Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1863/2007-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
INQUÉRITO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
MENORIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/03/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- Os inquéritos realizados no âmbito de processos respeitantes à jurisdição de menores desactualizam-se quando se verifica um grande distanciamento temporal entre o momento em que são elaborados e a data em que é proferida a decisão; in casu o inquérito foi realizado no dia 12-10-2001 e a sentença é de 29-9-2005.
II- O princípio que decorre do artigo 663.º do Código de Processo Civil segundo o qual a sentença deve tomar em consideração realidades que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento os encerramento da discussão, vale, por maioria de razão, em sede de jurisdição voluntária.
III- Tendo sido invocada alteração da situação económica do requerido e sendo manifesto que o decurso do referido lapso de tempo é susceptível de produzir alteração significativa da situação, o Tribunal, antes de decidir, deve, em tais circunstâncias de facto ou outras similares, determinar a realização de novo inquérito de modo a dispor de elementos actualizados.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :

1.    O  Magistrado do Mº Público propôs, contra Alfredo […] e Ana […], acção de regulação do poder paternal, distribuída ao […] Tribunal de Família e Menores […], relativa à menor, filha de ambos, E.[…] .
 
Frustrada a realização de conferência entre ambos, e efectuado inquérito, foi proferida sentença, na qual se confiou a menor à guarda da requerida, ficando o requerido obrigado a prestar-lhe alimentos, fixados no montante de € 160 mensais.
   
Inconformado, de tal decisão interpôs aquele a presente apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões :

-   Não existem, nos autos de regulação do poder paternal, elementos probatórios suficientes que sustentem a sentença e a mesma não resulta de uma correcta valoração dos relatórios sociais juntos aos autos.

-   O relatório sobre a situação sócio-económica do requerido data de 12/10/2001 e a sentença que se bastou com tal relatório foi proferida em 29/9/2005, volvidos 4 anos.

-   Desde 2001, data do relatório social, a vida do requerido alterou-se e bem assim a sua situação sócio-económica.

-  A sentença versa sobre factos, respeitantes á situação sócio-económica do requerido, manifestamente desfasados da realidade.

-    Deveria o Tribunal sustentar a decisão em elementos actuais.

-    Ao requerido foi omitida a possibilidade de fazer prova da sua situação sócio-económica.

-   As decisões no âmbito dos processos de jurisdição voluntária são tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade tendo em conta o interesse do menor.

-   A decisão ora em crise não se subsume aos critérios de oportunidade e conveniência, mas sim a um manifesto excesso de julgamento do juiz e, bem assim, um excesso de poder discricionário na tomada de decisão.

-    A decisão é nula por excesso de conhecimento jurisdicional.

-   A menor está entregue a uma ama, desde os 3 meses de idade, sendo esta senhora que dela cuida, que providência pelo seu sustento e inclusive lhe dá dormida.

-   Deveria a ama da menor ser ouvida em fase de inquérito a fim de se tomar uma decisão que salvaguardasse os interesses superiores da menor.

-   O tribunal a quo não encetou as diligências oportunas para apuramento das condições em que a menor vive.

-   A sentença fundamentou-se em elementos insuficientes para sustentar a entrega da menor à guarda e cuidados da mãe.

-   A sentença é nula porque o Mº Juiz a quo não colheu os elementos necessários das entidades fiscais e patronais, nem solicitou aos requeridos os esclarecimentos indispensáveis de modo a definir e quantificar as necessidades da menor e os rendimentos e despesas de cada um dos requeridos.

-   Na falta desses alimentos, impõe-se a anulação de todos os actos processuais posteriores à junção de inquérito para se completar a instrução do processo.

-   A prestação de alimentos deverá corresponder ao montante necessário a uma adequada satisfação das necessidades inerentes à idade da menor, ao seu estado de saúde, ás suas aptidões e ao nível social dos progenitores, tendo em vista a promoção do seu desenvolvimento físico, intelectual e moral.

-   Na fixação dos alimentos, deve obter-se um equilíbrio entre as possibilidades de quem os presta e as necessidades de quem os recebe.

-   A menor tem como despesas a quantia de € 100, valor auferido pela ama para cuidar, alimentar e dar guarida à menor.

-   As condições económicas que nortearam a decisão sobre fixação de alimentos, no que ao requerido se refere, são de 2001.

-   Não existem nos autos elementos sobre o vencimento da requerida que permitam ao Mº Juiz concluir, como o fez, que a situação económica do requerido é superior.

-  Desde 2001 a Setembro de 2005, a vida do requerido alterou-se substancialmente, tendo-se alterado a sua situação económica, para pior, em face da crise financeira e do elevado custo de vida.

-    A prestação alimentícia fixada é desproporcional aos rendimentos do requerido.

-   Deveria o Mº Juiz, antes da tomada da decisão de direito, colher elementos das entidades fiscais e patronais e solicitar esclarecimentos ao requerido de modo a definir e quantificar os seus rendimentos e despesas.

-   Não poderia o Mº Juiz a quo determinar a actualização da pensão alimentícia pelos índices de inflação publicados pelo INE, uma vez que tal não foi pedido na petição inicial.

-   O direito a alimentos é um direito actual e não diz respeito ao passado.

-   O montante de alimentos é devido desde o trânsito em julgado da sentença que deles conhece e fixa e não desde a propositura da acção.

-   Até à fixação dos alimentos por decisão, a obrigação existente é uma obrigação moral e não legal.

-   Não se pode aplicar o preceituado no art. 2006º do C.C. e condenar-se o requerido a pagar os alimentos fixados no valor de € 160, desde o ano de 2000, ano da propositura da acção de regulação do poder paternal.

-  Obrigar a pagar a prestação de alimentos fixada em 2005, desde o ano de 2000, é violento para o requerido e é forçá-lo a passar dificuldades económicas inesperadas e porventura à impossibilidade de cuidar da sua própria sustentação.

-   O art. 2006º do C.C. só tem aplicação nas acções de alimentos e não nas acções de regulação do poder paternal.

-  A serem devidos os alimentos desde a propositura da acção, sempre se deveria operar uma redução na pensão ora fixada no que aos anos anteriores respeita.

-   Não houve uma correcta aplicação do art. 177º,  nº2, da OTM, quando se prescindiu da fase das alegações, não se concedendo ao requerido a oportunidade de prestar e alegar o que entendesse por conveniente, uma vez que esteve presente na data agendada, pela 1ª vez, para conferência e não foi notificado de outra data.

-   E tanto assim é que não recebeu qualquer multa por ter faltado a uma diligência cuja comparência era obrigatória e pessoal.

-   Não existiu qualquer promoção ou pronúncia sobre requerimentos juntos aos autos pelo requerido.

-   Houve incorrecta interpretação do disposto nos arts. 2004° e 2006° do C.Civil.

-   Nestes termos, se pede o provimento do presente recurso e consequentemente a anulação da sentença ora em crise.
     
Não foram apresentadas contra-alegações.
     
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.    Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :

-     A menor E.[…], nascida a 31/8/97, é filha dos requeridos.

-    Os progenitores da menor viveram em união de facto durante alguns anos, tendo a menor nascido dessa ligação.

-    A requerida continua ainda afectivamente ligada ao requerido, alimentando a possibilidade de uma reconciliação e vivência em comum, não permitindo que a menor conviva com a pessoa com quem o requerido constituiu novo agregado familiar.

-   O agregado familiar da requerida é constituído por esta e pela menor, residindo numa casa arrendada, que ocupa o 1º andar de uma moradia de dois pisos. A casa é composta por quatro assoalhadas.

-   A requerida é empregada de balcão e aufere um vencimento líquido de € 365 mensais, efectuando, sempre que tem oportunidade, horas extraordinárias, o que lhe permite auferir em média cerca de € 600.

-   Tem encargos mensais fixos com a renda da casa no montante de € 300, com consumos domésticos no montante de € 50 e com a ama da filha no montante de € 100.

-    A menor tem estado sempre aos cuidados exclusivos da mãe desde a separação dos requeridos; após as aulas a menor vai para casa da ama, sendo esta que a vai buscar à escola e a leva para a casa da requerida após esta terminar o seu horário laboral; é em casa da ama, que toma conta da menor desde os três meses de idade, que a menor toma as refeições principais do dia e por vezes também aí pernoita.

-   A menor é urna criança sociável e está afectivamente ligada à progenitora; verbalizou à assistente social ter saudades do pai e que gostava de o poder visitar na sua casa.

-   As visitas do pai à filha são pontuais e têm-se limitado, face à postura da progenitora, a quando a menor está com a ama, que é mãe da sua companheira.

-  O requerido reside com uma companheira e os filhos desta numa moradia própria, que tem condições de habitabilidade.

-   O requerido desempenha a profissão de serralheiro, por conta própria, auferindo um vencimento líquido mensal de cerca de € 897;  tem trabalhadores a seu cargo; despende cerca de € 100 mensais com consumos domésticos; a sua companheira trabalha, auferindo cerca de € 423 mensais.

-   O requerido não comparticipa nas despesas da menor, justificando esta atitude com o facto de não ter acesso à filha.
 
3.   Nos termos dos arts. 684º, nº3, e 690º, nº1, do C.P.Civil, acha-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente.  
   
A questão a decidir centra-se, pois, na apreciação da decisão que regulou o poder paternal, relativamente à menor, filha dos requeridos.
   
Sustenta, a tal respeito, antes de mais, o requerido, ora apelante, achar-se totalmente desactualizada, face ao tempo decorrido após a realização do inquérito a si respeitante, a factualidade na qual se fundou a decisão recorrida.
   
Conforme dispõe o art. 663º, nº1, daquele diploma, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
     
Por maioria de razão, terá tal princípio aplicação em sede de jurisdição voluntária, como a de menores - na qual o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (arts. 1410º C.P.Civil e 150º OTM).
   
No caso, resulta dos autos que - ao invés do ocorrido quanto à requerida e à menor sua filha, relativamente às quais se recolheu informação mais actualizada - decorreram cerca de 4 anos, entre a data (12/10/2001) do relatório elaborado relativamente à situação do apelante, e aquela (29/9/2005) em que veio a ser proferida a sentença sob recurso.
   
Afigura-se manifesto que o decurso de tal lapso de tempo é susceptível de produzir alteração significativa da situação, sobretudo económica, das partes, em termos de justificar sensível modificação da base factual em que assentou a sentença proferida.  
     
Impor-se-ia, assim que, previamente à prolação da mesma, houvesse sido ordenada a efectivação de diligências, incluindo a realização de novo inquérito, com vista à obtenção de elementos, actuais, respeitantes à situação do apelante.
 
 Na sua falta, haverá que, fazendo uso da faculdade conferida pelo art. 712º, nº4, do C.P.Civil, concluir pela anulação de tal decisão - quedando-se, consequentemente, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
 
4.   Pelo acima exposto, se acorda em, concedendo provimento ao recurso, anular a decisão recorrida, ordenando -se a sua substituição por outra que determine a realização de novas diligências probatórias, nos termos supra referidos.
     
Custas a fixar a final.


Lisboa, 3 de Maio de 2007


(Ferreira de Almeida - relator)
(Salazar Casanova - 1º adjunto)
(Silva Santos - 2º adjunto)