Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
197/15.5TNLSB-A.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: NAVIO
ARRESTO
CRÉDITO MARÍTIMO
EMBARGOS DE TERCEIRO
VENDA DE COISA ALHEIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I- O regime da venda de bens alheios (arts. 892 e ss. do C.C.) apenas se aplica à venda de coisa alheia como própria, excluindo do seu âmbito o caso da representação sem poderes ou do abuso de representação, que encontrará solução no âmbito dos arts. 268 e 269 do C.C.;
II- Não questionando os outorgantes na escritura pública de compra e venda a validade do negócio, não pode um terceiro, que nele não interveio, pô-lo em causa e arguir a respetiva nulidade com fundamento na irregularidade da representação da sociedade vendedora no dito contrato;
 III- De acordo com os arts. 3, nº 1, 8, nº 2, e 9, todos da Convenção Internacional para Unificação de Certas Regras sobre o Arresto de Navios do Mar, assinada em Bruxelas em 10.5.1952 (introduzida no nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 41007, de 16.2.1957), o titular de um crédito marítimo pode requerer o arresto do navio que lhe deu origem, mesmo que esse navio, na data em que é requerida a providência, já não pertença àquele que era seu proprietário na data da constituição do crédito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório:
 A [ …., Lda ] , veio, em 27.8.2015, por apenso aos autos de procedimento cautelar de arresto instaurado por B [ Pescados ……, S.L. ] , contra C [ …….. Company ] , deduzir embargos de terceiro na sequência do decretado arresto do navio “Espadarte”, para garantia do crédito marítimo de € 108.517,53 e juros acrescidos, que foi substituído pela prestação de caução. Invoca a embargante, para tanto e em síntese, que adquiriu à 2ª embargada, C , o referido navio pesqueiro, livre de ónus e encargos, condição essencial para a concretização do negócio, pelo preço de € 200.000,00, por escritura pública celebrada no dia 29.10.2014, pelo que é sua exclusiva proprietária desde então. Mais refere que foi a embargante quem custeou a reparação do navio no valor de € 23.477,69, procedendo ainda a outras intervenções no mesmo até Julho de 2015 no valor total de € 227.854,54. Diz que não tendo qualquer obrigação perante a 1ª embargada e sendo alheia aos negócios celebrados entre as embargadas, deve ser levantado o arresto e ordenada a restituição provisória do navio em questão à embargante, uma vez que este lhe pertence, julgando-se procedentes os embargos.
Recebidos os embargos, foi determinada a suspensão dos termos do procedimento cautelar de arresto, bem como a restituição provisória do navio “Espadarte” à embargante, condicionada à prestação de caução, e ainda a notificação das ali requerente e requerida para contestar (fls. 127 a 130). Foi, entretanto, prestada caução.
Veio contestar os embargos apenas a 1ª embargada, B, invocando, antes de mais, a intempestividade dos mesmos e a caducidade do direito da embargante. Mais defende que na invocada escritura de compra e venda do navio não foi demonstrada a legitimidade da transmitente nem documentalmente comprovadas as características do navio, que não coincidem com os documentos togoleses juntos no arresto. Segundo refere, a pessoa física que compareceu no ato de venda em nome da 2ª embargada carecia de poderes bastantes para a representar naquela escritura pública, pelo que tal venda é nula, nos termos do art. 892 do C.C.. Mas ainda que assim não fosse, o credor pode arrestar um navio a pessoa diversa do devedor,  nos termos da Convenção de Bruxelas de 1952, desde que o direito de sequela seja concedido ao arrestante pela lex fori ou pela Convenção de Bruxelas de 10.4.1926 para a Unificação de Certas Regras relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimos. Pelo que, tendo Portugal aderido à referida Convenção de 1926 (por Carta de 12.12.1931, Diário do Governo, I Série, nº 128, de 2.6.1932), o crédito marítimo em questão é considerado privilegiado, assistindo à 1ª embargada o direito de requerer o arresto do navio. Pede seja levantada a suspensão do arresto e mantido o depósito da caução, sendo declarada a nulidade do contrato de compra e venda do navio “Espadarte” celebrado por escritura pública de 29.10.2014.
Foi proferido despacho saneador que conferiu a validade formal da instância, fixando-se ainda o objeto do litígio e os temas da prova.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, em 17.8.2019, proferida sentença que, julgando improcedente a exceção de caducidade suscitada, conheceu de mérito, concluindo nos seguintes termos: “(...) julgo improcedentes por não provados os presentes embargos de terceiro, deles absolvendo a 1ª Embargada e, consequentemente:
- determino o levantamento da suspensão dos termos da providência cautelar de arresto a correr nos autos principais;
- mantenho o depósito da caução à ordem dos autos;
- declaro a nulidade do contrato de compra e venda  do navio “Espadarte” celebrado por escritura pública no dia 29.10.2014.
Notifique e registe
Custas a cargo da Embargante.”
Inconformada, recorreu a embargante A, culminando as alegações por si apresentadas com as seguintes conclusões que se transcrevem:

A. A Apelante deduziu nos presentes autos embargos de terceiro contra as Apeladas B  e  C, visando o levantamento do arresto sobre a embarcação “Espadarte”, que a aquela adquirira, de boa fé e livre de ónus e encargos na data de 29 de outubro de 2014. 
B. Durante todo o processo negocial e até ao arresto movido nos autos principais, nenhum indício quanto a um eventual vício de falta de legitimidade para a vinculação da sociedade vendedora foi percepcionável pela ora Apelante.
C. Todos os elementos com os quais a Apelante foi confrontada apontam no sentido da plena legitimidade do representante da Apelada C, Eduardo …..  .
D. Tal convicção foi induzida pela análise pelo legal representante da Apelante de uma procuração geral outorgada ao supra indicado Eduardo ….., que inequivocamente seria, à data da celebração do negócio, pessoa com poderes bastantes para vincular a sociedade.
E. Foi essa a perceção da Apelante - como seria de um destinatário normal, que de outro modo não celebraria o negócio em causa – sendo inquestionável, à data da escritura, quem vendeu – quem representou a vendedora tinha poderes para vender.
F. Merece censura a decisão recorrida, na medida em que o Tribunal recorrido tinha todos os elementos probatórios para concluir pela legitimidade de Eduardo ……para vincular a sociedade no negócio, tanto do ponto de vista interno como perante terceiros, jamais sendo possível compreender a venda em causa como sendo de bem alheio.
G. Por requerimento de 15 de Outubro de 2016, a Apelada C procedeu à junção aos autos de embargos de duas atas em língua espanhola, ambas datadas de 12 de Novembro de 2009 e protocolizadas notarialmente em 1 de Dezembro de 2009, sendo que na primeira delas revogou-se a procuração de 02 de Junho de 1998 e na segunda, se deliberou a emissão de uma procuração geral a favor de Eduardo …...
H. A Apelada C juntou os mesmos documentos traduzidos, bem como ata de 5 de janeiro de 2010, outorgando procuração geral a favor de Eduardo ….., em língua espanhola. 
I. Nenhum dos três documentos foi impugnado, ou sequer manifestada oposição à sua junção, pelo que viria a mesma viria a ser expressamente admitida por Douto Despacho de 17 de novembro de 2016.
J. Por requerimento de 23 de novembro de 2016, a 2ª Embargada juntou a tradução da procuração de 5 de janeiro de 2016, que, uma vez mais, não foi impugnada.
K. Por Douto Despacho de 12 de dezembro de 2016, foi admitida a sua junção.
L. É forçoso concluir que foi produzida prova documental demonstrativa de que a procuração que determinava a assinatura de uma pessoa do “grupo A” e outra do “grupo B”, in casu, Eduardo …. e José ….., já não estava vigente à data da aquisição do navio arrestado pela Recorrente.
M. Ocorre que, o Tribunal a quo ignorou tal prova documental, já que, da leitura do aresto recorrido, não se vislumbra qualquer referência expressa à mesma, sendo todo raciocínio empreendido pela Primeira Instância logica e juridicamente dependente da vigência da procuração de 1998.
N. Ficou cabalmente demonstrado que, aquando da outorga da escritura pública de compra e venda do navio “Espadarte”, que também se encontra nos autos e como documento autêntico que é faz prova plena da matéria nela referida, o representante da Apelada Espadarte tinha poderes bastantes para a vincular naquele ato.
O. Mesmo que ocorresse alguma insuficiência de poderes de representação da sociedade, o regime de venda de bens alheios plasmado no art. 892.º do CC não seria aqui aplicável, mas sim o do regime de vinculação das sociedades comerciais, que protege terceiros de boa-fé.
P. A irregular representação da sociedade num determinado negócio jurídico é inoponível a terceiros, não podendo ser por estes invocada, pelo que, ainda que a maioria dos gerentes ou administradores – ou o número previsto no pacto social para o efeito – não intervenha no negócio, este é plenamente eficaz e vincula a sociedade.
Q. A procuração a favor de todos os integrantes do “grupo A” ( Jose …. e Alfredo …..) foi revogada, conforme documento notarial junto aos autos, o que significa que os poderes de representação pertenciam a qualquer dos membros do grupo “B”, do qual Eduardo ….. era parte.
R. Em face do exposto, deverá ser aditado um ponto “2” à matéria de facto provada, com o seguinte teor: «A procuração referida no ponto “1” foi revogada por deliberação de 12/11/2009, data em que foi deliberado emitir uma procuração geral a favor de Eduardo ……..».
S. Deverá ser aditado um ponto “3” à matéria de facto provada, com o seguinte teor: «Por deliberação de 5/1/2010 foi emitida Procuração Geral pela Segunda Embargada favor de Eduardo ….., em cumprimento da deliberação supra.».
T. Na sequência do aditamento dos pontos “2” e “3”, deverá ser alterado o facto provado n.º 4, eliminando-se a passagem “cessando (...)”, até final.
U. Tudo demonstrando que não estamos diante de uma situação de “venda de bens alheios” o que altera na sua totalidade, os fundamentos e conclusões da douta Sentença Recorrida.”
Conclui, em suma, pela revogação da sentença recorrida.
Em contra-alegações, a recorrida e 1ª embargada, B., defende o acerto do julgado, concluindo nos seguintes termos:

1. A douta Sentença recorrida é modelar e inimpugnável, não padecendo dos vícios que a Apelante lhe aponta.
2. A Apelante alicerça as suas alegações, em matéria de facto, na suficiência dos poderes de Eduardo …. para a celebração da escritura pública de compra e venda do navio, em representação da C, e, em matéria de Direito, na submissão desta às normas do direito societário português, não obstante ser uma pessoa colectiva de direito panamiano.
3. As alegações da Apelante radicam em duas insanáveis contradições:
- por um lado, entende como provada que a procuração de 2 de Junho de 1998, foi revogada em 5 de Janeiro de 2010, mas admite como provado que, em 25 de Fevereiro de 2015, José …. renunciou aos poderes que aquela primeira procuração lhe conferia;
- por outro lado, conclui ter sido feita prova de que a procuração de 2 de Junho de 1998 já estaria totalmente revogada em 29 de Outubro de 2014, mas defende que essa mesma procuração de 1998, afinal ainda se mantinha válida para Eduardo …. e sua Mulher.
4. A Apelante tampouco logrou provar que a venda do “ESPADARTE” tivesse sido feita por quem tinha, por si só, legitimidade bastante para representação da sociedade vendedora.
5. Pelo contrário, a Primeira Embargada provou que os documentos representativos das duas supostas deliberações sociais de Novembro de 2009, bem como da deliberação pretensamente tomada na reunião de Janeiro de 2010, não podiam produzir qualquer efeito.
6. Pelas actas das duas alegadas assembleias gerais, de 12 de Novembro de 2009, a Embargante propugna que a C teria deliberado retirar a José …. e a seu Pai os poderes que antes lhes haviam sido atribuídos, conjuntamente com Eduardo … e sua Mulher.
7. Porém, segundo José …., sócio da referida sociedade entre 1998 e 2015, nunca os sócios da C reuniram com semelhante ordem de trabalhos, além de que ele próprio nunca foi convocado para essas pretensas assembleias gerais, nem foi notificado de deliberações tomadas à sua revelia.
8. De resto, a procuração de 2 de Junho de 1998 foi conferida também no interesse de José …., pelo que nunca poderia ter sido revogada sem a sua concordância.
9. A reunião de direcção da C., supostamente realizada em 5 de Janeiro de 2010, não passa de uma fantasia, porquanto José ….., sócio e com poderes de gerência daquela sociedade entre 1998 e 2015, declarou não conhecer os três homens que nela intervêm, pois jamais foram sócios, directores ou desempenharam qualquer função na empresa.
10. Portanto, muito bem fez a Mma. Juiz a quo ao reconhecer que, à data de celebração da escritura de venda do navio, eram válidos apenas os poderes de representação da vendedora C outorgados, em 2 de Junho de 1998, conjuntamente, a José ….. ou seu Pai, por um lado, e a Eduardo …. ou sua Mulher, por outro.
11. De resto, a validade da procuração junta por Eduardo …. aquando da venda do navio mereceu à própria Notária reservas, que deixou expressas na própria escritura, o que ficou dado como assente.
12. A Henrique ….. pareceu que Eduardo ….. tivesse faculdades suficientes para outorgar a escritura de compra e venda do navio em nome da C.
13. Esta testemunha reconheceu que a validade da procuração não lhe suscitara qualquer cuidado ou dúvida, até porque sabe ser prática corrente no Panamá serem outorgadas procurações com poderes de gerência a favor dos proprietários das sociedades, sendo esses documentos praticamente todos iguais. Para além disso, a sua principal preocupação foi verificar que a cópia por si recebida por correio electrónico correspondia ao original posteriormente exibido.
14. Só em Fevereiro de 2015 é que José …. renunciou aos poderes de gerência que exercia desde 1998, ininterruptamente e em conjunto com Eduardo …., sem que, entretanto qualquer vicissitude os tivesse alterado, suspendido ou limitado e sem que houvesse outras procurações que concorressem ou se sobrepusessem a essa de Junho de 1998.
15. A renúncia aos poderes ocorreu na sequência do arresto do navio “ESPADARTE” pelo Tribunal Marítimo de Lisboa e de ter proposto em Espanha a acção principal, cuja instância se encerrou mediante transacção nos autos, em que José Ben Ínsua acordou vender a participação social que tinha na C e renunciar a todos os poderes que por esta lhe haviam sido conferidos em 2 de Junho de 1998.
16. Até Fevereiro de 2015 nunca existiu qualquer instrumento jurídico que permitisse a Eduardo …. assinar sozinho a venda do navio “ESPADARTE”.
17. Como a procuração de 2 de Junho de 1998 se manteve plenamente válida e eficaz até Fevereiro de 2015, deve toda a factualidade in casu ser interpretada e julgada apenas e só à luz de tal documento, como bem fez o tribunal recorrido.
18. Aquando da celebração da escritura pública de compra e venda, o “ESPADARTE” não estava livre de ónus e encargos, pois estava arrestado à ordem do Tribunal Marítimo de Lisboa.
19. Donde se conclui que dessa escritura pública constam falsas declarações, dolosamente proferidas por Eduardo Rivas Villares, que bem conhecia o arresto que sobre a embarcação impendia.
20. A compradora A., aqui Apelante, tinha também pleno conhecimento de que o navio estava então arrestado e de que era falsa a declaração da sua venda livre de ónus e encargos, tanto assim que até foi quem pagou a José ….. o montante que possibilitou o levantamento do arresto, para além das relações que o seu representante legal mantinha com Eduardo … e das informações de que dispunha sobre o “ESPADARTE”.
21. Tampouco pode a Apelante, enquanto compradora do navio, invocar a sua boa fé no tocante à ilegitimidade do procurador da vendedora, dado estar perfeitamente ao corrente da existência e validade da procuração que mandatava José …. e Eduardo ….. para a representação conjunta da C.
22. A Mma. Juiz a quo aplicou correctamente o regime civil da venda de bens alheios, em virtude da falta de legitimidade de Eduardo …. para intervir na escritura em representação da sociedade proprietária do navio.
23. Que a matéria dos presentes autos se subsuma à previsão do artigo 260º do CSC, não se coaduna com a realidade dos factos, nem com a correcta interpretação das pertinentes disposições legais.
24. Ao abrigo das normas de conflitos e de determinação da competência do Ordenamento Jurídico português, neste caso é à lei panamiana que compete regular, entre outros aspectos, a representação e vinculação da C.
25. Mas ainda que à referida sociedade panamiana se pudesse aplicar o direito societário português, no que não se concede, nunca seria competente o artigo 260º do CSC, porquanto este se destina a sociedades por quotas e não a anónimas, além de que é exclusivamente aplicável aos actos dos gerentes e não aos dos procuradores, acrescendo ainda que a ratio legis desta disposição legal tampouco permite a interpretação que dela faz a Apelante.”
O recurso foi recebido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Na perspetiva de que a apelação poderia vir a proceder, pelo menos em parte, foram as partes convidadas a pronunciar-se sobre as questões que ficaram na sentença prejudicadas pela solução dada ao litígio, nos termos do art. 665, nº 3, do C.P.C., pronunciando-se a apelante A, e a apelada B, respetivamente a fls. 724 e 726 a 728.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***
II- Fundamentos de Facto:
A decisão da 1ª instância fixou como provada a seguinte factualidade:
1) Em 2.6.1998, a Assembleia Geral de Accionistas da C outorgou procuração geral ilimitada a favor de duas partes A e B, a qual será assinada conjuntamente por uma das pessoas do grupo A com uma do grupo B, sendo o A integrado por José …. e Alfredo … e o B por Eduardo …. e Asuncion ….., tudo nos moldes melhor discriminados na acta exarada e formalizada em escritura pública nº 3050 no 9º Cartório do Círculo de Panamá, e cujos termos traduzidos para a língua portuguesa, constantes a fls 263 a 268 aqui se dão por reproduzidos na íntegra.
2) Em 29.10.2014, por escritura pública lavrada em cartório notarial na cidade do Porto, a 2ª Embargada, representada por Eduardo ….., vendeu à ora Embargante o navio pesqueiro denominado “Espadarte”, pelo valor de 200.000€, livre de ónus e encargos, tudo nos termos enunciados a fls 19 a 21, aqui dados por reproduzidos na íntegra.
3) No acto de escritura em apreço, não foi exibida documentação idónea a confirmar a legitimidade do transmitente, nem as características do navio.
4) Em 25.2.2015, por escritura pública, José …. renunciou à procuração geral ilimitada conferida em 2.6.1998, pela Assembleia Geral de Accionistas da C, cessando a sua qualidade de procurador conjunto da referida sociedade, conforme se alcança de documento exarado e traduzido para a língua portuguesa, junto a fls 284 a 286, aqui dado por reproduzido na íntegra.
5) Por decisão proferida em 6.5.2015, nos autos principais, foi decretada o arresto do navio “Espadarte” para garantia do crédito de 108.517,53€ da ora 1ª Embargada.
***   
III- Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com as conclusões acima transcritas em causa está apreciar:
- da impugnação da matéria de facto;
- da subsunção jurídica (da propriedade do navio e do direito de sequela).
*
Apreciando.
Como decorre linearmente das conclusões, a discordância da apelante dirige-se, antes de mais, à matéria de facto, acima descrita, que foi fixada em 1ª instância.
Em seu entender, devem ser aditados dois novos factos e alterado o ponto 4 julgado assente, por forma a comprovar-se, em suma, que Eduardo …. tinha poderes para representar a 2ª embargada na escritura pública, celebrada em 29.10.2014, referente à venda do navio pesqueiro denominado “Espadarte” por aquela 2ª embargada à embargante.
Argumenta, ainda, que mesmo que ocorresse alguma insuficiência de poderes de representação da sociedade, não seria aplicável o regime da venda de bens alheios previsto no art. 892 do C.C., mas o regime de vinculação das sociedades comerciais, que protege terceiros de boa-fé, na medida em que a irregular representação da sociedade num determinado negócio jurídico é inoponível a terceiros.
A recorrida B, por sua vez, defende o acerto do julgado, em matéria de facto e de direito.
Antes de apreciar do recurso quanto à matéria de facto, cumpre tecer algumas considerações preambulares.
Em 1ª instância, entendeu-se decisivo para a apreciação da causa apurar dos poderes de Eduardo …. de representação da embargada C na venda do navio “Espadarte”, estabelecendo-se este como o primeiro dos temas de prova, seguindo-se as condições de aquisição do navio pela embargante, o desconhecimento por esta de qualquer ónus sobre o mesmo e da sua atual propriedade (cfr. despacho de fls. 197 a 199).
Na sentença, decidiu-se pela improcedência dos embargos de terceiro, nos seguintes termos: “(…) Da prova produzida nos autos resultou demonstrado ter o navio “Espadarte” sido vendido pela 2ª Embargada à Embargante, por escritura pública lavrada em 29.10.2014, livre de ónus e encargos. Assim como resultou provado que a transmitente se fez representar por Eduardo …., sem que tenha sido possível no acto confirmar a sua legitimidade, bem assim como as características do navio, por virtude de não ter sido exibido à Srª Notária os documentos para o efeito.
Por seu turno, foi igualmente dado por assente que por deliberação tomada em assembleia geral de accionistas da 2ª Embargada, exarada em acta datada de 2.6.1998, foi outorgada procuração geral ilimitada a favor de duas partes A e B, a qual será assinada conjuntamente por uma das pessoas do grupo A com uma do grupo B, sendo o A integrado por José …. e Alfredo …. e o B por Eduardo ….. e Asuncion ….. E em 25.2.2015, José ….. renunciou aquela procuração, cessando a sua qualidade de procurador daquela empresa.
Significa isto, em suma, que de acordo com deliberação da 2ª Embargada, datada de 2.6.1998, esta sociedade se fazia representar e se obrigava perante terceiros pela assinatura conjunta de dois procuradores, nos moldes escalpelizados na acta lavrada em escritura pública, tendo José …. deixado de representar a C em 25.2.2015, por renuncia pessoal aos poderes que lhe haviam sido conferidos societariamente. Donde, à data da escritura de compra e venda do navio, em 29.10.2014, ainda estava integralmente em vigor a deliberação da sociedade C relativa à sua representação conjunta por dois procuradores, a saber José … ou Alfredo …. (em representação do grupo A) e Eduardo …. ou Asuncion ….. (em nome do grupo B). Ora, na celebração do negócio de venda do “Espadarte” à Embargante no cartório notarial, a 2ª Embargada apenas se fez representar pelo procurador do grupo B – Eduardo …., não estando presente, nem se fazendo representar o grupo A em nome de José …..ou Alfredo …...
Portanto, atento o teor da deliberação de 2.6.1998, é irrefutável não dispor o procurador Eduardo ….. poderes bastantes para intervir na transacção, em representação da 2ª Embargada, como vendedora na escritura pública de 29.10.2014.
Importa, por conseguinte, apurar os corolários decorrentes de algumas discrepâncias verificadas na descrição das características do navio, exaradas na escritura de venda, bem assim como da falta de legitimidade do procurador presente no acto, por preterição da representação conjunta da empresa de acordo com a deliberação exarada em acta, então vigente.
No que tange às descoincidências na descrição das características do navio “Espadarte” enunciadas na escritura de venda e as anotadas no auto de arresto, conformes com o certificado de registo e demais documentação, as mesmas divergem e cingem-se ao comprimento fora-a-fora e à potência do motor. No entanto, revela-se uníssono, em ambos os actos, o conjunto de a identificação do navio, pelo que se afigura inócuo as assinaladas diferenças para efeitos de validade do negócio.
Contudo, a mesma conclusão já não se afigura sustentável a propósito da falta de legitimidade por si só do procurador da 2ª Embargada para, em nome desta, vincular a empresa na transmissão de propriedade do navio a terceiro.
Face à omissão no referido contrato de compra e venda firmado entre a Embargante e a 2ª Embarda da eleição da lei aplicável ao diferendos dele emanados, deve reger a lei com conexão mais estreita ao contrato em apreço, ex vi do art 4 da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (80/934/CEE). Destrate, dado o local onde o contrato foi firmado e onde o navio se encontrava à data da respectiva assinatura, aplica-se a lei portuguesa, à luz do critério supra elencado.
Ora, estatui o abrigo do art 892º do C Civ ser nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar.
Por conseguinte, ao abrigo da disposição supra especificada, impõe-se declarar a nulidade do contrato de compra e venda do navio “Espadarte”, assinado em 29.10.2014, entre a Embargante e a 2ª Embargada, por não esta última devidamente representada na outorga da escritura já que esta empresa se obrigava pela assinatura conjunta de dois procuradores.
E nessa medida, dispensando-se a análise das demais questões suscitadas nos autos, improcedem os presentes embargos e, consequentemente, absolve-se a 1ª Embargada, com todos os corolários legais daí emanados.(…).”
Com o devido respeito, não subscrevemos tal construção jurídica.
Como vimos, a pretensão da embargante, A , ora apelante, baseia-se na propriedade do navio arrestado a que a 1ª embargada, B, opõe a nulidade do contrato de compra e venda respetivo por força da indevida representação da 2ª embargada, C, vendedora no negócio, invocando o art. 892 do C.C., posição que veio a ser seguida pelo Tribunal a quo.
Tal como defende a 1ª embargada e se entendeu na sentença recorrida, perante a omissão, no contrato de compra e venda em questão, quanto à lei aplicável ao mesmo, deve considerar-se a do país com o qual apresente uma conexão mais estreita, de acordo com o art. 4 da Convenção Sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, aberta a assinatura em Roma em 19.5.1980 (80/934/CEE). Assim, e conforme se concluiu, atento o lugar onde se celebrou o contrato (Porto) e a localização do navio à data da outorga da respetiva escritura pública (segundo as partes, estaria em Peniche), será de aplicar a lei portuguesa.
Ora, independentemente do concreto regime jurídico de vinculação da sociedade panamiana C, a verdade é que a embargante põe, afinal, em causa o contrato de compra e venda celebrado na validade da procuração que habilitou a pessoa física, Eduardo …., que, na respetiva escritura pública, se apresentou a representar aquela sociedade vendedora.
Na verdade, de acordo com o teor da escritura pública de 29.10.2014, a fls. 19 a 21, referida em 2 supra, o mencionado Eduardo ….. outorgou a venda “na qualidade de procurador e em representação da sociedade de direito panamiano denominada C, com domicílio na Cidade do Panamá, na República do Panamá (…), no uso de poderes bastantes que lhe foram conferidos por procuração que arquivo em fotocópia.”
Já na parte final da referida escritura pública consta a menção aludida no ponto 3 supra, nos seguintes termos: “(…) Adverti, ainda, os outorgantes que não me foi possível confirmar a legitimidade do transmitente, bem como as características do navio, em virtude de não me terem sido exibidos documentos para esse efeito.”
Interpretando os excertos transcritos, o indicado Eduardo …. interveio no ato negocial como representante da vendedora através de procuração que não terá suscitado dúvidas à Srª Notária e que esta considerou conferir-lhe os necessários poderes, não logrando, todavia, a mesma verificar a legitimidade do transmitente nem as características do navio, por não lhe ter sido fornecida a documentação correspondente (eventualmente a relativa ao registo do navio pesqueiro a favor da vendedora C e/ou outros respeitantes à embarcação).
Ou seja, a 1ª embargada/recorrida invoca a irregular representação da sociedade no dito contrato, porque baseada em procuração inválida, uma vez que considera habilitante a que fora outorgada em 2.6.1998 (procuração geral ilimitada a favor de duas partes, A e B, obrigando à assinatura conjunta de uma das pessoas de cada parte em qualquer dos atos que enuncia – cfr. ponto 1 supra e fls. 263 a 268).
Por sua vez, a 2ª embargada, C, juntara aos autos em 22.6.2016 (fls. 229 e ss., com tradução a fls. 352 a 363, 367 a 378 e 405 a 432), instrumentos públicos respeitantes à revogação da aludida procuração de 1998 e outorga de nova procuração a favor do referido Eduardo …., com datas de 12.11.2009 e 5.1.2010.
Vejamos, então, qual o regime jurídico aplicável.
Sobre a diferença entre representação e mandato, referem Pires de Lima e Antunes Varela: “(…) O mandato é um contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra (cfr. art. 1157º). A representação, diversamente, traduz-se na realização de negócios jurídicos em nome de outrem, em cuja esfera jurídica se produzem directamente os respectivos efeitos. Pode haver mandato sem representação, quando o mandatário actua em nome próprio, embora por conta do mandante (cfr. arts. 1180º e segs. Do Cód. Civil e arts. 266º e segs. Do Cód. Comercial), e pode haver representação sem mandato, como sucede na representação legal e pode suceder na representação voluntária, a qual, de resto não tem origem no mandato mas sim num negócio unilateral designado procuração (art. 262º). Cfr. Ferrer Correia, A procuração na teoria da representação voluntária, in, Estudos Jurídicos, Coimbra, II, 1969, págs. 1 e segs. A representação voluntária tanto pode existir autonomamente (A, por exemplo, envia uma procuração a B, antes de com ele celebrar um contrato que vai servir de base ao uso dos poderes representativos), como estar coligada a um contrato de mandato ou a um contrato de outro tipo (v. g., a um contrato de trabalho).”([1])
Assim, a procuração constitui um negócio jurídico unilateral mediante o qual alguém atribui voluntariamente a outrem poderes de representação, produzindo-se os efeitos na esfera jurídica do primeiro (cfr. arts. 258 e 262 do C.C.), enquanto o mandato constitui um contrato bilateral pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra (art. 1157 do C.C.).
O que a recorrida e 1ª embargada, B., discute, por isso, é a validade da procuração com base na qual o referido Eduardo …. terá representado a sociedade 2ª embargada, C, na escritura pública de compra e venda, contestando que esta sociedade tenha validamente outorgado qualquer nova procuração a favor daquele e revogado a anterior de 2.6.1998. Logo, em seu entender, este terá atuado sem efetivos poderes para o ato.
Sendo essa a pedra de toque da defesa da 1ª embargada, não se nos afigura estar em causa a aplicação do citado art. 892 do C.C. referente à venda de bens alheios.
Dispõe este normativo – constante da Secção IV (Venda de bens alheios) do Capítulo I (Compra e venda) do Título II (Dos Contratos em especial) do Livro II (Direito das Obrigações) do Código Civil – que: “É nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso.”
Estabelece ainda o art. 904 do C.C., último preceito da mesma Secção, que: “As normas da presente secção apenas se aplicam à venda de coisa alheia como própria.”
Da conjugação destes dois preceitos decorre, assim, a nosso ver, que a ilegitimidade a que se refere o art. 892 do C.C. é a que advém da circunstância do alienante não ser proprietário do bem alienado, agindo como se o fosse.
Não ignoramos a posição minoritária sobre a interpretação deste normativo sustentada por Pedro Romano Martinez([2]), no sentido de que: “(…) Considera-se que há venda de bens alheios sempre que, na qualidade de vendedor, alguém celebra um contrato de compra e venda sem legitimidade, por não ser titular do direito a que se reporta a alienação ou por agir sem representação. (…) O vendedor não tem a titularidade do direito que pretende alienar se, por exemplo, não é o proprietário dos bens vendidos e, por conseguinte, falta-lhe legitimidade para celebrar um contrato mediante o qual pretenda vender o direito de propriedade sobre tais bens. Também não tem legitimidade quem carece de poderes de representação; se alguém age em representação de outrem, mas sem lhe terem sido conferidos poderes de representação, estar-se-á perante uma situação de falta de legitimidade, abrangida na venda de bens alheios. (…).”
No entanto, a generalidade dos autores entende que o regime da venda de bens alheios (arts. 892 e ss. do C.C.) apenas se aplica à venda de coisa alheia como própria, excluindo do seu âmbito o caso da representação sem poderes ou do abuso de representação, que encontrará solução no âmbito dos arts. 268 e 269 do C.C., como bem se assinalou no Ac. da RL de 29.6.2017([3]) que aborda desenvolvidamente o tema, com abundante citação de doutrina e jurisprudência.
Segundo Menezes Leitão, citado no referido aresto: “(…) de acordo com o disposto no art. 904, o regime da venda de bens alheios também não se aplica se o vendedor não procede à venda da coisa como própria mas a vende como alheia, mesmo que não tenha legitimidade para o fazer. Assim, se alguém vende um prédio em nome de outrem, sem poderes para o fazer (art. 268), ou abusa dos seus poderes de representação, no caso em que a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso (art. 269), o contrato é ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário se este não o ratificar, e nunca produz efeitos em relação ao representante, por este não ser parte no negócio. Assim, o regime da venda de bens alheios, instituído nos arts. 892 e ss, apenas se poderá aplicar se for vendida como própria uma coisa alheia específica e presente, fora do âmbito das relações comerciais. Em todos os outros casos, não poderá ser aplicado o regime da venda de bens alheios.”([4])
Do mesmo modo, Raul Ventura refere sobre a venda de bens alheios: “(…) O Código recorta ainda a figura da venda de bens alheios em dois outros preceitos: o art. 893º, que remete para o regime de venda de coisas futuras a venda de bens alheios se as partes os considerarem nessa qualidade; o art. 904º, segundo o qual as normas dessa acção apenas se aplicam à venda de coisa alheia como própria. A venda de coisa alheia como alheia ou é encarada como venda de bens futuros, ou resulta da falta de atribuição dum poder de disposição, ou consiste pura e simplesmente numa aberta tentativa de venda de coisa que não pertence ao vendedor. A venda feita, em nome do vendedor, por pessoa desprovida de poderes de representação ou com abuso de tais poderes cai sob os arts. 268º e 269º [do CC…]. (…).”([5])
Também Baptista Lopes refere a propósito da nulidade da venda de bens alheios: “(…) O que se disse e o que se vai dizer neste capítulo apenas se aplica à venda de coisa alheia como própria (art. 904º).
Assim, se o procurador vender bens não mencionados no seu mandato, não há venda de coisa alheia, porque o mandatário não vende a coisa como sua(); apenas cometerá um abuso de representação: se o comprador conhecia ou devia conhecer o abuso, o negócio é ineficaz em relação ao representado, a menos que este o ratifique; no caso contrário, o negócio considera-se validamente celebrado, sem prejuízo da responsabilidade que pode incidir sobre o procurador – art. 269º. (…).”([6])
Assertivamente, sintetizou-se ainda no Ac. do STJ de 3.10.2013([7]): “(…) importa ter presente que as normas relativas à venda de bens alheios - artºs 892º e sgs CC - “apenas se aplicam à venda de coisa alheia como própria”, como expressamente determina o artº 904º CC. Significa isto, portanto, que a venda de coisa alheia de que trata esta secção só abrange a hipótese de o vendedor alienar em nome próprio um direito de que outro é titular, sempre que o vendedor careça de legitimidade para realizar a venda (artº 892º) [..]. Ora, no caso presente é certo que se verifica este último pressuposto - a falta de legitimidade do 2º réu (vendedor) para concluir o negócio - mas não o primeiro, visto que, como resulta dos factos apurados, ele procedeu à venda em nome alheio (ainda que sem poderes para o efeito, por virtude da falsidade da procuração). Por consequência, independentemente de tudo quanto já se referiu, está em definitivo afastada a hipótese de, por aplicação do regime previsto no artº 892º - “É nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso” - ser declarada a nulidade do negócio ajuizado, como os recorrentes pretendem, e ordenada a restituição do alegadamente prestado, nos termos do artº 289º, nº 1, CC. (…).”
Por sua vez, concordamos também que a nulidade da venda de bens alheios prevista no art. 892 do C.C. apenas se refere às relações entre o vendedor e o comprador da coisa alheia, sendo a venda ineficaz relativamente ao verdadeiro proprietário([8]).
Ora, na situação em análise não está posta em causa a titularidade do navio em apreço por parte da vendedora C à data da escritura pública de compra e venda, mas apenas a qualidade daquele que então celebrou em seu nome o respetivo contrato, o referido Eduardo ….  .
Tal significa que a questão se coloca precisamente na perspetiva da falta de poderes de representação do mencionado Eduardo ….. (art. 268 do C.C.), e não enquanto venda de bens alheios (art. 892 do C.C.), não sendo aplicável este último regime.
De acordo com o art. 268 do C.C.: “1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
2. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro.
3. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito.
4. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante.”
Decorre, pois, deste normativo que o negócio pode ser ratificado por aquele em nome de quem foi celebrado, e que o outro outorgante poderá pô-lo em causa enquanto não houver ratificação exceto se conhecia a falta de poderes do representante à data do negócio. Será, pois, ineficaz com relação àquele em nome de quem foi celebrado se este o não ratificar.
Revertendo para o caso em análise, verificamos, desde logo, que ainda que o indicado Eduardo …. tenha atuado, em 29.10.2014, na escritura pública de compra e venda do navio “Espadarte”, sem poderes de representação da vendedora C, nenhum desacerto resulta dos autos quanto à validade do negócio entre esta sociedade vendedora e a aqui embargante B , outorgante compradora na referida escritura pública. Na verdade, a vendedora C, aqui 2ª embargada, defendeu no procedimento de arresto que vendeu o navio em questão à aqui embargante em 29.10.2014, o que confere precisamente com a defesa sustentada por esta nos presentes embargos de terceiro, em que sustenta tê-lo adquirido àquela na referida data.
Quer isto significar que não questionando os outorgantes na referida escritura de compra e venda a validade do negócio, de duas uma: ou o representante da sociedade vendedora C tinha, afinal, poderes para o ato, ou, se não os tinha, aquela sociedade ratificou o negócio.
O que não pode é a 1ª embargada B, que não interveio no respetivo contrato, pô-lo aqui em causa nem arguir a respetiva nulidade ao abrigo do art. 892 do C.C..
Donde, nestas circunstâncias forçoso é concluir ser irrelevante discutir na causa a regularidade da representação da sociedade vendedora no dito contrato de compra e venda, uma vez que nenhuma das partes nele intervenientes – a embargante e a 2ª embargada – questiona a sua validade, nos termos e para os efeitos previsto no art. 268 do C.C., só às mesmas assistindo, como vimos, legitimidade para o fazer.
Fica, deste modo, forçosamente prejudicado o interesse na apreciação da impugnação da matéria de facto, e qualquer discussão sobre a idoneidade das procurações juntas aos autos ou vinculação da sociedade panamiana no negócio, pois o elenco dos factos fixados em 1ª instância não nos pode conduzir, por si só, à conclusão de que a compra e venda é inválida e de que não operou a transmissão da propriedade sobre o navio “Espadarte” da 2ª embargada, C, para a ora embargante A.
Acresce, de resto, que é inteiramente desconhecida nos autos qual a procuração que foi apresentada à Notária que celebrou a respetiva escritura pública em 29.10.2014.
Em suma, é de concluir que ocorreu a transmissão da propriedade do navio pesqueiro a favor da embargante A.
Sucede que, ainda assim, não se mostra assegurado o sucesso dos presentes embargos de terceiro.
Com efeito, argumenta ainda a 1ª embargada, B, que os embargos devem ser julgados improcedentes, sendo levantada a suspensão do arresto e mantido o depósito da caução, uma vez que o credor pode arrestar um navio a pessoa diversa do devedor, nos termos da Convenção de Bruxelas de 1952, desde que o direito de sequela seja concedido ao arrestante pela lex fori ou pela Convenção de Bruxelas de 10.4.1926 para a Unificação de Certas Regras relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimos. Pelo que, tendo Portugal aderido à referida Convenção de 1926, o crédito marítimo em questão é considerado privilegiado, assistindo à 1ª embargada o direito de requerer o arresto do navio.
Após o convite dirigido às partes nos termos do art. 665, nº 3, do C.P.C., a apelada/1ª embargada reedita, no essencial, a sua pretensão no requerimento de fls. 726 a 728, não se pronunciando em concreto a apelante sobre o tema no seu requerimento de fls. 724.
No procedimento cautelar, como acima referimos, foi decretado o arresto do navio “Espadarte” “para garantia do crédito marítimo de € 108.517,53 acrescido de juros”. Justificou-se a decisão à luz do art. 1, nº 1, al. k), e do art. 8, ambos da Convenção Internacional para Unificação de Certas Regras sobre o Arresto de Navios de Mar, assinada em Bruxelas em 10 de Maio de 1952.
A aqui embargante não contestou no seu requerimento inicial a natureza do crédito, limitando-se a referir que não tem qualquer obrigação perante a 1ª embargada, sendo alheia aos negócios celebrados entre as embargadas.
Ainda que venha a ser outro o entendimento sobre a natureza do crédito no processo principal entretanto instaurado em Espanha (como veio a sugerir a 2ª embargada, C, em audiência de julgamento – cfr. fls. 461 e ss.), tal não releva, salvo o devido respeito, nos presentes autos de embargos de terceiro onde a questão nem sequer foi suscitada pelas partes nos articulados, como seria mister, ou levada aos temas de prova. Ou seja, se tal matéria é agora discutida na causa principal e vier a concluir-se diversamente sobre a natureza do crédito, só então essa decisão poderá interferir com o arresto decretado.
Por ora, e no âmbito dos presentes autos, vale o decidido em tal matéria (com trânsito em julgado) no procedimento de arresto, isto é, que estamos perante um crédito marítimo, posto que tal não foi aqui, como vimos, oportunamente posto em causa.
De resto, nem a questão veio a ser invocada no âmbito do recurso.
Apreciemos, então, do direito reclamado pela 1ª embargada (arrestante) sobre o navio ainda que não pertencente à devedora 2ª embargada.
Dispõe o art. 3, nº 1, da Convenção Internacional para Unificação de Certas Regras sobre o Arresto de Navios do Mar, assinada em Bruxelas a 10 de Maio de 1952 (introduzida no nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 41007, de 16.2.1957), que: “Sem prejuízo das disposições do parágrafo 4) e do artigo 10.º, qualquer autor pode fazer arrestar, tanto o navio a que o crédito se reporta, como qualquer outro pertencente àquele que na data da constituição do crédito marítimo era proprietário do navio a que este crédito se refere, ainda mesmo quando o navio arrestado se encontre despachado para viagem, mas nenhum navio poderá ser arrestado por algum dos créditos previstos nas alíneas o), p) ou q) do artigo 1.º, salvo o próprio navio a que respeita a reclamação.”
Por sua vez, o nº 4 desse mesmo art. 3 estabelece que: “No caso de fretamento de navio, com transferência de gestão náutica, quando só o afretador responder por um crédito marítimo relativo a esse navio, o autor poderá fazer arrestar o mesmo navio ou outro pertencente ao afretador, com observância das disposições da presente Convenção, mas nenhum outro navio pertencente ao proprietário poderá ser arrestado por tal crédito marítimo.” Como consta do final do preceito, este nº 4 “aplica-se igualmente a todos os casos em que pessoa diversa do proprietário é devedora de um crédito marítimo.”
De acordo ainda com o nº 2 do art. 8 da mesma Convenção de Bruxelas de 1952, “Um navio que arvore a bandeira de um Estado não contratante pode ser arrestado num dos Estados Contratantes, em virtude de um dos créditos enumerados no artigo 1.º ou de qualquer outro crédito que autorize o arresto segundo a lei deste Estado”, sendo que o art. 1º da Convenção define como se constitui o crédito marítimo.
Já o art. 9 da referida Convenção dispõe que: “Nenhuma das disposições da presente Convenção se deve entender como atribuindo direito a uma acção que, fora das suas estipulações, não existiria, segundo a lei a aplicar pelo tribunal a que o litígio está afecto.
A presente Convenção não confere aos autores nenhum direito de sequela, além do outorgado por esta última lei, ou pela Convenção Internacional Sobre Privilégios e Hipotecas Marítimas, quando aplicável.”([9]).
A mencionada Convenção de Bruxelas de 1952 aplica-se quando um dos três elementos, local de arresto, bandeira do navio a arrestar e/ou requerente do arresto for estranho ao Estado onde tiver lugar o arresto, pois se o arresto for em Portugal, de um navio português por um requerente português, já não se aplicará a Convenção, mas sim o regime nacional([10]).
Segundo é entendimento da jurisprudência, e de acordo com os preceitos citados, esta Convenção de Bruxelas de 1952 estabelece um verdadeiro direito de sequela no que respeita à manutenção da garantia patrimonial, o que constitui uma exceção ao princípio de que só o património do devedor responde pelas dívidas respetivas e de que terceiros não podem ser prejudicados por negócios alheios.
Assim, tem-se entendido que o titular de um crédito marítimo pode requerer o arresto do navio que lhe deu origem, mesmo que esse navio, na data em que é requerida a providência, já não pertença àquele que era seu proprietário na data da constituição do crédito([11]).
Na mesma linha, Januário da Costa Gomes e Francisco Rodrigues Rocha([12]) citam, a propósito, uma sentença do Tribunal de Nápoles de 28.3.2008, na qual também se afirma que a mencionada Convenção admite “il diritto di sequestrare la nave di proprietà di terzi per un credito marittimo che alla nave se riferisca”.
Como dissemos, no procedimento cautelar foi decretado o arresto do navio “Espadarte” “para garantia do crédito marítimo de € 108.517,53 acrescido de juros”, justificando-se a decisão à luz do art. 1, nº 1, al. k), e do art. 8, ambos da referida Convenção de Bruxelas de 1952.
De acordo com esta al. k) do nº 1 do art. 1, estamos perante um crédito marítimo proveniente de “Fornecimentos de produtos ou de material feitos a um navio para a sua exploração ou conservação, e qualquer que seja o lugar onde esses fornecimentos se façam.”
Afigura-se-nos, por isso, que a 1ª embargada, B, enquanto titular de um crédito marítimo assim constituído sobre a 2ª embargada, C, podia fazer arrestar o navio em apreço, apesar deste já não lhe pertencer.
Por conseguinte, ainda que se reconheça à aqui embargante A, o direito de propriedade sobre o navio “Espadarte”, por si entretanto adquirido em 29.4.2014, temos de concluir que, nos termos dos citados arts. 3, nº 1, 8, nº 2, e 9, todos da Convenção Internacional para Unificação de Certas Regras sobre o Arresto de Navios do Mar, assinada em Bruxelas em 10.5.1952, era permitido o arresto do mesmo, em 6.5.2015 (ponto 5 supra), pelo crédito marítimo a que deu origem.
Donde, procede apenas em parte o recurso, não podendo ordenar-se o levantamento da caução que substitui o arresto.
***
IV- Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação, julgando parcialmente procedente a apelação, em revogar a sentença recorrida no segmento decisório que declarou a nulidade do contrato de compra e venda do navio “Espadarte” celebrado por escritura pública no dia 29.10.2014, e em manter, no mais, o decidido.
Custas, em partes iguais, pela apelante A, e pela apelada B .
Notifique.
***
Lisboa, 5.5.2020
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa
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[1] “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., págs. 240/241.
[2] Em “Direito das Obrigações (Parte Especial) – Contratos”, 2.ª ed., 2001, págs. 110 e ss.
[3] Proc. 5003/14.5T2SNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
[4] “Direito das Obrigações”, 3ª ed., vol. III, pág. 94.
[5] “O Contrato de Compra e Venda no Código Civil”, ROA, 1980, vol. II, pág. 311.
[6] “Do Contrato de Compra e Venda”, Almedina, 1971, págs. 140/141.
[7] Proc. 6690/07.6TBALM.L1.S1, em www.dgsi.pt.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. II, pág. 184.
[9] Anota-se que através da Resolução da Assembleia da República nº 40/2011, de 14.1.2011, foi aprovado o recesso, por parte da República Portuguesa, da Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimos, assinada em Bruxelas, em 10 de Abril de 1926 (cfr. DR, 1ª série, N.º 53/XI/2, de 16.3.2011).
[10] “O Arresto de Navios I (Do Direito e do Mar)”, Cristina Lança (Jornal da Economia do Mar), Fev. 2018.
[11] Neste sentido, ver, entre outros, os Acs. do STJ de 14.4.1999, Proc. 99A156, de 25.11.1997, Proc. 97A585 (sumário), e de 18.3.1997, Proc. 96B894 (sumário), e os Acs. da RL de 30.9.1997, Proc. 0014921, de 6.2.1997, Proc. 0008532 (sumário), de 21.11.1995, Proc. 0004361 (sumário), e de 25.11.1993, Proc. 0079732 (sumário), todos em www.dgsi.pt.
[12] Em “Direito Marítimo, Jurisprudência para as Aulas Práticas”, AAFDL, 2018, 2ª ed., págs. 373 a 379.