Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9835/2003-7
Relator: ARNALDO SILVA
Descritores: REGISTO PREDIAL
TERCEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/02/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: As partes a que se refere o art. 4º, nº 1, do Cód. Reg. Predial, são os sujeitos que produziram e receberam as declarações respeitantes ao contrato e que acordaram quanto às suas cláusulas.
Tendo os réus sido chamados por sucessão legítima à herança do de cujus, que foi parte no contrato de compra venda de um lote de terreno com a autora, são também estes partes no contrato, não sendo terceiros.
Tendo os réus registado o direito de propriedade sobre o lote de terreno por aquisição hereditária antes de a autora registar o seu direito de propriedade sobre o mesmo lote, que antes adquirira ao de cujus, pode a autora, nos termos do art. 4º, nº 1 do CRP, opor aos réus o seu direito.
O conceito de terceiro previsto no art. 5º do CRP difere do conceito de terceiro registral previsto no art. 17º, nº 2, do CRP.
As aquisições por via hereditária são sempre gratuitas, pelo que não estão previstas no art. 17º, nº 2 do CRP, nem carecem de protecção no tráfico jurídico.
Decisão Texto Integral: Acordam os juizes, em conferência, na 7.ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
1. Por Custódio B. e mulher Maria L. terem registado a seu favor, por sucessão hereditária, o prédio urbano designado por lote Um, terreno para construção urbana, com a área de 626,50 m2, sito na Horta da Atalaia, freguesia e concelho de Alcochete, inscrito na matriz sob o artigo 5.021, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.º 02248/990315, que Manuel Peres & Filhos, Ld.ª, Construções, Ld.ª havia comprado a Augusto B., e cuja compra os serviços do seu banco __ a quem entregou toda a documentação para a constituição de uma hipoteca sobre o dito imóvel para a obtenção de crédito __, não registou a seu favor, e por aqueles se recusarem a reporem a situação registral de acordo com os factos expostos, e terem prometido vender a M. César, vários imóveis dos quais faz parte deles o dito imóvel, veio, com base nestes fundamentos e no disposto nos art.ºs 2024º; 2031º; 2032º; 874º; 875º e 879º do Cód. Civil e art.º 5º do Cód. Registo Predial, Manuel Peres & Filhos, Ld.ª, Construções, Ld.ª, com sede na Praceta Aledegalega, 6, R/C Esq.º, intentar contra Custódio B. e mulher Maria L., residentes na Rua --, Montijo; e Maria C., viúva, residente na R. Cidade de Beja, n.º --.,  Montijo, acção declarativa comum com forma ordinária, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Montijo, com o n.º 160/00, na qual pede:
1) Que os réus sejam condenados a reconhecer a autora como proprietária do imóvel identificado no artigo 1.º __ o prédio urbano designado por lote Um, terreno para construção urbana, com a área de 626,50 m2, sito na Horta da Atalaia, freguesia e concelho de Alcochete, inscrito na matriz sob o artigo 5.021, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.º 02248/990315__; 
2) Que seja decretado o cancelamento da inscrição da aquisição a favor dos primeiros réus, Custódio B. e mulher Maria L, por sucessão hereditária (G1 Ap.09/300500), bem como todas as inscrições posteriores.
Tudo com custas e demais encargos por conta dos réus.
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2. Apenas contestaram os réus Custódio B e mulher Maria L.
Na sua contestação os réus dizem que não existe o depósito da quantia referente ao preço da mencionada escritura nos extractos bancários do falecido Augusto B., irmão e cunhado dos réus, e que à data da morte deste o dito lote de terreno se encontrava na posse do falecido que, em relação a ele, actuava como se seu proprietário fosse, de forma pública, pacífica e de boa fé, e que, portanto, o prédio em questão fazia parte da herança. Referem que têm o prédio registado definitivamente a seu favor, e que este registo produz efeitos contra a autora, em virtude desta ser terceira (art.º 5º do Cód. Registo Predial). E que caso assim se não entenda, sempre terão direito a receber  a quantia de 515.754$00, a título de enriquecimento sem causa (art.º 473º do Cód. Civil), referente à quota-parte imposto sucessório e da taxa de registo que pagaram pelo dito terreno.
Em reconvenção, e com base nos art.ºs 1251º; 1254º, 1255º; 1287º; 1294º al. a); 1296º e 1251º, n.º 1 do Cód. Civil, pedem que sejam considerados donos e legítimos proprietários do aludido prédio, por o terem adquirido por usucapião, por o terem possuído, assim como o anterior proprietário, há mais de 10 anos, em nome próprio, de forma pública, pacífica, e sem interrupção, ignorando, ao adquiri-la, que lesavam o direito de outrem.
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3. Na réplica a autora impugnou os factos alegados pelos réus relativamente à reconvenção, e sustenta que entrou na posse do mencionado lote, pois que colocou nele uma barraca, visível para toda a gente, com um cartaz de aviso correspondente ao pedido de Alvará de licença de construção.
Na réplica ampliou ainda os pedidos, nos termos do art.º 273º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, pedindo agora que seja declarada nula e sem qualquer efeito a dação em cumprimento feita pelos primeiros réus à segunda ré e que se ordene o cancelamento da respectiva inscrição G-2 Ap.08; Ap. 14 e Ap. 15, por os réus não serem proprietários do lote em causa.
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4. A reconvenção foi admitida bem como a ampliação dos pedidos.
A acção prosseguiu os seus posteriores termos, tendo sido proferido sentença que julgou a acção procedente e improcedente o pedido reconvencional, e consequentemente decidiu:
a) Condenar os réus a reconhecerem a autora como proprietária do prédio urbano designado por lote um, terreno para construção urbana, com a área de 626,50m2, sito na Horta da Atalaia, freguesia e concelho de Alcochete, inscrito na matriz sob o art.º 5.021 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.º 02248/990315, determinando o cancelamento da inscrição da aquisição a favor dos RR. Custódioe mulher, por sucessão hereditária, bem como todas as inscrições posteriores incompatíveis com tal reconhecimento de propriedade;
b) Declarar nula a dação em cumprimento do prédio descrito em a) efectuada pelos réus Custódio e mulher à R. M., determinando o cancelamento da inscrição desta aquisição por esta ré;
c) Absolver a autora do pedido reconvencional.
Mais decidiu julgar os RR. Custódio B. e mulher litigantes de má fé e condená-los, como tal, na multa de € 2 000 (dois mil euros).   
E condenou em custas os réus, fixando a procuradoria em metade da taxa de justiça devida (art.º 41º, n.º 1 do Cód. das Custas Judiciais).
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5. Inconformados apelaram os réus. Nas suas alegações concluem:
(...)
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6. Nas suas contra-alegações a autora conclui:
(...)
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5. As questões essenciais a decidir:
Na perspectiva da delimitação pelo recorrente, os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º, n.º 1 e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil), salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil), exceptuando-se do seu âmbito a apreciação das questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (n.º 2 1.ª parte do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).
Atento o exposto e o que flui das conclusões das alegações dos réus apelantes supra descritas em I. 5., as questões a decidir no presente recurso são essencialmente três: 1) se deve ou não ser alterada a decisão da matéria de factos, por forma a que se dê como provado o que consta das alíneas a) a e) da conclusão 1.ª das alegações dos réus apelantes; 2) se se os réus Custódio B. e mulher Maria L., enquanto titulares inscritos da aquisição do disputado lote de terreno por sucessão hereditária, são ou não terceiros em relação à autora, enquanto titular de um direito inoponível, ou também, embora de uma forma não muito rigorosa em termos doutrinais, se a autora é ou não terceira em relação aos réus Custódio B. e mulher Maria L., ou em remate ainda, se a autora e estes réus são terceiros entre si; 3) e se sim, se a dação em cumprimento (datio in solutum) é ou não válida.
Vai-se conhecer das questões pela ordem indicada.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
***
II. Fundamentos:
A) De facto:
Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Por escritura outorgada em 02-03-2000, no Cartório Notarial de Alcochete, a A. declarou comprar a Augusto B., solteiro, maior, o seguinte bem imóvel: prédio urbano designado por lote um, de terreno para construção urbana, com a área de 626,50m2, sito na Horta da Atalaia, freguesia e concelho de Alcochete, inscrito na matriz sob o art.º 5.021, descrito na Conservatória do registo Predial de Alcochete sob o n.º 02248/990315, e pelo preço de 5.000.000$00, que o vendedor declarou já ter recebido (cfr. certidão de fls. 6 a 9 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido) [alínea A) dos factos assentes].
2. A A. comprou o referido lote porque se dedica à construção de imóveis, tendo no caso em apreço efectivado todas as formalidades para iniciar a construção de “uma moradia de 2 pisos com cave, sótão e anexo, tendo-lhe sido já concedida a respectiva licença de construção, que tem o n.º 325/2000 (cfr. doc. de fls. 10 dos autos, cujo teor integral se dá aqui por reproduzido) [alínea B) dos factos assentes].
3. Pela apresentação 09/300500 foi inscrita na Conservatória de Registo Predial de Alcochete, a aquisição a favor dos RR. Custódio B. e esposa, por sucessão hereditária, do prédio descrito sob o n.º 02248/990315, tudo conforme certidão de fls. 11 a 15 dos autos, cujo teor integral se dá aqui por reproduzido [alínea C) dos factos assentes].
4. Em 13.06.2000 os RR Custódio e mulher foram chamados a uma instituição bancária onde lhes foi dito que o lote objecto dos presentes autos tinha sido vendido em Março de 2000 à A., por cinco milhões de escudos [alínea D) dos factos assentes]. 
5. Pela apresentação 08/230800 foi inscrita a aquisição provisória por natureza, a favor da R. Maria do C., por compra, do prédio descrito sob o n.º 02248 [alínea E) dos factos assentes].
6. Através da apresentação 02/040900 inscreveu-se a presente acção provisória por natureza e relativamente ao prédio inscrito sob o n.º 02248 [al. F) dos factos assentes, cuja rectificação do erro de escrita quanto ao n.º da apresentação a 1.ª instância fez, ao abrigo do art.º 249º do Código Civil].
7. Pela apresentação 14/040101 procedeu-se à rectificação da causa da aquisição a favor da R. Maria do C., ficando a constar por dação em cumprimento [alínea G) dos factos assentes].
8. Pela apresentação 15/040101 foi convertida em definitiva a aquisição do prédio descrito sob o n.º 02248, a favor da R. Maria do C., por dação em cumprimento, tudo conforme certidão junta aos autos a fls. 63 a 67, cujo teor integral se dá aqui por reproduzido [alínea H) dos factos assentes].
9. Pelo facto de a A. ter de recorrer a crédito, entregou no seu banco todos os documentos necessários para esse efeito, nomeadamente para constituir hipoteca sobre o referido imóvel, não tendo os serviços do banco registado a favor da A. a aquisição do imóvel que comprara nos termos referidos em A) [alínea I) dos factos assentes].
10. Em 11-04-2000, na Repartição de Finanças do Concelho do Montijo, compareceu Custódio B., declarando que no dia 13-03-00 faleceu Augusto, no estado de solteiro, não tendo deixado descendentes nem ascendentes vivos e juntando relação de bens da qual consta o prédio em causa nos autos, tudo conforme doc. de fls. 38 a 43 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido [alínea J) dos factos assentes]. 
11. Na sequência da morte de Augusto B. os RR. Custódio e mulher procederam a um levantamento dos bens móveis e imóveis que seu irmão/cunhado lhes tinha deixado  (resposta ao art.º 1° da b.i.).
12. Para tal, verificaram junto das repartições de finanças e conservatórias do Registo Predial do Montijo e Alcochete quais eram os bens que existiam em nome do falecido Augusto B.  (resposta ao art.º 2° da b.i.).
13. Os RR. Custódio e mulher procederam ao pagamento de imposto sucessório, de montante não concretamente apurado, face aos bens declarados, onde está incluído o lote em causa nos autos  (resposta ao art.º 10° da b.i.).
14. A A. colocou uma barraca no lote, visível para toda a gente, nomeadamente o cartaz de Aviso, correspondente ao pedido de Alvará de Licença de Construção   (resposta ao art.º 12° da b.i.).
15. A A entrou logo na posse do lote em causa nos autos, pelo menos aquando da escritura de compra e venda referida em A) (resposta ao art.º 13° da b.i.).
16. A A. pagou ao falecido Augusto B. pelo menos a quantia de 9.000.000$00, através dos cheques cujas fotocópias integrais se mostram juntas a fls. 118 a 121  (resposta ao art.º 14° da b.i.).
*
1. A alteração da decisão sobre a matéria de facto:
(….)
