prestados, do ficheiro de que consta a respetiva gravação e das horas e tempo de duração, tal como ficou consignado em ata, tem-se por observado o nível de exatidão suficiente do teor dessas gravações suscetíveis de relevar para a apreciação do caso, à luz do preceituado no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC.

*

Em primeiro lugar, pretende a recorrente ver considerados provados os seguintes factos:
b)-As cartas referidas em 40 a 45 tenham sido recebidas pela cônjuge do A., G.
c)-Eram do conhecimento do A. o teor das comunicações referidas em 40 a 45.
d)-As Pessoas Seguras recebem mensalmente um extrato combinado, onde consta o pagamento dos prémios dos seguros que vigoram à data;
e)-aquando da anulação do contrato por falta de pagamento dos prémios, o mesmo deixa de constar do extrato.

Invoca a recorrente que a convicção sobre tais factos deve ser positiva, em síntese, porque:
6.Na verdade, a douta sentença teve simplesmente em atenção os documentos juntos aos autos, não tendo sido dada a necessária relevância aos depoimentos prestados, em especial:
7.Depoimento da testemunha D - gravado em CD, em ficheiro com referência n.° 20201105105857 4303862 2871329, com início às 10:58h e duração de 50:32 minutos.
8.Depoimento da testemunha E - gravado em CD, em ficheiro com referência n.° 20201105103426 4303862 2871329, com início às 10:34h e duração de 20:00 minutos.
9.Depoimento da testemunha F - gravado em CD, em ficheiro com referência n.° 20201105101517 4303862 2871329, com início às 10:15h e duração de 23:34 minutos.
10.Transparece claro e cristalino que o douto Tribunal não tomou em consideração o depoimento claro, preciso e isento das testemunhas da ora Ré, cujo depoimento ora se transcreveu, que, fazendo referência a diversos pormenores e consultando documentos que tinham na sua posse, nomeadamente cartas e boletins de adesão, esclareceram o douto Tribunal de todos os factos essenciais para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
11.Na verdade, e sem qualquer justificação plausível, os depoimentos das referidas as testemunhas foram, pura e simplesmente, ignorados, quando, na verdade, foram em tudo, esclarecedores e merecedores de credibilidade por parte do Tribunal.
12.Nomeadamente foram trazidos aos autos factos importantes e essenciais para a descoberta da verdade e boa decisão da causa: os AA. subscreveram novo contrato de seguro para o mesmo empréstimo, o que significa que tinham necessariamente de ter conhecimento de que o anterior seguro, apólice aqui em causa, não estava em vigor!
13.Mais, resultou provado que o A. recebeu todas as cartas referentes a um outro seguro que tinham na companhia, cujos prémios estavam igualmente em atraso, tendo procedido ao pagamento devido. Seguro esse cujo prémio era inferior.
14.Ou seja, cartas iguais, enviadas da mesma forma, para a mesma morada que o A. receberam e, de imediato, procederam ao pagamento dos prémios em atraso.
15.Pelo que, nenhum sentido faz, entender que apenas as três (três, e não uma!) cartas referentes à apólice em discussão nos presentes autos, não foram recebidas! A morada era precisamente a mesma! E não há nos autos, nem o A. alegou ou provou, nenhum factor que levasse a crer que aquelas cartas, remetidas em três meses diferentes (e nos mesmos das cartas que foram recebidas) não chegaram à morada do A. e não foram por ele conhecidas.

*

A Exma Juiz a quo fundou a sua convicção negativa da seguinte forma:
O facto b) resultou de falta de prova da R. porquanto não tendo enviado carta registada mas carta simples não juntou prova documental da recepção das cartas, e o depoimento das testemunhas não se mostrou suficiente.
O facto c) nenhuma testemunha o confirmou de forma credível e segura.
Os factos d) e e) resultaram não provados porquanto nenhuma prova documental (extracto) foi junta e nenhuma testemunha revelou conhecimento suficiente para o afirmar dado que nenhuma delas trabalhava para o banco beneficiário.

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Ora, analisados os depoimentos indicados pela recorrente,  D - gravado em CD, em ficheiro com referência n.° 20201105105857 4303862 2871329, com início às 10:58h e duração de 50:32 minutos - E - gravado em CD, em ficheiro com referência n.° 20201105103426 4303862 2871329, com início às 10:34h e duração de 20:00 minutos - e F - gravado em CD, em ficheiro com referência n.° 20201105101517 4303862 2871329, com início às 10:15h e duração de 23:34 minutos – não apenas nos segmentos transcritos pela recorrente no corpo das alegações, mas em toda a sua extensão, acompanhamos a convicção negativa do julgador da 1ª instância.
Efectivamente, estas testemunhas, todas funcionárias da recorrente, revelaram total desconhecimento sobre a factualidade em causa, apenas conseguindo demonstrar o que resulta da leitura da documentação enviada (48.As comunicações referidas em 40 a 45 foram remetidas à destinatária por carta simples (sem registo e sem A/R)).
Invoca ainda a recorrente que o autor e sua esposa subscreveram novo contrato de seguro para o mesmo empréstimo, o que significa que tinham necessariamente de ter conhecimento de que o anterior seguro, apólice aqui em causa, não estava em vigor.
Não concordamos com esta argumentação, na medida em que não se mostra materialmente impossível a celebração de vários contratos de seguro para o mesmo empréstimo.
Tanto que, aparentemente, esquece a recorrente que tendo a adesão à apólice GR0003.... ocorrido em 1/8/2004 e invocando a data de resolução dessa adesão como tendo ocorrido em 21/12/2013, a adesão à outra apólice GR0006.... ocorreu em 1/7/2008, ou seja e mesmo na perspectiva da recorrente, em pleno período de vigência daquela primeira.
Os contratos, efectivamente, coexistiram.
Desse modo, nenhuma crítica há a fazer à convicção negativa sobre esses factos, que, assim, se mantém.

*

Em segundo lugar, pretende a recorrente seja considerado não provado o seguinte facto:
57.A R. não anulou nem resolveu o contrato de seguro referente à apólice n.° GR0006.... e certificado n.° RK7....... (com início em 01.07.2008) - Doc. 18 - Certificado individual de seguro.

Sucede que, quanto a este facto a recorrente não cumpre o ónus de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, previsto no art. 640º, nº1 supra citado.
Limita-se, neste passo, a recorrente em tecer considerações gerais sobre os documentos a apreciação que deve (no seu entender) resultar dos depoimentos testemunhais produzidos e dos documentos juntos, sem especificação discriminada relativamente a este facto.
Dai que, neste ponto, não se admite a impugnação a este ponto.

*

Pelo exposto, não se admite a impugnação da decisão relativa ao ponto 57 e indefere-se a restante impugnação da decisão de facto.

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IV.O Direito

Validade da resolução do contrato celebrado.

A questão a decidir e que condensa o diferendo que entre as partes se mantém é a seguinte:
- Num contrato de seguro do Ramo Vida a que ambos os cônjuges aderiram para garantir, em caso de sinistro (morte ou invalidez de qualquer deles), o pagamento da quantia mutuada a ambos por uma instituição bancária, a interpelação feita apenas a um dos cônjuges relacionada com a falta de pagamento de prémios determinou a resolução do contrato de seguro ou, para esse efeito, era necessária a interpelação de ambos os cônjuges aderentes?
Decidiu o STJ, em Ac. 17/10/2019 (Abrantes Geraldes), disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2019:293.17.4T8PVZ.P1.S1.CF/ o seguinte:
I.- A adesão de dois cônjuges a um contrato de Seguro de Grupo do Ramo Vida, de natureza contributiva, destinado a cobrir os riscos decorrentes da morte ou de invalidez de cada um deles e a garantir o reembolso da Beneficiária (mutuante na aquisição de uma fração autónoma para ambos) traduz um contrato indivisível do qual emergem interesses recíprocos de ambos os cônjuges aderentes na manutenção dos vínculos contratuais.
(…)
IV.- Nas circunstâncias do caso, verificando-se a mora dos segurados relativamente ao pagamento de prémios de seguro vencidos, a interpelação remetida pela Seguradora a exigir o pagamento, sob a cominação de “anulação” (rectius, resolução) do contrato, deveria ser feita a ambos.
V.- Tendo a referida interpelação com efeitos resolutivos da adesão sido remetida unicamente a um dos cônjuges aderentes (aquele cujo óbito determinou o acionamento do contrato de seguro), a mesma não produziu efeitos na esfera do outro aderente, sendo-lhe reconhecido o direito de exigir da Seguradora o capital garantido.

Da fundamentação desta decisão, retiremos os seguintes passos decisivos:
2.2.- A instituição financeira DD fez depender a concessão do mútuo para aquisição de fração autónoma por ambos os cônjuges não apenas da outorga de um contrato de seguro multirriscos habitação mas ainda de um contrato de seguro do Ramo Vida destinado a cobrir os sinistros de morte e de invalidez de cada um dos cônjuges mutuários para, deste modo, reforçar a garantia de satisfação do seu crédito.
Na base de tal cobertura está um contrato de Seguro de Grupo, cujo Tomador era a própria entidade financeira e ao qual se agregaram, na qualidade de Aderentes, os dois cônjuges mutuários. Em cada um dos dois certificados do seguro que foram subscritos surge como Beneficiária a instituição de crédito que concedeu o financiamento, sendo o seguro acionado em caso de morte ou de invalidez total e permanente por acidente ou de invalidez absoluta e definitiva por doença de qualquer dos cônjuges.
Como refere Margarida de Lima Rego, em “Seguros coletivos e de grupo”, integrado na obra Temas de Direito dos Seguros, 2ª ed., p. 434, “os seguros de grupo em sentido impróprio correspondem, rigorosamente, a meros agregados de seguros individuais”. Acrescenta (p. 440) que o “«vínculo resultante da adesão» só existe nos casos em que os segurados são tomadores do seu próprio contrato individual de seguros. Serão então esses contratos, entre o segurador e cada um dos aderentes, os verdadeiros contratos de seguro, sendo o contrato de seguro coletivo apenas um contrato-quadro com vista à adesão de um conjunto de pessoas, e não um contrato de seguro de grupo ou sequer um contrato de seguro no verdadeiro sentido da expressão” (cf. a mesma autora, em Contrato de Seguro e Terceiros, p. 812).
Os seguros de grupo do Ramo Vida, designadamente quando, como este, tenham natureza contributiva, podem assumir diversas variantes mas para o caso concreto o que se revela essencial é detetar os interesses que se visaram proteger.
Tendo por pano de fundo o contrato-base que foi outorgado entre a Seguradora e a DD, na qualidade de Tomadora, foi outorgado um outro contrato de seguro a favor de terceiro em resultado da adesão de ambos cônjuges mutuários, na qualidade de Segurados, e da correspondente aceitação por parte da Seguradora.
Daí se destaca que, sendo a instituição financeira Beneficiária direta e imediata da cobertura dos riscos, qualquer dos cônjuges aderentes beneficiava em termos mediatos dessa cobertura, na medida em que, ocorrendo algum dos sinistros tipificados na pessoa de qualquer dos segurados, a obrigação da Seguradora de efetuar o pagamento do capital aproveitava a ambos (ou ainda aos herdeiros do falecido), considerando o efeito liberatório produzido na esfera jurídica de qualquer dos Segurados.
(…)
2.3.- Analisado o contrato de seguro de que emerge a presente ação, integrado nas circunstâncias que o rodearam e associado aos interesses materiais que a sua outorga visou tutelar, somos levados a concluir que a nenhum dos co-aderentes ou co-segurados poderia ser estranho o que ocorresse na esfera do outro. Mais concretamente, em face de uma situação de falta de pagamento de prémios vencidos, impõe-se a qualquer juízo decisório a verificação da necessidade de a interpelação ser dirigida a ambos os aderentes, pois apenas desse modo se garantiria que, relativamente a ambos, se produzissem os efeitos extintivos do contrato com base na falta de pagamento de prémios.
(…)
2.4.- Apesar da frequência de situações semelhantes à dos autos, a mesma não encontra regulação expressa, nem no clausulado contratual nem na lei geral do contrato de seguro, mas a solução que se antecipou é impulsionada, além do mais, pela análise da estrutura do contrato de seguro de grupo do Ramo Vida com multiplicidade de aderentes.
Segundo Paula Ribeiro Alves, no seguro de grupo “existe a primeira relação entre o tomador e a seguradora e existem tantas relações de seguro entre a seguradora e o aderente e o tomador e o aderente quantas as adesões que ocorrem” (Intermediação de Seguros. Seguros de Grupo, p. 295).
Já a respeito do seguro de vida refere Margarida de Lima Rego, em Contrato de Seguro e Terceiros, que “a pessoa cuja vida se segura é o sujeito do risco primário: o risco de morte. É este o evento que está na base do seguro. No entanto, não é este o risco seguro. O risco seguro diz respeito, neste como em qualquer outro contrato de seguro, às consequências potencialmente negativas do sinistro – a morte da pessoa segura. Neste sentido, quem corre o risco é a mesma pessoa a quem se reconhece uma necessidade – a necessidade de previdência. É aquele cuja esfera o seguro visa proteger: o segurado. Por isso digo que, para efeito do contrato de seguro, é o segurado o sujeito do risco (seguro), enquanto a pessoa segura funciona como objeto com o qual o sujeito do risco economicamente se relaciona – à semelhança da coisa segura” (pp. 603 e 604).
No caso apresenta-se-nos um contrato de seguro de grupo de natureza contributiva (art. 77º, nº 1, da LCS), no qual, divergindo da regra supletiva do art. 80º, nº 1, se acordou que o prémio seria pago pelas pessoas seguras (art. 6º, nº 6, das Condições particulares da apólice), sem embargo da intervenção supletiva da Tomadora do seguro e Beneficiária, tendo em conta o seu interesse na manutenção do contrato, como se previa no art. 6º, nº 7.2, al. b), das Condições Particulares e no art. 55º da LCS.
Centrados no risco de morte de qualquer dos dois aderentes (o qual veio a consumar-se na pessoa do co-aderente EE), tratava-se de um contrato a favor de terceiro (neste sentido, com apreciação de diversas realidades, cf. Margarida de Lima Rego, em Contrato de Seguro e Terceiros, p. 609), mas que também aproveitava ao outro co-aderente, uma vez que, verificado aquele sinistro, constituir-se-ia na sua esfera o direito de exigir da Seguradora o pagamento do capital garantido diretamente à instituição financeira.
Ante a falta de pagamento do prémio, estipulava o referido art. 6º, nº 7, das Condições que, em caso de mora superior a 80 dias, a Seguradora interpelaria o aderente, por carta registada, para efetuar o pagamento no prazo aí previsto, tal como interpelaria a entidade financeira beneficiária para o mesmo efeito, sob cominação de resolução do contrato.
Foi o que a Seguradora fez, mas olvidando, no caso, que não se estava perante um contrato de seguro com um único aderente, antes em face de dois aderentes, a exigir, por isso, a interpelação de ambos para que qualquer declaração resolutiva pudesse produzir efeitos.
A atuação da seguradora seria suficiente se acaso se tratasse de um contrato de seguro com um único aderente/segurado, mas revela-se inadequada quando nos situamos num plano em que essa qualidade definia duas pessoas que para o mesmo efeito se associaram e cujos interesses se encontravam entrelaçados.
2.5.- A interdependência das adesões subscritas pelos cônjuges que solicitaram o financiamento bancário é manifesta, tendo em conta diversos aspetos que assim se podem enunciar:
- Ocorreram no âmbito de um contrato de financiamento para aquisição de uma fração para ambos do qual resultava a obrigação solidariamente assumida de restituição do capital mutuado e de pagamento dos juros;
- O pagamento dessa dívida ficou assegurado pelas referidas adesões a um seguro de grupo do Ramo Vida, o qual podia ser despoletado em caso de morte ou de invalidez grave de qualquer deles, com a correspondente liberação da responsabilidade perante a instituição financeira;
- Em cada boletim de adesão foi feita referência à adesão que simultaneamente fora subscrita pelo outro cônjuge;
- O prémio de seguro (em prestações periódicas) era único para ambos os cônjuges aderentes e deveria ser pago mediante débito direto numa conta bancária conjunta;
- Segundo o art. 9º das Condições Particulares, uma vez que se tratava de um seguro contratado por adesão conjunta, o capital seguro para cada cobertura era o mesmo e único para o conjunto das Pessoas Seguras;
- Por razões que não se apuraram, os cônjuges aderentes indicaram em cada uma das respetivas adesões domicílios diferentes, sendo que na ocasião em que foi remetida a interpelação para o segurado EE já se encontrava divorciado da A. AA;
- O óbito do segurado EE permitia o acionamento do contrato de seguro, com reflexos na obrigação da Seguradora de efetuar o pagamento à instituição financeira do capital que na ocasião estivesse em dívida, o que, a ocorrer, determinava a extinção da correspondente obrigação dos mutuários ou seus herdeiros perante a instituição financeira;
- Nesta perspetiva, o seguro de vida, no segmento emergente da adesão do falecido EE, para além de beneficiar de imediato a instituição financeira, repercutir-se-ia positivamente na esfera jurídica do outro aderente (e dos herdeiros do falecido) que, por via disso, era desonerado da responsabilidade patrimonial que fosse suprida pela Seguradora;
- Enfim, o seguro de vida, na parte em que estava associado ao risco de óbito de EE, não constituía para este obviamente qualquer vantagem, mas para os seus herdeiros (a 2ª A., sua filha menor) e para a co-aderente AA. Nesta perspetiva, constituía um mecanismo que, para além de servir de garantia à instituição financeira indicada como beneficiária, cumpria uma função não menos importante de previdência face ao outro co-aderente, compensando o desaparecimento da garantia patrimonial que advinha da comparticipação do co-aderente falecido no pagamento das prestações.
2.6.- Nestas circunstâncias, a solução já anunciada encontra ainda o apoio de vasta jurisprudência que vem emanando deste Supremo Tribunal de Justiça e que, bem pode dizer-se, desbravou o caminho no sentido correto.
A análise específica dos contratos de seguro de vida com dualidade de aderentes, em termos semelhantes aos dos presentes autos, tem levado este Supremo a concluir que os efeitos de resolução do contrato ou da adesão ao contrato de seguro dependem da interpelação de ambos para efeitos de conversão da mora em incumprimento definitivo e eficácia da declaração resolutiva.
Assim foi decidido num caso semelhante que foi apreciado no Ac. do STJ 3-11-16, 3248/09, Rel. Maria da Graça Trigo, ora adjunta, em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
I - Sob a denominação “seguro de grupo” inclui a doutrina especializada realidades contratuais muito diferentes, propondo a designação mais ampla de “seguros coletivos” de modo a abranger: (i) seguros de grupo em sentido próprio; (ii) seguros de grupo em sentido impróprio; (iii) contratos-quadro seguidos da celebração de contratos individuais de seguro.
II - Insere-se na categoria referida em (iii) a situação, como a dos autos, em que o banco contrata com o segurador os parâmetros dentro dos quais irão celebrar-se os contratos individuais de seguro sobre a vida dos seus clientes, que estes últimos celebrarão com o propósito de os dar em garantia ao próprio banco.
III - Nesta relação trilateral o banco mutuante/tomador do seguro é o beneficiário direto do seguro que cobre a primeira morte ou invalidez total e permanente dos mutuários/pessoas seguras. Mas também cada um destes últimos é beneficiário do seguro em caso de morte ou de invalidez total e permanente de um dos segurados – assim como no caso da sua própria invalidez total e permanente – na medida em que a liquidação das importâncias seguras o desonera perante o banco mutuante.
…”.

Entendimento que também foi adotado noutro caso paralelo pelo Ac. do STJ 13-11-18, 1699/16, em www.dgsi.pt, assim sumariado:
I- Na situação em apreço nestes autos, ambos os então cônjuges, a autora e o falecido seu ex-marido, que se haviam obrigado a celebrar e a manter seguro de vida para garantia do cumprimento de mútuo outorgado com o banco – que destinaram a aquisição do prédio em que instalaram a sua casa de morada de família –, uma vez aceites pela seguradora as propostas de adesão que lhe apresentaram, concluíram o contrato a cuja outorga ambos se encontravam adstritos.
II- Independentemente do nome que os contraentes possam reputar como atribuível a cada um dos dois subscritores dessas propostas de adesão – em que os mesmos apuseram as suas assinaturas, ele, nos locais destinados à 1ª pessoa segura e ao tomador de seguro, e ela, (apenas) no local destinados à 2ª pessoa segura – resulta das circunstâncias que rodearam a celebração do contrato que ambos, mediante tais propostas, expressaram a sua vontade de o outorgar e informaram a seguradora do risco que pretendiam segurar, pelo que, ambos se tornaram na realidade parte no contrato individual de seguro celebrado, qualquer deles como titular da cobertura ou pessoa no interesse da qual era feito o seguro e não por conta de uma terceira pessoa (“segura”), sobre quem recaísse o risco segurado e cuja vida ou integridade física (capacidade) se segurava, e daí que a autora não se tenha limitado a satisfazer o requisito do consentimento a que o contrato fosse celebrado pelo seu marido (cf. art. 43º, nº 3, da LCS).
III- Portanto, tanto o falecido marido da autora como esta própria, preenchendo e entregando uma declaração individual (proposta) de adesão ao contrato-quadro que lhes foi apresentado pela predisponente/seguradora, celebraram o seguro, enquanto pessoas seguras mas também como tomadores-segurados e, nessa qualidade, com toda a proteção que desse estatuto lhes adveio, como iguais titulares de todos os direitos e deveres nascidos com a celebração do contrato, designadamente o do pagamento dos prémios de seguro estipulados.
V- Assim, em caso de mora no pagamento dos prémios de seguro de vida conexo com o contrato de mútuo bancário, uma vez que quem contratou o seguro foram ambos os cônjuges e só os dois devedores, os deveres que oneravam a ré seguradora obrigavam-na a remeter também à autora a notificação admonitória para efetuar a pagamento dos prémios em dívida, bem corno a comunicar-lhe a intenção de resolução do contrato, na medida em que esta, sendo um meio de extinção do vínculo contratual por declaração unilateral (recetícia) de uma das partes, deve ter como destinatários todos os intervenientes no contrato de seguro.
VI-A jurisprudência deste Supremo Tribunal relativa à resolução de um contrato de seguro que tenha como aderentes ambos os cônjuges sempre foi no sentido de reputar como indivisível a obrigação do pagamento dos prémios e, por isso, exigível que as referidas comunicações (admonitória e resolutiva) sejam dirigidas a ambos os segurados.
…”.

Outrossim no Ac. do STJ 11-12-18, 3049/15, em www.dgsi.pt e CJ, t. III, p. 131, em cujo sumário se refere que:
I.- No contrato de seguro do ramo vida, sendo aderentes os mutuários de financiamento bancário para aquisição de casa própria, a resolução do contrato pela seguradora, por alegado incumprimento do pagamento dos prémios do seguro, deve ser comunicada a ambos os cônjuges.
II.- Sendo tal contrato de seguro resolvido apenas quanto a um dos cônjuges, entretanto falecido por doença incapacitante que despoletaria o acionamento do contrato de seguro pelo banco mutuante tomador e beneficiário do seguro, a quem o risco fora comunicado, pode ser invocada pelo cônjuge sobrevivo, como executado, a validade desse contrato, por não ter sido validamente resolvido, mesmo existindo mora quanto ao pagamento do prémio do seguro”.

2.7.- Este entendimento que vem sendo assumido ao abrigo da atual legislação sobre o contrato de seguro corresponde também ao que já era defendido a partir da anterior legislação, como o demonstra o Ac. do STJ 2-3-17, 653/14, em www.dgsi.pt, em cujo sumário se diz que:
I- Conferindo o disposto no art. 224º, nº 2, do CC, e o estatuído no art. 33º do Decreto de 21-10-1907 (não revogado pelo art. 18º do DL nº 76/95, de 26-07, como vem sendo entendido pelo STJ), havemos de perceber que, porque se verificam os seus legais pressupostos, a resolução do contrato ter-se-ia de considerar válida se e apenas M. fosse o único mutuário/aderente do contrato de seguro do ramo vida grupo da Ré F.
II- Tanto o falecido M como a autora C são pessoas obrigadas, em primeira linha, ao pagamento dos prémios de seguro, sob pena de o contrato se considerar cessado. A comunicação admonitória direcionada pela Seguradora e destinada a concretizar a sua resolução, deveria ter sido remetida também à A. e não tendo sido dado este necessário passo admonitório, a ameaça da resolução do contrato não pôde concretizar-se.
III- A obrigatoriedade de a Seguradora informar a A. em nada fica prejudicada pela circunstância de, quando foi feita a comunicação da intenção de fazer cessar o contrato a M, estar já dissolvido por divórcio o casamento celebrado entre eles. As obrigações e os efeitos do contrato de seguro do ramo vida, celebrado pelos cônjuges M e a autora C, não estão dependentes de o casamento deles perdurar interminavelmente e, por isso, não é o divórcio deles que vai impedir a plenitude da eficácia do seguro vida pactuado entre eles e a seguradora/ré.
IV- O objetivo da subscrição do contrato de seguro grupo da R. F não se circunscreveu à satisfação de detalhado interesse individual de cada um dos seus firmantes, individualmente considerado, mas antes, no contexto de convenientes vantagens umbilicalmente ligadas aos dois, a sufragar o interesse comum de ambos, com vista a garantir perante a DD, em caso de morte e de invalidez total e permanente, o pagamento do empréstimo de 6.300.000$00, que esta instituição bancária lhes proporcionou para a realização de obras em prédio urbano que ambos desfrutavam.
V- A jurisprudência deste Supremo Tribunal relativa à resolução do contrato de seguro de vida conexo com o contrato de mútuo bancário, tendo como aderentes ambos os cônjuges, tem vindo a exigir que a declaração de resolução enquanto declaração recetícia (art. 436º, nº 1, do CC) seja dirigida a ambos os segurados”.

Esta solução jurisprudencial já encontrava eco noutro aresto mais antigo: o Ac. do STJ, de 31-1-07, 06A4485, em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
“Tendo ambos os cônjuges, casados segundo o regime supletivo de comunhão de adquiridos, celebrado um contrato de seguro de vida associado a um crédito hipotecário para aquisição da sua habitação, a comunicação da resolução contratual pela Companhia Seguradora, por inadimplemento do pagamento do prémio de seguro, tem de ser feita diretamente a cada um dos cônjuges, não podendo ter-se o contrato por legalmente resolvido se a comunicação de rescisão foi apenas dirigida ao cônjuge marido”.
2.8.- Este último aresto perspetivou o contrato de seguro do Ramo Vida contratado por ambos os cônjuges como contrato indivisível, observação que tem toda a pertinência face ao caso concreto e da qual saem reforços a favor da solução projetada.
Na verdade, ainda que nada a esse respeito tenha sido expressamente convencionado pelas partes ou por via da adesão às condições gerais da apólice, tudo permite concluir que estamos perante uma situação de indivisibilidade, nos termos e para efeitos do disposto nos arts. 534º e ss. do CC (sobre o contornos destas obrigações cf. o Ac. do STJ de 14-12-16, 492/10, Rel. Tomé Gomes, ora adjunto, em www.dgsi.pt).
Embora constasse das Condições Particulares que, “no caso de adesões conjuntas, o prémio é pago pela primeira Pessoa Segura”, tal cláusula parece prejudicada pelo facto de se ter acordado um prémio cujo pagamento se faria através de débito direto numa conta conjunta de ambos os cônjuges aderentes. Além disso, nos termos do art. 9º das Condições Gerais, “quando o valor seguro for contratado por Adesão Conjunta, o capital seguro para cada cobertura é o mesmo e único para o conjunto das Pessoas Seguras, pelo que será pago por uma única vez”.
Independentemente destes aspetos particulares relacionados quer com o pagamento do prémio, quer com o desembolso do capital assegurado, é iniludível que se mostravam indivisíveis os demais interesses, com especial destaque para o da manutenção do contrato na sua integralidade, por contraposição à sua resolução ou à resolução de qualquer das adesões por via do incumprimento da obrigação de pagamento dos prémios.
Por esta via específica alcançamos a aplicação ao caso do disposto no art. 535º do CC, segundo o qual a prestação indivisível apenas de todos os devedores pode ser exigida, o que se expande também para outros atos ou outros efeitos que possam encontrar o seu fundamento na falta de cumprimento da obrigação, como é a interpelação com efeitos resolutivos.
Sendo a interpelação destinada a reclamar o pagamento de prémios que não puderam ser descontados diretamente da conta bancária conjunta e constituindo o primeiro e principal passo para se operar, no final do prazo estipulado, a resolução do contrato de seguro (independentemente de tal se refletir na globalidade do contrato ou apenas na parte que respeitava à adesão de um dos cônjuges), essa interpelação admonitória, com projeção resolutiva, não poderia deixar de ser dirigida a ambos os cônjuges aderentes e segurados.
2.9.- Foi esta mesma solução que, para uma situação semelhante (resolução de um contrato que implicava o pagamento de quotizações por ambos os cônjuges devidas a uma associação mutualista), foi adotada no Ac. do STJ de 11-9-12, 4578/07, em www.dgsi.pt, onde se sintetizou a seguinte resposta:
“- Tendo ambos os autores, casados segundo o regime de comunhão de adquiridos, sido admitidos como associados da associação mutualista 2.ª ré e inscritos em “Plano de Encargos Habitação”, traduzido em garantia do pagamento de encargos relativos a contrato de mútuo com hipoteca celebrado com a instituição bancária 1.ª ré, a exclusão de associado por falta de pagamento de quotizações deve ser comunicada a cada um dos cônjuges, não podendo considerar-se eficaz em relação à autora a comunicação feita pela 2.ª ré ao autor.
- Para tal, era necessário que a 2.ª ré tivesse dirigido também diretamente à autora uma declaração de vontade e que essa declaração tivesse chegado à posse da mesma ou, ao menos, que se provasse que tomara conhecimento do seu teor”.
Este aresto, tal como o já mencionado Ac. do STJ de 31-1-07 (assim como os Acs. da Rel. de Lisboa, de 17-5-16, 1724/11, e de 8-11-12, 438/11, e o Ac. da Rel. de Coimbra, de 11-3-14, 1336/12, todos em www.dgsi.pt), aplicaram a doutrina que foi exposta por Vaz Serra, em “Resolução do contrato”, BMJ 68º, pp. 239 e 240, segundo o qual, a respeito da resolução de contratos de natureza indivisível, a resolução, como medida excecional, só se adota contra todos os devedores, mesmo quando se trate de devedores solidários.
Solução diversa parece decorrer do Ac. do STJ, de 14-12-17, 209/13, em www.dgsi.pt, mas, analisado com mais pormenor, verifica-se que ao mesmo estava subjacente matéria de facto diferenciada, já que então se provou que ambos os cônjuges haviam tido “conhecimento da correspondência da seguradora respeitante à falta de pagamento dos prémios e a cancelar a apólice de seguro com esse fundamento, ainda que a mesma tenha sido apenas dirigida em nome do marido …”.
Apesar de tudo, não se colhe da jurisprudência deste Supremo total unanimidade a respeito da resposta à questão de direito enunciada, dela divergindo o Ac. do STJ de 22-2-18, 10942/14, em www.dgsi.pt.
Porém, não nos parece que saiam abalados os argumentos que, com a posição largamente maioritária, nos levam à conclusão exposta.
2.10.- A solução indicada encontra nas circunstâncias do caso um especial impulso decorrente da interconexão entre cada um dos boletins de adesão, da finalidade conjunta de ambas as adesões, da fixação de um prémio unitário, da unicidade do valor do capital garantido, da previsão de que o seu pagamento se faria por débito direto numa conta conjunta, da indicação de residências diversas de cada um dos segurados e, last but not the least, do facto de que na ocasião em que foi remetida a interpelação os aderentes, afinal, até já se encontrarem divorciados, embora sem terem partilhado ainda o imóvel que esteve na base do contrato de financiamento e do contrato de seguro.
Estes elementos conjugados induzem-nos a concluir que qualquer atuação da Seguradora com efeitos na manutenção/extinção de qualquer das adesões deveria implicar a intervenção de ambos os aderentes, e não apenas de um deles.
Cada cônjuge aderiu individualmente ao contrato de seguro, mas foi identificado como segurado em cada um dos certificados de seguro, de modo que os segurados eram reciprocamente interessados na continuidade da vinculação de ambos os outorgantes e na não extinção do contrato ou das adesões contratuais por falta de pagamento de prémios vencidos, o que torna evidente que qualquer interpelação com efeitos extintivos do contrato ou da adesão de qualquer dos contraentes pela via resolutiva, com fundamento na falta de pagamento dos prémios vencidos, implicava a realização da comunicação a ambos os aderentes.
A interconexão das adesões de cada um dos segurados e os reflexos positivos que a manutenção de cada uma era suscetível de determinar na esfera do outro aderente rejeitam, pois, a eficácia resolutiva de uma interpelação que foi dirigida apenas a um deles – ao aderente EE entretanto falecido - ainda que restrita à respetiva adesão.

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No caso, apurou-se que:
40. O Autor não recebeu qualquer aviso ou carta com o objetivo de avisar a falta de pagamento dos prémios e resolver/anular o referido contrato de seguro com efeitos a outubro de 2013.
41.A Ré não dirigiu qualquer carta ao Autor com objetivo de avisar a falta de pagamento dos prémios e resolver/anular o referido contrato de seguro com efeitos a outubro de 2013.
Adoptando o entendimento exposto na citada jurisprudência do STJ, resta concluir pela ineficácia da declaração resolutiva enviada exclusivamente para uma das pessoas seguras – a mulher do autor – e não para o próprio autor, que assume a mesma qualidade na adesão a este contrato de seguro.
Sendo ineficaz a resolução, o contrato mantinha-se válido à data da verificação do sinistro e da sua comunicação à seguradora.
Resultando prejudicada a apreciação sobre as restantes questões enunciadas pela recorrente, quanto à validade formal da comunicação de resolução efectuada à mulher do autor.

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O abuso de direito.

A figura do abuso do direito está na lei para tornar mais ético o nosso ordenamento jurídico, com vista a impedir a conjugação de forças antijurídicas que, por vezes, a imposição fria e rígida da lei possa levar a cabo, em confronto com o ideal de justiça que sempre deve andar, indissoluvelmente ligado, à aplicação do direito e dentro da máxima "perde o direito quem dele abusa" e em oposição ao velho adágio romano "qui suo jure utitur neminem laedit".
"É uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar a injustiça gravemente chocante e reprovável" - Ac. do STJ de 21.09.1993, C.J.; tomo III; pág. 21.
Daí que, embora se não vejam grandes dificuldades para a institucionalizar, já se encontram alguns estorvos quando se procura saber se em cada caso concreto esta forma de expressão tem ou não acolhimento.
O abuso do direito está consagrado na nossa lei - art.º 334.º do Cód. Civil que dispõe  : É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
"Trata-se do exercício anormal do direito próprio. O exercício do direito em termos reprovados pela lei, ou seja, respeitando a estrutura formal do direito, mas violando a sua afectação substancial, funcional ou teleológica. Para que haja lugar ao abuso do direito é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito" (Prof. A. Varela; Obrigações; I Vol.; pág. 514 /516).
Na fórmula "manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé" vêm a doutrina e a jurisprudência incluindo os casos de inalegabilidade de nulidades formais, da chamada conduta contraditória ("venire contra factum proprium"), da “exceptio doli” (poder que uma pessoa tem de repelir a pretensão do autor, por este ter incorrido em dolo), da “suppressio” e da “surrectio” (o direito que não foi exercido em certas condições e durante certo lapso de tempo, não pode mais sê-lo: faz desaparecer um direito que não corresponda à efectividade social - “suppressio”; ou faz surgir um direito não existente antes, juridicamente, mas que, na efectividade social era tido como presente - “surrectio”) e a doutrina condensada na expressão “tu quoque”, genericamente definida como perante violações de normas, as possibilidades de sanção são limitadas para aquele que incorreu, ele próprio, na violação desses mesmos preceitos legais - a fórmula tu quoque traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído; está em jogo um vector axiológico intuitivo, expresso em brocardos como ”turpitudinem suam allegans non auditur” ou “equity must come with clean hands” ou infidelidade contratual mútua (António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil, págs. 837 e segs.).
A nossa lei protege a personalidade humana, tanto no campo civilístico - art.º 70.º, n.º 1, do Cód. Civil - como no plano da nossa lei fundamental, garantindo o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos - art.º 288.º, d) e a observância dos princípios estatuídos na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.º 16.º, n.º 2).
Não diz o legislador o que deve entender-se por “personalidade física ou moral” referida no normativo do art.º 70.º, n.º 1, do Cód. Civil. Mas, a questão de se saber qual o alcance e extensão do conteúdo do conceito de personalidade humana juridicamente relevante a integrar naquela expressão está relacionada com a natureza humana, que toma como objecto de conhecimento - toda a personalidade humana é um ser com uma estrutura mais alargada, de teor relacional, sócio-ambientalmente inserida e que abarca dois pólos interactivos: o “eu” (enquanto conjunto de funções e potencialidades de cada indivíduo) e o “mundo” (tomado este, quer de um ponto de vista psicológico interno, quer ainda, no plano da actividade relacional, como o próprio conjunto das forças ambientais em que se situa cada indivíduo -Capelo de Sousa; O Direito Geral de Personalidade; pág. 109/110 e 200).
Deste modo, a todo o indivíduo é reconhecida a prerrogativa de exigir de outrem que honre a sua personalidade humana; e aqueles que estão onerados com esta obrigação não podem furtar-se à juridicidade deste dever, explicitando-se que ao titular da personalidade humana é juscivilisticamente reconhecido no art.º 70.º do Cód. Civil mum feixe de verdadeiros poderes jurídico de exigir dos demais sujeitos o respeito da sua personalidade, não lhe sendo apenas outorgados meros poderes jurídicos de pretensão ou simples expectativas jurídicas de respeito (Capelo de Sousa; Obra citada; pág. 394).

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Invoca a recorrente, em síntese, que o autor actua em abuso de direito porque:
35.Aliás, parece-nos deveras ofensivo da boa-fé pretender actuar os “direitos” emergentes de um contrato de seguro, quando a pessoa segura há 7 anos que deixara de cumprir com a obrigação de pagamento dos prémios.
36.Estaríamos, portanto, perante uma actuação manifestamente abusiva, o que tornaria ilegítimo o direito da Recorrida de pedir que a Seguradora pagasse agora o capital assegurado.
37.Na verdade, de todo e qualquer contrato decorrem direitos e deveres para as partes envolvidas, devendo o mesmo assentar num verdadeiro equilíbrio das prestações devidas como contrapartida de determinado benefício.
38.Ora, não obstante a clara tendência de se sacrificar a posição contratual das Seguradoras, no pressuposto de que estas figuram, na verdade, como sendo o “lado forte” do contrato, na medida em que, em regra, encontram-se numa posição economicamente mais favorecida, não será admissível impor às Seguradoras a aceitação ou o pagamento de todo e qualquer risco/prejuízo, ainda que não recebendo a devida contrapartida a que têm direito legal, no pressuposto que estes possam ser inerentes à celebração de um contrato de seguro.
39.Na verdade, e ressalvando o devido respeito por diversa opinião, a violação do equilíbrio contratual conseguido através da estipulação de determinadas condições específicas para cada tipo de contrato, designadamente em contrapartida do prémio de seguro suportado pelo tomador, permitiria uma efectiva ameaça ao importantíssimo papel social e económico desempenhado pelas Companhias de Seguro.
40.Assim, estando em causa, nos presentes autos, o apuramento da responsabilidade da Ré, única e estritamente no âmbito contratual, não poderá ser a mesma obrigada a suportar alegados prejuízos que não se encontram, absolutamente, garantidos pelo contrato de seguro por falta de pagamento dos prémios a que os segurados estavam contratualmente obrigados.

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Não concordamos com esta argumentação, na medida em que parte de um pressuposto que, como vimos, não se verifica: a eficácia da resolução do contrato de seguro (ou da sua adesão pelo autor e mulher).
A circunstância de não terem sido pagos os prémios relativos a esse contrato, durante 7 anos, não pode ter criado na ré a convicção ou confiança de que o autor não iria accionar esse mesmo seguro, aceitando e conhecendo a resolução.
Ou, pelo menos, tal convicção seria injustificada.
Isto na medida em que a sua resolução é ineficaz.
Apenas se demonstrou o incumprimento do pagamento dos prémios; mantendo-se o contrato de seguro válido e eficaz, trata-se de um simples incumprimento, não se impedindo a ré de exercer as suas faculdades legais como reacção ao mesmo.

Aliás, a decisão recorrida decidiu:

VI-2- Condeno a Ré---, a pagar ao Banco C uma indemnização em quantia que se vier a liquidar (em liquidação em execução de sentença), correspondente ao capital em dívida no crédito à habitação n.° 7........ na data de trânsito em julgado da sentença condenatória, condicionada ao pagamento pelo A.--- à R. de todos os prémios não pagos desde a data do incumprimento até à referida data acrescidos dos juros a contar do vencimento de cada prémio à taxa aplicável a juros civis até à referida data;

Ou seja, a assumpção por parte da recorrente do risco assumido pelo contrato de seguro encontra-se dependente do pagamento dos prémios em falta, acrescido de juros, corrigindo-se, assim, o eventual desequilíbrio ou, antes, o prejuízo emergente para a recorrente em virtude de tal incumprimento.

Improcede, pois, também esta argumentação.

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Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na improcedência da apelação, manter a decisão proferida.
Custas pela apelante.

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Lisboa, 23 de Setembro de 2021


Nuno Lopes Ribeiro
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas