Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1768/23.1T8BRR.L1-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: DIREITO ÀS PRESTAÇÕES DA SEGURANÇA SOCIAL POR MORTE
UNIÃO DE FACTO
COMPETÊNCIA DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- Incumbe aos serviços da segurança social o reconhecimento da situação de união de facto como pressuposto do direito às prestações por morte de membro de uma situação união de facto, estabelecidas na Lei 7/2001, de 11/05, na redação resultante da Lei 23/2010, de 30/08.
2- A discordância dos interessados relativamente à avaliação feita pelos serviços da segurança social sobre a existência da situação de união de facto, integra litígio emergente de uma relação jurídica administrativa da competência dos Tribunais da Jurisdição Administrativa, nos termos do art.º 4º, nº 1, alíneas a) e c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e não dos tribunais comuns.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO

1- MSP, veio instaurar acção declarativa, com processo comum, contra Instituto da Segurança Social, IP, pedindo:

- Se reconheça a União de Facto (entre a requerente e o falecido FDF), nos termos e para os fins da Lei 7/2001, com as alterações introduzidas pela Lei 71/2018.

Alegou, em síntese, que manteve uma relação de convivente em união de facto com FDR, falecido a 21/11/2020, desde 05/10/1977, até á morte deste. Fruto desse relacionamento nasceram dois filhos V e B. Até à data do falecimento, a requerente e o falecido mantinham uma relação familiar, social, afectiva e sexual. Viviam na mesma casa e aí recebiam familiares e amigos, partilhavam refeições e ambos contribuíam para o sustento do lar. Eram vistos juntos em eventos sociais, no café, e eram reconhecidos como casal por vizinhos e conhecidos. Adquiriram bens relativos à vida em comum. A ré recusou aceitar a união de facto e indeferiu o pedido de atribuição das prestações por morte à autora. Não se verificam nenhuma das situações impeditivas ao reconhecimento judicial da União de Facto elencadas no art.º 2º da Lei 7/2001, de 11/05.
Juntou certidão de óbito de FDF, bem como certidão dos assentos de nascimento de V e de B.

2- Com data de 30/10/2023, foi proferido o seguinte despacho pela 1ª instância:
Notifique a requerente para, querendo, no prazo de dez dias, pronunciar-se acerca da verificação da excepção de incompetência”.

3- A autora pronunciou-se, defendendo a competência do tribunal para a acção.

4- Com data de 17/11/2023, a 1ª instância proferiu o seguinte despacho:
Compulsados os autos, dos mesmos resulta não ter a autora junto certidão da decisão de indeferimento proferida pelo ISS, relativa ao pedido por aquela formulado de atribuição das prestações por morte de FDF, constatando-se, ainda, aliás, que este faleceu no estado de casado com MGF – art.º 2º, al. c) da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio.
Seja como for, e porque poderá estar em causa a falta de uma condição de procedibilidade da acção ou de um pressuposto processual, notifique a autora para, no prazo de cinco dias, juntar cópia da decisão em causa.”

5- A autora correspondeu ao que lhe foi determinado e juntou cópia da decisão da Segurança Social, de 18/04/2022, na qual foi decidido, em síntese, que “…não estarem reunidas as condições legalmente estabelecidas no art.º 8º do DL 322/90, de 18/01, em articulação com o art.º 2 e 3 do Dec. Regulamentar 322/90, de 18/10 e art.º 6º da Lei 7/2001, de 11/05, para a concessão das referidas prestações, por o beneficiário ter falecido no estado civil de casado.” Concede à requerente o prazo de 10 dias úteis para se pronunciar.

6- Com data de 31/11/2023, a 1ª instância proferiu o seguinte despacho:
Tendo em conta o teor do documento junto pela autora com o requerimento que antecede e a 2ª parte do despacho proferido a 17.11.2023, notifique aquela para, no prazo de 10 dias, informar se mantém interesse na apreciação da pretensão formulada nestes autos.

7- A autora respondeu declarando manter interesse na apreciação da pretensão formulada.

8- Com data de 18/12/2023, a 1ª instância proferiu a seguinte decisão:
MSP instaurou a presente acção de processo comum contra o ISS, I.P. alegando, em síntese, que viveu em união de facto com FDF durante 45 anos, tendo este falecido a 21.12.2020, e que, na sequência do falecimento do seu companheiro, requereu junto do ISS para que lhe fosse atribuída a respectiva pensão por morte, porém, viu a sua pretensão indeferida.
Na sequência de convite que lhe foi dirigido, a autora juntou aos autos cópia da decisão proferida pelo ISS, resultando da mesma que o pedido formulado por aquela junto do réu, com vista a serem-lhe atribuídas prestações por morte de FDF, foi indeferido pelo facto de o falecido ser casado à data da morte com MGF.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o art.º 64º do CPC que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, constando também tal disposição do art.º 40º, nº1 da LOSJ.
Por sua vez, dispõe o art.º 212º, nº3 da CRP que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Ora, a autora alega ter vivido em união de facto com FDF durante 45 anos e que este faleceu em dezembro de 2020, tendo nessa sequência requerido junto do ISS para que lhe fosse atribuída a respectiva pensão por morte, pedido que foi indeferido, como se comprova pelo documento entretanto junto aos autos.
A Lei nº 23/2010, de 30.08 tornou extensivo o regime jurídico adoptado no D.L. nº 322/90, de 18.12 às pessoas que vivam em união de facto, sendo que a prova da união de facto está sujeita aos requisitos exigidos pelo art.º 2º-A, e será apreciada pelo ISS, entidade responsável pelo pagamento da prestação em causa, e a quem compete, perante dúvidas fundadas sobre a existência da união de facto, promover a competente acção.
A Lei nº 23/2010, de 30.08 não revogou a Lei n.º 7/2001, de 11.05, tendo procedido a alguns ajustamentos ao seu regime.
Assim, o nº 1 do seu art.º 6º dispunha que beneficiavam dos direitos das alíneas e), f) e g) do art.º 3.º, as uniões de facto que reunissem as “condições constantes do artigo 2020.º do Código Civil, decorrendo a acção perante os tribunais”.
E o nº 2 da mesma disposição legal dispunha que "Em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, ou nos casos referidos no número anterior, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição".
Contudo, actualmente tal disposição tem a seguinte redacção: "A entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas als. e), f) e g) do art.º 3º, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação”.
Mostra-se, pois, claro, que actualmente o processo com vista à atribuição de prestações por morte inicia-se perante o ISS, devendo o interessado impugnar a decisão administrativa que lhe seja desfavorável perante os tribunais administrativos, como sucede no caso em análise.
E só se o ISS entender que existem sérias dúvidas sobre a existência da união de facto, é que intentará a competente acção judicial com vista à sua determinação.
Desta forma, os tribunais judiciais deixaram de ser competentes para decidirem os pedidos de reconhecimento da qualidade de titular de prestações sociais, tendo a sua apreciação passado a competir à entidade administrativa e com recurso das decisões desta para o tribunal administrativo.
Verifica-se, assim, no caso, a excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria, a qual é de conhecimento oficioso, nesta fase, e determina a absolvição do réu da instância - art.ºs 6.º da Lei 7/2001 de 11 de Maio, na redacção da Lei 23/2010 de 30 de Agosto, 64.º, 96º, nº1, al. a), 97º, 98º, 99º, 278º, nº1, al. a), 576º, nº 2 e 577º, al. a), todos do
Valor da causa: o indicado na p.i..
Custas a cargo da autora, sem prejuízo do apoio judiciário”.

9- Inconformada, a autora interpôs o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
a) O Tribunal decidiu que é absolutamente incompetente para se pronunciar sobre a decisão e decidiu que existia falta de interesse em agir.
b) Com o devido respeito, estamos perante uma contradição evidente na decisão... o Tribunal ao declarar-se incompetente, não pode pronunciar-se sobre a existência de interesse em agir.
c) Entente a Autora que acção foi instaurada no Tribunal competente nos termos da Alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8).
d) Pelo que entente a Autora que a decisão recorrida viola a alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8).
e) Porquanto sempre se dirá que deverá a decisão ser revogada e substituída por uma que ordene o prosseguimento dos autos.
f) Quanto ao interesse em agir, a decisão recorrida vem referir que o pedido não carece de tutela judicial, devendo ser formulado perante a autoridade administrativa.
g) Contudo, resulta evidente que a Autora tem interesse em ver a sua união de facto reconhecida pelo meio mais rigoroso que é uma sentença do Tribunal.
i) Caso a entidade Administrativa tivesse aceite o pedido de pensão com base na união de facto, não teria sido instaurada a presente acção.
ii) A posição da entidade administrativa está vertida na contestação apresentada, resultando claro que não reconhece, diga-se que mal, a união de facto.
iii) Sem mais delongas, resulta evidente o interesse em agir da Autora, sendo que o entendimento da Lei 23/2010 que impeça a instauração da presente ação, sempre violaria o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
Assim sendo, entende a Autora/Recorrente que a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por uma que ordene o prosseguimento dos autos.

***

II- FUNDAMENTAÇÃO.

1- Objecto do Recurso.

1-É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações (caso as haja) em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, é a seguinte a única questão que importa analisar e decidir:
- Se os tribunais judiciais não são competentes para apreciar e decidir situações de vivência em União de Facto para os fins da Lei 7/2001.

***

2- Factualidade Relevante.

Com relevância para a decisão do recurso importa ter presente o que consta do RELATÓRIO supra.

***

3- A Questão Enunciada: Se os tribunais judiciais não são competentes para apreciar e decidir situações de vivência em União de Facto para os fins da Lei 7/2001.

Segundo a 1ª instância “…actualmente o processo com vista à atribuição de prestações por morte inicia-se perante o ISS, devendo o interessado impugnar a decisão administrativa que lhe seja desfavorável perante os tribunais administrativos, como sucede no caso em análise. E só se o ISS entender que existem sérias dúvidas sobre a existência da união de facto, é que intentará a competente acção judicial com vista à sua determinação.
Desta forma, os tribunais judiciais deixaram de ser competentes para decidirem os pedidos de reconhecimento da qualidade de titular de prestações sociais, tendo a sua apreciação passado a competir à entidade administrativa e com recurso das decisões desta para o tribunal administrativo.
Será assim?
Pois bem, constitui jurisprudência pacífica, designadamente do Tribunal de Conflitos (T Conflitos), que a competência determina-se tendo em conta os termos da acção tal como definidos pelo autor, aferindo-se pelos elementos objectivos, pedido e causa de pedir, e subjectivos, estes relativos à a identidade das partes. Sem ser exaustivo, vejam-se:
Ac. T. Conflitos, de 28/09/2010 (Proc. 23/09):
Como tem sido reafirmado por este Tribunal e é pacífico na doutrina e na jurisprudência, a competência «afere-se face ao pedido e à causa de pedir formulados pela Autora, ou seja, pelo quid disputatum e não pelo quid decisum. (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes, nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos da pretensão.”
Ac. T. Conflitos de 20/09/2011 (Proc. 20/09/2011 (Proc. 3/11):
A competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, «seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes).”
Ac. T. Conflitos, de 10/07/2012 (Proc. 3/2012):
como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14].
A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável.”
Ora, no caso dos autos, os elementos objectivos da acção são, quanto ao pedido:
Se reconheça a União de Facto (entre a requerente e o falecido FDF), nos termos e para os fins da Lei 7/2001, com as alterações introduzidas pela Lei 71/2018.”
E, quanto à causa de pedir, a alegação de vivência, em união de facto, por mais de 45 anos, entre a autora e FDF, até à morte deste, ocorrida a 21/11/2020.
Relativamente aos elementos subjectivos, temos a autora, uma particular e, o réu, o Instituto da Segurança Social, IP, portanto um Instituto Público.
O pedido deduzido pela autora, de reconhecimento da vivência em união de facto entre a autora e o falecido, visa, materialmente, que ela obtenha as prestações por morte referidas na Lei 7/2001, como refere, de resto, no ponto 16º da petição inicial: a atribuição das prestações por morte à autora.
Nos termos do art.º 6º nº 1 da Lei 7/2001, com as alterações introduzidas pela Lei 23/2010, de 30/08 e pela Lei 71/2018, de 29/02, relativo ao regime de acesso às prestações por morte, estabelece:
“1 - O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3º, independentemente da necessidade de alimentos.”
E os direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do art.º 3º são, respectivamente:
As pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a:
a)- (…);
b)- (…);
c)- (…); 
d)- (…);
e) Protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei;
f) Prestações por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, por aplicação dos regimes jurídicos respectivos e da presente lei;
g) Pensão de preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, por aplicação dos regimes jurídicos respectivos e da presente lei.”
Ora, numa situação semelhante à dos autos, o Tribunal de Conflitos, por acórdão de 25/01/2017 (Proc. 28/2016, relator Conselheiro Leones Dantas) decidiu:
I - Incumbe aos serviços da segurança social o reconhecimento da situação de união de facto como pressuposto do direito às prestações por morte de membro de uma situação união de facto, estabelecidas na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, na redação resultante da Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto.
II - Sempre que os elementos probatórios recolhidos na avaliação levada a cabo por aqueles serviços não suscitem dúvidas fundadas no sentido da existência ou inexistência da mencionada relação de união de facto, os referidos serviços, no âmbito das suas atribuições, reconhecem ou recusam o direito às prestações em causa.
III - A discordância dos interessados relativamente à avaliação feita pelos serviços da segurança social sobre a existência da situação de união de facto, integra litígio emergente de uma relação jurídica administrativa da competência dos Tribunais da Jurisdição Administrativa, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.”
De igual modo, decidiu o acórdão do Tribunal de Conflitos, de 22/11/2023 (Proc. 3962/23, relatora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza):
I - Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação dos pedidos de condenação da Caixa Geral de Aposentações no reconhecimento de uma situação de união de facto e da consequente atribuição da pensão de sobrevivência.
II - Cabe aos Tribunais Judiciais e, dentro destes, aos Tribunais Cíveis, a competência para julgar o pedido dirigido contra um particular para que seja condenado a reconhecer uma situação de união de facto, como pressuposto da atribuição de pensão de sobrevivência.”
Concordamos com esta jurisprudência.
Explicitando e seguindo, de perto, esses arestos.
Em primeiro lugar importa salientar que a Lei 7/2001, de 17 de Maio, sofreu uma alteração relevante introduzida pela Lei 23/2010. Na versão original, previa-se no art.º 6º que beneficiava “…dos direitos estipulados nas alíneas e), f) e g) do arº 3º, no caso de uniões de facto previstas na lei, quem reunir as condições constantes no art.º 2020º do Código Civil, decorrendo a acção perante os tribunais cíveis” (nº 1). E, no nº 2, era dito que “2- Em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, ou nos casos referidos no número anterior, o direito às prestações efetiva-se mediante ação proposta contra a instituição competente para a respetiva atribuição.”
Entretanto, a Lei 23/2010, de 30/08, deu a seguinte redacção ao art.º 6º:
“Artigo 6.º , relativo ao “Regime de acesso às prestações por morte”:
1 - O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, independentemente da necessidade de alimentos.
2 - A entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas alíneas e), f) e g) do artigo 3°, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente ação judicial com vista à sua comprovação.
3 - Excetuam-se do previsto no n.º 2 as situações em que a união de facto tenha durado pelo menos dois anos após o decurso do prazo estipulado no n.º 2 do artigo 1.º
Ora bem, como se refere naqueles arestos, a Lei 23/2010, de 30/08, implicou uma mudança de paradigma relativamente ao reconhecimento dos direitos às prestações sociais consagrados na Lei 7/2001, de 11/05.
Na verdade, enquanto na versão inicial daquela lei o direito a essas prestações, nos termos do artigo 6.º, era efetivado através de ação a instaurar nos tribunais judiciais contra a entidade responsável da Segurança Social, com a alteração daquele dispositivo decorrente da Lei n.º 23/2010, o direito às prestações efetiva-se através da intervenção dos serviços da segurança social, ou seja, por via administrativa.
Incumbe deste modo àqueles serviços averiguar dos pressupostos do direito a essas prestações, nomeadamente, da situação de união de facto e o reconhecimento do direito às mesmas.
É neste sentido que se insere o artigo 2º-A, introduzido na Lei n.º 7/2001, pela Lei n.º 23/2010, de 30 de maio, e que é do seguinte teor:
«Artigo 2º-A Prova da união de facto
1 - Na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível.
2 - No caso de se provar a união de facto por declaração emitida pela junta de freguesia competente, o documento deve ser acompanhado de declaração de ambos os membros da união de facto, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos, e de certidões de cópia integral do registo de nascimento de cada um deles.
3-(...).
4 - No caso de morte de um dos membros da união de facto, a declaração emitida pela junta de freguesia atesta que o interessado residia há mais de dois anos com o falecido, à data do falecimento, e deve ser acompanhada de declaração do interessado, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos, à mesma data, de certidão de cópia integral do registo de nascimento do interessado e de certidão do óbito do falecido.
5 - As falsas declarações são punidas nos termos da lei penal
E continuam aqueles arestos:
Trata-se de um dispositivo que visa a prova da união de facto em sede de procedimento administrativo.
(…), a Lei n.º 23/2010 transferiu deste modo para a Segurança Social a responsabilidade pela averiguação da união de facto enquanto pressuposto das prestações sociais consagradas naquela Lei.
As diligências que visam a demonstração dos pressupostos das prestações em causa correm no âmbito de um procedimento administrativo e que culminam com um ato administrativo, atribuindo ou recusando as prestações peticionadas.
É verdade que, nos termos do n.º 2 do artigo 6º na nova redação, «a entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas alíneas e), f) e g) do artigo 3º, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente ação judicial com vista à sua comprovação».
Consagra-se (nesta norma) apenas uma exigência de transparência e de rigor na atuação da Administração na demonstração dos pressupostos do direito às prestações, impondo-lhe que, em caso de dúvidas fundadas, só decida da atribuição ou recusa das prestações depois da demonstração em ação judicial da existência ou inexistência da união de facto sobre a qual essas dúvidas se suscitem.
Deste modo, quando os elementos recolhidos não sejam concludentes no sentido do reconhecimento da união de facto e justifiquem «fundadas dúvidas», a entidade competente dissipa as dúvidas através da instauração de uma ação com vista à demonstração da existência dessa união de facto.
As fundadas dúvidas pressupõem a existência de elementos probatórios não concludentes sobre a existência da união de facto como pressuposto das prestações em causa.
Na ausência dessas fundadas dúvidas, com base nos meios de provas recolhidos no processo, a entidade competente decide, atribuindo as prestações ou recusando-as, no caso de ter elementos que demonstrem a inexistência da situação de união de facto em causa.
A discordância dos interessados no procedimento administrativo instaurado com o que seja decidido pelos serviços da segurança social, num sentido ou noutro, recai claramente no âmbito da jurisdição administrativa, carecendo de sentido que os tribunais que integram aquela jurisdição não possam conhecer de todos os pressupostos das prestações sociais, nomeadamente, da união de facto.”
No caso dos autos, a autora, com a acção que instaurou e com o pedido e fundamentos que invocou, pretende a alteração da situação jurídica emergente do acto administrativo, do Instituto da Segurança Social, IP, de 18/04/2022, que lhe recusou o direito às prestações por morte de FDF, com fundamento em que este, à data da morte, tinha o estado civil de casado (o que, de resto, é comprovado pela certidão do assento de óbito junta aos autos com a petição inicial).
Pois bem, pelos fundamentos aduzidos e pela pretensão material que formula, “…mostra-se configurado um litígio entre a autora e o réu emerge de uma relação jurídica de natureza administrativa que decorre da responsabilidade da Segurança Social pelo sistema de prestações sociais consagrado na Lei nº 7/2001, de 11/05, na versão resultante da Lei n.º 23/2010, de 30/08.” (Acórdãos do Tribunal de Conflitos supra referidos).
A relação jurídica em causa é disciplinada pelo direito público e é nos quadros deste ramo do Direito que o litígio terá de ser resolvido.”
Assim, tal como nos referidos dois arestos do Tribunal de Conflitos, conclui-se que a apreciação dos pedidos deduzidos contra Instituto da Segurança Social, IP “…compete aos Tribunais Administrativo e Fiscais, uma vez que, no âmbito de uma relação administrativa, a autora pretende a tutela de um direito fundamental (al. a) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e, por isso mesmo, a “Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados” pelo Instituto da Segurança Social, IP.”
A esta vista e sem necessidade de outros considerandos, somos a concluir que o recurso improcede.

***
III- DECISÃO

Em face do exposto, acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso improcedente e, em consequência, mantém a decisão sob impugnação.

Custas na instância de recurso: seriam a suportar pela autora que decaiu totalmente, no entanto, litiga com benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxas de justiça e demais encargos do processo.

Lisboa, 07/03/2024
Adeodato Brotas
Nuno Gonçalves
Nuno Lopes Ribeiro