Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
668/2007-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: DOCUMENTO
COISA
APRESENTAÇÃO
DADOS PESSOAIS
ACESSO À INFORMAÇÃO
SEGURADORA
ADVOGADO
MANDATO
EXAME MÉDICO
SEGREDO PROFISSIONAL
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: O pedido dirigido à Companhia Seguradora para facultar os exames clínicos, ou elementos do processo clínico que tem em seu poder respeitantes a sinistrado, deve ser efectuado ou pelo próprio sinistrado, por mandatário devidamente autorizado para o efeito ou por mandatário judicial que deverá exibir procuração forense visto estarem em causa dados de natureza eminentemente pessoal e sujeitos a sigilo profissional.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Maria […] demandou Companhia de Seguros […], em processo especial para apresentação de documento, art. 1476 CPC, pedindo a sua condenação na entrega de exames médicos por si efectuados e na posse da ré.

Alegou que foi vítima de acidente de viação tendo sofrido danos físicos, pretende demandar a ré, solicitando a sua condenação no pagamento de uma indemnização a título de responsabilidade civil; necessita dos exames médicos porquanto neles estão retratadas as sequelas, por si, sofridas; a ré recusa-se a entregar os exames.

A ré na sua contestação alegou que providenciou tratamento parcial à autora; esta nunca lhe solicitou qualquer relatório médico sobre a situação; a documentação clínica é pertença do médico ou fisioterapeuta que cuidou da doente, estando estes sujeitos a sigilo profissional, pelo que não pode ser entregue a quem quer que seja; recebeu uma carta de um advogado, sem procuração junta, a solicitar-lhe a documentação; não tinha autorização da autora para facultar qualquer documentação; as lesões da autora estão descritas no relatório médico do Hospital onde foi assistida.  

A acção foi julgada procedente e a ré condenada a entregar a documentação clínica à autora até 13/3/2006, bem como numa multa e indemnização, como litigante de má-fé.

Inconformada a ré apelou formulando em síntese as seguintes conclusões:

1ª - A sentença é nula – art. 668 CPC - porquanto violou os arts. 574, 575 CC e 1476, e 463/1 CPC – não se verificaram os requisitos para a entrega dos documentos; tendo a ré impugnado os factos e arrolado uma testemunha, esta não foi ouvida; a sentença é omissa quanto aos factos que considera assentes.
2ª – A ré não actuou de má-fé – a maioria dos documentos solicitados encontrava-se na posse do Hospital de Ponta Delgada, por outro lado, o advogado que solicitou tais documentos não estava munido de procuração, pelo que a ré estava impedida legalmente de os entregar por se tratarem de documentos sujeitos ao sigilo profissional e protegidos pela lei de protecção de dados pessoais – pelo que deve ser absolvida do pedido de condenação como litigante de má-fé.
3ª – Foi a autora quem litigou de má-fé, pelo que deve ser condenada.
Nas contra-alegações a apelada concluiu em síntese que:
1ª – A decisão proferida no tribunal a quo, não admite recurso ordinário, ex vi art. 678 CPC, exceptuando a decisão quanto à condenação da ré como litigante de má-fé.
2ª – Deve manter-se a decisão que condenou a ré como litigante de má-fé.
3ª – A autora não litigou de má-fé.

A questão da admissibilidade do recurso da decisão sobre o mérito da causa já foi decidida – cf. despacho inicial – fls.  dos autos, pelo que nos abstemos de tecer quaisquer considerandos.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Atentas as conclusões do apelante que delimitam, como é regra, o objecto do recurso – arts. 684/3 e 690 CPC – a questão que cabe decidir consiste em saber se a autora ou a ré, litigaram de má-fé.

Factos que interessam à decisão do recurso:

1 – A autora em 12/8/2004 foi vítima de um acidente de viação.  

2 – Em consequência desse acidente sofreu lesões.

3 – O tratamento foi parcialmente providenciado pela ré, Companhia de Seguros […]  

4 – Com data de 18/8/2005, a Sociedade de Advogados […] enviou, em 22/8/2005, uma carta registada com a/r à ré.

5 – A carta foi subscrita por […].

6 – Do teor da carta constava o seguinte: “Em representação da Sra. Maria […], venho solicitar relatório médico elaborado na sequência do acidente ocorrido aos 12/8/2004, em que foi interveniente a minha constituinte Maria […]e o vosso segurado Manuel […]”.    

7 – A carta foi recepcionada pela ré, em 24/8/2005.

8 – A ré respondeu, carta datada de 14/10/2005.

9 – Nessa carta, a ré acusou a recepção da carta mencionada nos factos 4 a 7 e informou que “de momento não podemos facultar qualquer elemento do processo clínico da Sra. Maria […], oportunamente voltaremos à vossa presença”.

10 – Em 29/11/2005 a autora demandou a ré solicitando-lhe a entrega da documentação médica.

Vejamos, então.

Questão da litigância de má-fé.

“Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo  ou  dos  meios  processuais  um  uso  manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou, protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.

A doutrina tem considerado a má-fé de que trata o art. 456 CPC, sob dois aspectos: a má-fé material e a má-fé instrumental, abrangendo na primeira os casos  mencionados nas  alíneas  a),b) e c) e na segunda, a actuação plasmada na alínea d) – cfr. Ac. STJ 5/12/75 in BMJ 252 – 105.

O conceito de litigância de má-fé, que pressupunha o dolo foi alargado, pela reforma processual de 1995, passando a abarcar as condutas processuais gravemente negligentes.

A condenação por litigância de má-fé não viola o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional, pois não é limitativa do direito de acção nem do direito ao processo, não envolvendo privação ou limitação do direito de defesa do particular.

A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos, sendo indiferente que, no caso concreto, o litigante tenha ou não razão, em um e outro caso gozam dos mesmos poderes processuais.

O direito de acção é um direito subjectivo autónomo, consagrado constitucionalmente – art. 20 CRP -  sendo distinto do direito material que se pretende fazer actuar em juízo, pelo que o seu exercício não está dependente de qualquer requisito prévio de demonstração da existência do direito substancial.

Uma coisa é o direito abstracto de acção ou de defesa e outra, é o direito concreto de exercer a actividade processual.

O primeiro não tem limites, é um direito inerente à personalidade humana; o segundo sofre limitações impostas pela ordem jurídica, nomeadamente numa exigência de ordem moral, ou seja, é necessário que o litigante esteja de boa-fé ou suponha ter razão.

Se a parte agiu de boa-fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a sua conduta é lícita, suportando o encargo das custas, consequência do risco inerente, no caso a sua pretensão não vingar.

Ao invés, se agiu de má-fé ou com culpa, se tinha consciência de que não tinha razão ou se não ponderou com prudência as suas pretensas razoes, a sua conduta é ilícita, impondo o art. 456 CPC, que seja condenada em multa e numa indemnização à parte contrária se esta o pedir.

Em conclusão, não litiga de má-fé, quem litiga sem direito, mas o faz convicto de que tem razão substancial, ainda que a não tenha – cfr. Acs. RL 16/2/03, 27/5/04 e 1/2/06, in www.dgsi.pt.      

Decorre do relatório e dos factos com interesse para a decisão sobre litigância de má-fé que a ré providenciou tratamento clínico à autora, pelo que teria que ter na sua posse elementos e relatório(s) médico(s) elaborado(s) na sequência dessa sua intervenção, independentemente de outros relatórios elaborados pelo Hospital onde a autora foi assistida.

O pedido efectuado à ré pelo Sr. Dr. […], em representação da autora, para a entrega do relatório médico referente à autora, foi desacompanhado de procuração da autora ao Sr. Dr. […], bem como de uma autorização da autora no sentido de a ré poder facultar o relatório médico ao subscritor da carta.

A ré, na sua resposta, refere que “não pode facultar qualquer elemento do processo clínico da autora”.

É certo que os relatórios médicos reportam-se a dados pessoais e confidenciais e os médicos estão sujeitos ao sigilo profissional, no entanto, as pessoas examinadas têm direito de acesso a esses dados, podem solicitá-los e inclusivamente pedir entrega ou cópia dos mesmos.

No entanto, no caso dos autos, a ré não poderia disponibilizar, sem mais, a qualquer pessoa, sem para isso estar devidamente autorizada pela autora – declaração da própria ou procuração a mandatário (Sr. Dr. […], subscritor da carta) - o exame ou exames médicos efectuados na sua pessoa, sob pena de violação de dados pessoais.

Assim, a conduta da ré não se subsume à previsão da norma de litigância de má-fé - art. 457 CPC.

Acresce ainda que, a jurisprudência tem entendido, que sendo a parte uma sociedade, a responsabilidade pela litigância de má-fé cabe em exclusivo ao seu representante que esteja de má-fé e não à sociedade.

Só a especial natureza da representação orgânica das pessoas colectivas – que não pensam, não falam, não agem por si, mas apenas através dos seus representantes – levou a lei a por a cargo do representante que esteja de má-fé na causa, a responsabilidade pela respectiva condenação.

De qualquer forma, sob pena de violação do contraditório, o representante terá de ser ouvido antes do tribunal se pronunciar sobre a dita má-fé - cfr. Acs. RP 4/4/06 e de 17/1/06, relator Cândido Lemos,  in www.dgsi.pt.

Face ao explanado, sendo a ré uma sociedade não poderia ser, tout court, condenada como litigante de má-fé.

Nas suas alegações a ré pediu a condenação da autora como litigante de má-fé.

A autora pugnou pela sua não actuação como litigante de má-fé.

A autora ao intentar esta acção agiu com má-fé processual - fez um uso reprovável do processo, imputando à ré uma recusa infundada de apresentação de exame médico, sabendo não ter feito prova de que mandatara e autorizara a entrega do exame a outrem que não ela própria?

Atentos os elementos de que dispomos e o explanado supra, a autora ao propor esta acção não agiu com dolo ou com negligencia grave, ou seja, não intentou a acção sabendo que não tinha razão, não formulou um pedido manifestamente infundado ou faltou à verdade, fê-lo supondo ter razão – necessita do exame médico, uma vez que pretende demandar a ré em acção de indemnização decorrente do acidente de viação por si sofrido -, pelo que inexiste da sua parte litigância de má-fé.

Assim, improcede o pedido formulado pela ré.

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o agravo, revogando-se a condenação da ré como litigante de má-fé e ainda, julgar improcedente o pedido de condenação da autora como litigante de má-fé, requerido pela ré em sede recursória.

Custas em partes iguais por apelante e apelada.

Lisboa, 22 de Março de 2007

(Carla Mendes)
(Caetano Duarte)
(Ferreira de Almeida)