B) De direito:
1. A questão da oponibilidade do registo dos réus à autora:
Atenta a improcedência do recurso sobre a matéria de facto, como se deixou dito supra em II. A) 1., a matéria de facto provada supra descrita em II. A afasta de todo a hipótese de os réus Custódio B. e mulher Maria L. terem adquirido por usucapião o disputado lote de terreno, por não se ter provado que tivessem a posse dele __ e nos termos do art.º 1287º do Cód. Civil, a aquisição por usucapião depende da verificação conjunta de dois requisitos: 1) a posse[1] de um direito real de gozo[2]; 2) e o decurso certo período de tempo, variável, consoante a natureza móvel ou imóvel dos bens sobre o qual a posse incida, e conforme os caracteres que esta revista[3] __, e, por conseguinte, afastada está também qualquer inutilização de qualquer situação substantiva ou registal existente em relação ao citado lote de terreno por via da usucapião. Resta, pois, saber se os réus Custódio B. e mulher Maria L., enquanto titulares inscritos da aquisição do disputado lote de terreno por sucessão hereditária __ Cfr. a matéria de facto provada supra descrita em II. A ponto 3. __, são ou não terceiros em relação à autora, enquanto titular de um direito inoponível, ou também, embora de uma forma não muito rigorosa em termos doutrinais, se a autora é ou não terceira em relação aos réus Custódio B. e mulher Maria L., ou em remate ainda, se a autora e estes réus são terceiros entre si[4].
Vejamos.
O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio imobiliário (art.º 1º do Cód. Registo Predial). Para o efeito estabelece presunções juris tantum da existência dos direitos inscritos (legitimação), nos precisos termos em que o registo os define (art.º 7º do Cód. Registo Predial), garantindo aos titulares dos respectivos direitos inscritos a inoponibilidade dos factos inscritos e incompatíveis, salvo, o registo for previamente cancelado por inválido (art.ºs 5, 7º e 8º do Cód. Registo Predial). Mas esta publicidade pode ser feita pelo registo de várias formas[5].
O registo predial tem eficácia meramente declarativa, pelo que não dá nem tira direitos: apenas garante ao adquirente os poderes que o alienante efectivamente tinha sobre a coisa, não se projectando os seus efeitos, de modo relevante, na eficácia dos factos inscritos, limitando-se a inscrição registal à sua função primitiva de publicitação de tais factos, afirmação esta que é verdadeira quanto ao registo enunciativo[6].
Por força do princípio da fé pública registal pode verificar-se a atribuição ao registo de verdadeiros efeitos substantivos, podendo assim falar-se de uma aquisição registal ou tabular que prevalece sobre outra incompatível e fora do registo, salvo tratando-se da aquisição por usucapião que, conforme decorre do que ficou dito, inutiliza para si todas as situações substantivas ou registais, sendo registável e produz efeitos contra terceiros independentemente do registo [art.º 5º, n.º 2 al. a) do Cód. Registo Predial]. É o que decorre do art.º 17º, n.º 2 do Cód. Registo Predial e art.º 291º do Cód. Civil. Por meio deste princípio, protegem-se os subadquirentes de boa fé que adquiram direitos inscritos no registo (de quem figura neles como titular do direito transmitido) a título oneroso e que, por sua vez, os inscrevam a seu favor, concedendo-lhes assim certa imunidade contra a declaração de nulidade da inscrição anterior a favor do transmitente, desde que não sejam prejudicados pela precedência da respectiva acção impugnatória[7]. Este subadquirente é o terceiro registal a que se refere o n.º 2 do art.º 17º do Cód. Registo Predial. Terceiro este que é diferente do conceito de terceiro referido no art.º 5º do Cód. Registo Predial. O conceito de terceiro a que se refere o art.º 5º do Cód. Registo Predial, não obstante a grande divergência doutrinal e jurisprudencial, que levou a que o STJ fixasse jurisprudência uniformizadora[8] sobre a matéria, e que na sequência do Ac. 3/99 de 18-05-1999, fosse introduzido, por via legislativa (Dec. Lei n.º 533/99, de 11-12), um n.º 4 ao art.º 5º do Cód. Registo Predial, a consagrar o conceito restrito de terceiro fixado na jurisprudência uniformizadora do Ac. 3/99, é este: « terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si ». Terceiro, é portanto quem não é parte no negócio, nem seu herdeiro ou representante, e que tem uma inscrição registal e, enquanto esta se mantiver, o correspectivo direito não pode ser afectado pela produção dos efeitos de um acto que esteja de fora do registo e seja com ele incompatível. Terceiro é aqui o titular inscrito em relação ao titular do direito inoponível. Mas este é também, em certo sentido, embora não rigorosamente em termos doutrinais, um terceiro em relação ao titular ao titular inscrito. De certa forma são terceiros entre si, ou terceiros recíprocos[9].
