Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
393/14.2PQLSB.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I - A alínea b, do nº1, do art.69, do Código Penal, reporta-se a crimes dolosos em que se verifique uma relação de instrumentalização entre a utilização do veículo - como meio acessório - e a execução do crime, não contemplando os casos em que o exercício da condução e a utilização do veículo não são meramente acessórias ou instrumentais em relação à execução do crime, mas constituem o elemento material, objectivo e nuclear, essencial para o preenchimento do tipo, isto é, os casos em que o crime não pode ser cometido sem a utilização do veículo.

II - Aquela alínea não abrange o crime de desobediência, por condução de veículo automóvel em período de cumprimento de pena de inibição de conduzir.

III - Na ausência de norma expressa a prever a aplicação da pena acessória a quem for condenado pelo aludido crime de desobediência qualificada e não sendo este subsumível à mencionada alínea b) do n.º 1 do citado art. 69.º, do CP, não pode no presente caso ser o arguido condenado em tal sanção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:



I. Relatório:
1. Sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo abreviado, o arguido J, tendo sido proferida, a final, sentença, que julgou procedente a acusação e, em consequência, o condenou nos seguintes termos:
«… pela prática, em autoria material, de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas nos art.ºs 348º, n.º 1 al. a), e n.º 2, ambos do Código Penal e art.º 160º n.º 3 do Código da Estrada, na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o total de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros), e a que corresponde 60 (sessenta) dias de prisão subsidiária;

… na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do art.º 69.º, n.º 1, al. b) e 2 do Cód. Penal, devendo o arguido apresentar a respectiva carta de condução, no prazo de 10 (dez) dias, após o trânsito em julgado da sentença, na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo art.º 348.º, n.º 1, alínea b) do C.Penal.
…».

2. Não se conformando com a decisão na parte que condenou o arguido em pena acessória, dela interpôs recurso o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

I - O recurso é limitado à matéria de direito.

II - Tendo o arguido sido condenado apenas pela prática de crime de desobediência por conduzir nas 12 horas posteriores à realização de pesquisa de álcool no sangue positiva não deveria ter sido condenado na pena acessória prevista no art° 69° n° 1 al. b) do Código Penal.

III- Aquela disposição legal prevê duas condições cumulativas, não se tendo verificado uma delas, ou seja, a condução de veículo não facilitou a prática de qualquer crime,
sendo antes requisito essencial do crime praticado pelo arguido.

IV- A douta sentença recorrida viola o disposto no art° 69° n° 1 al. b) do Código Penal.

Nestes termos e nos demais de direito aplicável, deve o presente recurso ser considerado procedente e por via disso ser revogada a douta sentença recorrida na parte em que condena o arguido em pena acessória.

3. Admitido o recurso, não houve resposta.
4. Subidos os autos, neste Tribunal da Relação a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da sua procedência.
5. Realizado o exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
***

II. Fundamentação:
1. Perante as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação - as quais, conforme jurisprudência uniforme dos Tribunais Superiores, delimitam e fixam o objecto do recurso -, a discordância daquele centra-se numa única questão, de direito: saber se ao arguido deve ser aplicada pena acessória de proibição de conduzir.
2. Conhecendo do objecto do recurso:
O arguido foi condenado pela prática de um crime de desobediência qualificada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos art.ºs 348º, n.º 1 al. a), e n.º 2, do Código Penal e 154º, n.ºs 1 a 3, do Código da Estrada, pelo facto de, no dia 11 de setembro de 2014, após ter sido detido (cerca das 21,35 horas) e submetido, a exame para detecção de álcool no sangue, com resultado positivo, acusando na contraprova, realizada pelas 22,23 horas, 1,05 g/l, após dedução do erro máximo admissível, e ter sido informado de que ficava impedido de conduzir nas 12 horas seguintes, sob pena de desobediência qualificada, o arguido foi interceptado, de novo, pelas 23,05 horas do mesmo dia, a conduzir um veículo automóvel na via publica, sem ter requerido novo exame que comprovasse que não estava influenciado pelo álcool.
Na sequência da condenação em pena de multa pelo aludido crime de desobediência, considerou o tribunal recorrido que havia igualmente lugar à aplicação da pena acessória prevista no art. 69.º, do CP, ao abrigo da alínea b) do seu n.º 1, segundo a qual, «é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido … por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante».
No respectivo recurso, o MP entende, porém, que é inaplicável tal alínea ao caso presente, por não se verificar o segundo requisito nela previsto, concretamente, de a execução do crime tiver sido facilitada de forma relevante pela utilização do veículo.
Ao conduzir com álcool no sangue - cuja taxa era superior a 0,8 mas inferior a 1,2 g/l - o arguido cometeu uma contra-ordenação classificada como muito grave, pela qual foi levantado o respectivo auto, sendo a mesma sancionada com coima e com sanção acessória de inibição de conduzir, pelo período de 2 meses a 2 anos (arts. 146.º, al. j) e 147.º, n.ºs 1 e 2, do CE). Desconhece-se o resultado dessa participação.
Apesar de advertido de que ficava impedido de conduzir nas doze horas seguintes após o exame de pesquisa de álcool no sangue, sob pena de desobediência qualificada, o arguido foi de novo interceptado a conduzir o mesmo veículo automóvel, cometendo este crime.
O art. 69.º, do CP, prevê a aplicação de pena acessória de proibição de conduzir a quem cometa o crime de desobediência, mas quando esta é cometida mediante a recusa de submissão às provas para detecção de condução sob a influência do álcool (cfr. alínea c), do n.º 1).
Não é essa desobediência que está em causa nestes autos.
Também não estamos perante nenhum dos crimes previstos na alínea a) da mesma norma: os dos arts. 291.º, 292.º ou ainda os de homicídio ou ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução e com violação das regras de trânsito rodoviário. Estes dois crimes foram acrescentados aos dois primeiros pela Lei n.º 19/2013, de 21/02, porque os nossos tribunais superiores vinham defendendo que tais crimes, cometidos com negligência, não tinham cabimento na alínea b), na medida em que esta, ao pressupor que o veículo seja utilizado como instrumento do crime cometido e que a execução deste tenha sido facilitada, de forma relevante, pela utilização do veículo, implica que se esteja perante crimes dolosos – homicídio, ofensa à integridade física, dano, etc. – que não se esgotam no próprio acto da condução, traduzindo esta apenas um modo de execução do crime, ainda que a condução se faça em condições ilegais. A facilitação a que se refere a norma em causa «implica que o agente tenha agido com dolo de utilização do veículo, por exemplo na deslocação ao local do crime ou na fuga do local do crime… Esta sanção acessória também não é aplicável a quem seja condenado apenas pelo crime de condução sem habilitação legal, atenta a alteração da redacção do art. 69.º, n.º 1 al. a) do CP, pela Lei 77/2001 de 13/07» - cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal …”, 2008, pag. 225, citando vária jurisprudência a propósito.
A desobediência do arguido J , ao desrespeitar a proibição de conduzir nas aludidas doze horas seguintes após o exame a que foi submetido, esgota-se na própria condução. O arguido conduziu, estando proibido de o fazer. Não se pode dizer que o arguido utilizou o veículo como instrumento para a prática de um crime, ou que a execução de um crime foi facilitada de forma relevante pela utilização do veículo. O arguido limitou-se a conduzir, sem que visasse a realização de qualquer facto ilícito, diferente da condução.
Conforme se refere no Acórdão desta Relação de Lisboa, de 17/10/2006, proferido no Proc. 7179/2006.5: «I - A alínea b, do nº1, do art.69, do Código Penal, reporta-se a crimes dolosos em que se verifique uma relação de instrumentalização entre a utilização do veículo - como meio acessório - e a execução do crime, não contemplando os casos em que o exercício da condução e a utilização do veículo não são meramente acessórias ou instrumentais em relação à execução do crime, mas constituem o elemento material, objectivo e nuclear, essencial para o preenchimento do tipo, isto é, os casos em que o crime não pode ser cometido sem a utilização do veículo. II - Aquela alínea não abrange o crime de desobediência, por condução de veículo automóvel em período de cumprimento de pena de inibição de conduzir.»
Na ausência de norma expressa a prever a aplicação da pena acessória a quem for condenado pelo aludido crime de desobediência qualificada e não sendo este subsumível à mencionada alínea b) do n.º 1 do citado art. 69.º, do CP, não pode no presente caso ser o arguido condenado em tal sanção, procedendo o recurso.
*
III. Decisão:
Em conformidade com o exposto, julga-se procedente o presente recurso do MP, revogando-se a decisão recorrida na parte em que condenou o arguido J na pena acessória de proibição de conduzir.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 09 / 06 / 2015
(Elaborado em computador e revisto pelo relator, primeiro signatário - artigo 94.º, n.º 2, do CPP).


José Adriano

Vieira Lamim