Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2234/21.5T8OER-A.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
LETRA EM BRANCO
ACORDO DE PREENCHIMENTO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/01/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Os títulos de crédito são títulos executivos per se, não carecendo de ser alegada no requerimento executivo inicial a relação material que lhes deu origem; a menos que tenham perdido a sua força cambiária e estejam a funcionar como meros quirógrafos, pois neste caso os factos constitutivos da relação subjacente têm de constar do próprio documento ou ser alegados no requerimento executivo (alegação que a exequente dos autos fez).
II. Mesmo quando uma letra de câmbio mais não é que mero documento quirográfico da obrigação causal, presume-se a existência e a validade da dívida nela documentada, incumbindo ao executado a prova do contrário (prova que os executados/embargantes não fizeram).
III. A letra de câmbio aceite ou avalizada em branco admite, mas apenas nas relações imediatas, a invocação da violação do acordo de preenchimento (invocação que os embargantes fizeram).
IV. Sobre quem exceciona o preenchimento abusivo de um título cambiário recai o ónus de alegar e provar os factos integrantes desse abuso (prova que os embargantes não fizeram).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
“AA” – Comércio e Aluguer de Automóveis e Equipamentos, Unipessoal, Lda., exequente e embargada nestes autos em que são embargantes os executados “BB”, Lda. e “CC”, notificada da sentença proferida em 23/11/2022, que, julgando os embargos procedentes, declarou extinta a execução, e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.
Para a compreensão do litígio e do objeto do recurso é necessário um resumo dos autos:
Os embargantes deduziram oposição por embargos, por apenso à execução contra si (e contra “DD”) movida pela embargada, alegando, em síntese, que:
- No requerimento executivo inicial, a exequente alega ter celebrado com a executada sociedade, em 11/06/2014, um contrato de aluguer do veículo de marca Ford, modelo Transit Custom Combi 300L1 2.2 TDCi H1 T.Normal Trend, com a matrícula “OU”, pelo prazo de 48 meses com início em 30/06/2014 e termo em 29/06/2018; tendo-se a mesma executada obrigado a pagar as respetivas rendas e subscrito uma autorização de débito em conta, referente ao dito contrato de aluguer, autorizando o pagamento pelo sistema de débitos diretos, quando apresentados pela exequente enquanto entidade credora junto da SIBS, válida enquanto existissem contratos ativos com a exequente; em 08/05/2018, o contrato de aluguer relativo ao referido veículo foi recalculado para o prazo total de oitenta e quatro (84) meses, passando o seu termo para 29/06/2021; a executada sociedade devolveu a viatura com a matrícula em 22/04/2020, ou seja, antes do termo do contrato; para caucionar o integral cumprimento de todas as obrigações e responsabilidades emergentes do referido contrato foi aceite uma letra e assinado um pacto de preenchimento que foram entregues à exequente; a executada sociedade aceitou a referida letra e os executados pessoas singulares avalizaram a aceitante da mesma; sucede que, nem a primeira nem os demais pagaram a totalidade dos valores devidos ao abrigo do contrato de aluguer do veículo com a matrícula “OU”, encontrando-se em dívida o valor global de 10.844,83 €, a que acresce o montante de 625,06 € referente a juros de mora, calculados desde a data de vencimento de cada documento até 30/04/2021; apesar de interpelados, os executados não procederam ao pagamento do valor em dívida, pelo que a exequente, nos termos do pacto, procedeu ao preenchimento da letra pelo valor total de 11.469,89 €.
- No requerimento executivo, e no campo “Liquidação da Obrigação”, nada consta quanto à forma de cálculo dessa mesma liquidação.
- Não se alcança de nenhum dos documentos juntos com o requerimento executivo que a referida viatura com a matrícula “OU” tenha sido devolvida em 22/04/2020.
- Do doc. nº 8 junto com o requerimento executivo, denominado “Análise de Idade de Saldos”, constam a débito, entre outras, as seguintes rubricas: 52OU87 DVE 42350837 2020/04/24 € 2.716,18; ajuste Km AKM 61089897 2020/04/24 € 5.871,10; e Fact. Manual FTM 42351077 2020/04/29 € 2.539,91.
- Contudo, a exequente não diz a que título as referidas rubricas são devidas, nem como chegou aos valores apresentados, pelo que impugna o documento.
- Na al. b) do nº 2 da Cláusula 2ª do pacto de preenchimento constante do doc. nº 7 junto com o requerimento executivo, refere-se que “O valor a constar (da letra de câmbio) será o correspondente à soma de todas as quantias que forem devidas ao abrigo do contrato de aluguer supra identificado, acrescida de juros de mora vencidos e todas as penalidades contratuais e legais.”
- Entendem os executados que o valor de € 11.469,89 aposto na letra de câmbio que constitui o título executivo não corresponde à soma de todas as quantias que são devidas ao abrigo do contrato de aluguer celebrado entre as partes, existindo violação do pacto de preenchimento, por preenchimento abusivo.
- No requerimento executivo, a exequente não especificou nem procedeu ao cálculo dos montantes abrangidos na prestação devida, limitando-se a concluir a pretensão executiva com um pedido líquido, pelo que os elementos indispensáveis e necessários para fixar o objeto da prestação não são escrutináveis a partir do requerimento executivo, pelo que impugnam a liquidação.
Terminam pedindo que seja declarada:
a) A violação do pacto de preenchimento, por preenchimento abusivo, com as legais consequências;
b) A não liquidação da obrigação exequenda, com as legais consequências;
c) A suspensão do prosseguimento da execução.
Notificada, a embargada contestou todos os factos e conclusões que contrariam o requerimento executivo inicial e explica pormenorizadamente a relação contratual entre as partes, que se pode resumir da seguinte forma:
- A sociedade embargante e a embargada celebraram entre si um “Contrato-Quadro de Aluguer Operacional de Automóveis”, junto com o requerimento executivo como doc. n.º 1, pelo qual a embargada se obrigou a prestar à embargante os serviços discriminados no mesmo, designadamente a colocação à disposição de veículos automóveis, bem como a gestão dos respetivos custos de manutenção, pagando a embargante, em contrapartida, as prestações mensais a pagar por débito em conta, tudo na sequência da futura celebração de contratos individuais e nos termos que neles viessem a ser especificados.
- Para o efeito, a sociedade embargante remeteu à embargada uma “Autorização de Débito Direto SEPA”, autorizando a embargada a enviar à entidade bancária indicada pela embargante instruções para se proceder ao débito direito das quantias devidas por esta à embargada (Doc. n.º 2 com o requerimento executivo).
- Em 19/06/2014, embargada e sociedade embargante celebraram contrato (que designaram por “Proposta n.º …/ 001”) tendo por objeto a locação operacional do veículo de marca Ford, modelo Transit Custom Combi 300L1 2.2 TDCi H1 T.Normal Trend, com a matrícula “OU”, pelo prazo de 48 meses, com início em 30 de junho de 2014 e termo em 29 de junho de 2018, com quilometragem máxima contratada de 70.000 quilómetros, e com o valor mensal de 755,13€ (Doc. n.º 3 junto com o requerimento executivo).
- Em cumprimento do acordado, a embargada entregou à embargante, no Concessionário Santogal Ford, o veículo automóvel objeto dos autos, em 30/06/2014 (Doc. n.º 4 junto com o requerimento executivo).
- Em maio de 2018, a sociedade embargante solicitou o prolongamento do contrato por mais 36 meses, razão pelo qual, em 8/05/2018, o prazo do contrato individual foi recalculado para o prazo total de 84 meses, com início em 30 de junho de 2014 e termo em 29 de junho de 2021, com quilometragem máxima contratada de 147.000 quilómetros, e com o valor mensal de 458,22€ – cfr. Docs. n.ºs 5 e 6 juntos com o requerimento executivo.
- A partir do dia 1 de abril de 2020, a embargante deixou de manter a sua conta bancária devidamente provisionada de forma a pagar as respetivas prestações mensais à embargada.
- Com efeito, como contrapartida pela utilização e gozo do veículo aqui em causa, a embargada apresentou à sociedade embargante as seguintes faturas, com o montante total de 916,44 €, que não foram pagas: (i) Fatura n.º FT 13/205674, emitida e vencida a 1 de abril de 2020, referente a serviços de locação e exploração do veículo com a matrícula “OU”, pelo período compreendido entre os dias 1 e 31 de abril de 2020, e com um valor de 458,22 € – conforme Doc.º 2 que protestou juntar com a contestação aos embargos (e efetivamente juntou por requerimento de 03/11/2021); (ii) Fatura n.º FT 13/227069, emitida e vencida a 1 de maio de 2020, referente a serviços de locação e exploração do veículo com a matrícula “OU”, pelo período compreendido entre os dias 1 e 31 de maio de 2020, e com um valor de 458,22 € – conforme Doc.º 3 que protestou juntar com a contestação aos embargos (e efetivamente juntou por requerimento de 03/11/2021).
- O contrato de locação operacional foi cessado pela embargante sociedade em 22/04/2020, a qual entregou o veículo nessa data à embargada – conforme Doc.º 5 que protestou juntar com a contestação aos embargos (e efetivamente juntou por requerimento de 03/11/2021).
- Por este motivo, no dia 5 de maio de 2020, a embargada apresentou à embargante sociedade a Nota de Crédito n.º NC 31/099349, emitida e vencida na mencionada data, referente a serviços de locação e exploração do veículo com a matrícula “OU”, o valor relativo ao período compreendido entre os dias 22 de abril e 31 de maio de 2020, com o valor de 580,39 €, conforme Doc.º 4 que protestou juntar com a contestação aos embargos (e efetivamente juntou por requerimento de 03/11/2021).
- A embargada e a embargante sociedade acordaram, na cláusula 3.ª, n.º 1, alínea d), do Contrato-Quadro, que a denúncia das locações operacionais tinha como primeira consequência a obrigação convencionada pelas partes na cláusula 20.ª do mesmo contrato, que dispõe: “Tendo em consideração que a “AA” adquire as viaturas objeto de cada contrato individual de aluguer, no estado de novo e especificamente para a celebração de tal contrato, bem como que o valor das remunerações acordadas depende, além do mais, do período contratado, o que as partes expressamente reconhecem, as partes estipulam que decorridos 12 meses desde o início do contrato e no caso do contrato individual terminar antecipadamente por alguma das razões previstas na alínea b) ou d) do número 1 da cláusula 3ª, haverá lugar ao pagamento, a título de indemnização, de um montante correspondente a 40% do total de rendas vincendas, entre a data de terminação antecipada e a data prevista de final do contrato, acrescido ou deduzido do valor do acerto de quilómetros calculado nos termos deste contrato quadro”.
- Quarenta por cento das rendas que se venceriam entre 22/04/2020 e 29/06/2021 importam em 2.208,28 €, quantia a que acresce IVA à taxa legal em vigor, pelo que, após a devolução do automóvel à embargada, esta apresentou à embargante sociedade a fatura n.º FT 42/341341, emitida e vencida a 20 de fevereiro de 2020, referente à “Rescisão Antecipada” do contrato individual do veículo com a matrícula “OU”, e com o montante de 2.716,18 € - conforme Doc.º 6 que protestou juntar com a contestação aos embargos (e efetivamente juntou por requerimento de 03/11/2021).
-  A embargada e a embargante sociedade estipularam na cláusula 4.ª, n.º 2, alínea c), do Contrato-Quadro que “É obrigação do cliente [i.e. a embargante] restituir o automóvel, no termo do contrato, dentro dos parâmetros definidos no Manual de Recondicionamento da “AA”, ou, em alternativa, suportar os respetivos custos de recondicionamento.”
- De acordo com o referido Manual de Recondicionamento, disponível em (…), conforme Doc.º 7 que protestou juntar com a contestação aos embargos (e efetivamente juntou por requerimento de 03/11/2021), a embargada e a embargante sociedade expressamente acordaram seriam cobrados a esta, a título de recondicionamento dos veículos, os seguintes danos: (i) “Componentes [das portas] partidos ou com sinais de corrosão”; (ii) “Marcas e riscos maiores que 10 cm [na carroçaria do veículo]; (iii) “Mossas maiores que 2 cm [na carroçaria do veículo]; (iv) “Mais do que duas mossas por painel [na carroçaria do veículo]” (v) “Quaisquer marcas, riscos e raspadelas, que não sejam possíveis de remover por  polimento” (vi) “Grelha ou para-choques partidos, rachados ou deformados”; (vii) “Deformações, fendas ou cortes nos pneus”; (viii) “Tampão decorativo, jante ou liga partidos ou deformados”; (ix) “Marcas de raspagem, riscos e mossas [nos retrovisores e nos faróis] maiores que 5 cm”; (x) “Sujidade e manchas nos bancos, revestimentos interiores, forros, tapetes do chão ou carpetes, que não possam ser removidos com uma simples limpeza (doméstica), requerendo limpeza especializada”; e (xi) “Cortes, raspadelas, queimadelas de cigarros e rasgos nos bancos”.
- Após a devolução do veículo à embargada, foi realizada uma inspeção de recondicionamento por uma entidade independente – i.e. a sociedade SGS, SGPS, S.A. – a qual verificou diversos danos na referida viatura que não se encontravam abrangidos pelo Manual de Recondicionamento da embargada, a saber: (i) Vedante da porta esquerda em falta; (ii) Pára-Choques (centro) amolgado com dano na pintura, em mais de 2 (dois) centímetros; (iii) Pára-Choques traseiro com cantos riscados em mais de 10 (dez) centímetros, e com  pontos de ferrugem; (iv) Tejadilho amolgado com dano na pintura, em mais de 2 (dois) centímetros; (v) Painel lateral esquerdo amolgado, com mais de duas mossas, e com dano na Pintura;  (vi) Porta da frente esquerda amolgada, com mais de duas mossas, e com dano na  pintura; (vii) Embaladeira esquerda amolgada com dano na pintura, em mais de 2 (dois) centímetros; (viii) Pneu frontal esquerdo ressequido; (ix) Capot com vários pontos de ferrugem; (x) Base para antena de tejadilho partida; (xi) Antena de tejadilho em falta; (xii) Guarda-Lamas direito amolgado com dano na pintura, em mais de 2 (dois) centímetros; (xiii) Porta da frente direita amolgada com dano na pintura, em mais de 2 (dois) centímetros; (xiv) Capa do retrovisor exterior riscada, em mais de 5 (cinco) centímetros; (xv) Porta da retaguarda direita riscada; (xvi) Pneu frontal direito ressequido; (xvii) Pneu traseiro direito era de marca não aceite; (xviii) Chave sobressalente em falta; (xix) Manual de revisões em falta; (xx) Forro do assento esquerdo da 1.ª fila queimado; (xxi) Encosto de cabeça da 1.ª fila em falta; (xxii) Tampa lateral esquerda partida - conforme Doc.º 8 que protestou juntar com a contestação aos embargos (e efetivamente juntou por requerimento de 03/11/2021).
- Razão pela qual a embargada apresentou à embargante sociedade a fatura n.º FT 42/351077, emitida e vencida no dia 29 de abril de 2020, referente ao valor do recondicionamento do automóvel com a matrícula “OU”, com um montante de 2.539,91€ – conforme Doc.º 9 que protestou juntar com a contestação aos embargos (identificando-o aí por lapso como 10) e efetivamente juntou por requerimento de 03/11/2021.
- A embargada e a embargante sociedade acordaram, ainda, na cláusula 19.ª, n.º 1 do Contrato-Quadro que “No momento da terminação do contrato individual, por qualquer que seja a razão de terminação, se a quilometragem efetivamente percorrida exceder a faturada, a “AA” faturará ao Cliente a quantia resultante da multiplicação da totalidade do número excedente de quilómetros pelo suplemento por quilómetro estipulado no contrato individual. No caso de os quilómetros percorridos serem inferiores aos quilómetros faturados, a “AA” creditará o Cliente, de acordo com a mesma regra.”; Ainda o n.º 3 dessa cláusula refere que “Se se verificar que o excesso de quilómetros percorridos relativamente aos faturados for superior a 25%, o suplemento estipulado no contrato individual será multiplicado por 1,5.”
- Em 30/06/2014, data em que iniciou o contrato individual, a referida viatura registava 47 quilómetros; à data da sua entrega e correspondente resolução contratual, em 22/04/2020, a viatura registava 152.970 quilómetros; pelo que o número de quilómetros percorridos pela embargante corresponde a 152.923.
- Tinham sido faturados à embargante um total de 121.946 quilómetros, pelo que o desvio é de 30.977 que, multiplicado do suplemento por quilómetro, contratualmente fixado em 0,10272 e acrescido da penalização de 50% (0,15409), resulta em 4.773,25 €, a que acresce IVA à taxa legal de 23%, pelo quem, em 24/04/2020, foi emitida a Nota de Débito n.º 61/089897, a título de “Acerto de Quilómetros” relativa à utilização do veículo com a matrícula “OU”, e com o valor total de 5.871,10€ (cinco mil oitocentos e setenta e um euros e dez cêntimos) – conforme Doc.º 10 que protestou juntar com a contestação aos embargos (identificando-o aí por lapso como 11) e efetivamente juntou por requerimento de 03/11/2021.
- Após a cessação contratual, a embargada apresentou, ainda, à embargante sociedade a Nota de Crédito n.º 51/107586, emitida e vencida a 24/04/2020, referente a um acerto com o Imposto Único de Circulação, e com o montante de 618,41€, valor que foi subtraído à dívida – conforme Doc.º 11 que protestou juntar com a contestação aos embargos (identificando-o aí por lapso como 12) e efetivamente juntou por requerimento de 03/11/2021.
- Resumindo, o valor em dívida aquando do preenchimento do título importava no valor que lhe foi aposto, resultante de: FT 13/205674 no valor de € 458,22 + FT 13/227069 no valor de € 458,22 – NC 31/099349 no valor de € 580,39 + FT 42/341341 no valor de € 2.716,18 + FT 42/351077 no valor de € 2.539,91 + ND 089897 no valor de € 5.871,10 - NC 51/107586 no valor de € 618,41 + juros vencidos até 30/04/2021 no valor de € 625,06.
Termina pedindo que que sejam julgados improcedentes por não provados:
a) A exceção dilatória de iliquidez do título executivo;
b) A exceção material (perentória) do preenchimento abusivo do título executivo;
c) A oposição à execução;
d) O pedido de suspensão do prosseguimento da execução;
Cumulativamente, que a execução siga os ulteriores trâmites até final contra os executados, ora embargantes, com a consequente condenação dos embargantes nas custas do processo.
Findos os articulados, o processo seguiu aos regulares termos e, após audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou os embargos procedentes e declarou extinta a execução.
A embargada não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«(…)
3. Em primeiro lugar, errou o Tribunal a quo no facto assente no ponto 16. da matéria de facto dada como provada, porquanto, atendendo a todos os elementos probatórios constantes dos presentes autos, este deveria ter concluído que, efetivamente, o contrato objeto dos presentes autos cessou a sua vigência no dia 22 de abril de 2020, com a entrega do veículo com a matrícula “OU”.
4. Por um lado, resulta diretamente da cláusula 3.ª, n.º 1, alínea d), das condições gerais do contrato objeto dos presentes autos (i.e., do Contrato-Quadro), que o mesmo poderá cessar a sua vigência por iniciativa da própria recorrida (sem prejuízo de a mesma se constituir na obrigação de pagar - cfr. Doc.º 1 junto com o requerimento executivo, em 18 de junho de 2021, com a referência n.º 19036804, no processo principal.
5. Do mesmo modo, ficou igualmente demonstrado que o veículo com a matrícula “OU” foi devolvido pela recorrida à recorrente, no dia 22 de abril de 2022[1] - cfr. Doc.º 5 junto pela recorrente com o requerimento de 3 de novembro de 2021, com a referência n.º 19800277.
6. Acresce que, no seu depoimento em audiência de discussão e julgamento, a testemunha “EE” veio igualmente confirmar o prazo que as partes estipularam para o contrato objeto dos presentes autos, esclarecendo que, efetivamente, teria sido inicialmente celebrado por quarenta e oito (48) meses, que se verificou um recálculo que prolongou esse prazo por trinta e seis (36) meses – para um montante total de oitenta e quatro (84) meses – pelo que, o mesmo apenas teria o seu termo, em junho de 2021 – cfr. minutos 02:13 a 03:02 do depoimento da testemunha “EE”, na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 21 de novembro de 2022, com a duração total de 29:11 minutos.
7. Confirmou igualmente que, efetivamente, a recorrida “BB”, Lda. procedeu à devolução da viatura objeto dos presentes autos, por sua própria iniciativa, no dia 22 de abril de 2020, ou seja, antes da data que as partes tinham estipulado para o termo do contrato – cfr. minutos 04:20 a 05:45 e 08:43 a 09:02 do depoimento da testemunha “EE”, na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 21 de novembro de 2022, com a duração total de 29:11 minutos.
8. Do mesmo modo, esclareceu esta testemunha que a entrega do veículo em questão por parte da referida recorrida teve como consequência a cessação do contrato objeto dos presentes autos, em conformidade com o que havia sido estipulado na referida cláusula 3.ª, n.º 1, alínea d), do Contrato-Quadro – cfr. minutos 26:47 a 27:53 do depoimento da testemunha “EE”, na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 21 de novembro de 2022, com a duração total de 29:11 minutos.
9. Mais, ficou igualmente demonstrado nos presentes autos que os valores cobrados pela recorrente a título de prestações mensais não foram para além da data em que o contrato de locação operacional objeto dos presentes autos tinha efetivamente cessado a sua vigência - cfr. Docs.º 2 a 4 juntos com o requerimento de 3 de novembro de 2021, com a referência n.º 19800277.
10. Nesta senda, em conformidade com aquele que é o entendimento de jurisprudência, a circunstância da recorrente ter aceite a devolução do veículo, não pode ser encarada como uma concordância com a cessação do vínculo contratual, ou seja, como uma resolução por mútuo acordo (como o fez o Tribunal a quo).
11. Assim, nos termos do artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, entende a recorrente que, de acordo com (i) o Doc.º 1 junto com o requerimento executivo, em 18 de junho de 2021, com a referência n.º 19036804, com (ii) o Doc.º 5 junto pela recorrente com o requerimento de 3 de novembro de 2021, com a referência n.º 19800277, com (iii) os Docs.º 2 a 4 juntos com o requerimento de 3 de novembro de 2021, com a referência n.º 19800277, e com (iv) o depoimento da testemunha “EE”, na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 21 de novembro de 2022, com a duração total de 29:11 minutos (nomeadamente, os minutos 02:13 a 03:02, 04:20 a 05:45, 08:43 a 09:02 e 26:47 a 27:53), deve ser alterado o facto atualmente assente no ponto 16. da matéria de facto dada como não provada, que deve passar a constar do segmento de factos dados como provados (que, por mero raciocínio lógico, entende a recorrente dever situar-se entre os pontos 7. e 8., do segmento de factos dados como provados na sentença recorrida).
12. Por sua vez, entende a recorrente que, com a sentença recorrida, o Tribunal a quo violou as normas consagradas nos artigos 405.º e 817.º do Código Civil, na medida em que (…) ignorou completamente o teor do contrato que havia sido celebrado entre as partes.
13. Com efeito, ao abrigo da autonomia privada, consagrada no artigo 405.º do Código Civil, as partes estipularam diversas obrigações a que a recorrida “BB”, Lda. se encontraria vinculada, constituídas após a cessação do contrato, e após a devolução da viatura objeto dos presentes autos.
14. Em primeiro lugar, tinham as partes estipulado que, por força da cessação do contrato por iniciativa da recorrida “BB” – como no presente caso – esta se encontraria obrigada a pagar uma indemnização correspondente a quarenta por cento (40%) do valor das rendas vincendas, nos termos da cláusula 20.ª, do Contrato-Quadro.
15. Nos termos da cláusula 19.ª, as partes estipularam igualmente que, atendendo à diferença entre o número de quilómetros registados no início do contrato, e ao número de quilómetros registados no momento da entrega do veículo, seria faturado ou creditado à recorrida consoante esse valor fosse superior ou inferior ao número de quilómetros contratados, respetivamente.
16. Do mesmo modo, as partes haviam ainda estipulado, ao abrigo da cláusula 4.ª, n.º 1, alínea c), do referido contrato, que no momento da entrega do veículo, a locatária, i.e., a recorrida “BB”, Lda., ficaria obrigada a pagar os eventuais custos de recondicionamento do mesmo.
17. Em resultado, ao abrigo das referidas cláusulas, a recorrente emitiu as faturas assentes nos pontos 9., 10. e 12., da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida.
18. No entanto, a recorrida nunca procedeu ao pagamento das mesmas, pelo que, ao abrigo do artigo 817.º, do Código Civil, a recorrente poderia exigir judicialmente os respetivos valores.
19. Pelo que, com a sentença recorrida, ao determinar que os valores em questão não seriam devidos, e, em consequência, que a recorrente não os poderia ter incluído na letra de câmbio que titula a presente execução, o Tribunal a quo acaba por violar as normas consagradas nos artigos 405.º, e 817.º, do Código Civil.
20. Assim, conclui-se que o Tribunal a quo errou ao não ter procedido à aplicação dos artigos 405.º, e 817.º do Código Civil, ao não ter procedido à aplicação do contrato de locação operacional celebrado entre as partes, do qual resultaria, nomeadamente, que a recorrida “BB”, Lda., se constituiu nas obrigações de pagar à recorrente, o valor devido pela cessação antecipada (nos termos da cláusula 20.ª, do Contrato-Quadro), o valor devido a título de acerto de quilómetros (nos termos da cláusula 19.ª, do Contrato- Quadro), e o valor devido pelo recondicionamento da viatura.
21. Por conseguinte, é evidente que o Tribunal a quo errou na sentença recorrida, porquanto a recorrente não existe qualquer preenchimento abusivo da letra que titula a presente execução, e, em consequência, os embargos apresentados pelos recorridos deveriam ter sido julgados totalmente improcedentes por não provados.
22. Sendo que, naturalmente, face a tudo o que foi exposto, não pode também deixar de ser revertida a decisão de condenação da recorrente pelo pagamento das custas do presente processo.
23. Concluindo-se assim, que deve ser dado provimento ao presente recurso (…).
Assim se fará a costumada JUSTIÇA!»
Os embargantes não ofereceram contra-alegações.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) A matéria de facto deve ser alterada no sentido de se considerar provado que o contrato de locação operacional foi cessado por exclusiva iniciativa e vontade da 1ª embargante em 22 de abril de 2020?
b) A letra de câmbio foi preenchida pela embargada em desconformidade com o acordado entre as partes no pacto de preenchimento (o intitulado “contrato de garantia”)?
De dizer que o preenchimento abusivo do título foi o único fundamento argumentado pelo tribunal a quo para julgar procedentes os embargos de executado.
II. Fundamentação de facto
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1 - Em 11-VI-14 exequente e 1ª executada assinaram o “CONTRATO-QUADRO DE ALUGUER OPERACIONAL DE AUTOMÓVEIS” junto com o requerimento executivo (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê: “4ª Lugar de entrega e de devolução do automóvel; 1. (…) A devolução do veículo será efetuada na presença de um representante da “AA” sendo nesse momento assinado, por ambas as partes, um Auto de Devolução no qual constarão as condições em que o veículo está a ser devolvido. 2. Condições de devolução da viatura (…) c) É obrigação do cliente restituir o automóvel, no termo do contrato, dentro dos parâmetros definidos no Manual de Recondicionamento da “AA” ou, em alternativa, suportar os custos de recondicionamento. (…)
2 - O veículo ‘Ford Transit’ de matrícula “OU” foi entregue à 1ª executada com 47 kms.
3 - Em VI-14 a exequente assinou o “CONTRATO INDIVIDUAL DE ALUGUER E ADMINISTRAÇAO” junto com o requerimento executivo (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – relativo ao veículo supra.
4 - Em 11-VI-14 exequente e executados assinaram o “CONTRATO DE GARANTIA” junto com o requerimento executivo (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – bem como a letra (sem datas ou valores).
5 - Em 8-V-18 foi elaborada a “PROPOSTA” junta com o requerimento executivo (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
6 - Em 1-IV-20 a embargada emitiu, em nome da 1ª executada, a fatura junta a fls. 46 – no valor de 458,22€, que a embargante não pagou.
7 - O veículo supra foi entregue (pela 1ª embargante) à embargada em 22-IV-20 (‘AUTO DE RECEPÇÃO’ junto a fls. 28) com 152.970 kms.
8 - Em 22-IV-20 a ‘SGS’ elaborou o ‘RELATÓRIO DE ESTADO DO VEÍCULO’ junto a fls. 35v a 38.
9 - Em 24-IV-20 a embargada emitiu, em nome da 1ª embargante, a fatura junta a fls. 28v (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – relativa a ‘rescisão antecipada’, e no valor total de 2.716,18€.
10 - Em 24-IV-20 a embargada emitiu, em nome da 1ª embargante, a ‘nota de débito’ junta a fls. 40v (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – relativa a ‘Acerto de Quilómetros’, e no valor total de 5.871,10€.
11 - Em 24-IV-20 a embargada emitiu, em nome da 1ª embargante, a ‘nota de crédito’ junta a fls. 41 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – relativa a ‘Acerto Imp. Único Circulação’, e no valor total de 618,41€.
12 - Em 29-IV-20 a embargada emitiu, em nome da 1ª embargante, a fatura junta a fls. 39v (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – relativa a ‘serviço não contratado / inspeção de recondicionamento da viatura’, e no valor total de 2.539,91€.
13 - Em 1-V-20 a embargada emitiu, em nome da 1ª executada, a fatura junta a fls. 47 – no valor de 458,22€, que a embargante não pagou.
14 - Em 5-V-20 a embargada emitiu, em nome da 1ª embargante, a ‘nota de crédito’ junta a fls. 27 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – no valor total de 580,39€.
15 - Em 27-X-20 a exequente enviou à 1ª executada a carta junta com o requerimento executivo – e, em 26-XI-20, a exequente enviou aos avalistas as cartas juntas com o requerimento executivo.
Tendo julgado não provados os seguintes:
16 - O contrato de locação operacional foi cessado/denunciado pela 1ª embargante em 22-IV-20.
17 - A embargada pagou 2.539,91€ pelo ‘recondicionamento’ da viatura.
III. Apreciação do mérito do recurso
1. Enquadramento jurídico e apreciação geral dos embargos deduzidos
Comecemos por colocar o litígio no seu contexto jurídico mais geral.
Os embargos sub judice têm a sua génese numa execução ordinária para pagamento de quantia certa cujo título executivo é uma letra de câmbio.
Como é sabido, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva – art. 10, n.º 5, do CPC (anterior art. 45, n.º 1, do velho CPC). Sem “título executivo” os direitos não podem ser objeto de execução, apenas de ação declarativa. O universo dos títulos executivos está elencado nas alíneas do n.º 1 do artigo 703 do CPC (2013).
Nos termos da al. c) do n.º 1 do art. 703 do CPC, são títulos executivos «Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo».
A letra de câmbio é um título de crédito, podendo, como tal, servir de base a uma execução. Assim era perante a abrangente al. c) do art. 46, do CPC antes de 2013 – «documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias…» –, e assim se mantém à luz da norma atual, bastante mais restrita, contida no art. 703, n.º 1, al. c), do CPC de 2013.
Podemos mesmo dizer que a letra de câmbio é um título de crédito por excelência, dotada de todas as características que se reconhecem às noções mais rígidas de títulos de crédito. Trata-se de um título de legitimação – com as características da incorporação e da literalidade –, e de um título de circulação – com as notas da autonomia e da abstração.
Um título de legitimação passiva numa dupla vertente: permite ao sujeito passivo ficar liberado pela entrega do valor a quem detiver o documento, e apenas lhe permite liberar-se se fizer a entrega a quem esteja legitimado pelo título. E um título de legitimação ativa, no interesse do credor, que prova o direito a ponto de se dizer que o título «incorpora o direito» e tem em geral, por si só, força executiva.
O direito incorporado no título «é definido nos precisos termos que dele constam» (literalidade – ilustrada nos arts. 1.º e 2.º da LULL), sem prejuízo de, «nas relações imediatas, relações credor-devedor, por exemplo, [ser] sempre possível invocar a verdadeira situação e fazê-la prevalecer sobre o que consta do título» (José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, pp. 26-27).
Um título de crédito é também um título circulável, graças à sua autonomia perante a relação fundamental ou subjacente, conferindo um direito diferente do da relação que lhe subjaz (a autonomia está presente nos arts. 16 e 17 da LULL). E pode ser ainda dotado de abstração, e a letra de câmbio é-o. Existe abstração quando «o direito proclamado pelo título vale, como tal, sem que seja possível ou necessária a fundamentação em qualquer modo legítimo de adquirir» (José de Oliveira Ascensão, ob. cit., p. 33)
Os títulos de crédito, conforme decorre da al. c) do n.º 1 do artigo 703 do CPC, são títulos executivos per se, não carecendo de ser alegada no requerimento executivo inicial a relação material que lhes deu origem. A menos que, conforme decorre da mesma alínea, estejam a funcionar como «meros quirógrafos», pois neste caso, e apenas neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente têm de constar do próprio documento ou ser alegados no requerimento executivo.
O título de crédito transforma-se em «mero quirógrafo» quando perde a sua força cambiária por, por exemplo, não ter sido apresentado a pagamento no seu vencimento nem no período de tempo determinado na lei para o efeito.
O título dado à execução é uma letra de câmbio aceite pela executada sociedade (cujo gerente assinou na parte anterior da letra, no lugar onde consta escrito  «aceite» – art. 25 da LULL) e avalizada pelos executados pessoas singulares (que apuseram as suas assinaturas no verso, por baixo da frase «bom por aval à firma subscritora» - art. 31 da LULL), que foi subscrita «em branco» (ao tema voltaremos no ponto 3.) para garantia do bom cumprimento das obrigações emergentes de dado contrato (doc. n.º 7 junto com o requerimento executivo inicial).
Não se mostra documentada nos autos a apresentação da letra a pagamento, mas a exequente articulou no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente, como se observa da leitura do mesmo, e os embargantes reconhecem no art. 1.º da petição de embargos.
Mesmo quando a letra de câmbio mais não é que mero documento quirográfico da obrigação causal, presume-se a existência e a validade da dívida nela documentada, incumbindo ao executado a prova do contrário (extinção ou invalidade do crédito). «O fundamento para a atribuição de força executiva aos títulos de crédito quirográficos é o de que, não obstante a perda do direito de ação cambiária do portador, não se extingue a obrigação causal, pois a subscrição daqueles títulos, em princípio, não importa uma novação, mas antes uma “datio pro solvendo”» (J. H. Delgado de Carvalho, Ação executiva para pagamento de quantia certa, 2.ª ed., Quid Juris, 2016, p. 387, v. também doutrina e jurisprudência aí indicada). Vale aqui o disposto no art. 458, n.º 1, do CC: Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário. A necessidade de articular no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente, por força do art. 703, n.º 1, al. c) do CPC, constitui um ónus de alegação, não um ónus de prova; esta não tem de a fazer o exequente, cabendo ao executado a prova do contrário, por força do disposto no art. 458, n.º 1, do CC (no mesmo sentido, Delgado de Carvalho, ob. cit., pp. 388-9).
2. Da matéria de facto impugnada
Requer a recorrente (embargada e exequente) que seja alterada a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, passando a incluir-se nos factos provados o seguinte, que na sentença consta do elenco dos não provados:
«16 - O contrato de locação operacional foi cessado/denunciado pela 1ª embargante em 22-IV-20.»
O recorrente pode impugnar a decisão sobre a matéria de facto, conquanto observe as regras contidas no art. 640 do CPC. Segundo elas, e sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar: i) os pontos da matéria de facto de que discorda; ii) os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, incluindo, quando se trate de meios probatórios gravados, a indicação das exatas passagens da gravação em que se funda o recurso; iii) a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Estas normas foram cumpridas pela embargada, exequente e ora recorrente, pelo que passamos a apreciar.
Relacionado com a matéria impugnada, está provado o seguinte facto:
«7 - O veículo supra foi entregue (pela 1ª embargante) à embargada em 22-IV-20 (‘AUTO DE RECEPÇÃO’ junto a fls. 28) com 152.970 kms».
Relativamente a esta matéria, na petição de embargos, os embargantes apenas dizem que «Não se alcança de nenhum dos documentos juntos com o requerimento executivo que a referida viatura com a matrícula “OU” tenha sido devolvida em 22/04/2020» (art. 4.º da p.e.); e que «para que se possa liquidar a quantia exequenda, entendem os executados (…) que é absolutamente imprescindível que a exequente prove qual foi, exatamente, o dia, mês e ano em que a referida viatura foi devolvida» (art. 5.º da p.e.).
Sendo a devolução da viatura imputada à executada um facto pessoal da mesma, a defesa argumentada nos citados artigos da petição de embargos sempre seria ineficaz. Teria a executada de ter negado tal entrega (art. 574, n.º 3, do CPC), o que não chegou a fazer (se o tivesse feito haveria claramente má-fé processual), tentando apenas deixar no ar que tal facto não estaria provado, como se o desconhecesse e pudesse desconhecer. De todo o modo, a exequente veio juntar documento demonstrativo da devolução do veículo pela executada, que esta não pôs em causa, e que o tribunal a quo teve em consideração, e bem, no transcrito facto 7.
Vejamos se este facto, conjugado com outros e com a demais prova produzida, nos permite concluir que o contrato objeto dos presentes autos cessou a sua vigência, por iniciativa e vontade da sociedade embargante, no dia 22 de abril de 2020, com a entrega do veículo com a matrícula “OU”.
Nos termos da cl. 3.ª do contrato-quadro (dado integralmente por reproduzido no n.º 1 da matéria de facto), um contrato individual termina quando o automóvel é devolvido à “AA” após ocorrência de uma das seguintes situações:
a) após decorrido o número de meses contratados;
b) após percorrida a quilometragem técnica máxima, se tal ocorrer antes de decorrido o número de meses contratados;
c) por perda total do automóvel;
d) por denúncia por parte do cliente, com as consequência previstas na Cláusula 20.ª;
e) no caso de uma reparação que, pelo seu elevado valor e pelo número de meses decorridos ou pelo número de quilómetros percorridos, não seja economicamente viável:
f) por resolução da iniciativa da “AA”, sempre que o Cliente incumpra definitivamente alguma das suas obrigações, tornando-se o incumprimento temporário definitivo pelo envio pela “AA” para a sede do Cliente de carta registada intimando ao cumprimento em prazo razoável e pela não reposição, neste prazo, da situação que se verificaria caso o incumprimento não houvesse tido lugar (cf. cláusula 24.ª).
Conforme documento n.º 5 junto com o requerimento executivo inicial (não posto em causa e dado por reproduzido no facto n.º 5), e de acordo com as explicações da testemunha “EE”, com conhecimento do facto por ser a gestora comercial da conta da sociedade embargante desde 2017, o contrato individual inicial, que tinha sido celebrado por 48 meses (4 anos), foi a dada altura prorrogado a pedido da embargante para 84 meses (7 anos).
Portanto, a devolução do veículo em 22/04/2020 ocorreu na vigência do contrato, concretamente, cerca de 1 ano e 2 meses antes do termo contratual, e por exclusiva vontade e iniciativa da embargante, como a mesma testemunha também asseverou.
Conhecendo e não podendo deixar de conhecer os contratos por si celebrados, a embargante bem sabia que a entrega do veículo à embargada, (14 meses) antes de decorrido o prazo contratual, sem que tivesse sido atingida a quilometragem técnica máxima (220.001 quilómetros – doc. 5 junto com o requerimento executivo inicial, dado por reproduzido no facto n.º 5), sem que tivesse havido perda total do veículo, sem que o veículo carecesse de reparação economicamente inviável, e sem que a embargada tivesse resolvido o contrato, apenas poderia significar uma denúncia por parte da embargante.
«Denúncia» designa a cessação unilateral e discricionária, imotivada, de um contrato. Bem sabia a embargante que ao entregar o veículo, 14 meses antes do fim aprazado para o contrato, estava a pôr termo ao mesmo, por forma unilateral e discricionária. Era, aliás, esse o seu intuito, como clarificado pela já referida testemunha.
Deve, pois, dar-se como provado o facto com o n.º 16 que o tribunal a quo considerou não provado:
16 - O contrato de locação operacional foi cessado/denunciado pela 1ª embargante em 22-IV-20.
3. Do suscitado preenchimento abusivo do título
Na sequência da cessação antecipada do contrato pela embargante, a embargada emitiu à sociedade embargante:
- a nota de crédito 31/099349, no valor de € 580,39 (facto 14), de forma a anular os efeitos de parte da fatura 13/205674, no valor de € 458,22, correspondente ao mês de abril (facto 6) e da fatura 13/227069, no valor de € 458,22, relativa ao mês de maio (facto 13), restando, então, por satisfazer a quantia de € 336,05;
- a fatura 42/341341, no valor de € 2.716,18 (facto 9) relativa aos valores devidos pela denúncia, da qual consta expressamente «Tipo de faturação: rescisão antecipada», «data final contrato 2021/06/29»; «data rescisão 2020/04/22»;
- a fatura 42/351077, no valor de € 2.539,91 (facto 12) relativa ao recondicionamento, da qual constam os seguintes dizeres: «Tipo de faturação: serviços não contratados» «Valor referente à inspeção de recondicionamento da viatura»;
- a nota de débito 089897, no valor de € 5.871,10 (facto 10), da qual consta «Tipo de faturação: acerto dos quilómetros»; e,
- a nota de crédito 51/107586, no valor de € 618,41 (facto 11) a título de compensação pelo IUC pago.
Dada a falta de pagamento do resultado destes vários documentos, a embargada notificou todos os executados (em outubro e novembro de 2020) do total em dívida (€ 10.844,83) e de que, na falta de pagamento, teria de executar a letra de câmbio dada em garantia (facto 15). Não tendo sido efetuado o pagamento, a embargada preencheu a letra, acrescendo ao capital em dívida os juros vencidos até 30/04/2021 (€ 625,06), com o valor de € 11.469,89.
Não há notícia de qualquer reação dos embargados às várias faturas, notas de crédito e nota de débito que foram recebendo, não podendo deixar de conhecer o seu fundamento, constante de cada documento e com suporte nas cláusulas dos contratos celebrados, como melhor veremos no ponto 3.
O preenchimento abusivo do título foi o único fundamento argumentado pelo tribunal a quo para julgar procedentes os embargos de executado. Transcreve-se na íntegra a parte de «Direito» da sentença:
«Para apreciar o alegado preenchimento abusivo, importa analisar as várias parcelas em que a embargada decompõe a quantia aposta na livrança – verificando-se não ser devida qualquer quantia por ‘rescisão antecipada’, quer por esta não ter existido (a entrega do veículo, e sua aceitação pela embargada, corresponderia a uma resolução por mútuo acordo), quer por que o contrato já tinha sido resolvido pela embargada (não podendo existir qualquer ‘reactivação’ do contrato, ou revogação da resolução, sem intervenção de todos os contraentes, e pela mesma forma).
«Para saber se é devida qualquer quantia a título de ‘acerto de quilómetros’ (cláusula 19ª), importaria saber qual a quilometragem da viatura na data da resolução – facto que a própria embargada ignora.
«Quanto aos ‘custos de recondicionamento’, importa notar que no ‘Auto de Devolução’ (cláusula 4ª) não constam quaisquer danos (ou valor de reparação) – não tendo sido acordada a realização de qualquer ‘peritagem’ por outra entidade, sem a presença da embargante; por outro lado, não tendo sido demonstrado o pagamento de qualquer reparação (pela embargada), não é devido o pagamento de qualquer ‘custo’ (que não existiu) – não tendo sido contratado o pagamento de valores orçamentados, mas, sim, de “custos” (efectivos).
«Conclui-se, assim, que, por não serem devidos os valores supra (pontos 9, 10 e 12), a letra foi preenchida abusivamente
Aquando da emissão e subscrição pelos embargantes (aceitante e um dos avalistas), a letra não estava preenchida com todos os dizeres necessários à sua plena eficácia, situação muito comum no comércio jurídico.
As letras de câmbio podem ser emitidas «em branco», o que acontece quando lhes falte algum requisito, conquanto tenham, pelo menos, uma assinatura, que tanto pode ser do sacador, como do aceitante, do avalista ou do endossante, e que tal assinatura tenha sido feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária (Oliveira Ascensão, ob. cit., pp. 112-5).
O art. 10 da LULL contempla a hipótese, determinando que, «se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave».
Desta forma, o sacador pode ficar vinculado para além do negócio de emissão, sujeito a uma vinculação que não projetara, exigindo-se, todavia, que o saque e o lançamento em circulação tenham sido voluntários. Nas palavras de Oliveira Ascensão, este é «o principal significado do art. 10.º. Pode ser entendido como admitindo uma espécie de delegação de preenchimento: não deixa de haver vinculação cambiária se o preenchimento for feito por terceiros, e se de certa maneira a vinculação preceder a formação da letra. Mas o sacador que assim se vincula fica nas mãos de terceiros quanto ao preenchimento, não podendo fugir à autonomia da letra invocando a violação de acordos extra-cartulares» (ob. cit., pp. 116-117). Mais adiante, continua: o significado da letra em branco «está em admitir a vinculação do sacador após o preenchimento abusivo, bem como a invocação da violação do acordo de preenchimento nas relações imediatas» (ob. cit., p. 119).
A letra incompleta no momento da sua subscrição deve, pois, ser preenchida em conformidade com o estipulado entre as partes a esse propósito, no vulgarmente designado «pacto de preenchimento», sob pena de o seu preenchimento se considerar abusivo. O pacto de preenchimento é um contrato concluído entre os sujeitos da relação cambiária e fundamental, que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário no que respeita aos elementos que permitem a sua exequibilidade. O ato material do preenchimento deve respeitar aquele contrato (art. 406, n.º 1, do CC).
Esse contrato pode ser oral ou até tácito, como afirma Carolina Cunha na sua tese de doutoramento, Letras e Livranças: Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, 2012, nomeadamente, pp. 620-1:
«Em nosso entender, a subscrição e entrega voluntária do título (conscientemente) deixado em branco, através da qual se manifesta a intenção de deixar o preenchimento do título ao cuidado do recetor, é suficiente para permitir a aplicação do art. 10.º LU. Já os termos em que o complemento deve vir a ser efetuado tanto podem constar de documento escrito, como podem ter sido objeto de mero acordo verbal (com as dificuldades probatórias que acarreta em caso de posterior conflito). Podem, ainda, “resultar implicitamente do próprio contrato que dá origem à letra, isto é, da relação jurídica fundamental”, hipótese em que o acordo de preenchimento será tácito. (…) Por outro lado, ressalvadas as hipóteses de incompletude proveniente de lapso, parece-nos que haverá sempre pelo menos um acordo tácito das partes quanto aos termos do preenchimento, hermeneuticamente extraível do contexto negocial mais vasto em que a subscrição e entrega do título se inserem.
«Não quer isto dizer que, na prática, não surjam dificuldades relacionadas com a reconstrução ou comprovação dos termos desse acordo. Em última análise, tais dificuldades resolvem-se por intermédio das regras relativas ao ónus da prova. Nunca é demais recordar que, em sede do art. 10.º LU, nos movemos no interior de um conflito aberto: cabe ao subscritor em branco demonstrar o quid com o qual o preenchimento é desconforme. Por conseguinte, se não lograr reconstruir em juízo os termos do acordo de preenchimento, o credor será admitido a exercer o seu direito cartular tal como o título o documenta.»
Não apenas o aceitante, mas também o avalista de uma letra em branco, que tenha intervindo na celebração do pacto de preenchimento respetivo, pode opor ao exequente que igualmente tenha sido parte nesse pacto a exceção material do preenchimento abusivo; pois se exequente e executado foram partes no pacto de preenchimento, estamos no domínio das relações imediatas.
Em qualquer caso, é ao oponente (in casu os recorridos aceitante e avalista), que cabe o ónus da prova dos factos constitutivos dessa exceção.
Assim resulta do art. 342, n.º 2, do CC e é recorrentemente afirmado na jurisprudência e na doutrina, exemplificando-se com os seguintes acórdãos, todos do STJ:
- De 11/10/2022, proc. 3070/20.1T8LLE-A.E1.S1:
«V - O pacto de preenchimento é o ato através do qual as partes do negócio cambiário acordam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito emitido, definindo a obrigação cambiária, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, designadamente quanto ao seu montante, ao seu vencimento, ao lugar do seu pagamento, etc.
«VI - Pacto esse que pressupõe, além do mais, que o título cambiário tenha sido emitido e entregue em branco, isto é, sem que nessa altura se mostrasse preenchido com alguns dos seus elementos essenciais que dele devem constar aquando da sua apresentação a pagamento.
«VII - Pacto/acordo de preenchimento esse que pode e deve ser objeto de interpretação à luz dos critérios previstos nos artºs. 236º e sgs. do C. Civil.
«VIII - Quem invoca o preenchimento abusivo de um título cambiário, tem o ónus de alegação e prova dos factos integrantes desse abusivo preenchimento, a começar, desde logo, pela existência de um pacto estabelecido para o seu preenchimento.
«IX - A posterior inserção no título de uma quantia superior àquela que decorre do acordo realizado para o efeito, não conduz à nulidade do título, mas tão só à redução do quantitativo».
- De 27/05/2021, proc. 101/19.1T8ANS-A.C1.S1 :
«VIII. Incumbe ao executado/oponente, como facto impeditivo do direito invocado pelo exequente, àquele a quem o pagamento é exigido, a alegação e prova da inobservância do acordo de preenchimento, ou do preenchimento abusivo».
- De 15/03/2018, proc. 1010/14.6YYLSB-A.L1-6:
«4.1.- Sendo a execução instaurada pelo beneficiário de livrança subscrita e avalizada em branco, e tendo o avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento, tal como o seu subscritor, é-lhe permitido opor ao beneficiário a exceção material de preenchimento abusivo do título, cabendo-lhe, porém, o ónus da prova dos factos constitutivos da referida exceção.
«4.2 - Para efeitos do referido em 4.1., e porque de exceção material de preenchimento abusivo do título se trata, carece o executado oponente, no seu articulado, de alegar factos concretos - constitutivos - suscetíveis de integrar a exceção de direito material invocada - a do preenchimento abusivo».
- De 15/05/2014, proc. 1419/11.7TBCBR-A.C1.S1:
«IV - Para que se coloque uma questão de preenchimento abusivo é necessário que se demonstre a existência de um acordo, em cuja formação tenham intervindo o avalista e o tomador-portador do título, acordo que este último, ao completar o respetivo preenchimento tenha efetivamente desrespeitado.
«V - É aos recorrentes/avalistas que incumbe fazer a prova de tais acordo e inerente desrespeito».
- De 30/09/2010, proc. 2616/07.5TVPRT-A.P1.S1:
«4. Tendo o embargante a qualidade de avalista, incumbia-lhe alegar e provar factos que lhe permitissem invocar o preenchimento abusivo, designadamente que interveio no pacto de preenchimento, onde então lhe seria possível questionar a obrigação exequenda, afirmando nomeadamente a sua inexistência por pagamento das quantias mutuadas (art. 342°, nº 2 C.Civil). É que esta alegação desempenharia a função de exceção no confronto com o direito que o exequente pretende fazer valer na execução, assim fazendo uma oposição de mérito à execução».
- De 31/09/2009, proc. 08B3815:
«1. Tendo intervindo na celebração do pacto de preenchimento de uma livrança incompleta, o avalista pode opor ao beneficiário a exceção material do preenchimento abusivo, quando a execução foi por este instaurada.
«2. Cabe então ao avalista o ónus da prova dos factos constitutivos dessa exceção».
- De 17/04/2008, proc. 08A727:
«I - Resultando dos factos assentes que as letras foram entregues à exequente em branco, só com as assinaturas de aceitante e avalistas, a fim de garantirem o pagamento das quantias que à sacadora fossem devidas pela aceitante em consequência de eventual incumprimento de dois contratos de financiamento para aquisição de dois veículos automóveis, podem os executados opor à exequente o incumprimento do acordo de preenchimento que tenham subscrito, desde que se encontrem no âmbito das relações imediatas, ou seja, enquanto o título não é detido por alguém estranho às relações extracartulares.
«II - Esta exceção, dita de preenchimento abusivo, como exceção de direito material que é, deve ser articulada e provada pelos executados, face ao disposto no art.º 342º, n.º 2, do CC, o que implica serem os próprios executados os onerados com a prova dos termos do pacto».
- De 14/12/2006, proc. 06A2589:
«3) Como exceção de direito material, o preenchimento abusivo deve ser alegado e provado pelo embargante em processo de embargos de executado, cumprindo ao embargante demonstrar que a aposição de data e montante foram feitas de forma arbitrária e ao arrepio do acordado».
- De 24/05/2005, proc. 05A1347:
«1 - Quem entrega uma livrança em branco fica com o encargo de fazer a prova do seu preenchimento abusivo; e essa prova, no caso de execução, terá de fazer-se nos embargos de executado, cuja petição se destina à impugnação dos requisitos do título executivo e do direito substancial do exequente, em termos idênticos aos da posição assumida pelo contestante em processo comum de declaração (art.ºs 812 e ss., do CPC)».
Juntamente com o título assinado pelos executados, mas não preenchido noutros campos fundamentais, os executados (aceitante e avalistas) celebraram por escrito com a exequente (sacadora) um acordo de preenchimento, intitulado «contrato de garantia» (dado por reproduzido no facto n.º 4), mediante o qual acordaram que:
- os avalistas se constituem garantes solidários e principais pagadores das obrigações que resultam do contrato 28/00 e obrigam-se a pagar ao 1.º outorgante, ao primeiro pedido deste, qualquer quantia que lhes seja exigida ao abrigo do referido contrato, renunciando, desde já, ao beneficio de excussão prévia e a qualquer outra exceção ou meio de defesa oponível;
- a garantia se mantém em vigor até ao cumprimento integral de todas as obrigações emergentes do contrato de aluguer;
- como garantia das obrigações emergentes do contrato de aluguer o 1.º outorgante sacou uma letra de câmbio em branco aceite pelo 2.º outorgante e avalizada pelos 3.ºs, subscrevendo-a todos de boa fé e de livre vontade, com a intenção de contraírem uma obrigação cambiaria;
- em caso de incumprimento das obrigações emergentes do contrato de aluguer supra identificado, o 1.° outorgante poderá preencher a letra de câmbio colocando-lhe como data, qualquer uma desde que posterior à verificação do incumprimento e 8 dias após interpelação extra judicial a efectuar por carta registada com aviso de recepção enviada para as moradas do 2.° outorgante e dos avalistas constantes do presente contrato; com o valor correspondente à soma de todas as quantias que forem devidas ao abrigo do contrato de aluguer supra identificado, acrescida de juros de mora vencidos e todas as penalidades contratuais e legais; e sem prejuízo da faculdade de exigir ao abrigo desta garantia o pagamento de todas as dívidas constituídas antes ou depois do preenchimento deste título de crédito desde que nele não incluídas, através do recurso a quaisquer meios previstos na lei para esse efeito.
Conforme exposto, recaía sobre os embargantes o ónus da prova do abuso no preenchimento, o que manifestamente não fizeram. Aliás, logo na petição de embargos, como que ignorando esse ónus, limitam-se a afirmar que a exequente não demonstra como chegou ao valor da letra.
Pelo contrário, resulta dos autos, graças aos documentos juntos pela embargada/exequente, que os valores que deram origem à quantia pela qual a letra de câmbio foi preenchida estão justificados pelos contratos celebrados entre as partes, da seguinte forma:
i. Nos termos da cláusula 20.ª do contrato-quadro (dado como reproduzido no facto n.º 1), epigrafada «Cessação antecipada do contrato individual», a sociedade embargante e a embargada estipularam que, tendo em consideração que a “AA” adquire as viaturas objeto de cada contrato individual de aluguer no estado de novo e especificamente para a celebração de tal contrato, bem como que o valor das remunerações-acordadas depende, além do mais, do período contratado, decorridos 12 meses desde o início do contrato, e no caso de o contrato individual terminar antecipadamente por alguma das razões previstas nas alíneas b) ou d) do número 1 da cláusula 3.ª, haverá lugar ao pagamento, a título de indemnização, de um montante correspondente a 40% do total de rendas vincendas, entre a data de terminação antecipada e a data prevista de final de contrato, acrescido ou deduzido do valor do acerto de quilómetros calculado nos termos deste contrato quadro.
ii. Nos termos da cláusula 19.ª do mesmo contrato-quadro, as partes estipularam igualmente que, a diferença entre os quilómetros percorridos (resultante da diferença entre o número de quilómetros registados no momento da entrega do veículo e o número de quilómetros registados no início do contrato) e os quilómetros contratados seria faturada ou creditada à recorrida consoante o número dos percorridos fosse, respetivamente, superior ou inferior ao número dos contratados.
iii. Na cláusula 4.ª, n.º 2, alínea c), do referido contrato-quadro, as partes haviam ainda estipulado que, no momento da entrega do veículo, a locatária, i.e., a recorrida sociedade, ficaria obrigada a pagar os eventuais custos de recondicionamento do mesmo.
Ao abrigo das três referidas cláusulas, a recorrente emitiu, respetivamente, as faturas descritas e dadas por reproduzidas nos n.ºs 9, 10 e 12 da matéria de facto provada.
i. a fatura 42/341341, no valor de € 2.716,18 (facto 9) relativa aos valores devidos pela denúncia, da qual consta expressamente «Tipo de faturação: rescisão antecipada», «data final contrato 2021/06/29»; «data rescisão 2020/04/22»;
ii. a nota de débito 089897, no valor de € 5.871,10 (facto 10), da qual consta «Tipo de faturação: acerto dos quilómetros»; e,
iii. a fatura 42/351077, no valor de € 2.539,91 (facto 12) relativa ao recondicionamento, da qual constam os seguintes dizeres: «Tipo de faturação: serviços não contratados» «Valor referente à inspeção de recondicionamento da viatura».
Porquanto exposto, concluímos que o presente recurso procede totalmente.
Sumariando, nos termos do art. 663, n.º 7, do CPC:
I. Os títulos de crédito são títulos executivos per se, não carecendo de ser alegada no requerimento executivo inicial a relação material que lhes deu origem; a menos que tenham perdido a sua força cambiária e estejam a funcionar como meros quirógrafos, pois neste caso os factos constitutivos da relação subjacente têm de constar do próprio documento ou ser alegados no requerimento executivo (alegação que a exequente dos autos fez).
II. Mesmo quando uma letra de câmbio mais não é que mero documento quirográfico da obrigação causal, presume-se a existência e a validade da dívida nela documentada, incumbindo ao executado a prova do contrário (prova que os executados/embargantes não fizeram).
III. A letra de câmbio aceite ou avalizada em branco admite, mas apenas nas relações imediatas, a invocação da violação do acordo de preenchimento (invocação que os embargantes fizeram).
IV. Sobre quem exceciona o preenchimento abusivo de um título cambiário recai o ónus de alegar e provar os factos integrantes desse abuso (prova que os embargantes não fizeram).

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, julgando os embargos de executado totalmente improcedentes e determinando o consequente prosseguimento da execução.
Custas pelos embargantes.

Lisboa, 1/06/2023
Higina Castelo (Relatora)
Arlindo Crua (Primeiro Adjunto)
Paulo Fernandes da Silva (Segundo Adjunto)

[1] Rectius, 2020.