Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
55/05.1TAVFX.L1-9
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - A existência de motor no veículo em condições de funcionar é elemento do tipo de ilícito previsto no art.º 3.º, n.º 1, do DL n.º 2/98, de 03/01.
II - Não comete o crime previsto no art.º 3.º, n.º 1, do DL n.º 2/98, de 03/01, a pessoa que segue montada num ciclomotor para o equilibrar, sem habilitação legal, quando este circula na via pública rebocado por um motociclo, em virtude do seu motor estar avariado e sem possibilidade de funcionar.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª. Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

I – RELATÓRIO

      1. No processo comum, com tribunal singular, n.º ..., do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de ..., foi julgado o arguido C…, melhor identificado na decisão de fls. 190, tendo ali sido proferida sentença que julgou a acusação totalmente improcedente e, consequentemente, absolveu o arguido da prática do crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3.º n.º1 do DL n.º 2/98 de 3/1, pelo qual vinha acusado.

2. Inconformado, o Ministério Público, veio interpor recurso da referida sentença, a fls. 204, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 205 a 208 e conclusões seguintes, de fls. 208 a 210 (que se transcrevem):
1- O arguido C… foi absolvido do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.° n.º1 do D.L. n.º 2/98, de 3/1, cuja prática lhe foi imputada na acusação pública.
2- No essencial, o Tribunal entendeu dar como não provado que o arguido conduzia o ciclomotor, embora circulasse na via pública manipulando o guiador, quando estava a ser rebocado por um motociclo, mediante a utilização de uma corda, por ter o motor avariado.
3- Para o preenchimento do tipo legal do crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3.° n.º 1 do D.L. 2/98, de 3/1 basta a condução de veículo a motor na via pública ou equiparada, sem habilitação legal.
4- Entendeu a Mma. Juiz que um veículo a motor, tal como é considerado legalmente um ciclomotor, se transforma em veículo sem motor quando tem o motor avariado.
5- Ora o que caracteriza ou descaracteriza um veículo é precisamente a existência ou não de um motor, sendo irrelevante o facto de o motor se encontrar ou não avariado.
6- No caso em apreço, para além de o ciclomotor possuir motor, o arguido circulava numa via pública em cima dele, no lugar do condutor, não restando dúvidas, face à matéria de facto dada como provada que o conduzia, pois tinha o domínio do veículo.
7 - Aliás, o ciclomotor, sem que o arguido estivesse em cima dele, no lugar do condutor, não poderia circular, pois cairia de imediato, sendo pois determinante a presença física do arguido, que pelo menos guinava o guiador nas curvas e accionava o travão quando fosse necessário.
8- Assim, ao contrário do que é alegado pelo Tribunal, o arguido com a sua conduta não equilibrava apenas o ciclomotor, conduzia-o.
9- Conduzir, significa guiar, encaminhar, transportar de um lado para o outro, dirigir.
10- Ora, foi dado como provado na douta sentença que o ciclomotor estava a ser rebocado por um motociclo, através de uma corda, mediando entre ambos os veículos uma distância que permitia ao arguido efectuar manobra de mudança parcial de direcção, invasão da faixa de trânsito contrária à sua, virando o volante, ou mesmo travagem.
11- Não será isto guiar, dirigir, conduzir?
12- O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei.
13- Os factos dados como provados preenchem efectivamente os elementos do tipo legal do crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3.° n.º 1 do D.L. n.º 2/98 de 3/1.
14- Nessa medida, devia a Mma. Juiz ter condenado o arguido.
15- Ao não o fazer, interpretou a Mma. Juiz de forma errada a norma constante do art. 3.° n.º.1 do D.L. n.º 2/98 de 3/1.
Pelo que, revogando a douta sentença e substituindo-a por outra que condene o arguido pela prática do crime que lhe foi imputado na acusação, farão V. Exas a habitual JUSTIÇA!

3. O arguido, notificado, não respondeu.
4. O Exmo. Procurador Geral-Adjunto teve vista nos autos e emitiu parecer em que reproduz as alegações do Ministério Público em 1.ª instância, pelo que foi dispensado o cumprimento do art.º 417.º n.º 2 do CPP, por desnecessidade.
Cumpridos os vistos, procedeu-se a conferência.
Cumpre conhecer e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) - O âmbito do recurso
O âmbito do recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelos recorrentes nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo, no entanto, das questões que sejam de conhecimento oficioso, como se extrai do disposto no artº 412.º n.º 1 e no art.º 410.º n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal. 

B) Matéria de facto provada, não provada e respectiva fundamentação, que se transcreve:
1. Factos Provados
1. No dia 9 de Janeiro de 2005, pelas 02h45m, o arguido seguia no ciclomotor de matrícula 1-...-...-... e circulava no cruzamento do Cabo, em Vialonga, logo atrás do motociclo de matrícula 47-...-..., que na ocasião rebocava o ciclomotor do arguido, mediante a utilização de uma corda.
2. O ciclomotor onde o arguido seguia, tinha uma avaria mecânica, razão pela qual se movia devido àquele rebocamento.
 3. Entre ambos os veículos mediava uma distância que permitia ao arguido efectuar manobra de mudança parcial de direcção, invasão da faixa de trânsito contrária à sua, virando o volante, ou mesmo travagem.
 4. Chegados ao aludido cruzamento, o ciclomotor e o motociclo entraram em despiste, ficando imobilizados na faixa de rodagem.
 5. À data mencionada em 1 o arguido não era titular de licença que o habilitasse à condução de ciclomotores.
      Mais se provou que:
 6. A avaria mencionada em 2 dizia respeito ao motor que não funcionava.
 7. Desde o dia 9 de Fevereiro de 2009 que o arguido é titular de carta de condução.
 8. O arguido é ajudante de mecânico, encontrando-se desempregado há cerca de 1 mês.
 9. Reside com a sua companheira, a qual é repositora no Supermercado P... e aufere 550,00 Euros mensais.
10. Actualmente não paga qualquer quantia mensal pela casa onde reside.
11. Tem dois filhos, respectivamente com 5 e 9 anos de idade, para os quais contribui com uma pensão de alimentos no montante total de 128,00 Euros mensais.
12. O arguido tem os antecedentes criminais constantes do CRC de fls. 177 a 184.

2. Factos não Provados
Com interesse para a decisão da causa não se provaram os seguintes factos:
A) – Que o arguido conduzia o referido ciclomotor.
B) - Que o arguido sabia que não podia conduzir o aludido ciclomotor na via pública naquelas condições.
C) – Que o arguido agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

