Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
385/15.4T8MTJ.L1-8
Relator: AMÉLIA AMEIXOEIRA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL
MAIOR ACOMPANHADO
NOMEAÇÃO DE TUTOR
FILHO DO BENEFICIÁRIO
UNIDA DE FACTO COM O BENEFICIÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Numa acção em que foi decretada a interdição por anomalia psíquica de requerido que sofreu um AVC hemorrágico, sofrendo de insuficiência respiratória aguda, HTA e Amaurose Bilateral, sendo incapaz de reger a sua pessoa e de administrar os seus bens é legitimo nomear, a titulo provisório, como tutor, o seu filho, até ao trânsito em julgado da sentença que apreciasse o pedido de reconhecimento da união de facto do requerido com a Recorrente, desde 2002.
II - Neste caso, há lugar à aplicação do art. 26º, nº 4 da Lei nº 49/2018, de 14/8, segundo o qual, às interdições decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos ao acompanhante poderes gerais de representação.
III - Julgado improcedente o recurso interposto pelo interveniente e tutor provisório do beneficiário, sendo mantida a sentença, que reconheceu a situação de união de facto da Autora, e do beneficiário desde 2002, há que nomear o acompanhante, com poderes de representação, a titulo definitivo.
IV - Segundo a ordem contida no art.143º, nº2, al.b), a pessoa com quem o beneficiário vivia em união de facto desde 2002 tem preferência perante a lei, a menos que algum factor se provasse, em desfavor, na relação com aquele, ou no seu bem estar.
V - As limitações da Recorrente às visitas presenciais ao seu companheiro, no Lar para o onde o Tutor provisório e filho do beneficiário o levou, resultantes quer de proibição por parte deste, quer da pandemia, entre os meses de Março e Maio de 2020, que determinaram até a suspensão de visitas a lares, durante parte desse período, não podem valer como factores excludentes da escolha da recorrente como acompanhante do beneficiário.
VI - Aliás, a recorrente sempre visitou o companheiro enquanto o mesmo esteve na Unidade de Cuidados Continuados da Misericórdia, entre 2013 e 2019, até à data em que foi transferido para o Lar onde se encontra neste momento.
VII - No mais, «o utente era afásico, invisual e pouco colaborante na relação, pelo que a equipa Multidisciplinar tinha dificuldade em percecionar as emoções do utente quando recebia qualquer visita. No entanto, nunca foi percebido qualquer rejeição por parte do utente à visita da D. Joaquina». E ainda, pela outra Instituição foi referido que demonstrava afecto e carinho para com o mesmo”.
VIII - Em contrapartida, o tutor provisório revelou com a sua proibição nas visitas da Recorrente à pessoas com que vivia de facto, não respeitar sequer as ordens do tribunal e exerceu os poderes de representação contraindo dividas e fazendo acordos com o Lar, contando já com os bens que não lhe pertencem, para pagar as dividas quando o pai morrer.
IX - Perante este quadro, impõe-se nomear como acompanhante do beneficiário, a ora recorrente, unida de facto com o beneficiário, desde 2002, a quem são conferidos poderes gerais de representação do mesmo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO:
Nos presentes autos, veio o MINISTÉRIO PÚBLICO intentar a presente acção especial de interdição, por anomalia psíquica, contra:
A [ PEDRO .....], filho de Pedro .....  e de DV ...., natural de São José de Bolana, nascido em 01.08.1944, divorciado, residente na Santa Casa da Misericórdia de ....., Unidade de Cuidados Continuados Integrados S. Rafael, na Avenida Antero Brotas, ....  .
Para o efeito, alegou o MINISTÉRIO PÚBLICO, em suma, que o requerido sofreu um AVC hemorrágico, sofrendo de insuficiência respiratória aguda, HTA e Amaurose Bilateral, sendo incapaz de reger a sua pessoa e de administrar os seus bens.
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Foram juntos aos autos assento de nascimento do requerido e declaração médica.
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Deu-se cumprimento ao artigo 892.º do CPC, mediante afixação de editais e publicação de anúncios.
Na impossibilidade de citação pessoal do requerido, foi designado como curador provisório, B [ Elísio .....] , nos termos do n.º 1 do artigo 894.º do CPC, o qual foi citado para contestar a acção em representação do requerido.
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Não tendo a acção sido contestada, foi nomeado defensor ao requerido, nos termos do artigo 894.º n.º 1 e 21.º n.º 2 do CPC, o qual foi igualmente citado.
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Não foi deduzida qualquer contestação.
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Foi realizado o exame pericial de A, no qual concluiu que se reúnem os pressupostos médico-legais para a interdição.
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Na sentença de 28.11.2016, consideraram-se provados os seguintes factos:
1. Por assento de nascimento n.º 1112-A do ano de 1980, integrado sob o n.º 956676 do ano de 2010 da Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa;
2. O requerido é divorciado;
3. O requerido sofreu de acidente vascular cerebral hemorrágico com hematoma talâmico com inundação ventricular e como e amaurose bilateral;
4. O requerido está dependente de terceira pessoa para todas as actividades da vida diária;
5. Tal estado é irreversível;
6. O requerido encontra-se totalmente incapacitado de reger a sua pessoa e os seus bens;
7. O que se verifica desde Março de 2013.
Com base nestes factos entendeu o Tribunal que se encontra preenchido o conceito de anomalia psíquica de que o artigo 138.º do Código Civil faz depender o decretamento da interdição.
Mais entendeu que dada a matéria de facto que se deixou elencada, conclui-se que o requerido se encontra nessa situação, visto que, dadas as limitações provadas nos autos, impõe-se concluir que o mesmo não tem capacidade para utilizar dinheiro, para se vestir e alimentar sozinho, o que o torna totalmente dependente do auxílio de terceiras pessoas para as mais elementares tarefas diárias.
Tais limitações impossibilitam-no de governar a sua pessoa e bens, pelo que se justifica a concessão da protecção que lhe advém da interdição.
Impõe-se, assim, a necessidade de intervenção de terceira pessoa que administre o seu património e tome as decisões que se tornem necessárias ao seu bem-estar, sendo, assim, necessária a intervenção de um tutor designado nos termos do artigo 143.º do Código Civil.
Quanto à nomeação de tutor, por se encontrar em curso acção judicial para reconhecimento da qualidade de unida de facto à “interveniente” C  [ Joaquina ....], ao abrigo do disposto no artigo 142.º do CC, nomeou como tutor provisório o filho do requerido, sendo proferida decisão definitiva quando se encontrar transitada em julgada a sentença que vier a recair sobre o pedido de C.
Fixou o começo da incapacidade, desde Maio de 2013.
Conclui decidindo, ao abrigo do artigo 891.º do CPC:
1. Decretar a interdição, por anomalia psíquica, de A (cfr. artigos 138.º do Código Civil);
2. Fixar como data do começo da incapacidade do interdito o mês de Maio de 2013.
3. Nomear como Tutor provisório B (cfr. artigos 142.º n.º 1 143.º n.º 1 alínea c) do Código Civil).
4. Nomear como Protutora AHB____ (cfr. artigos 1955.º e 1956.º do CC) e como vogal ABC____  .
5. Fixar as custas pelo requerido.
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Em 13-5-2020 foi proferida decisão, com o teor seguinte:
Considerando o disposto no art.26º, da Lei nº 49/2018, de 14/8, os presentes autos passarão a enquadrar-se no regime jurídico do maior acompanhado.
Uma vez que, na sentença proferida no âmbito dos presentes autos C foi nomeado tutor ao requerido, a título provisório, e que o motivo dessa provisoriedade deixou de se verificar – trânsito em julgado pela qual foi reconhecida a união de facto do requerido com C – importa nomear acompanhante ao requerido.
Foram solicitadas informações junto da Instituição onde o requerido se encontra e demais diligencias, incluindo a notificação dos vogais do Conselho de Família para se pronunciarem relativamente à nomeação de acompanhante a A e bem assim se determinou que os autos fossem com vista ao MºPº.
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Foi junta cópia do testamento outorgado pelo beneficiário.
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 Por carta datada de 30-05-2020, junta a fls.280 dos autos, a Instituição A ... respondeu, que:
a) C, antes de a atual situação (pandemia), visitava com frequência o senhor A, e que, atualmente, liga regularmente para a Instituição, para saber como está o Sr. A ;
b) A é visitado apenas pelo filho B uma vez por mês, por este residir fora do país; é mantido o contacto via e-mail;
c) Não existem mais visitas, nem contacto de telefone, além das pessoas referidas em a) e b);
d) B e C demonstram ambos afeto e carinho por A nas visitas presenciais;
e) O estado clínico de A não apresenta alterações, não existindo comunicação; continua a necessitar de cuidador para todas as atividades da vida diária, sendo totalmente dependente.
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No parecer emitido a 4-9-2020, o MºPº referiu o seguinte:
“Considerando os elementos coligidos, em especial o teor de fls.280, pronuncia-se o Ministério Público pela prolacção de douta decisão que mantenha B nomeado como tutor do Requerido, desta feita, a título permanente….
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C veio responder à promoção do MºPº, defendendo que, ao ter sido reconhecida por sentença a situação de união de facto entre a sua pessoa e o requerido A, é a pessoas qualificada para ser nomeada tutora do Requerido.
Se não efectuou mais visitas, foi justamente por oposição do tutor provisório, que determinou a intervenção do tribunal.
O B reside no estrangeiro, não podendo fazer um acompanhamento regular.
Por outro lado, não existem provas em relação à Requerente de que devesse por qualquer circunstância, ficar afastada do requerido.
O B que andou “desaparecido” vários anos e nunca quis saber do pai, só aparecendo junto deste quando soube que o seu estado de saúde não era bom, indiciando ao que parece, que os seus interesses relativamente ao pai eram outros bem diferentes, do que lhe prestar qualquer auxilio de que precisasse.
Conclui que o papel deve ser atribuído à própria e não ao filho do requerido.
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Em 12-10-2020 foi proferida decisão, com o teor seguinte:           
Nos presentes autos está pendente decisão definitiva acerca de quem deverá ser designado acompanhante do beneficiário A, a qual estava a aguardar o trânsito em julgado da sentença que viesse a recair sobre o pedido de C no âmbito da ação de reconhecimento da união de facto no processo n.º 21251/16.0T8LSB, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 22.
Efetivamente, na sentença proferida nos presentes autos, no dia 28-11-2016, escreveu-se, quanto à nomeação do tutor, o seguinte: «quanto à nomeação de tutor, dispõe o artigo 143.º do CC que a tutela é deferida ao cônjuge do interdito ou, na ausência deste, aos filhos maiores.
Neste caso, o interdito é divorciado, pelo que caberá nomear, como tutor, um dos filhos do requerido.
Sucede, no entanto, que se encontra em curso acção judicial para reconhecimento da qualidade de unida de facto à “interveniente” C.
Uma vez reconhecida judicialmente essa qualidade, deverá ser ponderada a aplicabilidade do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 143.º do CC, de modo a aferir da sua nomeação como eventual tutora do interdito, por força do princípio da igualdade, de natureza constitucional.
Porém, por ora, tal questão é prematura, uma vez que tal acção judicial, para reconhecimento dessa situação de união de facto, não se encontra concluída.
Assim, ao abrigo do disposto no artigo 142.º do CC, nomeio como tutor provisório o filho do requerido, sendo proferida decisão definitiva quando se encontrar transitada em julgada a sentença que vier a recair sobre o pedido de C.
                                                  *
Ora, foi proferida sentença no dito processo n.º 21251/16.0T8LSB, no dia 11-02-2019, a qual julgou procedente a acção e, em consequência, reconheceu a situação de união de facto de C e A, desde 2002, tendo tal sentença transitado em julgado no dia 24-01-2020.
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Notificado o Ministério Público para se pronunciar sobre quem deverá ser nomeado acompanhante do beneficiário e sobre eventual alteração da composição do conselho de família, pronunciou-se o mesmo no sentido de se manter B, filho do beneficiário, nomeado como tutor do mesmo, desta feita, a titulo permanente, e, no que concerne à composição do Conselho de Família, pronunciou-se no sentido de ser nomeada como protutora C e como vogal, pessoa idónea que venha a ser indicada pela instituição onde o beneficiário se encontra integrado, sendo expedida a necessária notificação visando tal desiderato.
Por sua vez, C apresentou requerimento pugnando pela prolação de uma decisão que lhe atribua a posição de acompanhante.
A instituição onde o beneficiário se encontra internado informou os autos de que indica para o cargo de vogal do conselho de família Carla ....
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Importa, assim, decidir sobre se deve ser:
a) Alterado o sujeito nomeado como tutor provisório do beneficiário (à luz da atual nomenclatura, acompanhante provisório), atribuindo-se o acompanhamento definitivo a outra pessoa;
b) Alterada a composição do conselho de família determinado por sentença
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….Face ao exposto e porque não resulta dos autos que o imperioso interesse do beneficiário seja mais bem salvaguardado por C do que o pelo filho do beneficiário, B, entendendo-se até que a mudança de acompanhante só viria inflamar ainda mais a tensão já existente entre este e C (sem quaisquer efetivas vantagens, seja para o beneficiário, seja para o presente processo de acompanhamento de maior), o Tribunal decidiu manter como acompanhante do beneficiário A, o seu filho B, uma vez que tal corresponde, neste momento, ao imperioso interesse do beneficiário, não se vislumbrando qualquer vantagem na alteração da situação atual (artigo 143.º/2, proémio, do Código Civil).
Eventuais direitos patrimoniais decorrentes da situação de união de facto entre C e o beneficiário deverão ser exercidos nos meios comuns, que não neste processo.
Mais se acrescentou:
Importa, agora, aferir se se justifica a alteração dos membros do conselho de família.
Na sentença proferida nos presentes autos, haviam sido designados como protutora, AHB____, e como vogal, ABC____, respetivamente, meia-irmã e filha do beneficiário.
Sucede, porém, que considerando que a Instituição onde o beneficiário se encontra acolhido referiu que as únicas pessoas que o visitam são o acompanhante B e C, importa rever a constituição do conselho de família.
De acordo com o artigo 1951.º, aplicável ex vi do artigo 145.º/4, ambos do Código Civil, o conselho de família é constituído por dois vogais, escolhidos nos termos do artigo seguinte, e pelo agente do Ministério Público, que preside». Estabelece, por sua vez, o artigo 1952.º/1 do mesmo Código que «os vogais do conselho de família são escolhidos entre os parentes ou afins do [beneficiário], tomando em conta, nomeadamente, a proximidade do grau, as relações de amizade, as aptidões, a idade, o lugar de residência e o interesse manifestado pela pessoa do [beneficiário]». Determina, ainda, o n.º 2 do mesmo artigo que «na falta de parentes ou afins que possam ser designados nos termos do número anterior, cabe ao tribunal escolher os vogais de entre os amigos dos pais, vizinhos ou outras pessoas que possam interessar-se pelo [beneficiário]».
Assim, considerando a proximidade e o interesse manifestado por C, nomeio a mesma como vogal do conselho de família, na qualidade de protutora, mantendo AHB____, meia-irmã do beneficiário, como vogal do conselho de família (mas não já na qualidade de protutora).
***
Face ao exposto, o Tribunal decidiu:
a) Manter como acompanhante do beneficiário, o seu filho, B, a quem são conferidos poderes gerais de representação do mesmo;
b) Designar como vogais do conselho de família, C, unida de facto com o beneficiário, na qualidade de protutora, e AHB____, meia-irmã do beneficiário.
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Notifique e remeta cópia da decisão à competente conservatória do registo civil (artigo 1920.º-B, aplicável ex vi do artigo 153.º/2 e ambos do Código Civil).
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Inconformada com o teor da decisão, dela interpôs recurso a C, concluindo da forma seguinte:
1. Foi declarada judicialmente por decisão com trânsito em julgado, a União de facto entre o maior acompanhado e a aqui recorrente, desde 2002.
2. Essa união de facto não foi desfeita e, consequentemente não podia ser ignorada pelo Tribunal recorrido, como efetivamente, foi!
3. É que, o Tribunal ignorou que, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 8 da Lei 7/2001, de 11 de maio (Lei da União de Facto), com todas as alterações que lhe foram introduzidas até á Lei 71/2018, de 31 de dezembro, a união de facto só se dissolve com: o falecimento de um dos membros; por vontade de um dos seus membros; com o casamento de um dos membros.
4. Ora, não se tendo verificado qualquer dessas circunstâncias, É INEQUIVOCO que a aqui recorrente continua em união de fato com o maior acompanhado!
5. Acontece que, ao que parece, tal facto para o Tribunal recorrido não contou!
6. Na sequência da publicação e entrada em vigor da Lei 49/2018, de 14 de agosto, foi criado o Regime Jurídico do Maior Acompanhado, eliminando-se os institutos da interdição e da inabilitação, e procedendo-se à alteração de vários diplomas legais, designadamente o Código Civil.
7. Esse acompanhamento, tal como já sucedia no regime anterior, é decidido pelo Tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas (cfr. art.º 139, n.º 1, do Código Civil).
8. No caso destes autos, o acompanhamento foi requerido Ministério Público, na sequência factos denunciados nestes autos pelo filho do maior acompanhado, os quais, não se vieram a comprovar, e por isso mesmo, não fizeram parte dos factos dado como provados na sentença recorrida (cfr. art.º 141, n.º 1, do Código Civil).
9. Na falta de escolha do acompanhante por incapacidade do maior acompanhado, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente ao unido de facto (cfr. art.º 143, n.º 2, al. b), do Código Civil).
10. Quer isto dizer que, face ao que se dispõe no n.º 2 do art.º 143 do Código Civil, e, em especial, ao disposto na sua al. b), dúvidas não subsistem de que, não sendo o maior acompanhado, casado, e vivendo em união de facto com outra pessoa, foi a essa pessoa, e não a eventuais filhos, que o legislador quis atribuir o acompanhamento.
11. Só assim, não seria, caso existam evidências que determinassem que esse acompanhamento devesse ser atribuído a outra pessoa.
12. Ora, percorrida toda a matéria de facto dada como provada na sentença, e bem assim, a própria fundamentação desta decisão, dúvidas não subsistem de que, NÃO HÁ NADA NO PROCESSO QUE DETERMINASSE O TRIBUNAL RECORRIDO A ATRIBUIR O FOSSE AQUELA A QUEM DEVE SER ATRIBUÍDO!
13. Pelo que, a decisão recorrida, ao atribuir o acompanhamento a pessoa diferente da mulher do acompanhado, sem uma única justificação para o fazer que tivesse resultado da matéria de facto que deu como provada, violou, em nosso entender, de forma INADMISSÍVEL, o que se dispõe na al. b) do n.º 2 do art.º 143 do Código Civil.
14. É desta clamorosa violação que se recorre!
15. Venerandos Desembargadores, no exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada (cfr. art.º 146, n.º 1, do Código Civil).
16. O acompanhante mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada (cfr. art.º 146, n.º 2).
17. Em mais de 18 (dezoito) anos de união de facto com o acompanhado, partilhando a mesma casa, cama e mesa, cuidando dele como marido, “contam-se pelos dedos de uma mão” as vezes que a aqui recorrente viu o filho do acompanhado, emigrado na Holanda desde há muitos anos!
18. Foi necessário que o seu companheiro, aqui acompanhado tivesse o problema de saúde que lhe determinou o estado de incapacidade de reger a sua pessoa e bens, para que o filho, ora nomeado acompanhante aparecesse, a reinvindicar a sua herança!
19. E, apenas questões materiais justificam a sua vontade de representar o pai/acompanhado, numa tentativa (sem sucesso, registe-se) de tentar a todo o custo colocar a aqui recorrente e companheira do acompanhado, fora da esfera patrimonial de todos os seus bens, designadamente, fora da casa de morada de família!
20. Registe-se que, o filho do maior acompanhado, tendo sido nomeado tutor provisório do pai, proibiu a companheira do mesmo e aqui recorrente, de o visitar no lar onde se encontra, como, aliás, resulta dos factos provados na sentença recorrida (cfr. 28º dos factos provados, a págs. 6 da sentença recorrida).
21. Lamentavelmente, apesar de vários requerimentos dirigidos aos autos pela aqui recorrente, no sentido de denunciar tudo isto, o Tribunal recorrido, por razões que não conseguiu explicar, e que não resultam da sua sentença, ao arrepio da LEI decidiu atribuir a representação do maior ao seu filho, violando, assim, a supra referida disposição legal.
Conclui no sentido de dever ser dado provimento ao presente recurso, e, consequentemente revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se essa decisão por outra que repondo a legalidade atribua o acompanhamento de A à sua companheira (há 18 anos) aqui recorrente.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O tutor provisório B enviou um e-mail para este Tribunal, dirigido ao Sr. Oficial de Justiça Otela Canteira, onde refere que não existe herança, que, desde que o pai mudou para o Lar, os custos passaram de 495 Euros/mês, para 1400,00 Euros/mês, não conseguindo pagar esse valor com a pensão do pai e o seu salário, tendo uma divida com a UCCI de Lisboa, desde Março de 2020.
Fez um acordo com eles, em que a divida desde Março de 2020 será dissolvida assim que o pai for chamado para o céu, tendo a casa de ser vendida para finalização das dividas, contribuição parcial.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
-Do aditamento de factos provados nos autos.
-Se a acompanhante do beneficiário A, com poderes de representação, deve passar a ser C, com quem o beneficiário vivia em união de facto desde 2002, conforme declarado por sentença, já transitada em julgado, posterior à fixação do tutor provisório.
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-FUNDAMENTAÇÃO
-DE FACTO:
-Os constantes do relatório supra e ainda os seguintes, que resultam dos autos:
Resultam provados os seguintes factos, com interesse para a questão a decidir:
A) Factos extraídos da sentença proferida nos presentes autos
1. Por assento de nascimento n.º 1112-A do ano de 1980, integrado sob o n.º 956676 do ano de 2010 da Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa;
2. O requerido é divorciado;
3. O requerido sofreu de acidente vascular cerebral hemorrágico com hematoma talâmico com inundação ventricular e como e amaurose bilateral;
4. O requerido está dependente de terceira pessoa para todas as actividades da vida diária;
5. Tal estado é irreversível;
6. O requerido encontra-se totalmente incapacitado de reger a sua pessoa e os seus bens;
7. O que se verifica desde Março de 2013.
B) Factos extraídos da sentença proferida nos autos do processo n.º 21251/16.0T8LSB (datada de 11-02-2019) a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 22:
8. C nasceu em 23-04-962 e não consta averbamento de casamento no seu assento de nascimento, conforme documento de fls. 22 a 24 dos autos (assento de nascimento).
9. A nasceu em 01-08-1944, casou com Júlia … em 22-10-1974, casamento que foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 04-10-1988, transitada em 20-10-1988, conforme documento de fls. 25 e 26 (assento de nascimento).
10. C e A viveram na mesma casa, na Rua ..., n.º 26, rés do chão direito em Lisboa, propriedade de A, desde 2002 (caderneta predial a fls. 27 a 29 e certidão predial a fls. 114 a 117).
11. Desde 2002, C e A relacionavam-se familiar, social, afectiva e sexualmente, tomavam as refeições em conjunto e contribuíam ambos para as despesas da casa.
12. Os familiares, amigos e vizinhos tinham conhecimento que C e A viviam juntos, como marido e mulher.
13. A encontra-se internado na Unidade de Cuidados Continuados Integrados, da Santa Casa da Misericórdia, no Montijo desde 11-10-2013, tendo como diagnósticos hemorragia intracerebral, hipertensão essencial e glaucoma
14. Encontra-se dependente de terceiros para as actividades da vida diária, invisual, pouco reactivo aos estímulos, sem comunicação verbal.
15. Em 24-06-2015, C, na qualidade de companheira de A, assinou a “notificação de atualização do termo de aceitação/unidade de longa duração e manutenção” deste, conforme documento de fls. 31 dos autos, cujo teor se deu por reproduzido.
16. A outorgou testamento em 18-01-1996 em que legou a Júlia .... e AHB____, em partes iguais, o rés do chão direito do prédio urbano sito na Rua ..., número ....., em Lisboa.
Resulta dos autos, além do mais, o seguinte:
17. Por sentença proferida no dia 28-11-2016, foi decretada a interdição, por anomalia psíquica, de A, fixando-se como data do começo da incapacidade do interdito o mês de maio de 2013, tendo sido nomeado como tutor provisório, B, filho do beneficiário, como protutora AHB____ e como vogal ABC____, respetivamente, filho, meia-irmã e filha do beneficiário.
18. Antes do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º 21251/16.0T8LSB, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 22, foi determinada, por despacho proferido no dia 21-04-2019, a tomada de declarações ao tutor provisório e à interveniente C, «para apuramento da situação concreta, relativamente às medidas necessárias e à pessoa que se deverá nomear ou manter como acompanhante»;
19. Foram apenas tomadas declarações a C, uma vez que o tutor provisório, B, esteve ausente (tal ocorreu no dia 11-04-2019);
20. B requereu, por e-mail de 20-05-2019, que lhe fosse dada nova oportunidade para ser ouvido, referindo que recebeu a notificação do Tribunal muito tarde (é residente na Holanda);
21. Tal requerimento foi indeferido, por despacho proferido no dia 23-05-2020, referindo-se que inexistiam razões processuais que impusesse a audição do tutor provisório.
22. B solicitou, por requerimento entrado no dia 08-03-2019, auxílio para recuperar as chaves da residência do beneficiário A, que estariam na posse de C, o que foi indeferido por despacho proferido no dia 07-05-2019.
23. Entretanto, por requerimento de 07-05-2019, C solicitou que se ordenasse ao Lar/Residência Sénior “...”, para onde o requerido A fora transferido, que fossem permitidas visitas da mesma.
24. C apresenta novo requerimento, entrado no dia 18-07-2019, onde refere que, por indicação do filho que detém a tutela provisória, foram proibidas as suas visitas há cerca de 5 meses no local onde o beneficiário está internado;
25. Por despacho proferido no dia 11-11-2019, foi determinado, além do mais, que considerando a factualidade apurada na sentença proferida no processo n.º 21251/16.0T8LSB, se solicitasse à Unidade de Cuidados Continuados Integrados de ..., onde o mesmo esteve internado vários anos, que informasse se C era visita habitual de A e como se desenvolviam tais visitas, nomeadamente, se as mesmas se mostravam gratificantes para A;
26. No mesmo despacho solicitou-se à instituição “A ...” que informasse se algo obsta às visitas de C e as razões pelas quais tais visitas não têm sido permitidas;
27. A Unidade de Cuidados Continuados Integrados de ... respondeu, por carta datada de 18-11-2019, referindo que o beneficiário recebia com regularidade a visita da C, mas que «o utente era afásico, invisual e pouco colaborante na relação, pelo que a equipa Multidisciplinar tinha dificuldade em percecionar as emoções do utente quando recebia qualquer visita. No entanto, nunca foi percebido qualquer rejeição por parte do utente à visita da C.
27-A-Mais consta dessa carta, que o utente A esteve internado na Unidade de Cuidados Continuados Integrados de ... entre 11/10/2013 e 01/03/2019.
28. Por sua vez, a instituição “A ...”, por carta datada de 18-11-2019, respondeu que B «comunicou na admissão de utentes, dia 01-03-2019, que, sendo tutor do utente, não permite visitas de pessoas que não tenha no nome Borges». Mais informou que, devido ao estado clínico do utente e com os documentos apresentados pelo tutor, a instituição cumpre a ordem dada pelo mesmo.
29. Por despacho proferido no dia 03-12-2019 foram autorizadas as visitas de C a A em Lar/Unidade onde o mesmo se encontre.
30. Mais se determinou que a Casa de Repouso “A ...” deverá reportar qualquer situação relacionada com as visitas que possa contender com o bem-estar de A.
30-A-Por e-mail enviado pelo B ao tribunal, via oficial de justiça, datado de 11/12/2019, este refere não concordar com a ordem do Tribunal de deixar o pai ser visitado pela C e mais refere não concordar com a ordem de visitas ser mandada em direcção ao Lar …, achando irrelevante o Lar ... estar envolvido em decisões, devendo as cartas serem dirigidas ao próprio.
31. C apresenta novo requerimento, no dia 18-12-2019, informando, além do mais, que a Casa de Repouso “...” não estava a cumprir a ordem do tribunal, tendo impedido a requerente de visitar o beneficiário, já após ser notificado de tal ordem.
31-A-O Acórdão da RL de 5 de Dezembro de 2019, que julgou improcedente o recurso interposto pelo interveniente B, mantendo a sentença proferida no Proc. nº 21251/16.0T8LSB, que reconheceu a situação de união de facto da Autora, C e A, desde 2002, transitou em julgado em 24-01-2020. (certidão de fls.255)
32. A instituição, notificada, respondeu, por carta entrada no dia 02-01-2020, que tal não correspondia à verdade, afirmando que, após notificação da autorização dada pelo Tribunal, no dia 04-12-2019, C não mais contactou a instituição.
33. Por despacho proferido no dia 13-05-2020 foi determinada a notificação da instituição na qual o beneficiário se encontra internado para prestar as seguintes informações:
a) Se C tem visitado o beneficiário e com que regularidade;
b) Quais dos sete filhos do beneficiário visitam o pai e com que regularidade, devendo identificar cada um deles;
c) Outras pessoas da família ou amigas que o costumem visitar e com que regularidade, devendo identificar cada uma delas;
d) qual o comportamento de cada uma das visitas do ponto de vista afetivo; e
e) Com referência ao teor do relatório pericial, se o estado de saúde do beneficiário se mantem idêntico, ou se se verificou alguma melhoria, nomeadamente ao nível da interação com as visitas ou assistentes da instituição.
34. Por carta datada de 30-05-2020, a instituição respondeu, que:
a) C, antes de a atual situação (pandemia), visitava com frequência o senhor A, e que, atualmente, liga regularmente para a Instituição, para saber como está o senhor A;
b) A é visitado pelo filho B uma vez por mês, por este residir fora do país; é mantido o contacto via e-mail;
c) Não existem mais visitas, nem contacto de telefone, além das pessoas referidas em a) e b);
d) B e C demonstram ambos afeto e carinho por A nas visitas presenciais;
e) O estado clínico de A não apresenta alterações, não existindo comunicação; continua a necessitar de cuidador para todas as atividades da vida diária, sendo totalmente dependente.
*
DE DIREITO:
Nesta sede recursiva, a questão de fundo a decidir, prende-se com a tomada de decisão sobre o bem fundado, ou não, da decisão do tribunal de 1ª instância em decidir pela nomeação definitiva do filho do beneficiário A, de nome B, como como acompanhante do mesmo, conferindo-lhe poderes gerais de representação do mesmo.
A recorrente, na qualidade de unida de facto do beneficiário A, entende ser a pessoa qualificada para o efeito, quer por força da lei, quer das circunstâncias provadas.
Com a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, que aprovou o regime do maior acompanhado, a anomalia psíquica que impossibilite o maior de exercer, pessoal e conscientemente, ou seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, poderá determinar a aplicação de medidas de acompanhamento, conforme vier a ser decidido pelo tribunal.
As razões de fundo, razões que estiveram presentes na tomada de posição de várias instâncias internacionais, no sentido de valorizar os direitos das pessoas deficientes, da sua dignidade e autonomia. Para lá dos avanços da ciência médica, também de um ponto de vista social foram vários os apelos – entre nós e por esse mundo fora – a uma nova compreensão dos problemas das pessoas com deficiências físicas ou mentais, ou com quaisquer outras limitações que afectem a sua capacidade jurídica. Essa tomada de consciência deu corpo a um movimento internacional de peso. A este respeito, impõe-se mencionar a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adoptada pelas Nações Unidas em 30 de Março de 2007 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 7 de Maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de Julho), bem como o respectivo Protocolo Adicional, adoptado pelas Nações Unidas na mesma data de 30 de Março de 2007 (e aprovado pela Resolução da AR n.º 57/2009, tendo sido ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 72/2009, de 30 de Julho). Neste contexto, já antes se destacara a Recomendação (99) 4, do Conselho da Europa, adoptada em 23 de Fevereiro de 1999, com a proclamação de alguns princípios aplicáveis à protecção de adultos incapazes, entre os quais os da flexibilidade, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da necessidade, princípios esses que mais tarde a Convenção de Nova Iorque veio também acolher e sublinhar. Efectivamente, logo no art. º1.º a Convenção estabelece como seu objectivo o de “promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”. Estabelece depois, no art.º 3.º, os princípios que norteiam a Convenção, à cabeça dos quais, precisamente, “o respeito pela dignidade inerente, e autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, e independência das pessoas” (al. a)). É claro que a protecção da pessoa deficiente – adiante-se, desde já –, de acordo com a própria Convenção das Nações Unidas, vai muito para além das medidas a tomar no plano do regime das incapacidades instituído no Código Civil, impondo-se a adopção de medidas também no tocante à reabilitação, educação, saúde, acesso à informação, serviços públicos, etc., etc.
Porém, aqui e agora, importam apenas as alterações operadas no Código Civil no regime das incapacidades. Ainda no tocante à Convenção de Nova Iorque, o seu art.º 12.º, com a epígrafe “Reconhecimento igual perante a lei”, tem a seguinte redacção: “1 – Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito ao reconhecimento perante a lei da sua personalidade jurídica em qualquer lugar.2 – Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida. 3 – Os Estados Partes tomam medidas apropriadas para providenciar acesso às pessoas com deficiência ao apoio que possam necessitar no exercício da sua capacidade jurídica. 4 – Os Estados Partes asseguram que todas as medidas que se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem as garantias apropriadas e efectivas para prevenir o abuso de acordo com o direito internacional dos direitos humanos. Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, aplicam-se no período de tempo mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial. As garantias são proporcionais ao grau em que tais medidas afectam os direitos e interesses da pessoa. 5 – Sem prejuízo das disposições do presente artigo, os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas e efectivas para assegurar a igualdade de direitos das pessoas com deficiência em serem proprietárias e herdarem património, a controlarem os seus próprios assuntos financeiros e a terem igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e asseguram que as pessoas com deficiência não são, arbitrariamente, privadas do seu património”. Este é o preceito que mais directamente tinha que ver com as alterações ao Código Civil, no respeitante aos institutos da interdição e da inabilitação. É claro que se poderia ter alterado apenas o regime instituído na lei, mantendo esses institutos; mas o legislador achou que seria melhor eliminar esses institutos, substituindo-os pela figura do “maior acompanhado”, tendo em conta o estigma negativo dos institutos da interdição e da inabilitação.
Perante as incapacidades de exercício que existiam em Portugal, a saber menoridade, interdição e inabilitação, consagradas no Código Civil, a protecção de uma pessoa maior que dela carecesse só podia conseguir-se declarando-a incapaz, por via da sua interdição ou inabilitação.
Daí precisamente o apelo a que era urgente consagrar medidas que pudessem auxiliar as pessoas com deficiência, mantendo estas a sua capacidade de exercício de direitos. Neste sentido se manifestou, um forte movimento em todo o mundo, com destaque para a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e para as alterações legislativas em vários sistemas jurídicos, como a Alemanha, França, Itália, Espanha e Brasil, entre outros.
António Pinto Monteiro, no Congresso Comemorativo do Cinquentenário do Código Civil, que decorreu no Auditório da Faculdade de Direito de Coimbra, em 24 e 25 de Novembro de 2016, cujo texto foi publicado na RLJ, ano 146.º, n.º 4002, defendeu princípios e ideias que foram acolhidos na reforma operada pela Lei n.º 49/2018.
Recordar o que então disse serve de apresentação das grandes linhas de orientação do regime jurídico do maior acompanhado.
Refere o autor citado “transcrevendo expressamente o que então defendi, disse ser favorável a um sistema de maior flexibilidade, que promovesse, na medida do possível, a vontade das pessoas com deficiência e a sua autodeterminação, que respeitasse, sempre, a sua dignidade e facilitasse a revisão periódica das medidas restritivas decretadas por sentença judicial. Concretizando, disse concordar, em primeiro lugar, que, sempre que possível, devesse ser tomada em conta a vontade de quem vai ser sujeito a qualquer medida restritiva ou de apoio. Por maioria de razão, acrescentei concordar com o mandato em previsão do acompanhamento ou da incapacidade, isto é, com a possibilidade de qualquer pessoa prevenir uma eventual necessidade futura, indicando, desde logo, quem a acompanhará ou a representará, caso isso venha a verificar-se, e que poderes lhe atribui. Evidentemente, este mandato terá de ser devidamente disciplinado.
Houve também a consagração de uma medida semelhante àquela que o Brasil adoptou, relativa à “tomada de decisão apoiada”, permitindo à pessoa com deficiência, física ou mental, escolher alguém que pudesse apoiá-la nas decisões a tomar, fornecendo-lhe os elementos e informações necessários para esse efeito. É claro que também esta medida dependerá da aprovação do juiz competente.
Estas medidas pressupõem a manutenção da capacidade de exercício de direitos por parte da pessoa que a elas recorre. Trata-se de medidas de apoio a pessoa com deficiência assentes na sua autodeterminação.
Proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela referida Convenção da ONU e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão. Há, assim, uma mudança de paradigma, deixando a pessoa deficiente de ser vista como mero alvo de políticas assistencialistas e paternalistas, para se reforçar a sua qualidade de sujeito de direitos. Em vez da pergunta: “aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica?”, deve perguntar-se: “quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que exerça a sua capacidade jurídica?”.
Em face do exposto, impunha-se uma reforma do Código Civil no campo das incapacidades de exercício de direitos, pois os institutos da interdição e da inabilitação não davam resposta satisfatória nem adequada a estas novas exigências e a este novo paradigma. Havia que acolher aquelas novas figuras – continuo a seguir o meu texto de 2016 – que permitem apoiar pessoas com deficiência, mantendo elas a sua capacidade de exercício de direitos. Quid iuris, todavia, naquelas situações em que falte, de todo, a vontade ou a capacidade para entender e querer, ou ela está profundamente afectada, em termos tais que a deficiência de que a pessoa sofre a impossibilita de governar a sua pessoa e bens, sem que esta situação haja sido prevenida em momento anterior (se isso tivesse sido possível) através do mandato em previsão da incapacidade? Em situações destas, ainda que a título excepcional, deve continuar a recorrer-se ao instituto da representação, substituindo-se o incapaz, no interesse deste, pela actuação do tutor. Mas isso implica abandonar o regime da interdição, medida radical e rígida, substituindo-o por um regime flexível, que permita ao juiz, qual alfaiate, fazer um “fato à medida” do necessitado, adequando as medidas à situação concreta de cada pessoa.
Em suma e para concluir este ponto, de um modelo, do passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, em que prepondera a substituição, deve partir-se para um modelo flexível e humanista, baseado em medidas adoptadas casuisticamente e periodicamente revistas, prioritariamente destinadas a apoiar quem delas necessite, mas sem prejuízo de elas poderem vir a suprir a incapacidade em situações excepcionais, sempre com respeito pelos princípios da adequação, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana.
A Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto é provavelmente a maior reforma operada no Código Civil após a revisão pelo Decreto-Lei n.º 496/77, que adaptou o Código Civil à Constituição de 1976, e certamente a maior reforma na Parte Geral do Código Civil após a sua publicação em 25 de Novembro de 1966.
O novo regime do maior acompanhado ocupa precisamente os mesmos artigos 138.º a 156.º do Código Civil, que disciplinavam os institutos da interdição e da inabilitação, institutos estes eliminados pela Lei em apreço.
Dito isto, a primeira pergunta é relativa à questão de saber quem pode beneficiar das medidas de acompanhamento. Responde o (novo) art.º 138.º, atribuindo esse benefício ao “maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”. São, assim, de dois tipos, esses requisitos: por um lado, quanto à causa: razões de saúde, deficiência ou ligadas ao seu comportamento; e, por outro lado, quanto à consequência: a impossibilidade de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.
Optou o legislador, como se vê, por uma formulação ampla, afastando-se claramente da posição fechada relativa aos fundamentos da interdição e da inabilitação. Um ponto muito importante que neste contexto importa sublinhar é o de que na actual formulação ampla que permite o recurso às medidas de acompanhamento cabem as pessoas idosas e/ou doentes.
(Neste sentido, cfr. O NOVO REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO 1. Das incapacidades ao maior acompanhado ̶– Breve apresentação da Lei n.º 49/2018, António Pinto Monteiro, E-Book CEJ, O novo Regime do Maior Acompanhado, Fevereiro 2019).
Ao processo especial de acompanhamento de maiores aplicam-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de decisão e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (art.º 891.º, n.º 1). Esta regulamentação contém uma remissão para o regime dos processos de jurisdição voluntária nos seguintes aspectos: ─ Poderes do juiz: o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; além disso, só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias para a boa decisão da causa (art.º 986.º, n.º 2); ─ Critério de decisão: nas providências a tomar, o tribunal deve adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art.º 987.º); isto significa que, nos processos de acompanhamento de maiores, o critério de decretamento da respectiva medida é a discricionariedade;
Alteração das decisões: as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; a superveniência pode ser objectiva ou resultar de ignorância da parte ou de outro motivo ponderoso que tenha conduzido à omissão da alegação (art.º 988.º, n.º 1).
Assim, das características gerais dos processos de jurisdição voluntária só não é aplicável aquela que determina que, nas resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade, não é admissível recurso para o STJ (art.º 988.º, n.º 2). Em suma: o processo especial de acompanhamento de maiores é, em termos substanciais, um processo de jurisdição voluntária. b) Formalmente, todavia, o processo de acompanhamento de maiores não pode ser considerado um processo de jurisdição voluntária, não só porque não se encontra inserido no Título XV do Livro V do Código de Processo Civil, mas também porque não há nenhuma disposição legal que o qualifique como tal. Este aspecto, embora formal, é muito relevante, porque implica, por exemplo, que a desnecessidade da constituição de advogado que consta do art.º 986.º, n.º 4, não é aplicável aos processos de acompanhamento de maiores. Dito pela positiva: a obrigatoriedade do patrocínio judiciário determina-se nos termos gerais estabelecidos no art.º 40.º, n.º 1. 2. Além de algumas características dos processos de jurisdição voluntária, o processo especial de acompanhamento de maiores caracteriza-se ainda pela circunstância de o juiz não estar vinculado à medida de acompanhamento requerida pelo requerente que instaurou o processo (art.º 145.º, n.º 2, CC).
Esta solução justifica-se porque, além do mais, só durante o processo é possível determinar, com rigor, a medida de acompanhamento adequada para o beneficiário. Recorde-se que a medida de acompanhamento se deve restringir ao estritamente necessário (art.º 145.º, n.º 1, CC), pelo que o juiz não deve decretar nem uma medida que seja excessiva atendendo às necessidades do beneficiário, nem uma medida que seja insuficiente considerando essas mesmas necessidades. Não estando o juiz vinculado à medida de acompanhamento requerida pelo requerente (art.º 145.º, n.º 2, CC), não há nenhum obstáculo a que esse requerente altere essa medida fora dos condicionalismos estabelecidos no art.º 265.º, n.º 2, para a alteração do pedido. A justificação é esta: a medida de acompanhamento, porque tem de ser adequada à situação real e efectiva do beneficiário, deve poder ser adaptada à situação desse beneficiário apurada no próprio processo de acompanhamento. 3. O processo de acompanhamento de maiores tem carácter urgente (art.º 891.º, n.º 1). Isto significa que, nesse processo, os prazos não se suspendem durante as férias judiciais (art.º 138.º, n.º 1), que, mesmo durante a suspensão da instância, é possível praticar actos urgentes destinados a evitar danos irreparáveis (art.º 275.º, n.º 1) – como é o caso do decretamento de uma medida provisória e urgente (art.º 139.º, n.º 2, CC) – e ainda que o prazo para a interposição dos recursos é de 15 dias (art.º 638.º, n.º 1, e 677.º)
Dada a remissão constante do art.º 891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária, o juiz pode coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (art.º 986.º, n.º 2 1.ª parte). Segundo o disposto no art.º 897.º, n.º 1, o juiz pode ordenar as diligências probatórias que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos. Estes poderes inquisitórios sobre matéria de facto e sobre provas valem tanto para o processo de acompanhamento de maiores, como para qualquer dos seus incidentes. 2. a) Os meios de prova admissíveis são todos os meios de prova típicos (segundo o que se encontra regulado no Código Civil no art.º 352.º (prova por confissão), 362.º (prova documental), 388.º (prova pericial), 390.º (prova por inspecção) e 392.º (prova testemunhal)). Em particular, atendendo ao que cabe ao tribunal apreciar no processo de acompanhamento de maiores, compreende-se que a prova pericial tenha uma especial relevância, como, aliás, decorre do disposto no art.º 139.º, n.º 1, CC e nos art.º 897.º, n.º 1, e 899.º, n.º 1. O juiz pode mesmo autorizar uma prova pericial especial: o exame em clínica especializada, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do director respectivo (art.º 899.º, n.º 2). b) O regime do processo de acompanhamento de maiores comporta igualmente uma prova atípica: a audição pessoal e directa do beneficiário (art.º 897.º, n.º 1, e 898.º). Trata-se de um meio de prova que é obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (art.º 139.º, n.º 1, CC; art.º 897.º, n.º 2), dado que, por razões facilmente compreensíveis, se pretende assegurar que o juiz tem conhecimento efectivo da real situação em que se encontra o beneficiário. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e directa não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1) e de adequação formal (art.º 547.º), não deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição.
Na sua decisão, o juiz deve designar o acompanhante e definir a medida ou medidas de acompanhamento adequadas (art.º 900.º, n.º 1): ─ Segundo o estabelecido no art.º 143.º,
n.º 2, CC, o acompanhante é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal (como pode suceder, por exemplo, no caso do acompanhamento que é requerido quando o beneficiário ainda é menor: art.º 142.º CC), mas isso não impede que o juiz possa designar um acompanhante substituto ou mesmo vários acompanhantes (art.º 900.º, n.º 2);
(Neste sentido, cfr. O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS1 Miguel Teixeira de Sousa, ob.cit.)
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No caso dos autos, e ainda no âmbito do anterior regime de interdições e inabilitações vigente no Código Civil, foi decretada a interdição por anomalia psíquica de A, nos termos do art.138º do Código Civil.
Considerando o disposto no art.26º, da Lei nº 49/2018, de 14/8, os presentes autos passaram a enquadrar-se no regime jurídico do maior acompanhado, conforme flui do despacho proferido nos autos.
Posto isto, não restam dúvidas no caso em apreço no presente recurso quanto à integração do beneficiário A no contexto do regime da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto,
De acordo com este regime, o acompanhamento é o ponto de partida e é a base do sistema a estabelecer. No limite, haverá representação. Erigir o modelo de acompanhamento como regra e restringir a representação aos casos de ausência de discernimento e capacidade de estipulação livre e consciente, mostra-se como melhor adaptado àquelas orientações internacionais, emergentes dos princípios que agora orientam esta matéria.
O deficiente profundo, o doente de Alzheimer em estado avançado ou o paciente em coma dépassé não têm nem manifestam qualquer vontade: terão, mesmo, de ser representados.
(Neste sentido, O MAIOR ACOMPANHADO – LEI Nº 49/2018, DE 14 DE AGOSTO Nuno Luís Lopes Ribeiro, ob cit, e Ac. da RL de 28 de Maio de 2020, Proc. nº 2039/19.3T8ALM.L1, por nós relatado, e aqui seguido nas considerações gerais).
É esse o caso dos autos.
O art. 26º, nº 4 da Lei nº 49/2018, de 14/8, determina que,
Às interdições decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos ao acompanhante poderes gerais de representação.
No caso dos autos, a dúvida subsiste na escolha da pessoa do acompanhante.
De acordo com o disposto no art.143º da citada Lei,
1 - O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.
2 - Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente:
a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto;
b) Ao unido de facto;
c) A qualquer dos pais;
d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado;
e) Aos filhos maiores;
f) A qualquer dos avós;
g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado;
h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação;
i) A outra pessoa idónea.
3 - Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um, com observância dos números anteriores.
Não é possível atender à vontade de A caso dos autos, em razão do estado em que se encontra, e da inexistência de qualquer manifestação de vontade da sua parte, antes de ter sofrido o AVC hemorrágico, sofrendo de insuficiência respiratória aguda, HTA e Amaurose Bilateral, que o tornou totalmente dependente de terceiros, pouco reactivo aos estímulos e sem comunicação verbal.
A escolha deve então recair, sobre pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, indicando as alíneas do nº2 uma ordem não obrigatória, como se infere da expressão, “designadamente”.
O certo é que, nessa ordem, o unido de facto vem em segundo lugar, enquanto que, os filhos maiores, vêm em quinto lugar.
Na primeira sentença referiu-se “Quanto à nomeação de tutor, por se encontrar em curso acção judicial para reconhecimento da qualidade de unida de facto à “interveniente” C, ao abrigo do disposto no artigo 142.º do CC, nomeio como tutor provisório o filho do requerido, sendo proferida decisão definitiva quando se encontrar transitada em julgada a sentença que vier a recair sobre o pedido de C”.
Ora bem, a nomeação provisória do filho do requerido só se deveu ao facto de estar a correr a acção interposta pela C que reconheceu a união de facto entre a mesma e o beneficiário A.
Afigura-se-nos que existiu alguma valorização negativa no facto de a C não ter visitado o seu companheiro durante a pandemia, conforme relatado na carta de 30-5-2020.
Ai se refere que C ia muitas vezes antes da pandemia à Instituição ... e que o filho B vai lá uma vez por mês.
Foi aliás, com base nesta declaração que o Ministério Público promoveu a manutenção do filho B, como tutor, com poderes de representante, a titulo permanente.
Porém, é do conhecimento público o grau de restrições que existiram no nosso País a partir de Março, com a decretação pelo Presidente da República de três Estados de Emergência seguidos.
Na verdade, com a declaração da situação de pandemia pela OMS, O Conselho de Ministros aprovou em 12-3 um conjunto de medidas extraordinárias e de caráter urgente de resposta à situação epidemiológica do novo Coronavírus – COVID 19, entre as quais se incluía a suspensão de visitas a lares em todo o território nacional, que veio a ocorrer em parte do período situado entre o mês de Março e o fim do mês de Maio.
Em 18 de Março, o Presidente da República decreta o Estado de Emergência por 15 dias, através do Decreto do Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020.
Em 17 de Março, o PM António Costa anuncia a suspensão das ligações aéreas de fora e para fora da União Europeia.
Em 19 de Março o Governo aprova o DL nº 2-A/2020, de 20/3, que procede à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março.
Este contempla o dever geral de recolhimento domiciliário, com as excepções previstas no art.5º.
Dois outros estados de Emergência foram decretados no mês de Abril, impondo o segundo deles, com novas restrições.
Neste decurso, foram proibidas visitas aos Lares, onde se expandiu a pandemia, com consequência devastadoras, como é do conhecimento geral.
Em 03 de maio Portugal entrou em situação de calamidade devido à pandemia. Esta nova fase de combate à covid-19 prevê o confinamento obrigatório para pessoas doentes e em vigilância ativa, o dever geral de recolhimento domiciliário e o uso obrigatório de máscaras ou viseiras em transportes públicos, serviços de atendimento ao público, escolas e estabelecimentos comerciais.
O Governo aprovou novas medidas que entraram em vigor em 18-5-2020, entre as quais a retoma das visitas nos lares de idosos.
As visitas aos lares de idosos retomadas em 18 de maio, foram sujeitas a agendamento prévio e, numa fase inicial, foram limitadas ao máximo de uma visita por semana e por utente.
Ou seja, no contexto da pandemia e das medidas que vigoraram em Portugal, quer ao nível das restrições nas viagens, quer ao nível das visitas ao Lares, suscitam-nos dúvidas sobre a veracidade do afirmado na carta de 30-5, quando afirma que o filho do interdito, B, nomeado seu tutor, tenha ido ao Lar visitar o pai, uma vez por mês, entre os meses de Março e Maio.
Afirma-se na carta de 30/5/2020, que A é visitado pelo filho B uma vez por mês, por este residir fora do país; é mantido o contacto via e-mail;
Até porque, como resulta provado, B, por residir na Holanda, faltou a diligências para ser ouvido no Tribunal.
Provou-se que, foram apenas tomadas declarações a C, uma vez que o tutor provisório, B, esteve ausente (tal ocorreu no dia 11-04-2019);
-B requereu, por e-mail de 20-05-2019, que lhe fosse dada nova oportunidade para ser ouvido, referindo que recebeu a notificação do Tribunal muito tarde (é residente na Holanda);
Tal requerimento foi indeferido, por despacho proferido no dia 23-05-2020, referindo-se que inexistiam razões processuais que impusessem a audição do tutor provisório.
No mais, a ir ele, não podia ir a C, com quem o filho estava em litigio.
E esta sofreu as restrições nas visitas a Lares resultantes da pandemia.
Em outros períodos, houve litigio que teve que ser resolvido pelo tribunal, com a proibição de entrada da recorrente no Lar ..., por ordem do B. Aliás, mesmo com ordem do tribunal, a requerente veio a 18/2 informar que a instituição não lhe permitia a entrada.
E a instituição responde ao tribunal em 2/1/2020, que após notificação da autorização dada pelo Tribunal, no dia 04-12-2019, C não mais contactou a instituição.
Fica por esclarecer esta questão, até perante o e-mail enviado pelo B ao tribunal, datado de 11/12/2019, junto a fls. 231, onde refere não concordar com a ordem do Tribunal de deixar o pai ser visitado pela C, mais referindo não concordar com a ordem de visitas ser mandada em direcção ao Lar ..., achando irrelevante o Lar ... estar envolvido em decisões, devendo as cartas serem dirigidas ao próprio.
É possível que a Instituição esteja a cumprir ordens de B, tanto mais que a esta data ainda não tinha transitado em julgado o Acórdão do TR que manteve a sentença da 1ª instância que reconheceu a situação de união de facto da Autora, C e A, desde 2002.
Na verdade, como resulta da certidão junta a fls.255, o Acórdão referido transitou em julgado em 24-01-2020.
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O certo é que, como a própria admite, a situação foi ultrapassada e a recorrente costumava visitar o A até à pandemia.
E a última resposta reporta-se a 30/5, poucos dias depois do levantamento da retoma das visitas nos lares de idosos.
Repare-se, aliás, que a Unidade de Cuidados Continuados Integrados de ... respondeu, por carta datada de 18-11-2019, referindo que o beneficiário recebia com regularidade a visita da C, mas que «o utente era afásico, invisual e pouco colaborante na relação, pelo que a equipa Multidisciplinar tinha dificuldade em percecionar as emoções do utente quando recebia qualquer visita. No entanto, nunca foi percebido qualquer rejeição por parte do utente à visita da C».
O beneficiário A esteve internado nesta Instituição entre 11/10/2013 e 01/03/2019 e recebia com regularidade a visita da C.
Em 1/3/2019 o mesmo mudou para o Lar A ... e surgiram os problemas com as visitas que os factos provados evidenciam e aos quais a relação entre a recorrente e o beneficiário A são alheios.
É certo que a condição do mesmo não permitia aos técnicos dar parecer sobre as suas emoções durante a visita da C, mas também nunca foi percebida qualquer rejeição por parte do utente à visita da mesma.
Em contrapartida, como se refere na carta de 30/5/2020, quer o Sr. B, quer a C manifestam afecto e carinho pelo A nas visitas presenciais.
Ou seja, não vislumbramos qualquer obstáculo a que se siga a ordem estabelecida no art. 143º, nº2, al.b), do CC.
O que importa é salvaguardar o bem-estar do beneficiário e não os interesses patrimoniais dos futuros herdeiros, que só têm uma expectativa jurídica em vida do dono da herança, em relação à casa ou ao dinheiro da pensão, ou o direito a nela permanecer por parte da recorrente.
São direitos a exercer em sede comum.
Tal como o bom ou mau exercício da administração dos bens do beneficiário que, entretanto, tenha sido feito ou de acordos que tenham sido efectuados a contar já com a morte do beneficiário e a venda de bens a este pertencentes.
Será que o filho B está já a contar que o pai morra em breve?
O e-mail enviado causou perplexidade a este tribunal.
Evidenciou que não consegue exercer a representação do beneficiário sem contrair dividas. Pode aceitar-se que não tenha dinheiro próprio para pagar o Lar, por ultrapassar em muito o valor da pensão.
Mas fazer acordos unilateriais, contando já com a morte do pai, foi algo que deixou o tribunal em estado de alerta.
O que referiu tem o valor de confissão.
Sendo assim, mais uma razão para que, de futuro, o acompanhamento e representação do beneficiário passe para a recorrente, pessoa com quem o beneficiário viveu em união de facto desde 2002.
Esta condição está reconhecida por sentença transitada em julgado e impõe-se o seu respeito com força obrigatória dentro e fora do processo.
Impõe-se assim nomear como acompanhante do beneficiário, C, unida de facto com o beneficiário, a quem são conferidos poderes gerais de representação do mesmo, com todas as consequências legais.
Em consequência do acima exposto, importa rever a constituição do conselho de família, tendo presentes o disposto nos arts.1951º, aplicável ex vi, art.145º, nº4, e 1952º todos do Código Civil.
Considerando a relação familiar, designa-se como vogais do conselho de família, o seu filho, B, na qualidade de protutor, e AHB____, meia-irmã do beneficiário.
Procede a Apelação.
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DECISÃO:
Nos termos vistos, Acordam os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a Apelação, com a consequente revogação da sentença objecto de recurso, decidindo:
A - Nomear como acompanhante do beneficiário A, C, unida de facto com o beneficiário desde 2002, a quem são conferidos poderes gerais de representação do mesmo, com todas as consequências legais;
B - Designar como vogais do conselho de família, o seu filho, B, na qualidade de protutor, e AHB____, meia-irmã do beneficiário.
Notifique e remeta cópia da decisão à competente conservatória do registo civil e ao Lar “A ...”, onde se encontra o beneficiário A.
Custas a cargo do Recorrido.

Lisboa, 4-3-2021
Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura
Maria do Céu Silva