Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4688/2006-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: PENHORA
ISENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Justifica-se a isenção de penhora de 1/ 6 do vencimento da executada pelo período de uma no  ao abrigo do disposto no artigo 824.º/3 do Código de processo Civil considerando que a quantia disponível da executada e agregado familiar de 4 pessoas é de € 271,99 o que coloca cada uma das pessoas com disponibilidade de € 68 ao nível da sobrevivência
II- O interesse do credor na satisfação do crédito proveniente de mútuo para aquisição de veículo automóvel não pode sobrepor-se às razões que estão na base da referida isenção temporária que são razões de protecção e respeito pela dignidade humana.
III- A falta de ponderação  de muitas pessoas que adquirem bens não essenciais sem primeiro assegurar a satisfação das necessidades básicas tem o seu contraponto no frenético aliciamento ao consumo promovido por empresas que vivem e prosperam precisamente à custa desse aliciamento.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

A executada, C. […] requereu (a fls. 274 dos autos e seguintes) a isenção de penhora do seu vencimento.

Fundamentou a sua pretensão no facto de o seu vencimento ser o único rendimento de que dispõe e no facto de a parte penhorada ser necessária para fazer face às necessidades do agregado familiar.

A exequente deduziu oposição ao pedido de isenção, pronunciando-se pela manutenção dos descontos.

Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas.

Ficaram provados os seguintes factos:

1. A executada é funcionária dos quadros da D.G.S.P. a prestar serviço no Hospital Prisional […] e à data em que foi ordenada a penhora de 1/6 do vencimento auferia 99.123$00 líquidos.
2. O desconto actualmente efectuado no seu vencimento, correspondente à penhora de 1/6, é de 94,73 €.
3. O agregado familiar da executada é constituído por quatro pessoas: a executada, o se filho J.[…], a companheira do filho, A.[…], e o filho desta última, com quatro anos de idade.
4. A.[…] encontra-se a trabalhar há cerca de três meses para a sociedade Gelpeixe, auferindo um vencimento mensal de 497,99 €.
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5. O vencimento de A.[…] nem sempre lhe permite assegurar todas as despesas que tem a seu cargo, nomeadamente despesas médicas do seu filho (60,00 € por ano e quantia não concretamente apurada nos períodos em que se encontra doente), serviços da ama, em valor não concretamente apurado, e comparticipação nas despesas de alimentação, água, gás, luz e renda, em valor variável mensalmente em função das despesas concretas e da sua disponibilidade monetária.
6. O filho da executada, de 28 anos de idade, encontra-se desempregado há vários meses, não auferindo qualquer subsídio de desemprego ou outro.
7. J.[…] sofre de epilepsia e é dependente de álcool.
8. Em virtude das limitações da doença (tem ataques epilépticos com frequência) e do consumo de álcool, tem dificuldade em arranjar emprego, encontrando-se inscrito no Centro de Emprego.
9. A executada com o seu vencimento assegura as despesas com a renda, alimentação do agregado familiar e despesas com água, gás, electricidade, com a comparticipação da companheira do filho.
10. O agregado familiar gasta, em média, cerca de 100,00 € em água, gás e electricidade.
11. A renda de casa ascende a 399,65 €.
12. Em alimentação o agregado familiar despende mensalmente cerca de 200,00 a 300,00 €.
13. Por dificuldades nos transportes públicos, a executada desloca-se diariamente para o emprego de automóvel, emprestado pelo pai, gastando quantia não concretamente apurada em gasolina e portagens para o trajecto da sua residência para o local de trabalho em Caxias.
14. A executada padece de anemia crónica, Drapanocitose, osteoporose, depressão maior e hipertensão.
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15. Necessita de medicação diária e acompanhamento médico regular, tendo despendido em medicamentos as seguintes quantias: 8,16 €, em 17.01.04; 8.92 €, em 01.05.04; 21.70 €, em 07.05.04; 79.16 €, em 27.04.04; 49.27 €, em 30.01.04; 60.63 €, em 01.03.04 e 36.12 €, em 01.03.04.
16. A executada deixou de frequentar as consultas de psiquiatria por falta de dinheiro, recorrendo quando necessita ao centro de saúde ou ao hospital.
17. A executada por vezes deixa de tomar a medicação diária que necessita por falta de dinheiro.
18. A executada de vez em quando beneficia da ajuda de Ainda Guimarães Paço Sá Morgado que, por questões de caridade, lhe dá produtos alimentares de primeira necessidade (arroz).
 
                                                            *
Atenta a factualidade descrita, foi proferido despacho deferindo a requerida isenção de penhora da remuneração da executada, pelo prazo de um ano.

Inconformada, recorre a exequente, concluindo que:
- A dívida exequenda não resultou da aquisição de bens de primeira necessidade, mas sim da aquisição de um veículo automóvel.
- Não se entende que, encontrando-se o agregado familiar em estado de carência fosse celebrado o contrato de mútuo, para compra de um automóvel, ficando a pagar prestações mensais e sucessivas no montante de € 145,27.
- Essas prestações eram superiores à quantia penhorada.
- Há que levar em conta os interesses legítimos do credor.
                                                              *
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Cumpre apreciar.
A controvérsia do presente agravo centra-se exclusivamente em torno da aplicação do disposto no artº 824º nº 3 do CPC (normativo aplicável aos autos, na medida em que a presente acção deu entrada em Outubro de 2001) aos factos supra enumerados.
Provou-se que a executada aufere um salário líquido de € 568,38, muito acima pois do salário mínimo nacional.
A dívida exequenda não foi contraída para aquisição de bens de primeira necessidade, mas sim para aquisição de um automóvel.
Resultou provado que as despesas do agregado familiar da executada ascendem a € 699,65. Tal agregado familiar é composto pela executada, o seu filho de 28 anos, a companheira deste. A.[…] e o seu filho de quatro anos.
A companheira do filho da executada, aufere um salário mensal de € 497,99.
O filho da executada é alcoólico e sofre de epilepsia estando desempregado, sem receber subsídio de desemprego.

Há que dizer que, se enumeramos, como fez o Mº juiz a quo o total das despesas do agregado familiar, teremos igualmente de enumerar o total das respectivas receitas. Ou seja, adicionar ao salário da executada o da companheira do filho, uma vez que as despesas desta e do seu filho foram igualmente repercutidas nas despesas do agregado familiar.
Teremos assim um gasto global de 699,65, incluindo renda de casa, água, gás e electricidade e alimentação.
E temos o rendimento global de € 1.066,37.
Não estão incluídas nas despesas as verbas relativas a vestuário, transportes, cuidados médicos, sendo que a executada padece de diversas enfermidades e o filho da Alexandra Isabel, com quatro anos, carece como é evidente de atenções médicas. Também não está incluída a despesa com a ama para o menor.
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Também nada é referido relativamente ao filho da executada, no que respeita ao tratamento do seu alcoolismo, o que faz presumir que não efectue tratamento algum.                        

A quantia penhorada mensalmente ascende a € 94,73.
                                                              *
Nos termos do artº 824º nº 3, na redacção dada pelo DL 180/96 de 25/9, “pode o juiz excepcionalmente isentar de penhora os rendimentos a que alude o nº 1, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar”.

Vimos que a diferença entre o total dos rendimentos salariais e o dos gastos mencionados apresenta uma diferença de € 366,72. Dessa diferença, e deduzida a parte penhorada, teremos € 271,99.

Como se disse, não foram contabilizados os gastos em vestuário, transportes, despesas de saúde e com a ama do menor. Uma vez que não estamos apenas a aferir os rendimentos e despesas da executada mas também do agregado familiar, haverá que ter em atenção que os gastos referidos e não quantificados se referem também a quatro pessoas. Ou seja, por exemplo, a disponibilidade da A.[…] para comparticipar nas despesas comuns será condicionada pelos cuidados médicos e retribuição da ama para o seu filho de quatro anos, não falando das suas próprias despesas com vestuário, saúde e transportes.
A quantia de € 271,99 é assim reportada a quatro pessoas, o que significa, a um nível meramente aritmético, uma disponibilidade de menos de € 68 por pessoa.
Esta quantia é, pela mera experiência da vida, dos preços, insuficiente para assegurar o mínimo indispensável no tocante às mencionadas despesas com vestuário, transportes, saúde (e ainda a remuneração da ama para o menor). Só esta última despesa poderá representar grande parte da quantia global de € 271,99.
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É claro que a exequente não deixa de ter razão quando menciona que, apesar de tudo isto, a executada não hesitou em contrair uma dívida para adquirir um automóvel. Sabendo a situação a que está sujeita face ao seu agregado familiar, nomeadamente ao filho alcoólico, sem emprego e sem se sujeitar a tratamento ou terapia que o liberte de tal situação de alcoolismo e lhe permita trabalhar, é incompreensível que a executada tenha celebrado um contrato de mútuo que, manifestamente, teria de incumprir, mais cedo ou mais tarde.

O frenético aliciamento ao consumo que se vive desde há alguns anos na sociedade portuguesa, promovido por empresas como a exequente – e muitas outras – não explica tudo, nomeadamente a falta de ponderação com que muita gente se lança na aquisição de bens não essenciais sem assegurar primeiro a satisfação das necessidades básicas.

Contudo, o juízo de censurabilidade que se pode formular relativamente à executada, não exclui que se tenha sempre de ter em conta a necessidade de salvaguardar a dignidade humana, como fica bem expresso no Acórdão nº 177/02, do Tribunal Constitucional (DR, I série, de 2/7).

Consta da factualidade provada que a executada, por dificuldades monetárias, deixou de frequentar as consultas de psiquiatria de que carece e que, pelas mesmas razões, por vezes nem pode tomar a medicação que lhe é necessária.

Além disso, nas contas que acima fizemos tomámos em consideração apenas o mínimo da despesa mensal em alimentação do agregado familiar, € 200,00. De acordo com a factualidade apurada, tal despesa oscila entre os € 200,00 e € 300,00 sendo esta última verba mais credível, tendo em atenção que estamos a falar de quatro pessoas.

É evidente que a executada e o seu agregado familiar vivem, como refere o despacho recorrido, numa situação próxima do limiar da sobrevivência. E nessa medida, a penhora de 1/6 do seu vencimento compromete os níveis mínimos de subsistência.
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Não é, como sugere a recorrente nas suas alegações, o pôr o interesse do devedor à frente do do credor. Mas perante situações limite como a dos autos, estamos a falar de interesses de natureza bem diferente: para a exequente trata-se – e com toda a legitimidade – de recuperar um crédito não satisfeito; para a executada, por razões específicas da sua vida que ficaram bem documentadas, trata-se de uma questão de subsistência.
Seja como for, a isenção da penhora de 1/6 do vencimento da executada perdurará apenas por um ano, como expressamente ficou delimitado no despacho recorrido.

Nestes termos, acorda-se no não provimento do agravo, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pela recorrente.

LISBOA, 15/2/2007

(António Valente)
(Caetano Duarte)
(Teresa Pais)