Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4095/2007-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: FIANÇA
CLÁUSULA CONTRATUAL
ARRENDAMENTO
LITISCONSÓRCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I- Não é válida cláusula contratual em que o fiador se obrigou relativamente aos períodos de renovação do contrato sem limitar o número destes, devendo, por isso, a obrigação do fiador considerar-se extinta decorridos cinco anos sobre o início da primeira prorrogação (artigo 655º/2 do Código Civil).
II- É válida a desistência do pedido relativamente a um dos fiadores que com outros se obrigou em regime de solidariedade a pagar as rendas, pois no caso de litisconsórcio voluntário é livre a desistência do pedido (artigos 293.º e 298.º do Código de Processo Civil).
III- O exercício do direito de desistência do pedido (ou da confissão ou de transacção) não constitui abuso do direito.
(S.C.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Empresa […] Lda. demandou no dia 14-12-2000 E.[…] Lda., Hernâni […], Joaquim […], Fernando […] e António […], aquela na qualidade de locatário e estes na qualidade de fiadores do arrendamento de 8-3-1999, pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de 2.179.360$00 respeitante às rendas vencidas de Out. 2000/Jan. 2001, mais as rendas vincendas até ao trânsito em julgado da sentença que decretar o despejo e juros de mora vincendos sobre tais quantias até integral pagamento à taxa de 7% ao ano.

2. Veio a A. desistir dos pedidos por si deduzidos de resolução do contrato de arrendamento e despejo da sociedade ré, actual “C.[…] Lda.” e ainda do pedido peticionado da quantia a pagar formulado contra o réu António […] e ainda do pedido de condenação da A. como litigante de má fé, indemnização e honorários.

3. A desistência foi homologada por sentença (fls. 244).

4. A acção prosseguiu contra os RR para apreciação do pedido de condenação no pagamento de rendas.

5. Veio a ser proferida sentença que condenou os RR solidariamente a pagar ao A. as rendas do locado relativamente aos meses de Outubro, Novembro, Dezembro de 2000 e Janeiro de 2001 acrescido das rendas vincendas até à data da prolação da sentença (30 Jun. 2005) e ainda dos juros vincendos desde a data do vencimento de cada renda à taxa de 7%.

6. Fernando […], proferida já a sentença, veio (ver fls. 270 e seguintes) arguir a sua falta de citação considerando que a citação por carta registada com aviso de recepção remetida para a morada indicada pela autora na Av. […] em Lisboa não lhe foi entregue nem mandada entregar pelo seu motorista que a assinou nem tão pouco chegou ao seu conhecimento.

7. Requer este réu que, por não ter chegado ao seu conhecimento, se declare a falta de citação, devendo, em consequência, ser declarados nulos e ineficazes todos os actos praticados posteriormente à petição inicial, ordenando-se a citação do réu, na sua residência, para contestar, querendo, dentro do prazo legal, com todas as demais consequências.

8. Da sentença foi interposto recurso pelo réu Joaquim […] (ver fls. 287) e também, a título subsidiário, prevenindo a improcedência da arguição da falta de citação, pelo réu Fernando […] (ver fls. 291).

9. O incidente de nulidade de citação foi julgado improcedente (ver fls. 350/352).

Recurso de agravo.

10. Desta decisão foi interposto recurso.

11. Nas suas alegações o recorrente considera incorrecta a resposta dada nos pontos 6 a 8 da matéria de facto e a decisão que considerou não provado que o réu não haja recebido as cartas referidas nos pontos 1 a 4 da matéria de facto que, aliás, esta em contradição com o ponto 3 da matéria de facto.

12. Considera ainda o recorrente que se impõe a alteração da matéria de facto que, como está, é contraditória, deficiente e obscura, a justificar, em alternativa, a anulação; a presunção constante do artigo 238.º do Código de Processo Civil foi ilidida: basta, segundo o recorrente, para ilidir tal presunção, a prova da falta de entrega da carta de citação ao destinatário, tal como consta do ponto 3 da matéria de facto.

13. Factos provados:

1- No dia 27 de Março de 2001 foi remetida, nos presentes autos, carta para citação de Fernando […], endereçada para a Av.[…] nº 156-1º Lisboa.
2- Esta carta foi recebida a 28 de Março de 2001 no nº 156-A da Av. […] em Lisboa por José Maria […], motorista ao serviço do réu.
3- Ao receber a carta referida em 2, José […] deixou-a na loja de electrodomésticos referida, sem a entregar ao réu.
4- Por carta datada de 6 de Abril de 2001, foi remetida nos presentes autos nova carta, dirigida a Fernando […], Av. […] nº 156,1º de onde constava que foi citado para a presente acção nos termos assinalados na cópia que junta, por carta registada com aviso de recepção, tendo os duplicados sido entregues à pessoa que assinou o referido aviso em 30-3-2001, conforme cópia que junta (artigo 241.º do Código de Processo Civil).
5- No nº 156-A R/C e nº 156,1º ,Av. […] em Lisboa, estão instalados, respectivamente, uma lojas de electrodomésticos e os escritórios de uma empresa de que o réu é sócio-gerente.
6- O réu possui escritório e recebe correspondência em nome próprio no 156-1º da Av. […] em Lisboa.
7- O nº 156-A e o nº 156 1º encontram-se ligados entre si por uma escada interior.
8- A correspondência dirigida para o nº 156 1º. é recepcionada na loja instalada no nº 156-A.
9- A 7 de Julho de 2005, por carta remetida para a Av. […], nº 156 1º,o réu foi notificado da sentença de mérito proferida nos presentes autos.

Apreciando:

14. Pretende o recorrente que a resposta ao ponto 6 passe a ser a seguinte:

6- Na época em que foi recebida a carta mencionada no ponto 1, o réu possuía escritório no nº 151 […] em Lisboa e ocasionalmente recebia correspondência em nome próprio no nº 156.1º […] em Lisboa.

15. O réu, na petição, foi dado como residente na Av. […], 156-1º em Lisboa.

16. . Para este endereço foi enviada carta registada com aviso de recepção : ver fls. 57.

17. É esta a morada que consta do acto notarial em que se constituiu fiador : ver fls. 32.

18. No requerimento em que suscitou o incidente o réu diz que em 2001 a sua residência se situava na Rua […], 40 em Lisboa e que tinha loja no 156-A […] e na Rua dos S.[…], 328-A, e na Rua L. -21-A,Lisboa.

19. Nada nos diz ou explica o que se passou com o 156-1º

20. Foi a parte contrária que esclareceu que a loja do 156º-A tem uma ligação directa, através de amplas escadas, com o interior da loja 156.º-A.

21. Daí que, prossegue o A, “ mesmo que o réu, à data em que as atrás referidas cartas lhe foram enviadas por este tribunal, aí já não tivesse a sua residência (Av.[…], nº 156,1º, em Lisboa) e tivesse ‘centralizada a sua actividade profissional’(art., 54º do req. do réu) na Av. […] nº 151-A, em Lisboa, o que por mera hipótese se admite, a verdade é que a morada indicada pelo autor, na sua petição inicial, além de ser aquela em que o réu declarou ser a da sua residência e onde foram recebidas as citadas cartas dirigidas ao réu, sempre seria, pelo menos, um dos locais de trabalho do réu, onde este desenvolvia e desenvolve a sua actividade, mantinha e mantém empregados seus”.

22. Foi este o quadro de facto que as partes trouxeram ao Tribunal.

23. Esclarecido que o 156º-A tem ligação interna com o 1º andar e que este não tem acesso próprio, esclarecido ficou - ver o próprio depoimento do filho do réu - que o réu recebe correspondência em nome próprio tanto para o 156º-A como para o 156.º-A, 1º andar.

24. Não há, portanto, razão alguma para se alterar o ponto 6.

25. Pretende o recorrente que a resposta ao ponto 8 passe a ser a seguinte:

8- Há cerca de 2, 3 anos a correspondência dirigida para o nº 156,1º é recepcionada na loja instalada no nº 156-A.

26. Não se aceita a limitação à resposta pretendida pelo recorrente.

27. E não se aceita desde logo porque a carta registada com aviso de recepção que o motorista recepcionou foi recepcionada na loja do 156 sendo o correio oralmente distribuído no balcão (veja-se o depoimento a fls. 543 in fine).

28. Nem se compreende que seja de outra forma visto que, não tendo o 156-1º acesso próprio, há-de a correspondência dirigida ao 1º andar ser entregue no R/C e aí recepcionada.

29. A 2ª testemunha ouvida declarou que o correio era sempre entregue na loja. Havia, no entanto, correspondência que era colocada nas caixas de correio do 1º andar. No caso vertente, porque estamos face a carta registada com aviso de recepção, foi ela entregue no R/C.

30. Insurge-se o recorrente pelo facto de o Tribunal não ter dado como provado que “ o réu não recebeu as cartas referidas nos pontos 1 e 4 dos factos provados”.

31. Considera que esta matéria está em contradição com o ponto 3 e com o que as testemunhas disseram.

32. A nosso ver não há contradição. A não entrega da carta logo que esta foi recepcionada pela testemunha não quer dizer que a carta não tenha sido ulteriormente entregue.

33. A resposta pretendida pelo recorrente, porque mais abrangente, ilidiria a presunção constante do artigo 238.º-A do C.P.C vigente à data dos factos.

34. Importa referir que o Tribunal, na análise da matéria factual, não está “obrigado” a dar como provado aquilo que as testemunhas disseram quando a afirmação não é produzida de um modo convincente que passa normalmente por uma explicação credível e sustentada das coisas.

35. A não ser assim, seria suficiente uma resposta do tipo “sim” ou “não” o que constituiria uma estultícia processual que julgamos ninguém ousa subscrever.

36. Ora, para além da informação deficiente apresentada pelo requerente, a que já aludimos, o depoimento da testemunha Q.[…] é , no essencial, pouco convincente.

37. Uma testemunha que diz assinar um aviso de recepção de carta que não lhe é dirigida, sem lhe competir receber o correio, não podia deixar, até por ter praticado um acto que não lhe competia, de comunicar imediatamente o caso à sua entidade patronal pois bem sabia que, não o fazendo, incorria em risco de despedimento pois estamos diante de uma falta laboral muito grave. Ora, a admitir que as coisas assim se passaram, a testemunha, que diz ter sido confrontada pela sua entidade patronal, afirma que já não se lembra do que se passa (?) e ainda assim não é sancionada (?), sendo certo que estamos perante empregado antigo, com 13 anos de casa ao tempo.

38. Em termos de prova não se aceita mais do que o Tribunal exarou, ou seja, que “ ao receber a carta referida em 2, José […] deixou-a na loja de electrodomésticos referida, sem a entregar ao réu” o que não permite, no contexto do caso, inferir que não houve entrega oportuna subsequente. Não houve entrega imediata, mas não se exclui que não tenha havido entrega ulterior.

39. Assim já se explica que o dito empregado não tenha sido despedido por praticar um acto que não estava autorizado a praticar e ainda por ter omitido o dever de entrega da correspondência á sua entidade patronal. E assim se explica que, face a ulterior correspondência do Tribunal, não tenha o réu reagido.

40. A presunção não se mostra ,portanto, ilidida e não ocorre a apontada contradição.

41. O recurso não pode deixar de improceder.

Recursos de apelação

42. Foi interposto da sentença recurso de apelação por parte dos fiadores Joaquim […] (fls. 382/396) e Fernando […].

43. Sustenta o primeiro recorrente o seguinte:

- Que entre os fiadores se verifica litisconsórcio necessário sendo, portanto, ineficaz a transacção efectuada na abertura da audiência de julgamento (artigo 298.º/2 e 668.º/1, alínea d) do C.P.C.).

- Que a fiança respeita a cessão de posição contratual e não a arrendamento que já existia desde 1972.

- Que o disposto no artigo 655.º/2 do Código Civil é imperativo no sentido de que, mesmo que o fiador se obrigue relativamente aos períodos de renovação, a fiança extingue- -se decorridos cinco anos sobre o início da primeira renovação ou superveniência da alteração (real) da renda.

- Que a fiança dada nos termos em que o foi é nula porque indeterminável.

- Que a apelada agiu com abuso do direito ao comprar a desistência do único fiador contestante.

44. Sustenta o segundo recorrente o seguinte:

- Que a sentença incorreu em excesso de pronúncia condenado em quantidade superior e em objecto diverso do pedido quando “substitui” o pedido da autora condenando os fiadores no pagamento das rendas vencidas até 30 Jun. 2005.

- Que existe litisconsórcio necessário passivo entre a sociedade inquilina e os respectivos fiadores o que conduz à excepção de ilegitimidade.

- Que a fiança prestada não estabelece concretamente as obrigações pelas quais os fiadores respondem nem o limite temporal ao qual os fiadores estão vinculados, revestindo natureza indeterminada e ilimitada o que implica nulidade da fiança (artigo 280.º do Código Civil).

- A fiança extinguiu-se com a primeira actualização legal da renda que ocorreu em Março de 2000 ou 5 anos após o início da primeira prorrogação contratual (Setembro de 1973), isto é, em Setembro de 2004.

45. Factos provados:

1- Por escritura pública datada de 17-8-1972, celebrada no […] Cartório Notarial de Lisboa, a A. declarou dar de arrendamento a T.[.] Lda.” o 4º Dto. da Av. […] em Lisboa, descrita na 2º Conservatória do Registo Predial sob o nº […] e inscrito na respectiva matriz sob o nº […].

2- Por escritura pública celebrada em 29-9-1995, no […] Cartório Notarial de Lisboa, tendo como outorgantes a A., a referida T.[…] Lda. e a sociedade P.[…] SA, foi declarada a posição de arrendatária deste imóvel era cedida à referida P.[…] SA, autorizada a cessão pela A.

3- Por escritura pública celebrada em 18-3-1998, no […] Cartório Notarial de Lisboa, tendo como outorgantes a A., a referida sociedade P.[…] SA e a A.[…] Lda. foi declarada a posição de arrendatária deste imóvel era cedida à A.[…] Lda., autorizada a cessão pela A.

4 - Por escritura pública celebrada em 8-3-1999, no […] Cartório Notarial de Lisboa, tendo como outorgantes a A. , a referida sociedade A.[…] Lda. e a ré E.[…] Lda., foi declarada que a posição de arrendatária deste imóvel era cedida à ré, autorizada a cessão pela A., sendo a renda mensal de 10.000$00 e o prazo de arrendamento de um ano com início em 1-9-1972.


5- Mais foi declarado que a renda anual passaria a ser de 6.5230.000$00 a pagar em prestações mensais de Esc. 530.000$00, no domicílio da senhoria ou de quem a representar nesta cidade, no primeiro dia do mês anterior àquele a que disser respeito, iniciando-se o seu pagamento em Março 1999, com a liquidação da renda referente a Abril

6- Igualmente se estipulou que “ o local destina-se a escritório da inquilina exclusivamente para a actividade de agência de viagens, ficando no entanto e desde já autorizada a ter nele a sua sede e desenvolver a sua actividade, exclusivamente de agência de viagens, a sociedade E.[…] Lda., sócia da sociedade inquilina, enquanto esta qualidade se mantiver

7- Estipulou-se ainda que ” quaisquer obras de conservação e limpeza, assim como quaisquer benfeitorias, efectuadas no andar arrendado, nomeadamente para a sua adaptação para os fins a que se destina, serão realizadas a expensas e sob a exclusiva responsabilidade da inquilina que, findo o presente contrato, não poderá exigir por elas qualquer indemnização ou alegar direito de retenção”

8- Na aludida escritura os demais RR declararam constituir-se “ fiadores e principais pagadores obrigando-se solidariamente para com a senhoria por todas as obrigações emergentes do presente contrato, que expressamente declaram obrigar-se relativamente aos períodos de renovação do contrato sem limite do seu número, subsistindo ainda a fiança no caso de haver alteração do valor da renda e, ou, no de ter decorrido o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação do mesmo”

9- A renda actualmente em vigor é de Esc. 544.840$00

10- A Ré não procedeu ao pagamento das rendas vencidas em 1 de Setembro, 1 de Outubro e 1 de Novembro de 2000. respeitante aos meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2000.

11- Por cartas datadas de 21-9-2000 e de 18-10-2000, a A. solicitou à 1º Ré o pagamento das rendas vencidas em 1-9-2000, respeitante a Outubro e em 1 de Outubro de 2000, respeitante a Novembro, acrescida da indemnização de 50%

12- Por documento escrito denominado “ Contrato-promessa de Cessão de Posição Contratual” a 1ª ré declarou prometer ceder a A.[…] Lda. a sua posição de arrendatária no contrato de arrendamento respeitante ao imóvel em apreço, no prazo de 45 dias após recepção pela A.[…] Lda. da comunicação, documentos e informações respeitantes e necessárias à celebração do contrato prometido, ou caso tal não ocorra, após a A.[…] Lda. - tomar conhecimento de qualquer acto que traduza a vontade da ré de deixar de manter a sua posição de arrendatária no contrato de arrendamento e de lhe terem sido facultados todos os documentos e informações necessários para o efeito.

Apreciando:

46. Os réus constituíram-se fiadores do novo arrendatário (E.[…] Lda.) pela escritura de 8-3-1999.

47. A sentença condenatória é de 30 JUN 2005.

48. O contrato de arrendamento é de 17-8-1972 e foi estipulado que o prazo de duração seria de “ um ano a contar do dia 1 de Setembro do corrente ano, mas presumir-se-á sucessivamente renovado por iguais períodos de harmonia com a lei” (ver cláusula primeira do contrato de arrendamento junto a fls. 9 e seguintes).

49. No contrato de cessão de posição contratual e de alteração do arrendamento que foi outorgado, como se disse, no dia 8 MAR 1999, não foi alterado o respectivo prazo de duração.

50. Os fiadores obrigaram-se para futuro garantindo a nova arrendatária. Nada obsta à constituição de fiança no âmbito de contrato de arrendamento iniciado em momento anterior

51. Quando a fiança foi constituída (8-3-1999) já tinha decorrido há muito o período inicial de duração do contrato (17-9-1972/17-9-1973).

52. Se nenhuma estipulação houvesse, para além da constituição de fiança pelas obrigações do locatário, não seria aceitável a interpretação de que a fiança já se extinguira por ter há muito decorrido esse período inicial.

53. A declaração de constituição de fiança devia ser interpretada no sentido de o fiador se obrigar relativamente aos períodos de renovação do contrato em conformidade com o disposto no artigo 655.º/2 do Código Civil.

54. O período de renovação a considerar seria sempre o período a iniciar depois de constituída a fiança, ou seja, o período que decorreria de 1 Set. 1999 a 1 Set. 2000.

55. Não seriam, pois, os fiadores responsáveis pelas dívidas constituídas anteriormente.

56. Foi, no entanto, estipulado que os ora RR “ se constituem fiadores e principais pagadores obrigando-se solidariamente para com a senhoria por todas as obrigações emergentes do presente contrato, que expressamente declaram obrigar-se relativamente aos períodos de renovação do contrato e sem limite do seu número, subsistindo ainda a fiança no caso de haver alteração do valor da renda e, ou, no de ter decorrido o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação do mesmo”.

57. Com esta estipulação as partes, conscientes do disposto no artigo 655/2º do Código Civil, visaram atingir a mesma finalidade que atingiriam se tal preceito não existisse. De facto, na ausência desse preceito, o fiador responde pela obrigação principal e cobre, sem limite temporal, as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor (artigo 634.º do Código Civil).

58. A liberdade contratual de estipulação (artigo 405.º do Código Civil) não pode ir ao ponto de conduzir ao mesmo resultado que conduziria a revogação de determinado preceito legal entretanto ocorrida (Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, artigo 2.º/1).

59. Nessa medida a cláusula será ilegal por visar um resultado contrário à lei (artigo 281.º do Código Civil).

60. A natureza supletiva reconhecida ao artigo 655.º do Código Civil - ANTUNES VARELA diz que “ as disposições contidas neste artigo são supletivas. Nada obstará a que se estabeleçam no contrato regras diferentes das legais, e se obrigue o fiador em termos mais ou menos onerosos” (Código Civil Anotado, Vol I, 4ª edição, pág. 673) - não equivale à possibilidade de pura derrogação do alcance do aludido preceito por via estipulatória.

61. O aludido preceito tem por objectivo salvaguardar o fiador do locatário de uma responsabilização contínua, sem limite temporal, como sucederia, não existindo a referida norma, considerando que a regra em matéria de arrendamento é a da renovação automática sem possibilidade de denúncia por parte do locador.

62. Reza o nº2 do artigo 655.º do Código Civil:

2- Obrigando-se o fiador relativamente aos períodos de renovação, sem se limitar o número destes, a fiança extingue-se, na falta de nova convenção, logo que haja alteração da renda ou decorra o prazo de cinco anos sobre o início das primeira renovação.

63. Assim, se a fiança valer para os períodos de renovação, sem, no entanto, se limitar o numero destes, a lei prescreve que a fiança se extingue decorrido o prazo de cinco anos sobre o início da primeira renovação ou mesmo antes se houver alteração da renda.

64. Defende-se que a contrario o fiador se possa obrigar relativamente aos períodos de renovação por prazo superior a cinco anos desde que seja fixado limite aos períodos de renovação.

65. Afigura-se-nos que a lei não aceita uma estipulação que abranja períodos de renovação que se estendam para além do prazo de cinco anos.

66. A lei admite que o fiador possa obrigar-se por mais de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação, mas, para que assim seja, as partes, designadamente o fiador, têm de manifestar a sua vontade de prosseguir o contrato de fiança por via de nova convenção.

67. A não se entender assim, ou seja, considerando que a imperatividade do artigo 655.º/2 do Código Civil se restringe à imposição de um limite para o número de prorrogações, então o mesmo regime extintivo da fiança seria de aplicar “ quando seja fixado um limite máximo de prorrogações objectivamente irrazoável, em função da relação arrendatícia concreta, tendo em vista tornear a imperatividade de limites sérios e conseguir, assim, a ‘eterna’ vinculação do fiador” (MANUEL JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Assunção Fideijussória da Dívida, Almedina, 2000,pág 316).

68. O regime é supletivo visto que o fiador pode sempre obrigar-se relativamente a períodos de renovação, mesmo para além dos cinco anos. No entanto, a lei, para que assim seja, prescreve que as partes o convencionem novamente. A supletividade não é absoluta, incondicionada, tratando-se de fiança que abranja períodos de renovação que ultrapassem os cinco anos contados sobre o início da primeira prorrogação ou ainda no caso de alteração da renda.

69. Se o fiador aceita obrigar-se relativamente aos períodos de renovação, a lei, quando prescreve a necessidade de uma nova convenção sempre que haja o propósito de prorrogar o tempo de duração da fiança para além dos cinco anos sobre o início da primeira prorrogação, está afinal a acautelar as precipitações dos fiadores naquele momento inicial sempre entusiástico da outorga do contrato que desejam viabilizar; sabe-se que os fiadores partem do pressuposto compreensível de que a sua responsabilização é meramente acessória, não lhes sendo exigido em princípio nada mais do que a garantia, o que facilita assumir de obrigações de uma forma menos pensada. A lei, ao impor uma tal ponderação - a necessidade de uma “nova convenção” - assumiu uma solução equilibrada e louvável dentro de uma linha de razoabilidade e de compreensão das realidades da vida que corresponde a um pensamento social.

70. Se considerarmos que as partes podem sempre estipular a prorrogação por mais cinco anos da fiança, prevalece a perspectiva supletiva; se encaramos esses cinco anos como o limite máximo de estipulação sem que um novo compromisso seja assumido, então há uma perspectiva de natureza imperativa.

71. Januário Gomes entende que a ideia de que as partes podem estipular, sem qualquer restrição, a vinculação dos fiadores por tempo indeterminado resulta de um equívoco: “ confundir a questão da imperatividade da limitação do número de prorrogações (quando se pretenda que a fiança cubra mais do que os cinco anos posteriores ao início da primeira prorrogação) com a questão da admissibilidade de ‘nova convenção’ e seus termos. Ou seja, o facto de o artigo 655.º/2 admitir que, por nova convenção, a fiança ‘destinada’ a extinguir-se (cinco anos após a primeira prorrogação) possa, ainda assim, ver prolongada a sua existência, tem sido transposto - abusivamente, no nosso entender - para a fase da constituição da vinculação fidejussória, em termos tais que a jurisprudência vem admitindo vinculações fideijussórias sem qualquer horizonte temporal” (loc. cit, pág. 318).

72. A lei, portanto, admite uma vinculação fideijussória para além dos cinco anos mas impondo - e só aqui há imperatividade - que as partes, constituída já a fiança, exprimam autonomamente a sua vontade por nova convenção.

73. Essa limitação é a razão de ser do preceito. Afastá-la é, como se disse, derrogar o próprio preceito.

74. Uma estipulação que afaste esta limitação não pode valer e, por conseguinte, há-de entender-se que a fiança se extingue decorridos cinco anos sobre o início da primeira prorrogação.

75. Assim, no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 23-4-1990, (Eliseu Figueira) B.M.J. 396-390 refere-se que “ o que resulta da citada disposição legal é que a fiança se dirige apenas ao período inicial de duração do contrato, podendo contudo por convenção entre as partes estender-se aos períodos de renovação, desde que se fixe o número desses períodos. Ficando indeterminado esse número, como sucede no caso concreto, então a fiança extingue-se decorrido o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação. Contra essa extinção não vale cláusula em contrário, pois esta, quando referida ao nº1 do citado artigo 655.º, reporta-se apenas à extensão da fiança aos períodos de renovação, se concretamente delimitados no tempo. É que não pode aceitar-se fiança por tempo indeterminado quando há sucessivas renovações de um contrato, cujo regime só em certas hipóteses admite a sua resolução […] O que se acaba de referir é uma imposição legal que decorre do princípio geral da nulidade dos negócios jurídicos cujo objecto seja indeterminável”.

76. No mesmo sentido, veja-se o Ac. do S.T.J. de 12-10-2006 Revista n.º 1783/06 - 2.ª Secção Abílio Vasconcelos (Relator) Duarte Soares, Ferreira Girão com o seguinte sumário:

III - A cláusula do contrato em que o réu fiador assumiu a responsabilidade pelas renovações até efectiva restituição do locado, mesmo depois de decorrido o prazo de 5 anos, é nula por ofender o regime imperativo fixado no art. 655.º, n.º 2, do CC, já que não foram definidos novos períodos de renovação.

77. Não há, porém, como já se disse, unanimidade: considerando a validade da cláusula, veja-se o Ac. do S.T.J. de 17-6-1998 (Fernando Fabião) C.J.,2, pág. 114.

78. Não vemos todavia razão para alterarmos a posição que já assumimos no Ac. de 23-8-2004 (inédito)( P. 4387/2004) onde considerámos quenão é válida cláusula contratual que obriga o fiador relativamente aos períodos de renovação do contrato sem limitar o número destes e, por isso, a obrigação do fiador deve considerar-se extinta decorridos cinco anos sobre o início da primeira prorrogação (artigo 655º/2 do Código Civil), sendo tal nulidade do conhecimento oficioso”

79. No caso em apreço considerando que a primeira prorrogação, constituída a fiança, se iniciou no dia 1 de Setembro de 1999 e findou no dia 1 de Setembro de 2000, a fiança há-de considerar-se extinta decorrido o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação, ou seja, no dia 1 de Setembro de 2004.

80. Não são, portanto, devidas as rendas vincendas de 1 de Setembro de 2004 a 30 de Junho de 2005, data em que foi proferida a sentença objecto do presente recurso.

81. Pediu a A. a condenação dos réus no pagamento da quantia correspondente à totalidade das rendas vincendas até ao trânsito em julgado da sentença que decretar o despejo.

82. A A. pretende a condenação dos RR no pagamento das rendas vincendas e limita esse pagamento ao momento do trânsito em julgado da sentença que, a proceder o pedido, decretará o despejo

83. Não é aceitável o entendimento de que, não sendo decretado o despejo, não é devido o pagamento das rendas vencidas.

84. As rendas serão devidas, não decretado o despejo, até ao trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida que não decretar o despejo, pois, salvo excepção que obste à condenação no pagamento das rendas, os AA reclamam as rendas devidas em dívida decorrentes do arrendamento.

85. Não há portanto violação do princípio do pedido ou excesso de pronúncia na decisão proferida que condenou os RR no pagamento das rendas devidas até à prolação da sentença

86. Se a sentença tivesse condenado os RR no pagamento de rendas vincendas em relação à data da sentença é que se poderia discutir se não estaria a ser desrespeitado o disposto no artigo 661.º do Código de Processo Civil, pois os AA reclamaram o pagamento de rendas vincendas pressupondo que elas não seriam devidas a título de indemnização pelo fiador a partir do trânsito em julgado da sentença que decretou o despejo, querendo, com isso, estabelecer o trânsito da sentença como limite.

87. Ainda assim nos parece que a sentença não incorreria em violação do pedido se condenasse os RR no pagamento das rendas vincendas tout court visto que os AA apenas introduzem no pedido aquele limite em razão do pressuposto referido, ou seja, que, a partir do despejo, os fiadores não estão vinculados ao pagamento das rendas devidas a título de indemnização; no entanto, se o contrato subsistir, então a A. não deixaria de pretender a condenação dos fiadores no pagamento das rendas vincendas obtendo, deste modo, sentença com trato sucessivo (artigo 472.º do Código de Processo Civil).

88. Os fiadores obrigaram-se solidariamente.

89. A solidariedade não impede que os devedores solidários demandem conjuntamente o credor ou sejam por ele conjuntamente demandados ( artigo 517.º/1 do Código Civil), ou seja, o litisconsórcio é voluntário (artigo 27.º/2 do Código de Processo Civil).

90. Demandado apenas um dos devedores solidários, pode o devedor solidário demandado pela totalidade da dívida, fazer intervir os outros devedores (artigo 330.º,alínea c) do Código de Processo Civil antes da revisão de 1995/1996) a que corresponde o disposto nos artigos 325.º e 329.º/2 do Código de Processo Civil post revisão.

91. No caso em apreço os RR foram demandados conjuntamente, mas essa circunstância não retira ao litisconsórcio a sua natureza de litisconsórcio voluntário.

92. Por isso, a desistência relativamente a um dos litisconsortes passivos não sofre a limitação que decorre do artigo 298.º/2 do C.P.C. que vale para o litisconsórcio necessário.

93. Não se pode falar de abuso do direito de desistência visto que o autor agiu em conformidade com as faculdades que a lei lhe concede e obviamente os RR que sejam condenados a pagar as rendas dispõem de direito de regresso relativamente aos fiadores não demandados ou àqueles relativamente aos quais o A. tenha desistido do pedido pois a desistência limita-se ao “ interesse de cada um na causa” (artigo 298.º/1 do C.P.C.).

94. A acção tem, portanto, de proceder parcialmente.

Concluindo:
I- Não é válida cláusula contratual em que o fiador se obrigou relativamente aos períodos de renovação do contrato sem limitar o número destes, devendo, por isso, a obrigação do fiador considerar-se extinta decorridos cinco anos sobre o início da primeira prorrogação (artigo 655º/2 do Código Civil).
II- É válida a desistência do pedido relativamente a um dos fiadores que com outros se obrigou em regime de solidariedade a pagar as rendas, pois no caso de litisconsórcio voluntário é livre a desistência do pedido (artigos 293.º e 298.º do Código de Processo Civil).
III- O exercício do direito de desistência do pedido (ou da confissão ou de transacção) não constitui abuso do direito

Decisão: concede-se parcial provimento ao recurso absolvendo-se os RR recorrentes do pedido de pagamento de rendas vincendas a partir de 1 de Setembro de 2004, confirmando-se quanto ao mais a decisão proferida.

Custas pela A. e RR na medida do respectivo decaimento; custas pelo réu agravante no que respeita ao agravo em que decaiu.

Lisboa, 12 de Julho de 2007
(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)