3. Motivação
O Tribunal fundou a sua convicção sobre a factualidade apurada com base nas declarações do arguido, que confirmou os factos que considerámos provados, esclarecendo que o ciclomotor em causa estava a ser rebocado porque o motor estava avariado, e relatando que se limitava a circular em cima do referido veículo de modo a que o mesmo fosse equilibrado, conseguindo, no entanto, rodar o volante e travar, embora com dificuldade. No fundo, confessou a generalidade da matéria que lhe vinha imputada na acusação, à excepção do que concerne ao elemento subjectivo do ilícito em causa e esclarecendo que a avaria mecânica referida na acusação consistia em o motor não trabalhar.
Também a testemunha de acusação H… corroborou os factos relatados pelo arguido, demonstrando deles ter conhecimento por se tratar do indivíduo que seguia no motociclo que rebocava o ciclomotor em cima do qual o arguido seguia.
No que concerne à outra testemunha inquirida, M…, agente de autoridade que elaborou o auto de noticia constante dos autos, limitou-se a confirmar que constatou que ambos os veículos entraram em despiste e que o ciclomotor era rebocado pelo motociclo através de uma corda. Confirmou igualmente que o arguido não era titular de carta de condução, facto que se encontra também corroborado com a informação constante de fls. 17.
As condições sócio-económicas do arguido consideraram-se provadas com base nas suas declarações, à semelhança do ponto 7 da factualidade, o qual foi confirmado pela licença de condução exibida pelo arguido em audiência de discussão e julgamento.
Para prova dos antecedentes criminais, baseou-se o Tribunal no C.R.C. junto aos autos.
No que concerne à matéria não provada, foi a mesma considerada dessa forma porquanto o arguido referiu que apenas seguia em cima do ciclomotor para o equilibrar, sendo que o veículo era levado pelo motociclo ao qual estava preso o cordel e que era conduzido por outra pessoa. De toda a prova realizada resulta que, de facto, o ciclomotor tinha o motor avariado e por isso se encontrava a ser rebocado. Ora, dizem as regras de experiência comum que, quem segue em cima de um ciclomotor com o motor avariado e, por isso desligado, não sabe nem pensa que não o pode fazer ou que tal conduta consubstancia um comportamento proibido.
Por outro lado, conduzir significa levar, guiar, dirigir, transportar de um lugar para outro, encaminhar. Da factualidade apurada resulta que o referido ciclomotor movia-se devido ao rebocamento de que estava a ser alvo. Ou seja, quem levava e guiava o ciclomotor era o veículo que o rebocava, pois o arguido apenas seguia em cima do ciclomotor para o equilibrar. O comportamento do arguido limitou-se a equilibrar o veículo não se podendo concluir, em nosso entender, que o conduzia, pois o motor estava avariado e, aquilo que permitia levar e guiar o ciclomotor, não era a conduta do arguido, mas sim o outro veículo que o puxava. Dito de outra forma, a conduta do arguido, por si só, não era susceptível de mover, levar, transportar, dirigir ou encaminhar o referido ciclomotor donde, não se pode concluir que o arguido conduzia o veículo. O domínio que o arguido exercia sobre o veículo era apenas aquele que permitia manter o veículo direito e de pé, mas não o domínio da condução necessário para que se possa afirmar, como vinha concluído na acusação, que o arguido dominava a actividade de condução do ciclomotor.
Por tais razões consideraram-se os factos ínsitos nas alíneas A) a C) como não provados.
Por último referira-se que, a matéria mencionada no 3º parágrafo da acusação onde se refere que o arguido tinha o domínio do ciclomotor no que à condução do mesmo respeitava, não foi inserida pelo tribunal, nem nos factos provados nem nos não provados, por se considerar que se trata de matéria conclusiva (fim de transcrição).

C) A questão essencial colocada pelo recorrente nas suas conclusões, consiste em apurar se a Mma. Juíza interpretou de forma errada a norma constante do art. 3.° n.º 1 do D.L. n.º 2/98, de 3/1, ao não condenar o arguido por considerar que a circunstância do ciclomotor se encontrar com o motor avariado e a ser rebocado por outro veículo, subsumindo-se a actividade daquele a equilibrar e orientar o referido ciclomotor, afastava a recondução da situação ao disposto no art. 3.º do DL n.º 02/98, de 03.01.

A questão a decidir tem a ver com o princípio da legalidade, inscrito nos artigos 29.º da Constituição da República Portuguesa e 1.º do Código Penal, na sua vertente de nullum crimen sine lege scripta, proevia, certa.
Só a lei da Assembleia da República, ou lei por esta autorizada, pode definir o regime jurídico dos crimes, penas e medidas de segurança, de forma certa, ou seja, de modo a que sejam facilmente conhecidos e entendidos pelas pessoas e pelo julgador[1].
Daí a proibição da analogia (n.º 3 do art.º 1.º do CP) e da interpretação extensiva. Para qualificar uma conduta como criminosa, é necessário que a lei determine de forma clara e precisa quais os elementos constitutivos do facto criminoso[2].    
O artigo 3.º n.º 1 do DL n.º 02/98, de 03/01, prescreve que quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Na interpretação deste preceito legal devemos ater-nos às regras da hermenêutica jurídica plasmadas no art.º 9.º do Código Civil, tendo sempre presente que o texto legal constitui um limite, na medida em que a interpretação tem que ter um mínimo de correspondência com aquele. Cada palavra pode ter vários significados (polissemia), pelo que só aquele que se aconchegar na letra da lei pode ter acolhimento.
Para a interpretação do artigo 3.º n.º 1 do DL n.º 2/98, de 03.01, torna-se necessário averiguar quais são os bens jurídicos protegidos com a incriminação[3].
O preâmbulo do DL n.º 2/98, de 03.01 refere que se pretende ter sempre em atenção os objectivos de prevenção e segurança rodoviárias que devem estar presentes na disciplina do trânsito e que a necessidade de prevenção de condutas que, por colocarem frequentemente em causa valores de particular relevo, como a vida, a integridade física, a liberdade e o património, se revestem de acentuada perigosidade impõe a criminalização do exercício da condução por quem não esteja legalmente habilitado para o efeito.
Analisando a norma em apreço, constatamos, assim, que se trata de um crime de perigo abstracto, cujo bem jurídico protegido, pela incriminação da condução de veículo a motor sem título válido para o efeito, é a segurança rodoviária e a protecção antecipada de bens pessoais e patrimoniais, já que a infracção põe em causa a vida e os bens[4].
O ciclomotor é definido no art.º 107.º n.º 2 e alínea b) do Código da Estrada como o veículo dotado de duas ou três rodas, com uma velocidade máxima, em patamar e por construção, não superior a 45 km/h, e cujo motor, no caso de ciclomotores de duas rodas, tenha cilindrada não superior a 50 cm3, tratando-se de motor de combustão interna ou cuja potência máxima não exceda 4 kW, tratando-se de motor eléctrico.
            Por sua vez, o art.º 114.º n.º 2 do mesmo diploma legal prescreve que todos os sistemas, componentes e acessórios de um veículo são considerados suas partes integrantes e, salvo avarias ocasionais e imprevisíveis devidamente justificadas, o seu não funcionamento é equiparado à sua falta.

Os condutores dos ciclomotores que se fizerem rebocar incorrem na contra-ordenação ao disposto no art.º 90.º n.º 1 do CE e são sancionados com coima de € 60 a € 300.
Da conjugação deste conjunto de normas, verificamos que o fundamento que subjaz à incriminação ou à contra-ordenação no âmbito da circulação na via pública de veículos, com motor ou sem motor, é comum: a segurança rodoviária e a protecção antecipada de bens pessoais e patrimoniais, embora com diferente intensidade normativa, fundada no valor axiológico das condutas descritas. 
Tendo em consideração as regras da experiência comum, entende-se que é susceptível de causar, em abstracto, maiores danos a circulação de um veículo a motor do que a de um veículo sem motor. Daí que as sanções sejam diferentes. No primeiro caso, o legislador opta, em certas situações, pela incriminação e no segundo caso, decide-se pela sanção contra-ordenacional.
O legislador procede à ponderação da importância estruturante para a vida em sociedade dos valores referentes aos bens jurídicos em causa e considera que algumas condutas, pela sua gravidade, merecem uma tutela jurídica mais densa. Nesta hipótese, cria um tipo legal de crime, o qual contém os elementos constitutivos do facto criminoso.
            O art.º 3.º n.º 1 do DL n.º 2/98, de 03.01, dispõe de forma clara e concisa que a incriminação abrange a condução de veículos a motor sem habilitação legal. Entendemos que o espírito da norma dirige-se especificamente à condução de veículos a motor, em virtude destes constituírem maior perigo para todos os demais utentes da via pública, nas suas vertentes pessoal e patrimonial.
            O arguido, ao fazer-se rebocar por um motociclo, cometeu a contra-ordenação prevista e punida no art.º 90.º n.º 1 al. c), do CE.
   O facto do motor do ciclomotor estar avariado e não funcionar, aliado ao reboque efectuado pelo motociclo, retira a direcção efectiva do ciclomotor ao arguido.
   Apesar de poder travar e efectuar pequenos desvios com o guiador do motociclo, não dependia do arguido decidir sobre o sentido de marcha nem sobre o local por onde devia transitar. As condições da sua circulação eram, em essência, determinadas pelo condutor do motociclo que o rebocava. O arguido não tinha poder para dirigir-se em sentido ou direcção diferente daquela que era imprimida pelo rebocador, por duas razões: em primeiro lugar, não tinha a potência do motor (estava avariado e não funcionava) e em segundo lugar, mesmo que pudesse imprimir alguma força através dos pedais, esta era manifestamente desproporcional à do motor do motociclo, a quem estava preso por uma corda e, por isso, impossível de vencer.
Face aos factos provados, o condutor do ciclomotor, ora arguido, não tinha autodeterminação para circular para onde e como bem entendesse. Não era livre de escolher o caminho, a velocidade, o momento de parar ou reiniciar a marcha, apesar de poder travar. Seria contraditório e perigoso que travasse fora das ocasiões em que o motociclo rebocador diminuísse a velocidade nas descidas ou quando se imobilizasse. 
Podemos dizer, como refere a sentença recorrida, que o arguido se limitava a seguir em cima do ciclomotor para o equilibrar e orientar. A possibilidade de travar e de efectuar manobras de mudança parcial de direcção, invasão da faixa de trânsito contrária à sua, virando o volante, constitui o mínimo necessário para o condutor poder equilibrar-se e equilibrar o ciclomotor. Como é sabido, as rodas do veículo rebocado não descrevem as curvas exactamente pelo mesmo local por onde passam as rodas do veículo rebocador, sendo necessário alguma intervenção humana para que tal se faça em segurança.
Nas circunstâncias em que circulava, era como se o ciclomotor não possuísse motor, face ao disposto no art.º 114.º n.º 2 do CE.
A existência de motor no veículo em condições de funcionar é elemento do tipo de ilícito previsto no art.º 3.º n.º 1 do DL n.º 2/98, de 03.01.
Esta interpretação é a que decorre do princípio da legalidade, também na sua modalidade de garantia do cidadão. Esta garantia visa impor ao Estado o dever jurídico de fazer conter no tipo de ilícito todos os elementos constitutivos das condutas que criminaliza.
Contudo, o texto legal não se limita a enunciar os mencionados elementos constitutivos do tipo de ilícito, pois, ao mesmo tempo, tem subjacente uma valoração axiológica que justifica a proibição da lei[5].
Ora, como já referimos, a circulação do ciclomotor nas circunstâncias que se provaram, leva-nos a concluir que o significado do texto legal, contido no art.º 3.º n.º 1 do DL n.º 2/98, de 03.01, não inclui a valoração axiológica da circulação de ciclomotor com motor avariado e sem possibilidade de funcionar, quando rebocado por outro veículo.
No caso concreto, a conduta do arguido não tem a gravidade que teria se o motor funcionasse.
Daí a necessidade de nos atermos à norma contida no texto da lei, tendo em conta não só os elementos constitutivos do tipo de ilícito, mas também o seu valor axiológico, em face dos factos provados e dos bens jurídicos protegidos pela proibição legal.
A jurisprudência invocada pelo Ministério Público não se debruçou sobre casos em que o motor do veículo rebocado estava avariado e impossibilitado de funcionar, mas apenas em que havia reboque com o motor desligado, pelo que, salvo o devido respeito, não constituem situações iguais à destes autos.
Em conclusão, entendemos que não comete o crime previsto no art.º 3.º n.º 1 do DL n.º 2/98, de 03.01, a pessoa que segue montada num ciclomotor para o equilibrar, sem habilitação legal, quando este circula na via pública rebocado por um motociclo, em virtude do seu motor estar avariado e sem possibilidade de funcionar.
Nesta conformidade, não se mostra violada a norma acabada de citar, ou qualquer outra de que devamos tomar conhecimento oficioso, pelo que improcede o recurso interposto pelo Ministério Público.

III – DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
 Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2010.
                                                               
Moisés Silva
Paula Carvalho
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[1] Carvalho, Américo Taipa de, Direito Penal, Parte Geral, 2.ª edição, Coimbra, 2008, pp. 162 e 163.
[2] Assim, art.º 18.º do CP de 1886 e Carvalho, Américo Taipa de, Direito Penal, Parte Geral, … pp. 163 a 169.
[3] Carvalho, Américo Taipa de, Direito Penal, Parte Geral, …, p. 167.
[4] AC. STJ, de 28.11.2007, processo n.º 07P3294, documento n.º SJ20071128032943, http://www.gde.mj.pt/jstj.
[5] Costa, José de Faria, Noções Fundamentais de Direito Penal, 2.ª edição, Coimbra, 2009, pp. 146 a 148.