Sãos os réus Custódio B. e mulher Maria L., enquanto titulares inscritos da aquisição do disputado lote de terreno por sucessão hereditária de Augusto terceiros nos termos do art.º 5º do Cód. Reg. Predial?
É manifesto que não.
O falecido Augusto B.  e autora celebraram entre si um contrato de compra e venda relativo ao disputado lote de terreno __ Cfr. matéria de facto provada supra descrita em II. A) ponto 1. __, e porque foram eles que produziram e receberam as declarações negociais a eles respeitantes e que acordaram quanto às suas cláusulas, são eles que são partes do contrato[10]. Cada uma delas representa no acto um interesse[11]. Nos termos do art.º 4º, n.º 1 do Cód. Registo Predial « os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros ». O conceito rigoroso de terceiro para efeitos de registo é quem não seja parte, seu herdeiro ou representante[12]. Tendo os réus Custódio e mulher Maria L. sido chamados, por sucessão legítima[13] (art.ºs 2131º e 1132º e segs. do Cód. Civil), às relações jurídicas patrimoniais do falecido Augusto, com a consequente devolução dos bens que a este pertenciam (art.º 2024º do Cód. Civil), são pois seus herdeiros. Logo e pelo exposto, são partes no contrato que a autora celebrou com o de cujus.  Por conseguinte, não são terceiros, nem no sentido do art.º 5º do Cód. Registo Predial nem terceiros registais nos termos do art.º 17º, n.º 2 do Cód. Registo Predial. Logo o direito da autora é-lhes oponível. A falta de registo da aquisição da autora não afecta, em geral, a invocabilidade inter partes dos factos que devam ser registados[14]. A sua aquisição hereditária por sucessão legítima e o seu registo prioritário em relação à autora da aquisição do lote de terreno em causa, não ganha relevância jurídica, porque não se verificam os pressupostos do art.º 17º, n.º 2 do Cód. Registo Predial. É evidente que os réus Custódio B. e mulher Maria L. não são subadquirentes a título oneroso do direito sobre o dito terreno. Na verdade, mesmo que tivessem adquirido invalidamente por sucessão hereditária o direito de propriedade sobre o dito lote de terreno não o adquiriram a título oneroso, visto que as transmissões por morte[15] são sempre gratuitas, o adquirente mortis causa nunca tem de dar contrapartida, é sempre um adquirente gratuito[16]. E sendo a aquisição a título gratuito, não há qualquer necessidade de protecção do tráfico jurídico. havendo que sacrificar um interesse, a lei desvaloriza o adquirente a título gratuito[17]. Portanto nunca se verificou qualquer aquisição registal ou tabular por parte dos réus Custódio B. e mulher Maria L., e, consequentemente também, não existe a seu favor qualquer registo inatacável, por transformação da presunção do art.º 7º do Cód. Registo Predial em presunção quanto eles inilidível, presunção iuris et de iure[18]
Por outro lado, a presunção do art.º 7º do Cód. Registo Predial é uma presunção ilidível (art.º 350º, n.º 2 do Cód. Civil), como decorre do art.º 8º a contrario e dos art.ºs 3º al. b)e 13º do Cód. Registo Predial, pois que os interessados são admitidos a intentar acções pedindo a extinção dos registos, por não corresponderem à realidade [cfr. art.º 16º al. a) do Cód. Registo Predial], desde que tal pedido seja acompanhado do de cancelamento correspondente registo (art.º 8º, n.º 2 do Cód. Registo Predial), e como decorre ainda do próprio regime de prevalência das presunções possessórias e registais, pois que sendo igual a antiguidade de uma presunção possessória e de uma registal, aquela prevalece (art.º 1268º, n.º 1 do Cód. Civil)[19]. Ora porque a transferência do direito de propriedade sobre o lote de terreno no caso sub judice se deu por mero efeito do contrato de compra e venda celebrado entre o falecido Augusto B. e a autora, a dita compra e venda teve eficácia imediata [art.ºs 408º, n.º 1 e 879º al. a) do Cód. Civil], pelo que, à data da abertura da sucessão por morte do Augusto (art.º 2031º do Cód. Civil) o direito de propriedade sobre o dito lote de terreno já não existia no seu património[20], pelo que nunca os réus poderiam ter adquirido o direito de propriedade por sucessão hereditária do Augusto B. (art.º 2024º do Cód. Civil). Donde fica elidida a presunção do registo a favor dos réus Custódio B. e mulher Maria L.. E porque a dação em cumprimento  (datio in solutum) é um contrato oneroso (art.ºs 837º e segs. do Cód. Civil), nos termos dos art.ºs 838º e 892º do Cód. Civil « ex vi » art.º 939º do mesmo código a dação em cumprimento é nula, podendo esta nulidade ser invocada a todo o tempo e ser oficiosamente declarada pelo tribunal (art.º 286º do Cód. Civil), e tendo efeito retroactivo, como refere a douta sentença. Porque os réus Custódio B. e mulher Maria L. nunca foram proprietários do dito lote de terreno, nunca a ré Maria do C. pode ter adquirido a propriedade dele através da dação em cumprimento (datio in solutum).
Não se mostram, pois, violadas as disposições legais na conclusão 3.ª das alegações dos recorrentes.
Improcede, pois, o recurso.
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III. Conclusão:
1. As partes a que se refere o art.º 4º, n.º 1 do Cód. Reg. Predial são os sujeitos que produziram e receberam as declarações respeitantes ao contrato e que acordaram quanto às suas cláusulas. As partes podem ser uma pessoa ou conjunto de pessoas, que representam no facto sujeito a registo o mesmo interesse. A parte será única se o interesse é único, será dupla, bilateral se o interesse é duplo.
2. Tendo os réus sido chamados por sucessão legítima à herança do de cujus, que foi parte no contrato de compra venda de um lote de terreno com a autora, são também estes réus partes no contrato com a autora, enquanto seus herdeiros. Logo não são terceiros.
3. Tendo os réus registado o direito de propriedade sobre o dito lote de terreno por aquisição hereditária antes de a autora registar o seu direito de propriedade sobre o mesmo lote, que antes adquirira ao de cujus,  pode a autora, nos termos do art.º 4º, n.º 1 do Cód. Reg. Predial pode opor aos réus o seu direito.
4. O conceito de terceiro previsto no art.º 5º do Cód. Reg. Predial difere do conceito de terceiro registral previsto no art.º 17º, n.º 2 do Cód. Reg. Predial.
5. As aquisições por via hereditária são sempre gratuitas. Logo não estão previstas no art.º 17º, n.º 2 do Cód. Reg. Predial, nem carecem de protecção no tráfico jurídico.
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IV. Decisão:
Assim e pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação interposta pelos réus apelantes, e, consequentemente, confirmam a sentença recorrida.
Custas pelos réus apelantes.
Registe e Notifique (art.º 157º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil).

Lisboa, 2-3-04

Arnaldo Silva
Proença Fouto
Roque Nogueira

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[1] A usucapião é um instituto privativo da posse em sentido próprio. A mera posse ou posse precária não têm esse efeito, a menos que tenha havido inversão de posse (art.º 1290º do Cód. Civil). Mas nem toda a posse é boa para usucapião. A posse violenta e a posse oculta não conduzem à aquisição por usucapião. Vd. Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, Lisboa – 2001, pág. 232 III.
[2] Direito de propriedade, usufruto, uso e habitação, direito de superfície e servidões prediais. Mas há excepções (art.º 1293º do Cód. Civil). Não podem ser adquiridas por usucapião as servidões aparentes (1548º, n.º 1 do Cód. Civil) e os direitos de uso e habitação (1485º do Cód. Civil).
[3] Para conduzir à usucapião a posse tem de ser pública e pacífica [art.ºs 1293º al. a), 1297º e 1300º, n.º 1 do Cód. Civil]. Os restantes caracteres, que a posse possa assumir (ser de boa ou má fé, titulada ou não titulada, estar inscrita ou não inscrita no registo), apenas têm influência no prazo necessário à usucapião. Este prazo pode ser mais curto ou mais longo, consoante os caracteres que a posse concretamente revista. Prazo que também varia consoante a posse incida sobre móveis ou imóveis.
[4] Vd. Isabel Pereira Mendes, Estudos sobre registo predial, Liv. Almedina, Coimbra 1997 – Coimbra 1997, pág. 52 nota 21 a propósito do conceito de terceiro a que se refere o art.º 5º do Cód. Registo Predial. 
[5] Oliveira Ascenção, Direito Civil – Direitos Reais, 4.ª Ed., Coimbra Editora, Ld.ª - 1983, pág. 351, refere a este respeito, que a publicidade pode actuar de quatro formas: como requisito de eficácia absoluta (registo de eficácia absoluta, p. ex., no caso da hipoteca); enunciativa  (registo enunciativo, p. ex., no caso da usucapião); confirmativa ou consolidativa (registo confirmativo ou consolidativo); e constitutivo (registo constitutivo).
[6] Esta expressão da gíria forense só é aceitável se a afirmação não for feita em termos de validade absoluta. Mesmo fora do caso excepcional do registo constitutivo da hipoteca (art.º 4º, n.º 2 do Cód. Registo Predial e art.º 687º do Cód. Civil), há outros efeitos do registo que claramente o contrariam. É o que sucede com o registo consolidativo do registo. A afirmação é contudo verdadeira nos casos do registo enunciativo. Um exemplo característico da eficácia deste registo verifica-se em matéria de usucapião. Vd. Oliveira Ascenção, opus cit., págs. 344 e segs.; Luís Carvalho Fernandes, opus cit., págs. 127 e segs.; Vd. Ac. da R. do Porto de 22-01-1994: CJ Ano XIX, tomo 1, pág. 216.
[7] Vd. Isabel Pereira Mendes, opus cit., págs. 87-88.
[8] Em extrema síntese, são duas as concepções de terceiros para efeitos de registo predial: a restrita e a ampla. Para a concepção restrita, terceiros são apenas as pessoas que, relativamente a determinado acto de alienação, adquirem do mesmo autor ou transmitente direitos total ou parcialmente incompatíveis. Para a concepção ampla, o conceito de terceiro tem de abranger outras situações que não somente a dupla transmissão do mesmo direito. A concepção restrita foi defendida por Manuel de Andrade __ Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, pág. 19 __, Orlando de Carvalho __ Terceiros para efeito de registo, in B.F.D.U.C., LXX, __, Mota Pinto __ Teoria Geral do Direito Civil, págs. 374-379 __, a concepção ampla (mas não tanto como se verá infra) foi defendida por A. Varela e Henrique Mesquita e Pires de Lima e A. Varela __ R.L.J. Ano 127, pág. 20; Cód. Civil Anot. Vol. III, 3.ª Ed., em anotação ao art.º 819º __, Vaz Serra __ R.L.J. Ano 103, pág. 165 , para quem « Terceiros, para efeitos de registo predial, são as pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquiriram direitos incompatíveis – total ou parcialmente – sobre o mesmo prédio » __, A. Anselmo de Castro __  A Acção Executiva, Singular, Comum e Especial, 3.ª Ed., pág. 161 __ e L. Carvalho Fernandes __  Lições de Direitos Reais, Quid Juris, Lisboa – 2001, págs. 130 e segs.. Durante muitos anos seguiu-se a concepção restrita, o conceito de terceiros perfilhado por Manuel de Andrade __ Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, pág. 19 __, segundo o qual terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis. Este conceito restrito de terceiro veio a ser criticado por José Oliveira Ascenção __ Direitos Reais, 4.* Ed., págs. 363 e segs. __ e Carlos Ferreira de Almeida __ Publicidade e Teoria dos Registos, págs. 260 e segs. __, e Gama Vieira __ Cód. Registo Predial Anot., pág. 45 __ entre outros. A concepção ampla desenvolvida por A. Varela e Henrique Mesquita __ R.L.J. Ano 127, pág. 30. Para estes autores « Terceiro, para efeitos de registo, relativamente a determinada aquisição não registada, não são apenas aqueles que adquiram (e registem) direitos incompatíveis do mesmo transmitente, mediante negócio que com ele celebrem, mas também aqueles que adquiram (e registem) direitos incompatíveis em relação ao mesmo transmitente, sem a cooperação da vontade deste, através de um acto permitido por lei (hipoteca legal ou judicial, arresto, penhora, apreensão de bens para a massa falida ou insolvente, compra em processo executivo, etc. » __, embora ainda restrita quanto ao conceito de terceiro, mas já mais avançada, veio a ser ultrapassada pela fixação mais ampla do conceito de terceiro pelo Ac. 15/97 do STJ de 20-05-1997, publicado no DR I Série – A, de 04-07-1997 que uniformizou jurisprudência sobre a matéria (art.º 732º-A do Cód. Proc. Civil): « Terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior, não registado ou registado posteriormente ». A este seguiu-se o Ac. 3/99 do STJ de 18-05-1999, publicado no DR I Série – A, de 10-07-1999, que optou por um conceito restrito de terceiro, e fixou a seguinte jurisprudência uniformizadora sobre a matéria (art.º 732º-A do Cód. Proc. Civil): « Terceiros, para efeitos do disposto no art.º 5º no Código de Registo Predial, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma ».  Este último acórdão foi esclarecido pelo Ac. do STJ de 07-07-1999: CJ (STJ) Ano VII (1999), tomo 2, págs. 164 e segs. de que foi relator o Sr. Conselheiro Ribeiro Coelho.
[9] Cfr. supra nota 4. 
[10] Vd. Castro Mendes, Direito Civil - Teoria Geral, II, vol., Lisboa – 1979, pág. 273.
[11] Vd. Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, Vol. II, 2.ª Ed., Arménio Amado, Coimbra – 1955, pág. 165. Ensina este professor que “parte” é a pessoa ou conjunto de pessoas, que representa no acto o mesmo interesse; será única se o interesse for único, será dupla, bilateral, se o interesse for duplo. Abel A. Gama Vieira, Cód. Registo Predial, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Ld.ª - 1967, pág. 42 em anotação ao artigo 6º, correspondente ao actual art.º 4º do Cód. Registo Predial vigente usa este ensinamento dizendo “parte”, como escreve o Prof. Cabral Moncada (...) « é a pessoa ou conjunto de pessoas, que representa no acto  __ no facto, diremos aqui __ o mesmo interesse; será única se o interesse for único, será dupla, bilateral, se o interesse for duplo ».
[12] Vd. Carlos Ferreira de Almeida, Publicidade e Teoria dos Registos, pág. 268 cit. apud Isabel Pereira Mendes, Cód. Registo Predial, 13.ª Ed., Liv. Almedina, Coimbra – 2003, pág. 107 em anotação ao art.º 5º. 
[13] A fonte ou título de vocação sucessória é aqui a lei, pois, trata-se de sucessão legítima, e a sucessão legal pode ser legítima ou legitimária (art.º 2027º do Cód. Civil).
[14] Vd. Luís Carvalho Fernandes, opus cit., págs. 125-126.                                      
[15] Nos tempos modernos, fora do longínquo período das remotas origens do direito romano, em que o pater deixou de ser uma autoridade soberana (pater potestas), em que a mulher antes excluída do número dos herdeiros passou a herdar, e em que o testamento __ que antes se destinava a dar àquele que não tinha descendentes varões um sucessor na soberania doméstica __ passou a ser um instrumento de atribuições patrimoniais, deixou de fazer sentido a contraposição entre sucessão e transmissão. Estes temos passaram a ser sinónimos. Há identidade científica entre estes dois conceitos. Longe vão, pois, os tempos do direito clássico romano em que apenas havia sucessão e não transmissão.  Nessas remotas eras do direito romano, com a successione __ que era apenas uma sucessão universal (successione per universitatem) __, o heres ingressava na posição do pater familias, nos seus direitos e obrigações. Eram os tempos em que a comunidade política, sem base territorial definida, residia na família e depois residiu na gens (família alargada). Mas já antes do direito justinianeu __ que tanta influencia viria ter na Europa ocidental a partir do séc. XII __ já esta sucessão se havia completamente transformado, pelo esmaecimento dos elementos religiosos em que se apoiava e pela redução da pater potestas a algo de, sobretudo, nominal, e com o acentuar do aspecto patrimonial. De tudo o vem exposto, justificado está o uso no texto da palavra “transmissões”. Sobre o tema desta nota vd., v. g., Gomes da Silva, Direito das Sucessões, Ed. da A.A.F.D.L. (1978), págs. 13-23; Galvão Telles, Direito das Sucessões, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Ld.ª - 1978, págs. 43 e segs.; Oliveira Ascenção, Direito das Sucessões, Lisboa 1979, pág. 40. 
[16] Vd. Galvão Telles, Direito das sucessões, pág. 28.
[17] Neste sentido vd. Oliveira Ascenção, opus cit., págs. 356 e 365; Menezes Cordeiro, Direitos Reais (Reprint - 1979), Lex, Lisboa – 1993, pág. 276 e pág. 276-278. Contra Luís Carvalho Fernandes, opus cit., págs. 134-135 e pág. 139; A. Varela, RLJ Ano 118 págs. 307-308 nota 1 e pág. 314.
[18] Vd. Luís Carvalho Fernandes, opus cit., pág. 140.
[19] Vd. Luís Carvalho Fernandes, opus cit., págs. 123-124.
[20] O património é como uma bolsa em que entram uns valores e saem outros. Vd. Galvão Telles, opus cit., pág. 31.