Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
673/03.2TYLSB.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
NOTORIEDADE DE MARCA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: - A dispensa de audiência prévia no CPC2013 não é possível quando o tribunal entenda possível conhecer do mérito da causa; a situação está prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 591.º, não excepcionada na norma que prevê tal dispensa, a do artigo 593.º, n.º 1.
- A referência à dispensa de audiência prévia para prolação de saneador - alínea d), do artigo 591.º, n.º 1 - restringe-se ao saneador com o conteúdo previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 595.º, não se estendendo à alínea b).
- É notório o facto percepcionado pela generalidade dos cidadãos directamente, pelo modo da percepção humana que é na sua fonte sensorial, ou o facto decorrente de um facto assim directamente percepcionado, seguido de um raciocínio acessível a todas as pessoas da comunidade de cultura média.
- A invocação pelo juiz da notoriedade do facto carece assim da invocação da efectividade da percepção directa geral do facto notório primário ou da invocação do raciocínio de que decorre o facto notório secundário e sua acessibilidade às pessoas de cultura média da comunidade visada e pertinente.
- A parte que pretende prevalecer-se da notoriedade da marca tem de alegar e provar os factos de que a mesma resulta, os quais podem ou não ser notórios.
- A consideração pelo juiz da notoriedade da marca como facto notório está sujeita ao percurso judicial argumentativo indicado.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM do Tribunal da Relação de Lisboa

I) RELATÓRIO

B... instaurou a presente ação declarativa de condenação com processo comum ordinário contra A..., invocando que a Ré utiliza marca de que a Autora é titular.
A Autora alegou como fundamento, em resumida síntese, que desde o século XIX produz cerveja em Ceské Budejovice, cidade da Boémia conhecida pela designação germânica de B..., tendo a cerveja dessa região características que a distinguem de qualquer outra e que assentam no saber humano transmitido ao longo das gerações[1] e na qualidade da água utilizada extraída de poços profundos;
A expressão B...er adjetiva a qualidade do que pertence a B...s, ou seja, à cidade de Ceské Budejovice;
A Autora é titular do registo internacional da marca n.º 614.537 “B...ER BUDBRÄU” e do registo das marcas nacionais n.ºs 323.986 “BUDEJOVICKÝ BUDVAR” 323.987 “BUDEJOVICKÝ BUDVAR”, para a categoria 32, cervejas, reportando-se a prioridade da primeira a 15 de novembro de 1993 data do pedido do registo checo-eslovaco;
A Ré pediu e obteve do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), por despacho de 4 de dezembro de 1997, o registo da marca nacional n.º 297.665 “COLD FILTERED ICE DRAFT BEER FROM B...ER” (mista), para a categoria 32, cervejas, não reivindicando o uso exclusivo das expressões “COLD”, “FILTERED”, “ICE”, “DRAFT” e “BEER”, cuja anulação a Autora pretende pela prioridade do direito aludida;
A Ré utiliza em Portugal a expressão B...ER para comercializar as suas cervejas, o que prejudica a Autora com efeitos patrimoniais que descreve;
Invoca o direito em que funda as suas pretensões, sendo este, resumidamente o disposto no artigo 189.º, n.º 1, alínea m), do Código da Propriedade Industrial (CPI), o Acordo sobre Proteção das Indicações de Proveniência, das Denominações de Origem e de outras Denominações Geográficas e Similares celebrado entre Portugal e a República Socialista da Checoslováquia de 10 de janeiro de 1986 (doravante Acordo), tendo sucedido à celebrante a República Checa e o ADPIC no que se reporta ao âmbito da indemnização devida;
Concluiu pedindo:
1) Seja anulado o registo da marca nacional n.º 297.665 “COLD FILTERED ICE DRAFT BEER FROM B...ER”;
2) Seja a Ré condenada a abster-se de comercializar cervejas com marcas constituídas total ou parcialmente pela expressão “B...ER”, retirando do mercado todos esses produtos e destruindo os que ainda possa ter em stock;
3) Seja a Ré condenada a abster-se de utilizar marcas constituídas total ou parcialmente pela expressão “B...ER” ou de adotar quaisquer outras marcas suscetíveis de serem confundidas com as marcas da Autora ou de constituírem uma violação das disposições legais atrás mencionadas;
4) Seja a Ré condenada a pagar à Autora uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, pelos danos patrimoniais já causados, cujo montante deverá ser arbitrado pelo tribunal nos termos dos artigos 564.º, n.º 2, e 566.º, n.º 3, do Código Civil (CC);
5) Seja a Ré condenada a pagar à Autora uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, pelos prejuízos que vierem a ser apurados e pelas despesas com os serviços a quem tem recorrido para fazer valer os seus direitos e legítimos interesses, de acordo com o artigo 564.º, n.º 2, do CC, e artigo 45.º, n.º 2, do Acordo sobre os Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (ADPIC);
6) A título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento da sentença que vier a ser proferida deverá ainda a Ré ser condenada a pagar um montante de € 2.000,00, nos termos do artigo 829.º, n.º 1, 2 e 3, do CC.
A Ré contestou e reconveio.
Em contestação alegou, em resumida síntese:
A Ré impugna que a expressão B...er tenha o sentido de proveniente de Ceské Budejovice uma vez que a expressão alemã B... não é usada há décadas, conforme resulta de parecer que junta e, bem assim, de decisões do Supremo Tribunal Federal da Alemanha, do Tribunal de Recursos de Milão e do tribunal Marítimo de Copenhaga, tendo a Autora defendido o mesmo em processos anteriores na Alemanha e na Suécia;
O Instituto para a Harmonização do Mercado Interno vem aliás entendendo que uma marca comunitária não pode ser registada se for constituída exclusivamente por indicação de proveniência geográfica pelo que a publicitação do pedido de registo da Autora de marca com essa denominação indica que a consideram como não indicando proveniência geográfica;
Os registos de marcas nacionais que a Autora obteve pela decisão proferida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de janeiro 2001 foram-no em razão de argumentos relativos à vigência e aplicação do Acordo que não têm autoridade de caso julgado nestes autos, estando em curso queixa da Ré contra o Estado Português no Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (à data da contestação, hoje da União e doravante TJUE);
A cerveja produzida em Ceské Budejovice não tem qualquer distinção resultante do local, dos produtos ou do saber humano, como resulta de parecer que junta e do facto de a Autora estar em negociações para a sua produção em outros locais;
Em reconvenção, alegou:
A Ré produz cerveja sob a marca B...ER desde 1876 sendo esta uma marca conhecida internacionalmente, nomeadamente em Portugal, de prestígio e notória, associada à Ré e não à Autora, o que em muito resulta da promoção que ao longo de mais de um século a Ré efetuou e suportou, nomeadamente em eventos de cariz mundial e em diversos filmes mundialmente conhecidos, notoriedade que foi já reconhecida em tribunais italianos e dinamarqueses;
O Acordo invocado caducou com a dissolução da Checoslováquia e a troca de notas de confirmação torna-o organicamente inconstitucional, como se defende em parecer que junta, sendo que o mesmo Acordo contraria o Regulamento 2081/92 (CEE), de 14 de julho de 1992 (doravante Regulamento), não tendo Portugal ressalvado a denominação em causa nos seis meses a que o Regulamento o obrigava, o que resulta exposto em parecer que junta e tem sido defendido pelo TJUE, situação que sairá reforçada com a adesão da República Checa à União a partir de 1 de maio de 2004, nos termos do artigo 5.º, n.º 5, do Regulamento;
A disputa entre a Ré e a Autora tem vindo a ser expressa em diversas ações em Portugal e em vários outros países europeus;
A Ré divulgou junto dos distribuidores portugueses que a Autora não tem direito ao uso da marca B...ER e vem ela própria procedendo à comercialização de cerveja com essa marca, o que causou à Autora prejuízos diversos, beneficiando a Ré da promoção da marca exclusivamente suportada pela Autora, com perda de mercado e de poder distintivo da marca.
Conclui pedindo:
 1) Seja anulado o registo da marca internacional n.º 614.537 “B...ER BUDBRAU”;
2) Sejam anulados os registos da marca nacional n.ºs 323.986 e 323.987 “BUDEJOVICKÝ BUDVAR”;
 3) Seja a Autora condenada a abster-se de comercializar cervejas com marcas que incluam a palavra “B...ER”, retirando do mercado todos esses produtos e destruindo os que ainda possa ter em stock;
4) Seja a Autora condenada a abster-se de utilizar marcas que incluam a palavra “B...ER”;
5) Seja a Autora condenada a pagar à Ré uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, pelos danos patrimoniais já causados;
6) Seja a Autora condenada a pagar à Ré uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, pelos prejuízos que vierem a ser apurados e pelas despesas com os serviços a que tem recorrido para fazer valer os seus direitos e legítimos interesses;
7) A título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento da sentença que vier a ser proferida, deve a Autora ser condenada a pagar um montante de € 20.000,00.
A Autora replicou pedindo a condenação da Ré como litigante de má-fé por não ter junto os documentos que anunciou, assim condicionando a defesa da Autora, impugnando o que em contrário da petição a Ré alegou, salientando que a Ré nunca conseguiu registar uma marca comunitária com a expressão “B...ER”, que a referida marca que usa não tem qualquer notoriedade na Europa, nomeadamente em Portugal, que alguns dos registos cuja anulação a Ré pede foram concedidos à Autora por decisões transitadas, que o Acordo se mantém vigente como se defende em parecer que junta, que o regulamento não estabelece um sistema universal e exaustivo de proteção e ressalva acordos internacionais como o próprio TJUE defende, que a adesão da República Checa à União é posterior à propositura da ação, em nada podendo influir nesta e que o pedido de indemnização carece de fundamento. Ampliou o pedido de condenação em sanção pecuniária compulsória para a quantia diária de € 20.000,00.
Foi designada audiência preliminar, a qual não chegou a realizar-se.
A Autora apresentou articulado superveniente no qual alegou, em síntese:
Vários anos após a entrada da ação, o INPI concedeu à Autora os registos das indicações geográficas 96 “B...ER BUDVAR”, 97 “BEER FROM B...” e 98 “BUDEJOVICKY BUDVAR” cuja prioridade remonta a 6 de outubro de 1997, sendo que dos mesmos, não impugnados pela Ré, resulta que as expressões BUDEJOVICkYE e B...ER têm um conteúdo geográfico preciso em conexão com a cerveja.
O articulado foi admitido e a Ré notificada para contestar, nada tendo dito.
Estão juntos aos autos os seguintes pareceres:
- Da Professora Gabriela Basarová sobre o fabrico de cerveja e sua ligação a locais geográficos ou características humanas;
- Do Professor Otto Teplitzky sobre o carácter de indicação geográfica da expressão “B...ER”;
- Do professor Leos Jelecek sobre o carácter de indicação geográfica da expressão “B...ER” e da sua ligação à cidade de Ceské Budejovice;
  - Do professor Gideon Biger sobre o carácter de indicação geográfica da expressão “B...ER” e da sua ligação à cidade de Ceské Budejovice;
 - Do Professor György Béndek sobre o fabrico de cerveja e sua ligação a locais geográficos ou características humanas;
- Do Professor Eberhard Geiger sobre o fabrico de cerveja e sua ligação a locais geográficos ou características humanas;
- Do Professor Fausto Quadros sobre o Acordo, sua caducidade e vigência;
- Do Professor Marcelo Rebelo de Sousa sobre o Acordo, sua caducidade e vigência;
- Do Professor Alberto Francisco Ribeiro de Almeida sobre o Regulamento.
Foi proferida sentença, por ter sido entendido que dos autos resultavam todos os elementos de facto necessários à decisão, inexistindo necessidade de atividade probatória, na qual foi decidido:
«I - Julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) Anular o registo da marca nacional n.º 297.665 “Cold Filtered Ice Draft Beer from B...er”;
b) Condenar a Ré a abster-se de comercializar cervejas com marcas constituídas total ou parcialmente pela expressão “B...er”, retirando do mercado todos esses produtos;
c) Condenar a Ré a abster-se de utilizar marcas constituídas total ou parcialmente pela expressão “B...er” ou de adoptar quaisquer outras marcas susceptíveis de ser confundidas com as marcas da Autora;
d) Condenar a Ré no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829.º-A, do Código Civil, no valor unitário de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), por cada dia de atraso no cumprimento da presente sentença.
e) Absolver a Ré de todos os demais pedidos.
II – Julgar improcedente a reconvenção, absolvendo a Autora de todos os pedidos reconvencionais».
É desta decisão que a Ré apela, concluindo como segue as suas alegações, com as quais apresentou documentos:
«A) Está em causa a Douta Sentença do 2° Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa que julga parcialmente procedente a acção intentada pela ora Apelada e improcedente a Reconvenção peticionada pela ora Apelante.
B) Com o devido respeito, entende a Apelante que a douta sentença recorrida assenta numa visão insuficiente da situação em causa, fazendo deficiente apreciação dos factos e dos preceitos legais aplicáveis.
C) Não pode deixar de se considerar surpreendente a posição do tribunal a quo de dispensar a audiência prévia e conhecer imediatamente dos pedidos.
D) A complexidade jurídica e factual da matéria em discussão, o historial litigioso a nível nacional e internacional entre as partes e a longa pendência da acção (intentada em 2003), impunham - salvo melhor opinião - a não dispensa da audiência, permitindo às partes carrear mais provas e discutir com maior detalhe e actualidade as questões controversas.
E) Havendo, em 2005, fundamentos para a realização de audiência preliminar, não se percebe o que motivou o tribunal a quo a alterar õ entendimento, considerando agora que os "autos reúnem os elementos necessários para a apreciação do mérito da causa".
F) A douta sentença recorrida acaba por se sustentar predominantemente no Acórdão do STJ de 23 de Janeiro de 2001 (BPI n° 912001, de 30 de Outubro, pp. 3224-3233), referindo-se a esse Acórdão em diversas ocasiões.
G) Ao reconduzir a apreciação da matéria sub judice ao referido Acórdão do STJ, o Tribunal a quo desvaloriza os desenvolvimentos que ocorreram após a prolação desse Acórdão que, a serem devidamente ponderados, impunham uma decisão em sentido contrário.
H) Não obstante a propositura da presente acção ser anterior à adesão da República Checa à União Europeia (considerando a douta sentença que o enquadramento do litígio teve em conta a realidade existente à data da sua entrada em juízo") a verdade é que na pendência da acção ocorreu essa adesão.
I) Impunha-se, portanto, que o Tribunal a quo ponderasse devidamente as implicações decorrentes da adesão da República Checa à União Europeia as quais, salvo melhor opinião, alteram radicalmente os factos e pressupostos em que foi proferido o Acórdão do STJ de 2001.
J) Desde logo, sustentando-se o Acórdão do STJ predominantemente no Acordo Bilateral entre Portugal e a República Checa, com a adesão deste país à União Europeia a alegada protecção das designações checas para as cervejas da localidade de Ceske Budejovice, ao abrigo do Acordo Bilateral, deixou de poder ser invocada.
K) Significando isto que apenas são validamente reconhecidas as Indicações Geográficas protegidas nos termos do sistema comunitário.
L) O caracter exaustivo do sistema comunitário, ficou claramente definido da Decisão de 8 de Setembro de 2009 no processo Budejovicky Budvar vs Rudolf Ammersin (C478/07), confirmada posteriormente da Decisão de 22 de Dezembro de 2010 no processo Bavaria NV vs Bayerischer Brauerbund (C-120/08).
M) Na decisão do processo C-478/07 o Tribunal de Justiça da União Europeia consagra expressamente que não há lugar à aplicação de outros sistemas de protecção para as indicações geográficas que caiam no âmbito do sistema da União Europeia.
N) O caracter exaustivo do sistema de protecção das indicações geográficas na União Europeia foi confirmado pelo Tribunal de Justiça na Decisão de 22 de Dezembro de 2010 no processo C-120/08 Bavaria NV v Bayerischer BrauerbundeV.
O) Em conformidade com a orientação preconizada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, o caracter exaustivo do sistema de protecção das indicações geográficas a nível da União Europeia tem sido reconhecido pelos tribunais nacionais dos Estados Membros, determinando que a protecção das alegadas designações de cervejas de Ceske Budejovice através de tratados internacionais não pode ser invocada pela Budejovicky Budvar, por força da legislação da União Europeia.
P) Desta forma, contrariamente ao sustentado na douta sentença recorrida, o referido Acordo de 10 de Janeiro de 1986 não poderia constituir fundamento para a anulação do registo da marca no 297.665.
Q) Do mesmo modo, também a marca internacional n° 614.537 "B...ER BUDBRAU" da Apelada não poderá constituir fundamento de anulação do registo da marca n° 297.665 pois, procedendo o pedido reconvencional conforme peticionado pela ora Apelante, a protecção no nosso país dessa marca internacional deverá ser anulada.
R) Na reconvenção que deduziu a ora Apelante invocou a prioridade da sua marca "B...ER" com base no reconhecimento do caracter notório da mesma.
S) Desde logo, o mecanismo especial de protecção conferido às marcas notórias encontra-se consagrado no art° 6° bis da CUP e, na legislação nacional, no art° 241° do CPI (anterior art° 190°).
T) O caracter notório da marca "B...ER" da Apelante, que aliás poderá ser considerado como um facto público e notório, foi reconhecido pelo mesmo Tribunal no âmbito do proc° 955103.3TYLS11.
U) Como já havia também sido reconhecido na sentença do 3° Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, no proc° 954/03.5TY1LS11.
V) Ao não reconhecer o estatuto de notoriedade à marca "B...ER" da Apelante o tribunal a quo incorre em erro na apreciação dos factos.
W) Independentemente de nunca ter tido uma presença relevante (em termos de mercado português), a verdade é que o caracter global da marca "B...ER" da Apelante de modo algum é indiferente ao público nacional.
X) É público e notório que, no âmbito das cervejas, a marca "B...ER" da Apelante é a mais conhecida e reputada a nível mundial, ocupando sistematicamente os rankings das marcas mundialmente mais valiosas ao lado de marcas como "COCA-COLA", "MARLBORO", "McDONALDS", "IBM", "KODAC" e SONY".
Y) A enorme projecção mundial da marca "B...ER", desde há várias décadas, não pode evidentemente ser dissociada do conhecimento que o público português tem da mesma, ainda que a implantação efectiva no comércio nacional tenha sido reduzida quando comparada com as marcas nacionais de cerveja ("SAGRES" e "SUPERBOCK").
Z) A presença constante da marca "B...ER" da Apelante em associação aos eventos mundialmente mais famosos - e com ampla difusão no nosso país - como os Campeonatos do Mundo de Futebol, os Jogos Olímpicos, as provas automóveis NASCAR, as regatas America's Cup, etc. tornam imediatamente identificável e reconhecida a marca em apreço por parte da esmagadora maioria dos cidadãos portugueses, sejam eles ou não consumidores de cerveja.
AA) Impõe-se, portanto, concluir pelo caracter notório da marca "B...ER" no nosso país, independentemente do volume pouco significativo de venda dessas cervejas.
BB) Ao proprietário de uma marca não registada notoriamente conhecida em Portugal é conferido o direito de se opor ao registo de marca idêntica que com ela possa confundir-se, podendo intervir no respectivo processo depois de ter efectuado o pedido de registo da marca que dá origem e fundamenta o seu interesse (cfr. Art° 2410 do CPI).
CC) Do mesmo modo, nos termos do art° 266°, n° 2 do CPI é também conferido ao proprietário de marca notória, o direito de requerer a anulação de registo de marcas idênticas ou confundíveis.
DD) O reconhecimento do caracter notório da marca "B...ER" da Apelante impunha a anulação do registo da marca internacional "B...ER BUDBRAU".
EE) Concluindo-se, em coerência, que não assiste qualquer legitimidade à Apelada para ser titular no nosso país de quaisquer marcas integrando o termo "B...ER".
FF) Ficando, dessa forma, devidamente reconhecidos em Portugal os legítimos direitos da Apelante perante a marca "B...ER", a qual é, desde há muito tempo, reconhecida como uma das marcas mais conhecidas e valiosas a nível mundial.
GG) A avaliação realizada pelo tribunal a quo em que se pugna que o uso pouco significativo da marca da Apelante no nosso país inviabiliza que beneficie do estatuto de marca notória, contraria o entendimento da mais autorizada Doutrina nesta matéria.
HH) Assentando a douta Sentença recorrida no pressuposto de que a marca "B...ER" da Apelante não tem o estatuto de marca notória, toda a construção da decisão quanto aos pedidos formulados, quer pela Apelada, quer pela Apelante em sede reconvencional, ficaram obviamente condicionados.
II) Está, pois, em causa a deficiente interpretação e aplicação por parte do tribunal a quo do disposto nos art°s 241° e 266º n° 2 do CPI.
JJ)  Sendo reconhecido, como pugna a Apelante, o carácter notório da   sua marca "B...ER",  e estando verificados os requisitos legais à invocação desse estatuto (nomeadamente quanto a ter efectuado o pedido de registo que dá origem e fundamenta o seu interesse), a douta sentença recorrida teria, com o devido respeito, retirado conclusões em sentido contrário às proferidas.
KK) Desde logo, inexistiam fundamentos para decretar a anulação do registo da marca n° 297.665 "COLD FILTERED ICE DRAFT BEER FROM B...ER".
LL) Concomitantemente, não deveria a Apelante ser condenada a abster-se de usar a marca "B...ER", ou qualquer outra marca integrando esse termo, o que determinaria evidentemente a improcedência da sanção pecuniária compulsória decretada.
MM) Reconhecendo-se os seus legítimos direitos da Apelante sobre a notoriamente conhecida marca "B...ER", impunha-se o deferimento dos pedidos reconvencionais formulados, designadamente a anulação do registo da marca internacional n° 614.537 "B...ER BUDBRAU" e a condenação da Ré, ora Apelada, a abster-se de usar cervejas com marcas integrando o termo "B...ER".
Nestes termos, e nos melhores de Direito, será feita JUSTIÇA!».
Foram apresentadas contra-alegações defendendo o bem fundado da decisão.
O recurso foi recebido como apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, o que tudo foi mantido nesta Relação.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II) OBJECTO DO RECURSO

Tendo em atenção as alegações do Recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as exceções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, são as seguintes as questões a decidir:
1) Da não marcação de audiência preliminar;

2) Do mérito da sentença recorrida que pressupõe a apreciação oficiosa da suficiência da matéria de facto para a aplicação do direito.

III) FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÃO PRÉVIA
1. Da não marcação de audiência preliminar
Nas suas alegações e nas respetivas conclusões, a Recorrente coloca em causa o entendimento expresso na decisão recorrida de dispensa da audiência prévia, face à complexidade da causa e à anterior opção por marcação de audiência preliminar.
Na referida decisão, o Ex.mo Senhor Juiz entende dispensar a realização de audiência prévia com fundamento no disposto no artigo 593.º, n.º 1, com referência ao artigo 591.º, n.º 1, alínea d), e, por via desta norma, do artigo 595.º, n.º 1, todos do CPC.
Embora se não encontre expresso, afigura-se que o raciocínio subjacente à dispensa foi o de considerar que o despacho saneador referido na alínea d), do n.º 1, do artigo 591.º, correspondia ao despacho saneador como previsto no artigo 595.º, n.º 1, ou seja, englobando a apreciação de exceções dilatórias e do conhecimento imediato do mérito da causa.
Não se vê que assim possa entender-se, uma vez que a dispensa de audiência prévia prevista no artigo 593.º, n.º 1, ao remeter para as alíneas d), e) e f) do artigo 591.º, n.º 1, excluindo da remissão a alínea b), em que se prevê a realização de audiência prévia quando haja de conhecer-se de exceções dilatórias ou do mérito, tem de ser interpretada no sentido de a dispensa não poder ocorrer em caso de conhecimento imediato de mérito.
Por isso que a alínea d), do artigo 591.º, n.º 1, tenha de sofrer interpretação restritiva considerando que o despacho saneador a que se refere é apenas aquele que tem o conteúdo previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 595.º, estando o conteúdo previsto na alínea b) desta norma integrado na alínea b), do n.º 1, do artigo 591.º, e, por isso, excluído da possibilidade de dispensa a que alude o artigo 593.º, n.º 1.
Ou seja, concluímos que a dispensa de audiência prévia não era legalmente possível no caso dos autos, pretendendo o tribunal decidir de mérito.
Pese embora, a Recorrente limita-se a enunciar o seu desacordo com a posição tomada pelo tribunal, não retirando de tal consequências quanto à decisão final, não cumprindo a este Tribunal retirá-las, por inexistência de dever oficioso de o fazer, prevalecendo o princípio da necessidade do pedido (artigo 3.º, n.º 1, do CPC).

2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Tendo em atenção a matéria de facto assente na primeira instância, que não foi impugnada, inexistindo motivos para a sua reapreciação oficiosa, são os seguintes os factos assentes nos autos:
1) B...s ou B... é indicado em vários dicionários como sendo a tradução inglesa ou alemã do nome da cidade de Ceské Budejovice.
2) A cidade de Ceské Budejovice situa-se no sul da República Checa.
3) Desde há séculos que o fabrico e comercialização de cerveja são das mais importantes e conhecidas actividades daquela povoação e de toda a região em que se insere, a Boémia.
4) A Autora tem a sua sede em Ceské Budejovice e produz aí cerveja.
5) A Autora é titular do registo internacional da marca n.° 614.537 "B...ER BUDBRÄU", destinada a assinalar cervejas, na classe 32, ao qual foi concedida proteção em Portugal, por Acordão da Relação de Lisboa de 28/02/2002 (cfr. o documento de fls. 523 a 531, que se reproduz).
6) A data desse registo internacional é 11/03/1994, tendo sido reivindicada prioridade em relação ao pedido de registo checo (à época checoslovaco) n.° 174.548, pedido em 15/11/1993 e concedido em 10/01/1994 (cfr. o mesmo documento).
7) A Autora é também titular dos registos de marcas, nacionais n.° 323.986 e 323.987, constituídas pela expressão "BUDEJOVICKY BUDVAR", destinadas a assinalar cervejas, por despachos do INPI de 25/01/2002 (cfr. os documentos de fls. 521 e522).
8) Por despacho de 04/12/1997, o INPJ concedeu à Ré o registo de marca nacional n.° 297.665 "COLD FILTERED ICE DRAFT BEER FROM B...ER", requerido em 26/01/1994, destinada a assinalar cervejas (cfr. os documentos de fis. 143 a 150, com o seguinte aspeto figurativo:

9) A Ré não reivindicou o uso exclusivo das palavras "Cold", "Filtered", "Ice", "Draft" e "Beer" (idem)



10) A Ré usa em Portugal outras marcas que incluem a expressão "B...er" para assinalar cervejas por si produzidas.
11) Os Ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal e da República Checa efetuaram a troca das notas diplomáticas cujas cópias constam de fls. 179 a 181 e 563 a 569 dos autos, datadas de 23 de Maio de 1994 e 21 de Março de 1994.
12) Por ofício de 24 de Março de 1987, o Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, enviou à Autora a carta cuja cópia consta de fis. 178 dos autos, onde consta, nomeadamente que «a República Checa sucedeu nesse Acordo e que o mesmo continua em vigor».
13) Por despachos de 4 de Junho de 2012, publicados no Boletim da Propriedade Industrial n.° 110/2012 de 08/06/2012, o INPI concedeu à Autora os registos das indicações geográficas n.° 96 "B...ER BUDVAR", 97 "BEER FROM B..." e 98 "BUDEJOVICKY BUDVAR" (cfr. documentos de fis. 1668 a 1680, que se dão por reproduzidos).
2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
2.1. Da existência de factos controvertidos pertinentes
Antecipa-se que consideramos que o mérito da decisão não podia ainda ser apreciado no momento em que o foi, pelas razões que seguidamente se indicam.
2.2. A questão suscitada
Nos autos a Autora invoca o Acordo sobre a Proteção das Indicações de Proveniência, das denominações de Origem e de Outras denominações Geográficas e Similares celebrado entre a República Portuguesa e a República Socialista da Checoslováquia em 10 de janeiro de 1986 para defender a anulação de marca da Ré que utiliza a expressão B...ER, por a entender protegida em Portugal, nos termos do mesmo Acordo, sendo específica da região e apenas nela podendo ser fabricada, invocando, subsidiariamente, marca registada prioritária com a mesma expressão e, posteriormente, em articulado superveniente, registo de indicação geográfica com a mencionada denominação B...ER.
A Ré defende que o Acordo não se encontra em vigor, que eventual prioridade de registo a favor da Autora é afastada pelo regime de notoriedade da sua marca B...ER, cuja aplicação decorre igualmente de Tratados Internacionais que vinculam o Estado Português e, bem assim, do direito interno, que inexiste ligação entre B... e Ceské Budejovice, sendo que a cerveja da Autora nada tem a ver com a região em que é produzida, podendo sê-lo em qualquer outro lugar.
O Tribunal decidiu que o Acordo era aplicável e que a marca da Ré não tinha as características de notoriedade, concedendo procedência ao pedido da Autora e julgando improcedente a reconvenção. É esta decisão que a Ré pretende reverter.
O litígio entre a Autora e a Ré desenvolve-se em tribunais de vários países da Europa desde há cerca de três décadas[2], e tem ocupado o Tribunal de Justiça da União em cujos registos se podem contar dezenas de decisões sobre as diversas incidências daquele litígio.
Também o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou sobre situação similar em acórdão de 23 de janeiro de 2001.
2.3. Do resumo do litígio as questões suscitadas podem organizar-se como segue na relação direito/facto:
Da proteção decorrente do Acordo Bilateral
Para a resolução desta questão importa quanto à matéria de facto saber da existência de relação entre a expressão B...ER, B...S ou B... e a cidade da Boémia checa denominada Ceské Budejovice.
Assim, a República Portuguesa comprometeu-se a, no seu território, reservar o uso exclusivo de denominações ou indicações geográficas de territórios ou regiões da Checoslováquia a produtos ou mercadorias checoslovacas.
A Autora alegou, justamente, que o termo B...ER é uma indicação geográfica relativa à cidade de B..., na denominação alemã, Ceské Budejovice em língua checa. A questão suscitada enquadra-se assim no âmbito do Acordo mencionado, quando o indicado facto – identidade entre B... e Ceské Budejovice – se encontre verificado.
A decisão impugnada refere que «B...s ou B... é indicado em vários dicionários como sendo a tradução inglesa ou alemã do nome da cidade de Ceské Budejovice».
Ora, o que importa aos autos é saber se B...s ou B... é a tradução inglesa ou alemã do nome da cidade de Ceské Budejovice, não se vários dicionários assim o entendem.
A solução jurídica quanto à vigência do Acordo, à vinculação de Portugal ao mesmo apesar das normas comunitárias em causa nos autos e a não aplicação retroativa do direito da União por efeito da adesão da República Checa após a instauração destes autos, constituem soluções jurídicas plausíveis (foram aliás as seguidas na decisão impugnada), que determinam a relevância da matéria de facto indicada.
Pertinente à apreciação da pretensão face ao direito aplicável (e aplicado)  é a questão de facto relativa à identidade entre B... ou B...S e Ceské Budejovice e a natureza adjetiva do vocábulo B...ER enquanto denominando a qualidade de pertença ou origem em B... ou B...S.
Ora, esta questão de facto não está apreciada na decisão recorrida, sendo necessária à decisão de mérito.
Da indicação de proveniência geográfica
A apreciação da indicação de proveniência geográfica nos termos em que encontra consagração no artigo 249.º do Código da Propriedade Industrial aprovado pelo decreto-lei 16/95, de 24 de janeiro, na redação vigente na data dos factos, implica a conexão geográfica indicada mas também impõe a consideração da relação entre o produto e a região, estabelecida por fatores naturais ou humanos únicos.
A Autora alegou tais factos, invocando o saber dos cervejeiros da região, a qualidade única da água e dos produtos, o que foi impugnado pela Ré, apresentando aliás ambas pareceres sobre a questão.
Ora, também estes factos são necessários à apreciação do litígio, sendo ainda controvertidos nos autos.
Da notoriedade da marca da Ré
Na solução de direito que considere vigente e aplicável o Acordo bilateral e no pressuposto da prioridade do registo da Autora, a Ré defende a improcedência da pretensão daquela e a procedência da sua invocando o caráter notório da marca que usa, enquanto a si pertencente.
Para isso invoca o direito internacional e o direito interno.
O direito internacional, por considerar que a sua marca, enquanto notória, deve ser protegida em Portugal nos termos da vinculação do Estado Português assumida na Convenção da União de Paris[3] (CUP), de que são partes a República Portuguesa[4], a República Checa[5] e os Estados Unidos da América do Norte[6].
Dispõe o artigo 6.º bis, n.º 1, da CUP:
«Os países da União comprometem-se a recusar ou invalidar o registo, quer administrativamente, se a lei do país o permitir, quer a pedido de quem nisso tiver interesse, e a proibir o uso de marca de fábrica ou de comércio que constitua reprodução, imitação ou tradução, suscetíveis de estabelecer confusão, de uma marca que a autoridade competente do país do registo ou do uso considere que nele é notoriamente conhecida como sendo já marca de uma pessoa maparada pela presnete Convenção, e utilizada ara produtos idênticos ou semelhantes. (…)».
O direito interno, por entender que a sua marca enquanto notória tem precedência sobre marca protegida por registo prioritário. Quanto a tal dispunha ao tempo o CPI na redação já indicada, no seu artigo 190.º, n.º 1:
«Será recusado o registo de marca que, no todo ou em parte essencial, constitua reprodução, imitação ou tradução de outra notoriamente conhecida em Portugal como pertencente a nacional de qualquer país da União, se for aplicada a produtos ou serviços idênticos ou semelhantes e com ela possa confundir-se».
Subjacente a ambas as invocações de proteção jurídica encontra-se a factualidade atinente à notoriedade da marca alegada pela Ré na sua contestação/reconvenção maxime nos seus artigos 66.º a 121.º.
A decisão recorrida não se alheou da importância desta matéria, tanto enquanto relevante para a interpretação da vinculação internacional de Portugal, como para a do afastamento da prioridade do registo.
Pese embora, não obstante a multiplicidade de factos invocados pela Ré para integração da sua marca no conceito de marca notória, o tribunal não se pronunciou quanto à sua prova ou não prova por ter considerado a matéria como integrando o conceito adjetivo de facto notório.
Assim é que, nada referindo em sede de factualidade provada (nenhuma deu como não provada) quanto aos factos relativos às vendas internacionais, à presença no mercado português, à presença em filmes e eventos à escala global, etc, a decisão impugnada refere que «é do senso comum que a cerveja da marca “B...er” da Ré praticamente só está disponível em algumas superfícies comerciais mais especializadas, e mesmo aí com um destaque muitíssimo inferior àquele que é conferido às marcas nacionais, não se conhecendo a sua presença no comércio em geral ou difusão no circuito da restauração e cafetaria».
Mais adiante refere «Entende-se pois que é facto notório que a generalidade dos consumidores de cerveja em Portugal desconhecem a cerveja da Ré, inferindo-se que tal desconhecimento se estende à generalidade dos comerciantes».
Ou seja, a decisão impugnada não se pronunciou sobre a factualidade alegada em concreto pela Ré para fundar a notoriedade da sua marca por entender que constituía facto notório que essa notoriedade se não verificava.
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPC, que «não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral».
O Professor Alberto dos Reis[7] desenvolvendo as diversas teorias sobre a natureza do que deva considerar-se facto notório conclui:
«Há que pôr de lado o conceito objectivo, fundado no interesse. Pode um facto ter grande relevo social e interessar consequentemente à generalidade dos homens de determinada comunidade política e todavia ser ignorado pelo cidadão de cultura média. Exemplo: o mecanismo da variação do valor da moeda.
As doutrinas exactas são as que põem na base do facto notório a ideia do conhecimento. Mas não basta qualquer conhecimento; é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é, elevado a tal grau de difusão, que o facto apareça, por assim dizer, revestido do carácter de certeza».
E mais adiante[8], explicitando as categorias de factos notórios:
«Os factos notórios podem classificar-se em duas grandes categorias:
a) Acontecimentos de que todos se aperceberam directamente (uma guerra, um ciclone, um eclipse total, um terramoto, etc);
b) Factos que adquirem o carácter de notórios por via indirecta, isto é, mediante raciocínios formados sobre factos observados pela generalidade dos cidadãos (De Stefano, “Il notório”, p.59).
Quanto aos primeiros não pode haver dúvidas. Quanto aos segundos, o juiz só deve considerá-los notórios se adquirir a convicção de que o facto originário foi percebido pela generalidade dos portugueses e de que o raciocínio necessário para chegar ao facto derivado estava ao alcance do homem de cultura média».[9]
Ou seja, na lapidar conclusão do Mestre, ou o facto é percecionado pela generalidade dos cidadãos diretamente, pelo modo da perceção humana que é na sua fonte sensorial, ou o facto decorre de um facto assim diretamente percecionado seguido de um raciocínio acessível a todas as pessoas da comunidade de cultura média. Podemos denominá-los como factos notórios primários e factos notórios secundários.
A invocação pelo juiz da notoriedade do facto carece assim da invocação da efetividade da perceção direta geral do facto notório primário ou, se estiver em causa um facto notório secundário, daquela invocação e da indicação do raciocínio que permite determinar o facto e da sua acessibilidade às pessoas de cultura média da comunidade visada e pertinente.
No mesmo sentido a jurisprudência. Veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de setembro de 2012, proferido no processo 1026/07.9TBVFX.L1.S1 (LOPES DO REGO) quanto a não poder considerar-se notório o pagamento de prestações pela Segurança Social, de 18 de dezembro de 2012 proferido no processo 656/03.2TBMTA.L1.S1 (FONSECA RAMOS) referindo como critério o do conhecimento do «cidadão comum, uma pessoa regularmente informada, com acesso à informação a que a generalidade das pessoas acede», ou de  12 de março de 2009 proferido no processo com o número convencional 08S0602 (MÁRIO PEREIRA), em cujo sumário se lê: «um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos».

Ora, a este respeito nada consta na decisão impugnada.

Mas a questão tem uma outra vertente de interesse para a decisão a tomar, qual seja a de ponderar da assimilação entre facto notório e marca notória.
Colocada de outro modo que é o negativo da primeira indagação: uma marca só é notória se essa notoriedade constituir um facto notório?
Pensamos que não podem assimilar-se os conceitos.
Os critérios de que depende a notoriedade da marca têm sido abundantemente tratados na jurisprudência e foram objeto de Declaração Conjunta adotada pela Assembleia da União de Paris para a proteção da Propriedade Industrial (Declaração WIPO)[10].
Na Declaração WIPO (maxime artigo 2.º) são considerados todos os fatores que possam influenciar a notoriedade, nomeadamente, o grau de conhecimento da marca pelo público relevante, a duração, extensão e área de uso, a duração, extensão e área de promoção da marca, bens e serviços que referencia, a duração e área de registos pré-existentes, o reconhecimento por outras autoridades e o valor associado.
Em consequência, a parte que pretende prevalecer-se da notoriedade da marca tem de alegar e provar os factos de que a mesma resulta, os quais podem ou não ser notórios.
A esse respeito refere Mafalda Sebastião[11]:
«Esta generalização de conhecimento [referindo uma característica da notoriedade] leva‐nos a fazer aqui uma outra ponderação que consiste em articular a noção de marca notória com a de facto notório nos termos e para os efeitos em que o mesmo se encontra previsto em sede de direito adjectivo (mais propriamente na nossa ordem jurídica no Art.º 514º, n.º 1 do CPC. Ver também Art.º 87º, n.º 2 do CPA)8. Arriscamo‐nos, quanto a isto, a dizer que, embora não tenham sempre de coincidir ‐ isto é, nem só as marcas cuja fama constitui facto notório podem ser consideradas marcas notórias, não existindo uma sinonímia dos termos “notória” para marca e “notório” para os factos, enquanto previstos na lei portuguesa (respectivamente Art.ºs 241º, n.º 1 do CPI e Art.º 514º, n.º 1 do CPC) – a verdade é que, ocasionalmente, fará todo o sentido que a notoriedade de certa marca acabe por cair naquele conceito de direito adjectivo, em especial nos casos em que estamos perante marcas de grande consumo».
Consideramos inteiramente exata esta conclusão face ao conceito de facto notório que tentámos delimitar, o que determina que mesmo a consideração da notoriedade da marca como facto notório está sujeita ao percurso judicial argumentativo que se indicou[12]. Ora a decisão recorrida em nada demonstra que o facto seja notório, limitando-se a afirmá-lo sem aquela demonstração.
Do que se conclui que há necessidade de produção de prova também quanto àquela indicada matéria de facto.

A Relação deve determinar mesmo oficiosamente a ampliação da matéria de facto quando a mesma seja relevante – artigo 662.º, n.º 3, alínea c), do CPC – no caso para prosseguirem os autos após os articulados com a necessária enunciação dos temas da prova e posterior instrução.

Devendo os autos prosseguir, caberá à primeira instância decidir sobre a junção dos documentos apresentados com as alegações de recurso.

IV) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em anular oficiosamente a decisão recorrida por não estarem reunidos os pressupostos de facto necessários à prolação da decisão de mérito, ordenando prossigam os autos para enunciação dos temas da prova e instrução e demais tramitação.
Custas pela Recorrida.

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Lisboa, 13 de novembro de 2014

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(Ana de Azeredo Coelho)


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(Tomé Ramião)


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(Vítor Amaral)

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
I) A dispensa de audiência prévia no CPC2013 não é possível quando o tribunal entenda possível conhecer do mérito da causa; a situação está prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 591.º, não excecionada na norma que prevê tal dispensa, a do artigo 593.º, n.º 1.
II) A referência à dispensa de audiência prévia para prolação de saneador - alínea d), do artigo 591.º, n.º 1 -, restringe-se ao saneador com o conteúdo previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 595.º, não se estendendo à alínea b).
III) É notório o facto percecionado pela generalidade dos cidadãos diretamente, pelo modo da perceção humana que é na sua fonte sensorial, ou o facto decorrente de um facto assim diretamente percecionado, seguido de um raciocínio acessível a todas as pessoas da comunidade de cultura média.
IV) A invocação pelo juiz da notoriedade do facto carece assim da invocação da efetividade da perceção direta geral do facto notório primário ou da invocação do raciocínio de que decorre o facto notório secundário e sua acessibilidade às pessoas de cultura média da comunidade visada e pertinente.
V) A parte que pretende prevalecer-se da notoriedade da marca tem de alegar e provar os factos de que a mesma resulta, os quais podem ou não ser notórios.
VI) A consideração pelo juiz da notoriedade da marca como facto notório está sujeita ao percurso judicial argumentativo indicado.
(AAC)


[1]                Faz remontar ao século XIII a outorga de foral a Budweis mencionando a dita atividade cervejeira.
[2]                  Cf. Raquel Tavares in “Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, INCM, 2013, p. 237 e ss, e “Reconstruindo Direitos Humanos pelo uso transnacional do Direito? Portugal e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, CES, Coimbra, 2010.
[3]                   Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial de 20 de março de 1883, revista em Bruxelas em 14 de dezembro de 1990, em Washington em 2 de junho de 1911, na Haia em 6 de novembro de 1925, em Londres em 2 de junho de 1934, em Lisboa em 31 de outubro de 1958 e em Estocolmo em 14 de julho de 1967.
[4]                      Ratificação em 6 de junho de 1884.
[5]                    Declaração de continuidade de aplicação de 18 de dezembro de 1992, com ratificação pela República Socialista da Checoslováquia em 11 de agosto de 1961, sucedendo á República da Checoslováquia que subscreveu o Ato de Washington em 20 de junho de 1919.
[6]                      Subscrita em 18 de março de 1887.
[7]                    In “Código de Processo Civil Anotado”, III, 4.ª edição, reimpressão, Coimbra, 1985, p. 259 e ss.
[8]                      Op. cit. p. 262.
[9]                     Sobre a noção pronuncia-se o Professor Castro Mendes enquanto exceção à regra do limite de cognição judicial pela alegação das partes considerando que os «factos notórios, ou seja, o factos de conhecimento geral – que Lisboa é capital de Portugal (…)», in Direito Processual Civil, 1980, FDUL, p. 187.
[10]                    Cf. “Joint Recommendation concerning provisions on the protection of well-known marks” consultada em www.wipo.int/edocs/pubdocs/en/marks/.../pub845 e Maxim Grinberg in “The WIPO Joint Recommendation concerning provisions on the protection of well-known marks and the forgottem goodwill”, consultado em ssrn.com/abstract=701504, Chicago-Kent Journal of Intellectual Property, 2005.
[11]   InMarca notória e marca de prestígio”, relatóriode mestrado, FD-UL, setembro de 2009, p.8-9, consultado em www.verbojuridico.com/doutrina/.../mafaldasebastiao_marcanotoria.pdf
[12]            Ora no caso, acresce que o que se considerou notório não foi um facto positivo, o geral conhecimento da marca na sua função distintiva (quanto a ser esta a função da marca que está especificamente em causa na proteção da marca notória Cf. Idem, p. 20 e ss, por razões que subscrevemos), mas o facto negativo, o não conhecimento da marca na sua função distintiva. Admite-se que seja possível demonstrar a perceção geral de um facto negativo, mas sempre se revestirá de especiais cautelas.