Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10898/2007-3
Relator: TELO LUCAS
Descritores: HOMICÍDIO
GRAVAÇÃO DA PROVA
ESTABELECIMENTO PRISIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A realização de escutas através de microfone a colocar em cela de duas camas em estabelecimento prisional com a finalidade de registar as conversações efectuadas por dois arguidos ocupantes de tal cela, com vista á investigação de crime de homicídio, não é legalmente admissível face ao disposto nos art.ºs 187º, 188º, 190º CPP e 34º n.ºs 1 e 4 CRP, sob pena de violação intolerável dos direitos constitucionais de inviolabilidade do domicilio e da reserva de intimidade da vida privada.
Decisão Texto Integral:   Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

            I – RELATÓRIO   

            1. Nos autos de inquérito com o n.º 29/03.7JAPDL, que correm termos pelos serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da comarca de Ponta Delgada, o Digno Magistrado requereu à M.ª JIC, ao abrigo dos artigos 187.º, n.º 1, al. a), n.º 4, als. a) e b), 188.º e 189.º, n.º 1, parte final, todos do Código de Processo Penal[1], a escuta das conversações entre J… e R… «por microfone a colocar em cela de duas camas, e por 30 dias, em cela do Estabelecimento Prisional de Lisboa», para onde os mesmos seriam deslocados.


            2. A Sra. Juíza, do 2.º juízo daquele Tribunal, indeferiu, por despacho de 09-11-2007, o assim requerido.


            3. É desse despacho que vem interposto pelo Ministério Público o presente recurso, cuja motivação termina com as seguintes conclusões (transcreve-se):

«1. A decisão da Mma. J.I.C., violou o art. 189.°, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal, ao não o aplicar no caso, desvalorizando o seu alcance e protegendo em excesso a alegada intimidade dos reclusos.
2. A Mma. Juíza “a quo” não aplicou tal norma, na prática, por entender que tal seria uma intromissão inaceitável na vida privada dos reclusos, e na sua habitação, e um método proibido de obtenção de prova.
3. Porém, tal oitiva, para além de ser admissível para outros ilícitos menos graves, pela Lei 5/2002, não tem carácter abusivo, tendo base legal, no caso, naquele art. 189.°, n.º 1, do Código de Processo Penal; sendo o homicídio um crime de catálogo, nos termos do art. 187.°, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, pelo que a escuta por microfone deveria ter sido admitida.
4. Por outro lado, tal escuta cingir-se-ia apenas a conversas com interesse para a investigação, seguindo o regime controlado e apertado dos arts. 187.° a 189.° do Código de Processo Penal.
4[2]. A decisão recorrida deve por isso ser revogada, considerando-se admissível a escuta por microfone, apenas aos reclusos em causa – J… e R… - em cela para o efeito cedida pelos Serviços Prisionais, por tal meio de prova admissível e imprescindível para descoberta da verdade.

V. Exas., todavia, farão, com subida experiência do Direito, a devida
JUSTIÇA.».


            4. Não consta[3] que tenha havido qualquer resposta ao recurso.


            5. Subiram os autos a esta Relação e, aqui, a Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido da revogação do despacho recorrido, o qual, em seu entender, deve ser substituído por outro que autorize a intercepção em causa.


            6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta.


            7. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência.


            II – FUNDAMENTAÇÃO

            8. Cumpre, pois, apreciar e decidir.

            8.1. Como se pode constatar do que se acaba de referir na parte do relatório, estando em causa a investigação de um crime de homicídio, pretende o Ministério Público, ao abrigo do n.º 1, parte final, do art. 189.º, a escuta das conversações entre dois reclusos – J… e R… -, que se encontram presentemente no EPR de Ponta Delgada.
            Para o efeito, e tendo já a Direcção Geral dos Serviços Prisionais manifestado a possibilidade de ambos serem transferidos para o EP de Lisboa, no qual existem celas com duas camas, o que não acontece com o EP de Ponta Delgada, seria instalado um microfone na cela que viessem a ocupar, conjuntamente, tendo em vista a gravação das conversas que estabelecessem entre si.

            A Sra. Juíza indeferiu tal pretensão, valendo-se, para tanto, dos fundamentos que verteu no despacho recorrido, cujo teor, no seu essencial, é o seguinte (transcreve-se):

«O MINISTÉRIO PÚBLICO veio requerer, por trinta dias, a escuta de conversação entre os arguidos J… e R…, a obter e registar através de microfone a colocar numa cela de duas camas do Estabelecimento Prisional de Lisboa, para onde os mesmos seriam deslocados, requerimento que é efectuado ao abrigo do disposto nos artigos 187.°, n.º 1, a), e n.º 4, a) e b), 188.° e 189.° do CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Alega para tanto, em síntese, que o arguido J…, sobre quem recaem suspeitas e indícios de ter praticado um crime de homicídio contra a pessoa de V…, tem tido uma conduta processual dissimulada, tendo empurrado a prática do crime para a pessoa do sobrinho, R….
Por outro lado, há suspeitas de que no local dos factos esteve outra pessoa, B…, havendo que proceder a vigilâncias e escutas para dirigir a investigação contra este suspeito ou aquele arguido.
Mais é alegado que a investigação não tem outro meio de prosseguir, descoberta que está apenas uma impressão digital deste arguido no veículo do falecido V…, e que R…, que assumiu a prática do crime, estava preso na data em que ele ocorreu, através dos meios tradicionais de recolha de prova - testemunhal, através de interrogatórios, de buscas ou vigilâncias - sendo indispensável, em suma, a audição e registo de conversas entre os arguidos J…e R…, através de um microfone na cela para onde, propositadamente, irão ser deslocados, noutro estabelecimento prisional, o EP de Lisboa, com instalações adequadas para o efeito.

Cumpre apreciar e decidir:

O artigo 189.° do CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, no seu número 1, estende a aplicação da disciplina legal das escutas telefónicas às conversações ou comunicações transmitidas por (1) qualquer meio técnico diferente do telefone  e, para o que aqui nos prende, (2) à intercepção das comunicações entre presentes.
Pressupostos gerais são, sempre, os que constam dos artigos 187.° e 188.° do mesmo diploma legal, nomeadamente que as escutas só são admissíveis para crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos - como o é o homicídio, nos termos do artigo 131.° do CÓDIGO PENAL - e só se forem indispensáveis para a descoberta da verdade ou a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter.
A questão que se coloca fundamentalmente é o da interpretação do teor da expressão "conversação entre presentes" do artigo 189.°. Será admissível a escuta e registo da conversação ocorrida em qualquer circunstância, isto é, em local público e em local privado? Num café ou no interior da habitação do escutado?
Estando em causa um meio de obtenção de prova como o é a escuta telefónica, não pode o mesmo ser desinserido do contexto mais vasto que é o da admissibilidade das provas e dos meios de prova, quer ao nível da legislação ordinária, quer no âmbito da protecção constitucional das garantias do processo penal.
Como é sabido, a regra é a da admissibilidade de todas as provas que não forem proibidas por lei, princípio geral da legalidade da prova, consagrado no artigo 125.° do CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, em certa medida tautológico: é permitido o que não for proibido.
Assim e balizando o que o legislador considerou como sendo proibido surge o artigo 126.° do mesmo diploma legal, contendo um elenco de métodos proibidos de prova, nomeadamente os que se dirigem contra a integridade física e moral das pessoas, neste último caso salientando-se a utilização de meios cruéis ou enganosos.
A nulidade que decorre da utilização deste tipo de prova é de natureza absoluta e insanável.
Por seu turno, igualmente nulas, mas de natureza relativa, são as provas obtidas mediante a intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. Onde este consentimento se não verifique permite a lei a intervenção judicial autorizadora, preenchidos que estejam os requisitos dos artigos 187.° e 188.° do CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, cominando a lei, na sua falta, com a nulidade do meio de prova (artigo 190.°).
Esta possibilidade é enquadrada pela própria Constituição da República Portuguesa onde se prescreve a inviolabilidade dos meios de comunicação privada, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal (artigo 34.°, n.º 1 e 4, do CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA).
A interpretação do artigo 189.° não pode, em nosso entender, ser efectuada sem a sua inserção sistemática, integrada por todo o conjunto de regras e princípios que regem a aplicação da justiça penal, que persegue, sem dúvida, a realização da justiça e busca a descoberta da verdade. Mas não de toda e qualquer verdade. Apenas da verdade material, processualmente válida, alcançada com respeito pelos princípios sociais de cariz humanista, no assegurar de todas as garantias de defesa aos arguidos e no postergar de métodos desleais e enganosos que forcem à confissão, antes erigida como a rainha das provas, sem respeito pelo princípio enformador "nemo tenetur se ipsum accusare" e da dignidade da pessoa humana.
É, pois, da conjugação de todas estas considerações que se há-de fazer luz sobre a verdadeira interpretação da vontade e do espírito do legislador processual penal.
Efectuada essa ponderação, a nossa posição é, com todo o respeito pela posição veiculada na promoção em análise, que o doutamente promovido atenta contra princípios fundamentais de garantias de defesa dos arguidos. A colocação dos arguidos num ambiente prisional fechado, que é agora o seu domicílio, utilizando microfones para escutar as suas conversas a fim de descobrir matéria criminal não é legalmente admissível. Certamente o legislador não quis sacrificar o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio e da esfera da vida privada aos interesses da investigação criminal.
E não será o que sucede com as escutas telefónicas. Cremos que a realidade é, não obstante, diversa: na escuta, apesar de inexistir o conhecimento e o consentimento do escutado, há a utilização de um meio de comunicação que os que o utilizam sabem que poderão ter de guardar reserva, podendo optar por outro meio de comunicação mais privado.
No domicílio, os residentes confiam estar numa esfera privada em que baixam as guardas, protegidos que se sentem de toda a intromissão exterior não consentida.
O processo penal é e tem de manifestar-se como um processo justo e equitativo, não podendo haver uma compressão inconstitucional de direitos, liberdades e garantias impostergáveis dos cidadãos, sob pena de violação da própria essência do Estado de Direito, de outro modo avalizador da obtenção de prova processual penal por meios dissimulados e traiçoeiros, não razoavelmente expectáveis por aqueles a quem atribui o estatuto de sujeitos processuais, e não objectos.
Nessa medida tendemos a concordar inteiramente com Armando Veiga e Benjamim Silva Rodrigues quando, na recentemente republicada obra "Escutas telefónicas - Rumo à Monitorização dos fluxos informacionais e comunicacionais digitais" (Coimbra, 2007, págs. 359 e seguintes) defendem que não é admissível a intercepção de gravação de comunicações (...) e de captação de imagens dentro de espaços íntimos, onde se destacam as habitações, restringindo-se o âmbito de aplicação e hermenêutica da norma do artigo 189.° ao da intercepção de comunicações entre presentes de índole ambiental, fora de qualquer espaço íntimo, sob pena de violação dos direitos constitucionais de inviolabilidade do domicílio e da reserva da intimidade da vida privada e familiar, estando as escutas constitucionalmente autorizadas para os casos em que as comunicações ocorrem em canais específicos, de telecomunicações ou redes de comunicações electrónicas - sendo que, acrescentamos nós, a possibilidade de escutar conversações presentes foi só introduzida com a reforma de 1998 ao código do processo penal, não podendo, contudo, estar divorciada do sistema em que se integra.
A cela do recluso constitui o seu domicílio provisório, o seu espaço de liberdade na medida em que a clausura o permite.
Pelos fundamentos expostos e na interpretação, extensiva ou analógica, que acabamos de fazer, consideramos legal e constitucionalmente inadmissível a escuta promovida, que vai assim indeferida.
            (...).».

            8.2. Pugna agora o Digno Magistrado recorrente para que esta Relação, revogando o despacho acabado de transcrever, considere “admissível a escuta por microfone (...) aos reclusos em causa (...) em cela para o efeito cedida pelos Serviços Prisionais, por tal meio de prova ser[4] admissível e imprescindível para a descoberta da verdade.” [conclusão última].

            «Quid juris?»

            Em jeito de observação preliminar, devemos dizer – até por uma questão de lealdade – que no contacto inicial com os autos fomos tentados a fazer recair sobre o recurso a simples rejeição, por manifesta improcedência [art. 420.º, n.º 1, al. a].
            Contudo, «ad cautelam», ponderando que o desencontro de posições que está na sua génese se reconduz ao cabo e ao resto à questão – sempre melindrosa – de dirimir um conflito entre o interesse do Estado (vale dizer: da comunidade em geral) na realização da justiça, vista aqui na concreta dimensão do «jus puniendi», por um lado, e na salvaguarda de um direito pessoal – íamos a dizer “pessoalíssimo” -, qual seja o direito à reserva da intimidade da vida privada [ou até, mais incisivamente, no direito à palavra], por outro, acabámos por eliminar aquela inclinação primeira.

            De todo o modo, chamando aqui à colação, e desde já, a bem ponderada decisão recorrida, limitar-nos-emos ao essencial, começando por convocar o que mais ou menos relacionado com aquele conflito – situado, já se vê, no âmbito geral do processo penal – tem sido, há muito, dito por alguns dos mais consagrados autores.

            Para ele chamou à atenção o Professor Figueiredo Dias, nestes termos:
«Deste modo o processo penal constitui um dos lugares por excelência em que tem de encontrar-se a solução do conflito entre as exigências comunitárias e a liberdade de realização da personalidade individual. Aquelas podem postular, na verdade, uma «agressão» na esfera desta; agressão a que não falta a utilização de meios coercivos (prisão preventiva, exames, buscas, apreensões) e que mais difícil se torna de justificar e suportar por se dirigir, não a criminosos convictos, mas a meros «suspeitos» - tantas vezes inocentes – ou mesmo a «terceiros» (declarantes, testemunhas e até pessoas sem qualquer participação processual).
                Daqui que o interesse comunitário na prevenção e repressão da criminalidade tenha de pôr-se limites – inultrapassáveis quando aquele interesse ponha em jogo a dignitas humana que pertence mesmo ao mais brutal delinquente; ultrapassáveis, mas só depois de cuidadosa ponderação da situação, quando conflitue com o legítimo interesse das pessoas em não serem afectadas na esfera das suas liberdades pessoais para além do que seja absolutamente indispensável à consecução do interesse comunitário. É através desta ponderação e da justa decisão do conflito que se exclui a possibilidade de abuso do poder – da parte do próprio Estado ou dos órgãos a ele subordinados – e se põe a força da sociedade ao serviço e sob o controlo do Direito; o que traduz só, afinal, aquela limitação do poder do Estado pela possibilidade de livre realização da personalidade ética do homem que constitui o mais autêntico critério de um verdadeiro Estado-de-direito.».[5]

            Nesta linha de pensamento, já anteriormente, o Professor Castanheira Neves, abordando «A intencionalidade específica do processo criminal”, afirmara que «propõe-se uma estrutura processual que permita, eficazmente, tanto averiguar e condenar os culpados criminalmente, como defender e salvaguardar os inocentes de perseguições e condenações injustas (...).».
            E continua este autor: «o proc. criminal deverá orientar-se, por outro lado, pela válida conciliação de dois princípios ético-jurídicos fundamentais: o princípio da reafirmação, defesa e reintegração da comunidade ético-jurídica – i. é., do sistema de valores ético-jurídicos que informa a ordem jurídica, e que encontra a sua tutela normativa no direito material criminal -, e o princípio do respeito e garantia da liberdade e dignidade dos cidadãos, i.é., os direitos irredutíveis da pessoa humana. A “ordem” e a liberdade, a comunidade e o indivíduo.».[6]

            Bem mais recentemente, também o Professor Costa Andrade escreveu, citando «duas formulações axiomáticas pedidas a outras tantas e marcantes decisões do BGH alemão, respectivamente, o caso do gravador (1960) e o (primeiro) caso do diário (1964). Segundo a primeira: «não é nenhum princípio da ordenação processual que a verdade tenha de ser investigada a todo o preço». Nos termos da segunda: «o objectivo do esclarecimento e punição dos crimes é, seguramente, do mais elevado significado; mas ele não pode representar sempre, nem sob todas as circunstâncias, o interesse prevalecente do Estado».
            E, mais adiante, o mesmo autor, depois de aludir à superação dos modelos inquisitórios e ao triunfo dos princípios basilares do processo de estrutura acusatória, bem como ao moderno Estado de Direito, que trouxe «consigo uma nova ordenação constitucional assente nos – e orientada para os – direitos fundamentais, maxime a intangível dignidade da pessoa humana (...)», escreve, citando Figueiredo Dias[7]: ««Quando, em qualquer ponto do sistema ou da regulamentação processual penal, esteja em causa a garantia da dignidade da pessoa – em regra do arguido, mas também de outra pessoa, inclusive da vítima - , nenhuma transacção é possível. A uma tal garantia deve ser conferida predominância absoluta em qualquer conflito com o interesse – se bem que, também ele legítimo e relevante do ponto de vista do Estado de Direito – no eficaz funcionamento do sistema da justiça penal.»».[8]

            Não será despiciendo também aqui lançar mão do que, quanto ao tema da prova em processo penal, lembrou o Tribunal Constitucional:[9]
            «(...) no processo penal, vigora o princípio da liberdade de prova, no sentido de que, em regra, todos os meios de prova são igualmente aptos e admissíveis para o apuramento da verdade material, pois nenhum facto tem a sua prova ligada à utilização de um certo meio de prova pré-estabelecido pela lei. E recorda-se que também a busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico.
                É que o Estado, como titular que é do ius puniendi , está interessado em que os culpados de actos criminosos sejam punidos; só tem, porém, interesse em punir os verdadeiros culpados: satius esse nocetem absolvi innocentem damnari – sentenciavam os latinos.
                O estado está, por isso, igualmente interessado em garantir aos indivíduos a sua liberdade contra o perigo de injustiças. Está interessado, desde logo, em defendê-los «contra agressões excessivas da actividade encarregada de realizar a justiça penal» (cf. Eduardo Correia, «Les preuves en droit penal portugais», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, 1967, p.8).
                Existe um dever ético e jurídico de procurar a verdade material. Mas também existe um outro dever ético e jurídico que leva a excluir a possibilidade de empregar certos meios na investigação criminal.
                A verdade material não pode conseguir-se a qualquer preço: há limites decorrentes do respeito pela integridade moral e física das pessoas; há limites impostos pela inviolabilidade da vida privada, do domicílio, da correspondência e das telecomunicações, que só nas condições previstas na lei podem ser transpostos. E existem também regras de lealdade que têm de ser observadas.
                (...)
                Numa síntese aproximativa, pode dizer-se, com Eduardo Correia, que determinada prova é inadmissível «quando a violação das formas da sua obtenção ou da sua produção entra em conflito com os princípios cuja importância ultrapassa o valor da prova livre (cfr. ob. cit., p.40); numa palavra: quando aqueles valores e princípios são lesados «a um tal ponto que as razões éticas que impõem precisamente a verdade material não podem deixar de a proibir) (ob. cit., p. 35).».

            Ora, tendo presentes as transcrições acabadas de fazer, e de outras nos poderíamos valer, a decisão que se impõe no caso «sub judice» não deixará dúvidas: a escuta pretendida é legalmente inadmissível.
            Sem esforço, há-de reconhecer-se que um recluso, pelo facto de se encontrar privado de um direito fundamental – o direito à liberdade -, continua a ser sujeito de direitos. Desde logo, continua a ser titular do direito à reserva da intimidade da vida privada e do direito à palavra (art. 26.º da Lei Fundamental).
O primeiro destes direitos, na falta de uma definição legal do conceito de “vida privada”, entendeu-o o Tribunal Constitucional nos seguintes termos: «o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular.»[10]. O segundo, juntamente com o direito à imagem, expressão típica da autonomia e da identidade pessoal constitucionalmente garantida[11], traduz-se na proibição de registo ou divulgação da palavra sem o consentimento da pessoa.
            Já se vê, assim, que a prova que eventualmente resultasse da escuta pretendida ofenderia claramente, e de modo grosseiro, ambos os direitos em questão, pelo que a mesma se reconduziria, desde logo, à previsibilidade do n.º 8 do art. 32.º da Constituição da República.
            Como bem se observa no despacho recorrido, “ A cela do recluso constitui o seu domicílio provisório, o seu espaço de liberdade na medida em que a clausura o permite.”
 E assim é de facto. A cela, com referência à questão aqui em apreço, não pode deixar de ser vista como o último reduto de liberdade – ainda que de uma liberdade coarctada.
            Ora, no interior desse reduzido espaço o (s) seu (s) ocupante (s) confiarão, legitimamente, que estão a salvo de qualquer intromissão de terceiros na palavra falada, expressão externa da sua interioridade, pelo que a gravação que dela se fizesse não deixaria de se assumir, ainda, como um acto absolutamente desleal.

            8.3. De tudo o que exposto fica, já se vê claramente o sentido da decisão: o despacho recorrido, porque não merecedor de qualquer de censura, é de manter, improcedendo, assim, o recurso interposto.
Assim, haveríamos de findar aqui as nossas considerações. Não o faremos, porém, sem que digamos mais seguinte.

Num crime de extrema gravidade – trata-se de um homicídio - , ocorrido há quase cinco anos (terá sido perpetrado em 07-03-2003], não nos cabe nem tecer quaisquer considerandos críticos sobre a investigação nem reconhecer o seu labor.
            Isto, porém, não nos impede de afirmar as maiores reservas sobre o êxito que pudesse resultar, para a alegada descoberta da verdade, da escuta pretendida.
A final de contas, a investigação possui há muito uma pista que, tanto quanto extraímos dos autos, não terá sido ainda cabalmente explorada. Referimo-nos, já se vê, ao anel de que a vítima terá sido desapossada na altura da sua morte.
            Depois, decorridos dois dias sobre o indiciado homicídio, concretamente em 09-03-2003, foi recolhido, no manípulo interior da porta dianteira, do lado oposto ao lugar do condutor, do BMW da vítima, um vestígio lofoscópico, cujo exame, elaborado em 15-12-2006, permitiu verificar que o mesmo foi produzido pelo dedo polegar da mão esquerda do arguido, o referido J... (fls. 69-79).
            Quer dizer: é legítimo admitir que a escuta que se queria ver autorizada não trouxesse nada de novo à investigação. E, se o trouxesse, inclinamo-nos, pelo que acima já se disse, para que a prova assim obtida não pudesse a final ser julgada válida.

            Não adianta, salvo sempre o devido respeito, o Digno recorrente alegar que a escuta pretendida é consentida pela parte final do n.º 1 do art. 189.º, que se trata, no caso, de investigar um crime “de catálogo” e que a escuta é admissível em relação a outros ilícitos menos graves, conforme decorre da Lei n.º 5/2002[12], de 11-01.
            Ora, se tudo isto é exacto, o que é certo é que a verdade que estas afirmações encerram nada tem que ver com o essencial da questão que aqui enfrentámos e de cuja solução resulta que não é isso que, verdadeiramente, aqui está em causa.


            III – DECISÃO

            A – Nega-se provimento ao recurso.

            B – Sem tributação.
***
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2008
(Telo Lucas)
(Pedro Mourão)
____________________________________________________      

[1] Diploma – já na versão introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-08 – a que pertencem as demais disposições legais que se vierem a referir sem menção de origem.
[2] Numeração repetida de origem.
[3] A avaliar, naturalmente, pelas peças que instruírem o recurso.
[4] Vocábulo omitido, mas que seria intenção do seu autor escrevê-lo, como se deduz do contexto.
[5] Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pp. 59.
[6] Sumários de Processo Criminal, Coimbra 1968, pp. 6-7.
[7] Para uma Reforma, pp. 207.
[8] Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora 1992, pp. 117-119.
[9] Acórdão n.º 578/98, publicado em DR, II Série, de 26-02-1999.
[10] Ac. n.º 355/97, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 37, pp. 7 e ss.
[11] Assim, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pp. 289.
[12] Medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira.