Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
395/14.9TNLSB.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: PACTO DE JURISDIÇÃO
CONHECIMENTO DE EMBARQUE
CONTRATO DE TRANSPORTE
SEGURO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O pacto atributivo de jurisdição firmado entre expedidor e transportador, expresso em cláusula pré-elaborada aposta em conhecimento de embarque, não é oponível ao destinatário da mercadoria (e seguradora sub-rogada na posição deste) porquanto não se alega nem se demonstra que o mesmo foi comunicado ao destinatário e  foi aceite por este,  de forma clara e precisa, tanto mais que tal cláusula é acessória e eventual.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Companhia de Seguros A. demanda B. e C., pedindo a condenação das Rés a pagar, solidariamente, à Autora a quantia de € 6.490,35, acrescida de juros de mora desde a citação.
Fundamentando a pretensão, alega que celebrou com J. contrato de seguro tendo por objeto a perda ou danos sofridos por objetos seguros durante o seu transporte. A 1ª Ré, enquanto transitária, e a 2ª Ré, enquanto agente marítimo e de navegação, sendo ainda armadora e dona de navios de transporte, celebraram com J. um acordo, no âmbito do qual, se obrigaram a expedir e a transportar por terra e mar mercadoria pertença desta, adquirida a uma sociedade chinesa. Sucede que quando J. abriu o contentor verificou que havia mercadorias danificadas, que tiveram de ser reparadas com o custo de € 6.490,35, valor esse suportado pela Autora que ficou sub-rogada nos direitos da sua segurada contra as Rés.
Contestando, a 1ª Ré arguiu a exceção dilatória da incompetência internacional do tribunal português porquanto consta nas condições do Bill of Lading que o foro competente é o Ningbo na China, sendo a lei aplicável a chinesa. Argumenta que se trata de um foro contratualmente convencionado, sendo o foro competente o da expedição. Sendo a J. o destinatário da mercadoria e tratando-se de um título negociável por ser o original, a J. aceitou os termos aí expressos e contratados (fls. 103-104).
A Autora respondeu à matéria da exceção, argumentando que o contrato em causa nos autos é um contrato trilateral assíncrono, sendo que a segurada da autora não teve intervenção na elaboração no Bill of Lading, sendo-lhe inoponível a cláusula atributiva de jurisdição (fls. 199-207).
Em 6.5.2018, foi proferido despacho saneador, que apreciou a exceção nestes termos:
«A 1ª Ré B. invocou a exceção da incompetência internacional do Tribunal Marítimo de Lisboa por violação do pacto atributivo de jurisdição, com o argumento de nos respetivos conhecimentos de embarque emitido neste transporte marítimo de mercadorias e juntos aos autos, se ter previsto que todas as questões ou litígios decorrentes destes documentos serão solucionados, no primeiro, pelo Tribunal de Ningbo na China. Pelo que, conclui a Ré dever qualquer reivindicação ou litígio decorrente deste contrato de transporte ser julgado perante aquele Tribunal.
Notificada para se pronunciar sobre a defesa por exceção deduzida, a Autora defendeu não lhe ser oponível, tanto mais que a sua segurada só teve conhecimento desse acordo após a adesão, não se tendo sobre o mesmo pronunciado.
Decidindo
Ao abrigo do art.º 94 n º 1 do CPC, as partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica.
O nº 3 condiciona a validade da eleição do foro à verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- O litígio reportar-se a direitos disponíveis;
- Ser aceite pela lei do tribunal designado;
-ser justificada por um interesse sério de ambas as parte ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra;
-não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
-resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito.
A Convenção de Bruxelas também prevê a admissibilidade dos pactos atributivos de jurisdição, verificados os pressupostos elencados no seu art.º 17.
De todo o modo, ressalta em ambos os diplomas a indispensabilidade da existência de acordo de vontades em designar um tribunal para resolver os litígios decorrentes de determinada relação material controvertida.
Esta mesma orientação tem vindo a ser sustentada por múltipla jurisprudência do Tribunal das Comunidades, asseverando-se não bastar como cláusula de jurisdição – a indicação do tribunal competente nas condições gerais de venda lavradas por uma única parte, impressa no verso do formulário. O acordo escrito terá sempre de envolver um encontro de vontades, que não a fixação unilateral do foro competente (cf. Ac de 14.12.1976). No mesmo sentido tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça (cf. Ac de 23.4.1996 e de 12.6.1997 entre outros.
Na senda do exposto, no caso em apreço, não obstante constar do conhecimento de embarque emitido a eleição do foro chinês para resolução de litígios decorrentes deste transporte de mercadorias, tal documento da lavra de terceiro, não é assinado pela Autora, nem pela sua segurada que inclusive negociou o transporte da sua mercadoria através da transitária, a Ré Rhenus. Portanto, além de Autora e Rés terem todas elas sedes em território nacional, não existindo um encontro de vontades entre a Autora, Rés e Chamada na eleição de foro, não pode considerar-se aquele pacto válido, improcedendo a exceção deduzida.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
«1. O conhecimento de embarque juntos aos autos pela A. contém uma clausula de escolha de lei e foro aplicável com afastamento de qualquer outro.
 2.  Essa escolha de lei e foro consta na face do documento é de fácil leitura e corresponde aos usos do comércio internacional.
3.  A escolha do foro e da legislação aplicável a um negócio de compra e venda internacional e ao respetivo transporte deve ser uma capacidade deixada à livre vontade das partes.
4.  O Código Civil no seu Artigo 405º permite-o e não o proíbe e o presente recurso é feito com base em decisões deste mesmo Tribunal que afasta a sua competência em situações em que as partes tenham acordado um foro e da legislação aplicável.
5.  Dado que os conhecimentos de embarque são negociáveis e permitem ao seu possuidor ter um título que representa a mercadoria em si, o conteúdo do mesmo tem que reproduzir a vontade das partes que nele se encontram identificadas a bem da segurança do comércio internacional.
6.  Mesmo as partes que nele não tenham intervindo na sua negociação (como o endossado do titulo) devem respeitar o seu conteúdo de forma a tornar seguro o comércio internacional e o transporte marítimo de mercadorias, na sua parte burocrática.
7.   Os que nele intervieram e se encontram identificados, não podem afastar o conteúdo ali expresso, porquanto face à importância do mesmo (por ser um título negociável e endossável) não podem dizer que não tinham conhecimento ou que quando contrataram não tinham consciência das condições em que o contratavam.
8.  Se no conteúdo de um conhecimento de embarque as partes escolheram na sua face um foro e uma legislação aplicável, não podem estes ser afastados por vontade de um Juiz ou de uma Jurisprudência que iria contra a vontade de, pelo menos uma das partes que livremente contratou o conteúdo desse contrato e que se o escreveu era porque o queria e não o contrário.
9.   Assim o douto despacho saneador ao decidir como decidiu violou o Artigo 405º do Código Civil o artº 8º da Constituição Portuguesa e os artºs 62º, 63º, 65º e 94º do Código de Processo Civil.
10.   A Convenção de Bruxelas também prevê a admissibilidade dos pactos atributivos de jurisdição, pelo que a sua rejeição viola o artº 17º da mesma.
11.   Devendo ser proferida decisão a considerar o Tribunal Marítimo de Lisboa internacionalmente como não competente e a lei portuguesa não aplicável.
Termos em que o presente recurso deverá proceder, devendo ser proferida decisão a considerar o Tribunal de Ningbo como internacionalmente o competente e a lei Chinesa a aplicável, com o que se fará a costumada JUSTIÇA.»
Contra-alegou a Autora, propugnando pela improcedência da apelação (fls. 275-278).
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]
Nestes termos, a questão a decidir consiste em determinar se o tribunal marítimo português é internacionalmente competente para apreciar o litígio.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a apreciação do recurso é a que que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
No conhecimento de embarque junto aos autos (original em inglês a fls. 55 e tradução a fls. 254 v) consta como Expedidor: D., Limited, com sede na China, como Destinatário: J. e como Transportador: a 1ª Ré. No canto inferior esquerdo do referido documento consta pré-impresso o seguinte texto: «CLÁUSULA DE COMPETÊNCIA E LEGISLAÇÃO O contrato indicado ou contido neste Documento de Carga é governado pelas leis da República Popular da China e qualquer reclamação ou litígio resultante do mesmo ou com ele relacionado será exclusivamente decidido pelos tribunais da República Popular da China e nenhum outro Tribunal.»
A questão que se coloca é a de saber se este documento consubstancia um pacto atributivo de jurisdição vinculativo para a Autora.
Nos termos do Artigo 94º do Código de Processo Civil,
«1 - As partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica.
2 - A designação convencional pode envolver a atribuição de competência exclusiva ou meramente alternativa com a dos tribunais portugueses, quando esta exista, presumindo-se que seja exclusiva em caso de dúvida.
3 - A eleição do foro só é válida quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis;
b) Ser aceite pela lei do tribunal designado;
c) Ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra;
d) Não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
e) Resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente.
4 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se reduzido a escrito o acordo constante de documento assinado pelas partes, ou o emergente de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de comunicação de que fique prova escrita, quer tais instrumentos contenham diretamente o acordo quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que ele esteja contido.»
Acerca da interpretação deste preceito e num caso muito similar, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3.5.2012, Aguiar Pereira, 43/09, nestes termos:
«(…) o contrato de transporte marítimo de mercadorias está documentado pelo conhecimento de embarque (Bill of Landing), em que fica a constar a declaração do carregador descrevendo as mercadorias que entregou e que devem, por sua vez, ser entregues ao destinatário.
No caso dos autos acresce ainda que também se fizeram constar as específicas condições as condições em que deveria ser efetuado o transporte e a cláusula adicional, naturalmente acordada entre o carregador e o transportador, no sentido da atribuição de jurisdição para o julgamento dos litígios decorrentes do transporte aos tribunais sediados em Marselha – França.
Para que não restem dúvidas, e em conclusão, a autora é parte no contrato de transporte cujo cumprimento defeituoso invoca e que está documentado no conhecimento de embarque.
E é assim a partir do momento em que a autora, na qualidade de destinatária da mercadoria e ainda que terceira em relação ao acordo inicial entre o carregador e o transportador, aderiu ao contrato e assumiu os direitos e obrigações inerentes à sua posição contratual.
De resto, como já se salientou a presente ação mais não é – pelo menos quanto à ré transportadora – do que a manifestação de direitos decorrentes do incumprimento do contrato por parte da ré.
3. Do que vem de ser dito não decorre, necessariamente, que seja oponível à autora a cláusula adicional inserida no conhecimento de embarque que titula o contrato de transporte e em que foi atribuída convencionalmente aos tribunais de Marselha – França, a jurisdição para julgar o presente litígio.
Como salienta Francisco Costeira da Rocha a páginas 239 da obra citada “uma coisa é a adesão do destinatário ao contrato de transporte, outra, bem diferente, é a da oponibilidade das cláusulas do contrato a esta parte assíncrona”.
No comércio internacional a utilização dos INCOTERMIS dispensa o conhecimento mais aprofundado das condições em que o negócio é celebrado, facilitando as cláusulas standard o conhecimento dos elementos essenciais do negócio celebrado entre o carregador e o destinatário.
Daí que a adesão ao contrato de transporte por parte da autora não implique a aceitação do pacto de jurisdição, que não é uma convenção típica ou normal do contrato de transporte.
Mais ainda. Tratando-se, como resulta da análise do próprio documento de fls. 12, de uma cláusula não negociada inserida num contrato pré-elaborado seria necessário para que ela vinculasse validamente a autora, no mínimo, que ela tivesse conhecimento do seu teor antes da data da adesão, de acordo com o regime geral das regras relativas às cláusulas contratuais gerais.
Nesse contexto, e em rigor, para que uma tal cláusula pudesse ser oposta ao destinatário do contrato de transporte, seria necessário a aceitação expressa do seu teor (no mesmo sentido Francisco Costeira da Costa, obra e local citado), o que não se verifica no caso dos autos.
(…)
Como já atrás se disse, o artigo 99º nº 3 alínea e) do Código de Processo Civil faz depender a validade do pacto atributivo de jurisdição da existência de um “acordo escrito ou confirmado por escrito” em que se faça menção expressa da jurisdição competente.
Quando a norma mencionada utiliza o termo “acordo” está a referir-se a um encontro de vontades, que tem que ser reduzido a escrito e assinado por ambas as partes. Isso mesmo esclarece o artigo 99º nº 4 do Código de Processo Civil ao referir-se a “acordo constante de documento assinado pelas partes” ou que resulte da troca de correspondência de que fique prova escrita, quer nela se contenha diretamente o acordo quer se contenha apenas cláusula de remissão para documento em que ele esteja contido.
Do que não pode prescindir-se é de um acordo escrito e assumido pelas partes já que se torna “necessária a este respeito uma descrição clara e concisa sobre a verdadeira intenção dos contraentes e a inequívoca certeza de que ambas as partes tiveram a intenção de atribuir a jurisdição a um tribunal estrangeiro” (assim o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de Fevereiro de 2004 in www.dgsi.pt) não sendo suficiente a inserção de uma cláusula adicional no conhecimento de embarque que titula o contrato de transporte a que a autora aderiu, mas não assinou, escrita com um tamanho de letra reduzido e sem qualquer tradução, a qual se não mostra ter sido aceite pela destinatária.
Não pode, pelo exposto, concordar-se com a afirmação contida na douta sentença impugnada de que “o pacto de jurisdição foi reduzido a escrito”.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.11.2015, Lopes do Rego, 602/13, não preenche o requisito da necessária bilateralidade do pacto a simples menção unilateral, feita por um dos contraentes em documento particular por ele emitido, de que o foro convencionado para resolução dos litígios emergentes de certa relação contratual é o de determinado país, cabendo ao juiz aferir se a cláusula atributiva de competência constituiu efetivamente objeto do consenso das partes, consenso que deve manifestar-se de forma clara e precisa. E, mais adiante: «(…) a aceitação (não devolução) da fatura unilateralmente emitida pela R.  e o pagamento dos bens fornecidos não pode ter-se por comportamento concludente - que, com toda a probabilidade, revele a aceitação da cláusula de renúncia ao foro normalmente competente; como é evidente, são realidades bem diversas a aceitação das obrigações emergentes dos fornecimentos titulados por cada fatura enviada e a aceitação da proposta de pacto de jurisdição nela encapotadamente incluída – não havendo qualquer elemento que, em termos minimamente consistentes, permita concluir que tal cláusula foi efetivamente apreendida, no seu real significado, pela A. e por ela aceite – em termos de abranger a dirimição de todos os litígios, mesmo que respeitantes à relação fundamental existente entre as partes, de modo a poder ter-se por verificado o requisito estruturante da necessária bilateralidade dos pactos de jurisdição.»
Ora, no caso em apreço, a 1ª Ré limita-se a invocar o teor do documento (acima enunciado), acrescentando que «tratando-se este documento de um título negociável – por ser o original- a J. aceitou os termos aí expressos e contratados». OU seja, a excecionante não invocou uma conduta específica e autónoma do destinatário de aceitação, clara e precisa, do pacto atributivo de jurisdição, limitando-se a arrazoar com base na natureza do documento.
Tal cláusula mostra-se apenas acordada entre o expedidor e o transportador, sendo a J. alheia ao teor do mesmo, nada tendo sido especificamente alegado no sentido de que a destinatária subscreveu ou aderiu à mesma ou sequer que tenha sido informada previamente do seu teor.
Conforme refere Francisco Costeira da Rocha, O Contrato de Transporte de Mercadorias, Almedina, 2000, p. 239:
«Uma coisa é a adesão do destinatário ao contrato de transporte, outra, bem diferente, é a da oponibilidade das cláusulas do contrato a esta parte assíncrona.
Assim, por exemplo, a Cour de Cassation decidiu que não basta a existência de uma cláusula atributiva de competência no clausulado de um contrato de transporte para que a mesma possa ser oposta ao destinatário, torna-se ainda necessário que a parte a aceite expressamente.
A este propósito, impõe-se uma análise de cada situação em concreto, para aferir do conhecimento pelo destinatário da proposta contratual que lhe é dirigida e da sua respetiva adesão.
(…)
Importa que o destinatário não seja confrontado com “cláusulas surpresa”, devendo, por isso, ser dado cumprimento aos pertinentes princípios básicos de direito privado. Caídos que estamos no campo das cláusulas contratuais gerais, há que obedecer ao respetivo regime e, designadamente, respeitar o princípio da boa fé objetiva, que aqui encontra uma área privilegiada de atuação.»
A aposição deste tipo de cláusula em conhecimentos de embarque é acidental, e não essencial, sendo que o que é corrente é a prática de submeter os litígios emergentes do transporte marítimo ao foro da sede do transportador (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8.10.2009, Granja da Fonseca, 47/08 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.5.98, Ferreira Mesquita, 676/98, www.colectaneadejurisprudencia.com ) e não – como no caso – ao foro do expedidor.
É certo que o conhecimento de carga assume uma função tridimensional: serve de recibo de entrega ao transportador de uma certa e determinada mercadoria nele descrita, prova o contrato de transporte firmado entre carregador e transportador e as condições do mesmo, representa a mercadoria nele descrita sendo negociável e transmissível de acordo com o regime geral dos títulos de crédito (Calvão da Silva, Estudos de Direito Comercial, 1996, p. 53). Todavia, estas características substantivas e intrínsecas do conhecimento de carga não se projetam em declaração (ficta) de aceitação, mesmo tácita, do destinatário no que tange a um pacto atributivo de jurisdição, tanto mais que tal cláusula é meramente acessória e eventual.
Por todo o exposto, infere-se que nada há a alterar à decisão impugnada, sendo o pacto de jurisdição inoponível à ora Autora, sub-rogada na posição da destinatária.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).

22.1.19
Luis Filipe Sousa
Carla Câmara
Higina Castelo

[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.