Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27472/17.1T8LSB-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
DESPESAS DE CONSERVAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I– As despesas que o art.º 10/1-b do DL 149/95 põe a cargo do locatário financeiro são as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns de edifício e aos serviços de interesse comum […] “(e não a outras como, por exemplo, despesas de conservação, pois estas são sem dúvida, da responsabilidade do locador financeiro) […].”

II– Seja como for, perante o condomínio, o locador financeiro é, pelo menos, também responsável pelo pagamento dessas despesas (por força do art. 1424 e parte final do art. 1420/2, ambos do Código Civil, que falam de despesas de conservação e fruição e não apenas de fruição como o art. 10/1-b do DL 149/95).

III– Não tendo o locador financeiro, executado com base na acta da AG do condomínio, impugnado as deliberações daquelas despesas, nem tendo alegado não ter sido convocado para a AG, ou não ter sido notificado dessas deliberações, nem sequer tendo dito que a existência do locatário financeiro era do conhecimento do condomínio (o que aliás não podia ocorrer porque o contrato de locação financeira só foi celebrado entretanto e só iniciou a sua vigência dois dias antes da AG), nenhuma razão havia para pôr em causa a obrigação exequenda cuja existência é presumida pela acta, título executivo, pelo que os embargos sempre teriam de ser improcedentes, como o foram.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados


O condomínio do prédio sito na Rua F moveu uma execução contra o B-SA, para obter dele o pagamento de 6247,46€ respeitante a quotizações mensais e uma quota extra, esta no valor de 4980€, e 177,20€ respeitante aos juros de mora à taxa legal vencidos até 11/12/2017, apresentando como título executivo as actas 28 e 29 das assembleias de condóminos do prédio, realizadas nos dias 02/02/2017 e 04/05/2017, respectivamente.
O executado deduziu a oposição à execução mediante embargos de executado alegando, em suma, que nas datas de aprovação [na AG de 04/05/2017] e de vencimento da quota extra para a realização de obras já não era proprietário das fracções, as quais adquiriu em 31/07/2012 e vendeu em 28/04/2017 (vd docs que se protestam juntar), pelo que não está obrigado a pagar essa quota extra.
Depois de ter acabado por juntar os documentos que protestava juntar (quase um ano depois), constatou-se que os mesmos não diziam respeito à alegada venda, mas a contratos de locação financeira, dados como celebrados a 28/04/2017 e com início a 02/05/2017.
O exequente contestou impugnando de direito; o condomínio convoca para a AG os proprietários registados; os contratos de locação financeira estão sujeitos a registo predial; os alegados contratos de locação financeira não constam do registo, pelo que não lhe são oponíveis (art. 5/1 do Código do Registo Predial); o executado não impugnou as deliberações da AG; os locadores financeiros são sempre responsáveis pelo pagamento das quotas condominiais.
No despacho saneador os embargos foram julgados improcedentes.
O executado recorre deste saneador-sentença – para que seja revogada -, terminando as suas alegações dizendo, em síntese feita por este TRL, que:
Nas datas de aprovação e vencimento da despesa de condomínio (“quota extra”) em apreço, o executado havia cedido, em locação financeira, as fracções. Ora, é jurisprudência repetida e largamente dominante (com assento legal no art. 10/1-b do DL 149/95, de 24/06), que as despesas de condomínio, no caso de locação financeira de fracção autónoma, não recaem sobre o locador mas sim sobre o locatário. Pelo que o executado, locador, não é responsável pelo pagamento da comparticipação de condomínio em causa.

O exequente não contra-alegou.
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O tribunal recorrido teve o cuidado de fazer acompanhar este apenso com certidão do requerimento e do título executivo.
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Questão que importa decidir: se o executado é ou não responsável pelo pagamento da quota-extra para realização de obras.                            
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Estão dados como provados os seguintes factos [para além do que já consta do 1.º § do relatório deste acórdão]:
2.- Na AG dos condóminos do prédio realizada no dia 04/05/2017, foi aprovado por unanimidade o pagamento de uma quota extra com vencimento em 31/07/2017.
3.- O executado é proprietário das fracções autónomas designadas pelas letras I, H, F daquele prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial de G sob o número 0000.
4.- Essas fracções autónomas foram cedidas pelo exequente através de contratos de locação financeira assinados em 28/04/2017, produzindo os seus efeitos em 02/05/2017, pelo prazo de 10 anos.
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Decidindo:

A posição do executado, para além da inicial deturpação dos factos na raia da litigância processual de má-fé – dizia que não era proprietário das fracções porque as tinha vendido, quando afinal só as tinha locado, do que era impossível o tribunal aperceber-se logo porque, apesar de o protestar fazer, o executado não juntava a prova documental invocada para o efeito – parte de um erro fundamental que tornaria inútil toda a discussão posterior.
Com efeito, como explica o ac. do STJ de 10/07/2008, proc. 08A1057, que é o que defende de forma mais desenvolvida a tese aparentemente favorável ao executado, as despesas que o art. 10/1-b do DL 149/95 [com as alterações que lhe foram introduzidas até 2008 - será esse DL com as alterações que será referido daqui para a frente] põe a cargo do locatário financeiro, são as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns de edifício e aos serviços de interesse comum, não as despesas de conservação (e por isso também as de reparação). Diz o acórdão: “A obrigação do locatário financeiro de contribuir para o pagamento das despesas do condomínio a que nos estamos a referir (e não a outras como, por exemplo, despesas de conservação, pois estas são sem dúvida, da responsabilidade do locador financeiro) […]”.
Neste sentido, aliás, veja-se que o artigo 1424 se refere “às despesas necessárias à conservação e fruição”, tal como aliás a parte final do art. 1420/2, ambos do CC, e o art. 10/1-b do DL 149/95 se refere apenas “às despesas correntes necessárias à fruição.” A questão é também desenvolvida pelo ac. do TRG de 10/05/2018, proc. 501/15.6T8PTL.G1.
Só isto implicaria sem mais a improcedência do recurso, já que as despesas que estão na quota em causa, são despesas de reparação e não as despesas previstas no art.10/1-b do DL 149/95.
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Seja como for…

A sentença recorrida, depois de demonstrar que o executado é um locador financeiro (com enquadramento legal no DL 149/95, de 24/06), não tendo por isso, ao contrário do que diz o executado, deixado de ser proprietário das fracções, segue, com desenvolvimento e com base no ac. do TRL de 27/06/2006, proc. 4035/2006-7, a posição de que o art. 10/1-b do DL 149/95, ao dispor que é obrigação do locatário financeiro de fracção autónoma pagar as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns de edifício e aos serviços de interesse comum, vale apenas nas relações entre o locador e o locatário, não entre o locador condómino e o condomínio. Estas continuam a ser reguladas pelo regime próprio do direito real propriedade horizontal, no caso o art. 1424 do CC que põe essas despesas a cargo do condómino, que é o proprietário locador financeiro, com direito de regresso sobre o locatário por força do art. 10/1-b do DL 149/95. 
(neste sentido vai Ângela Sofia Miranda Guimarães, Da responsabilidade pelo pagamento de despesas de condomínio relativas a imóvel dado em locação financeira”, Abril de 2014, Universidade do Minho, pág.80: “o art. 1424.º do CC é constituído por uma obrigação propter rem com eficácia erga omnes cuja imperatividade não pode ser afastada pelo art. 10/1-b do DL 149/95 por este ter uma eficácia que não extravasa da relação locador-locatário”; a autora invoca vários acórdãos no mesmo sentido e considera que as coisas também são assim em Itália e no Brasil; e Pestana Vasconcelos, Direito Bancário, Almedina, 2017, págs. 282-283: “Trata-se de obrigações face ao locador e não perante o condomínio. Face a este quem está vinculado é o titular do bem, neste caso o locador. Nem poderia ser de outra forma, atento o risco que uma solução diversa – ou seja, se o obrigado perante o condomínio fosse o locatário – geraria para o condomínio dado o esvaziamento de um elemento crucial da garantia patrimonial: a fracção. Aliás, nada justificaria que aquele ficasse em pior posição no caso de o bem ter sido dado em locação financeira, do que se fosse arrendado (em ambas as situações, factos a que é estranho). Nada obsta, no entanto, a que o locador imponha ao locatário o cumprimento perante o condomínio [pagamento a terceiro liberatório – art. 770-a]. Poderá facilmente controlar do cumprimento dessa obrigação, impondo a entrega do recibo do pagamento. Agora, em última instância, se o locatário, pese embora a estipulação contratual nesse sentido não cumprir, o locador, como devedor perante o condomínio tem de o fazer; também neste sentido, com desenvolvimento, vai o já citado ac. do TRG de 10/05/2018, proc. 501/15.6T8PTL.G1).

Em sentido contrário existe uma outra corrente que defende que este artigo 1424 do CC cede perante o art. 10/1-b-2-e do DL 149/95, pelo que quem tem de pagar essas despesas é o locatário financeiro (contra a qual a sentença recorrida vai argumentando). Neste sentido, por exemplo, o já referido ac. do STJ de 06/11/2008, proc. 08B2623: “[estas] regras especiais […] “não têm mera eficácia obrigacional, não relevam apenas nas relações locador-locatário, antes são de aplicação universal, impondo-se a terceiros e, consequentemente, também ao condomínio”.
(vários acórdãos que vão neste sentido são citados nos estudos de Ângela Guimarães e Rui Pinto, este referido a seguir; entre eles, o ac. do STJ de 10/07/2008, proc. 08A1057 [2 dos 5 membros do colectivo não subscreveram a fundamentação nesta parte], que vai no mesmo sentido, dizendo este acórdão que o locatário financeiro que pague normalmente as contribuições condominiais e que vá às reuniões de condomínio tem legitimidade para ser executado pelas dívidas da fracção que utiliza, apesar de o proprietário ser o locador financeiro; inversamente, o proprietário locador não a terá; no mesmo sentido, ainda, veja-se o ac. do TRL de 06/04/2017, proc. 5094/14.9YYLSB-A L1.6).

E existe ainda uma outra corrente que aceita que o condomínio possa, sempre ou apenas em alguns casos, exigir o pagamento do locatário financeiro, mantendo embora o locador financeiro também a responsabilidade por esses pagamento enquanto o locatário não as pagar.

É, na 2.ª variante, a posição de Gravato Morais, que faz decorrer essa possibilidade do facto de o condomínio ter aceite a assunção da dívida (art. 595 do CC) pelo locatário no contrato com o locador e, na 1.ª variante, a posição de Rui Pinto, que aceita os fundamentos da corrente anterior quanto à responsabilidade do locatário, mas adere, quanto à responsabilidade do locador, à construção feita pelo ac. do TRP de 06/05/2008, proc. 0821567: “Num quadro em que a obrigação de pagar as despesas de condomínio cabe ao locatário, seja por transferência da lei (locação financeira), seja por transferência do locador (arrendamento urbano), a Assembleia de Condóminos, se lhe for comunicada a transferência dessa obrigação, pode exigir o pagamento quer ao locatário, quer ao locador; todavia, o proprietário locador só fica desonerado da dívida se e quando o locatário pagar.”

(Gravato Morais explica que se só ao locatário assistisse a obrigação de pagamento tal “significaria exonerar do pagamento das prestações de condomínio o titular de direito real sobre o imóvel, substituindo-o pelo titular de um direito obrigacional sobre o prédio” [Responsabilidade pelo pagamento de despesas de condomínio relativas a imóvel dado em locação financeira, anotação ao ac. do TRP de 14/03/2006, proc. 168/06, Cadernos de Direito Privado, n.º 20, páginas 50 a 60, Dez2007; e Manual de Locação Financeira, 2011, 2.ª ed., Almedina, págs. 121-127]; Rui Pinto, A execução de dívidas do condómino, O5/06/2017, no blog do IPPC, págs. 9/11, defende que a posição do locatário não corresponde a qualquer assunção de dívida).

A segunda corrente – da obrigação exclusiva do locatário financeiro – é de rejeitar, apesar de maioritária jurisprudencialmente, por, entre o mais, afastar, sem fundamento, a obrigação do locador financeiro constante do art. 1424 do CC: o locador financeiro condómino não se pode descartar, por contrato celebrado com terceiro, da obrigação de pagar esses encargos, contra o disposto no art. 1420/2 do CC, em prejuízo do condomínio. Esta corrente é rejeitada, principalmente com base neste argumento, pela doutrina especializada referida.

E como no caso dos autos não está em causa saber se o locatário financeiro é ou não também responsável pelo pagamento, já que ele não é executado, não é necessário optar por uma das outras duas correntes, já que qualquer delas implica que o executado destes autos, locador financeiro, seja responsável pelo pagamento das quotas que ainda não foram liquidadas.
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Diga-se, no entanto, que a questão levantada pelo exequente, na contestação, chama a atenção para um ponto que não deixa dúvida de que, no caso, só o locador podia ser responsável.

Diz o exequente que o contrato de locação financeiro está sujeito a registo predial e que, como no caso esse registo não foi feito, a existência da locação não lhe é oponível (arts. 3/5 do DL 149/95, e 2/1-l, 95/1-p, e 5/1 do Código do Registo Predial).

Esta argumentação não está certa, porque, não estando o condomínio numa posição incompatível com o titular registado, a questão da oponibilidade do direito não se coloca (neste sentido, veja-se Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, UCE, 2017, págs. 89-90: “[…] qualquer terceiro estaria fora da esfera da oponibilidade? Não é assim. Se recordarmos o que a respeito da característica dos direitos reais escrevemos, para que dela se possa falar é necessário que haja incompatibilidade de direitos. É preciso que o terceiro seja interessado, considerando que, em razão da falta de registos, a sua posição seja afectada na consistência teórica do direito e nas implicações práticas do seu exercício. Se o fundeiro pede a condenação do superficiário no pagamento do triplo das prestações anuais em falta, em razão da mora (art. 1531/2 do CC), a ausência de registo do facto jurídico de que resultou a transmissão do direito de propriedade do autor não obsta à satisfação do pedido. As partes não estão em conflito sobre esse direito de propriedade. O terceiro não é interessado, pois não invoca uma situação jurídica incompatível com a situação jurídica fundada no facto sem publicidade registal. Esta é a primeira restrição relevante à interpretação literal do art. 5/1. Terceiro é um terceiro interessado. Depois, é preciso que tenha registado. […] Assim, terceiro interessado e com registo a seu favor. […]”).

E note-se que seja qual for a posição que se tome quanto à noção de terceiro, a restrita – pela qual o art. 5/4 do CRP acabou por optar -, a ampla [na qual alguns incluem o caso da venda executiva, e outros também a penhora] ou a amplíssima, sempre se exige aquela incompatibilidade.

Mas, tendo em conta os factos provados – e lembre-se que se está no âmbito de uns embargos, em que é o executado que tem que alegar e provar factos que ponham em causa a obrigação exequenda cuja existência é presumida pelo título executivo -, aquela argumentação realça que os contratos de locação financeira foram celebrados necessariamente depois da convocação para a AG do condomínio e o executado não alega ter dado conhecimento dos contratos ao condomínio nem impugna a afirmação (aliás comprovada documentalmente) de que os contratos de locação financeira não foram registados predialmente.

Assim sendo, não se demonstra que o condomínio tivesse quaisquer razões para saber que existia um locatário financeiro, que o pudesse ter convocado para a Assembleia Geral de Maio de 2017 (aquela que aprovou a quota extra para realização de obras) e que pudesse ter tomado uma decisão que vinculasse o locatário financeiro, a admitir-se que isto era possível.

(repare-se que, por exemplo, no ac. do TRP de 06/05/2008, proc. 0821567, se parte do pressuposto dessa comunicação para que o condomínio possa exigir o cumprimento da dívida ao locatário; deve ser esta, também, a razão de ser da forma como Pinto Duarte, no estudo citado acima, coloca o problema: “Uma excepção a esta regra verificar-se-á quando a responsabilidade do terceiro resultar de disposição legal que expressamente o determine e que seja oponível ao condomínio.”; e o ac. do STJ de 10/07/2008, proc. 08A1057, refere-se ao “locatário financeiro que pague normalmente as contribuições condominiais e que vá às reuniões de condomínio”)

Por fim, o executado não alega, como o teria de fazer, para além do mais por força do art. 1433 do CC, não ter sido convocado para a AG de 04/05/2017, nem não ter sido notificado para ela, nem ter impugnado a respectiva deliberação, e não pôs em causa aquilo que implicitamente era dito pelo exequente, ou seja, que tinha sido ele o convocado para a AG respectiva, pelo que a deliberação da AG sempre o vincularia (tenha-se sempre em conta que se está perante uma execução, à qual serve de título executivo a acta da AG do condomínio, por força do artigo 6/1 do DL 268/94, de 25/10: “A acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte”, cabendo pois ao executado/embargante pôr em causa a validade e a eficácia do titulo executivo, para o que teria que alegar os respectivos factos).

Assim sendo, tudo impõe a improcedência do recurso.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras) pelo executado (que é quem perde o recurso).


Lisboa, 11/12/2019


Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas