Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5041/2006-3
Relator: MÁRIO MORGADO
Descritores: MEIOS DE PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/05/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. Em sentido amplo, o reconhecimento abrange, entre outras, três realidades essencialmente distintas: a) o reconhecimento fotográfico; b) o reconhecimento propriamente dito, regulados nos arts. 147º e 149º, CPP; c) a identificação do arguido em audiência.

2. O reconhecimento fotográfico não é, verdadeiramente, um meio de prova, mas um ponto de partida para a investigação propriamente dita: em si mesmo, o seu valor probatório é, em princípio, nulo.

3. As linhas de investigação abertas pelo reconhecimento fotográfico têm que conduzir, posteriormente, a verdadeiras provas, nomeadamente à prova por reconhecimento (em sentido técnico) – em estrita observância do formalismo descrito nos arts. 147º e 149º, CPP – e às declarações em audiência (agora sujeitas ao princípio do contraditório) daquele(s) que tenha(m) feito a identificação.

4. Não constituindo o reconhecimento fotográfico um meio de prova, propriamente dito, será, em princípio, insusceptível de inquinar – no plano da validade – os meios probatórios que nele radiquem.

5. Mas a força probatória das provas posteriormente produzidas não poderá deixar de considerar-se (fortemente) condicionada pelas circunstâncias – e pela forma – em que tenha decorrido a identificação fotográfica.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, em audiência, na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
I.

1. Em Processo Comum (singular) do 5º Juízo Criminal de Lisboa (1ª Secção), foi proferida sentença, condenando a arguida A…:

- Como autora material de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, e 204º, nº 1, e), do Código Penal (1), na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 15.00 €;

- Como autora material de um crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito, na forma continuada, p. e p. pelo art. 225º, nº 1, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 15.00 €;

- Como autora material de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, b), na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 15.00 €;

- Em cúmulo jurídico, na pena única de 250 dias de multa, à taxa diária de 15.00 €.

2. Inconformada, interpôs recurso da sentença a arguida, a qual, na sua motivação, concluindo, sustentam, em síntese:

- A prova produzida não permite considerar provados os factos constitutivos da sua responsabilidade criminal, pelo que deve ser absolvida.

- O reconhecimento presencial da arguida, efectuado pelas testemunhas AAs…, encontra-se “inquinado” pelos termos em que decorreu o reconhecimento fotográfico com base no qual se desenvolveu todo o processo;

- A fundamentação da decisão de facto é insuficiente, pelo que foi violado o art. 374º, nº 2, CPP;

- Na sentença recorrida não se explica a razão pela qual, estando em causa compras efectuadas em cinco lojas, com alegada utilização de cartão de crédito alheio, a arguida foi condenada pela prática de um único crime de falsificação, pelo que também por isto se configura a nulidade da se tença, por falta de fundamentação, ou o vício previsto no art. 410º, nº 2, b), CPP.

3. A arguida também interpôs recurso do despacho de 10/10/2003, proferido no decurso da audiência, de indeferimento da requerida junção aos autos de todas as fotografias tiradas pela queixosa (a sete funcionários do hospital em que esta e a arguida trabalhavam), aquando do momento em que tirou as já constantes dos autos, e respectivos negativos.

4. Na sua resposta, a Digna Magistrada do Ministério Público pronuncia-se no sentido do improvimento do recurso.


5. Cumpre decidir.

II.

6. Com relevância para a decisão do presente recurso, consideraram-se provados no acórdão recorrido os seguintes factos:

1) No período compreendido entre as 8h do dia 23 de Outubro de 2001 e as 17h do mesmo dia a arguida, que desempenha funções como médica no serviço de Hematologia do Hospital Egas Moniz em Lisboa, dirigiu-se aos cacifos do pessoal que desempenha funções naquele serviço situado no 7° piso.
2) Em tal local forçou a fechadura do cacifo da sua colega …, também médica daqueles serviços e que à data se encontrava sob a sua alçada formativa, inutilizando a fechadura de forma não concretamente apurada e apossou-se da quantia de 10 mil escudos, de cartão multibanco duma carteira no valor de 9 mil escudos e de diversa documentação pertencente aquela onde se incluía um cartão de crédito UNIBANCO com o número 000000000000000-F.
3) Na posse de tais objectos, cujo valor ascendia a cerca de 19 mil escudos, abandonou o local integrando-os no seu património e como detinha o cartão de crédito supra-mencionado pertencente à queixosa elaborou plano para conseguir com o uso do mesmo a obtenção de produtos e serviços.
4) Desta forma pelas 17h27 do mesmo dia deslocou-se à loja Pisadela sita na Avenida Guerra Junqueiro e aí efectuou compras no valor de Esc. 10.710$00 que pagou com aquele cartão, assinando no final o talão como se da sua própria titular se tratasse.
5) De seguida ainda na mesma Avenida deslocou-se ao n°18 à loja Massimo Dutti onde procedeu da forma efectuando compras no valor de Esc. 8.450$00 assinando o talão com o nome da verdadeira titular do cartão.
6) Ainda na sequência da mesma resolução a arguida pelas 18h49 do mesmo dia dirigiu-se ao estabelecimento comercial ZARA naquela Rua e ai efectuou compras no valor de Esc. 13.160$00, assinando novamente o talão que foi entregue com o nome da queixosa.
7) Pelas 19h deslocou-se ainda à loja Mango no n°3 da referida artéria e aí procedeu à compra de vestuário no valor de Esc. 48.070$00 que pagou com o cartão de crédito pertencente à queixosa A ... assinando o respectivo talão com o nome da queixosa.
8) Ainda cerca das 19h20 do mesmo dia e na mesma rua dirigiu-se à loja Perfumes & Companhia no nº7 onde efectuou compras no valor de Esc. 37.710$00 que pagou ainda com o cartão de crédito pertencente à queixosa.
9) Por fim cerca das 20h ainda do mesmo dia agora na loja Cenoura da Avª de Roma a arguida procedeu à compra de diversa roupa descrita a fls. 15 que mais uma vez pagou com o cartão pertencente à queixosa, assinando o respectivo talão como se da sua legitima proprietária se tratasse.
10) Em virtude da sua conduta a queixosa veio a sofrer prejuízos que ascenderam a cerca Esc. 190.600$00, sucedendo porém que em face da existência de seguro de extravio de cartão foi indemnizada no valor de Esc. 100.000$00 pela seguradora da UNICRE.
11) A arguida agiu com intenção de se apropriar dos objectos existentes no cacifo, bem sabendo que aquele armário se encontrava trancado e que se destinava à guarda de objectos pessoais da queixosa, agiu ainda com intenção de obter benefício ilegítimo e de se fazer passar pela verdadeira titular do cartão abusando da facilidade que a sua posse lhe conferia e ao assinar os talões das operações bem sabia que a assinatura que aponha nos mesmos não era o seu, fazendo-se passar pela verdadeira titular do mesmo.
12) Agiu livre conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
13) A arguida é médica auferindo um rendimento mensal líquido aproximado a 2992, 79 €.
14) Tem quatro filhos, três dos quais menores a seu cargo.
15) Paga uma prestação mensal de aproximadamente 250 €, para amortização de um empréstimo bancário para aquisição de habitação.
16) A arguida não tem antecedentes criminais conhecidos.

7. Decisão de facto assim fundamentada:

A prova das compras efectuadas foi fundamentalmente extraída dos depoimentos das testemunhas A…, à data funcionária da loja “Mango” e AA.., funcionária da loja da “Cenoura”. Tais testemunhas quando confrontadas com as vendas descriminadas nos documentos de fls. 25 (listagem dos movimentos do cartão de crédito da queixosa relativos ao dia 23Out2001) e os talões de venda juntos aos autos e referentes às lojas em causa (Cfr. em especial fls. 39 e 40), reconheceram a arguida como a respectiva compradora, sem quaisquer dúvidas. Os seus depoimentos, no decurso das inquirições pormenorizadas a que foram sujeitas, não denotaram quaisquer razões para duvidar da sua credibilidade.
Neste âmbito, destaca-se que a testemunha A…, revelou que o reconhecimento por si efectuado em julgamento baseava-se no facto de lembrar-se da arguida, porquanto esta terá entrado uma primeira vez na loja “Mango” – Av. Guerra Junqueiro acompanhada de crianças, e depois, passado pouco tempo entrou de novo, desacompanhada e já a uma hora próxima do encerramento da loja quando esta não era frequentada por muitos clientes (a loja encerrava pelas 19h.). A arguida terá mostrado interesse num casaco de pele castanho com picotado branco, de algum valor – cerca de Esc. 40.000$00, sendo certo que a testemunha terá tido necessidade de se deslocar por duas vezes ao armazém com vista a obter o modelo da inteira satisfação da então cliente (em cor e tamanho). A testemunha recordou-se que a arguida experimentou o casaco sem ir aos respectivos gabinetes de prova e que a mesma encontrava-se com pressa, talvez por ter deixado as crianças no automóvel.
Ou seja os factos ora relatados estão assim presentes na memória da testemunha Almerinda, devido às características especiais do casaco em questão (de algum valor económico – cerca de Esc. 40.000$00), ao facto da arguida ter entrado por duas vezes na mesma loja, sendo a primeira vez acompanhada de crianças, à hora em que foi efectuada a compra (próxima do fecho) e ao facto de ter se dirigido por duas vezes ao armazém para encontrar a cor e tamanhos ideais de um casaco específico do agrado da arguida.
Por sua vez a testemunha A…, reconheceu a arguida, descrevendo-a como “muito simpática”, sendo certo que não a esqueceu porquanto estava com três crianças que terão permanecido no seu automóvel estacionado na via pública.
A testemunha A… foi capaz de fornecer uma descrição algo pormenorizada das crianças, sendo um rapaz moreno ainda pequeno, uma rapariga com cerca de 9 anos de idade também morena e uma menina “do meio” loura e olhos claros que faria, segundo a mãe anos em data próxima, motivo pelo qual queria comprar algumas peças de vestuário para a mesma. Note-se, neste âmbito, que dos três filhos menores da arguida, a criança “do meio”, é efectivamente loura (e as demais morenas) e tem o seu aniversário a 03Nov, sendo certo que os factos em causa ocorreram a 23Out – Vide fls. 195.
Do seu depoimento resulta ainda que a arguida terá adquirido um vestido ou saia, um blusão de ganga para a criança mais crescida com cerca de 9 anos de idade e uns sapatos denominados de “princesa” para a menina “do meio”. Porque as crianças se encontravam no automóvel e porque a arguida era muito simpática, a testemunha em causa terá proposto que levassem as peças para tal local com vista à sua experimentação. Assim a menina mais crescida terá experimentado o blusão no automóvel e a sua irmã mais nova terá experimentado os sapatos, ditos de “princesa”, em cima de uma caixa de sapatos colocado na via pública pela própria testemunha.
No contexto descrito pela testemunha A…, descreve-se as transacções de forma pormenorizada e pouco vulgar (com experimentações de peças de vestuário na via pública), o que justifica o reconhecimento tão peremptório feito pela mesma.

Dos dois depoimentos descritos, apesar da insistência das suas inquirições por todos os sujeitos processuais, não vislumbramos qualquer interesse ou incoerência que pudesse abalar a sua credibilidade.
Admite-se que os factos descrevem uma situação insólita constituída por actos ilícitos e aparentemente gratuitos praticados por uma pessoa de nível sócio-económico superior à média. Contudo, não vemos quaisquer razões para afastar a credibilidade das referidas testemunhas. Poder-se-ia aventar a hipótese, aliás sustentada pela Defesa em sede de alegações, da eventual existência de um plano maquiavélico conspirado por colegas da arguida. Tal plano teria então, necessariamente que envolver as testemunhas ora em causa. Contudo as testemunhas não depuseram de forma “mecanizada” ou inconsistente, donde se pudesse extrair o mínimo índice de falsos testemunhos.
Aliás, a testemunha A…, quando confrontada com as fotografias das crianças a fls. 195, poderia facilmente ter declarado que as reconhecia, o que iria de encontro à tese da “conspiração”, contudo, declarou a testemunha que actualmente já não podia reconhecê-las com a certeza necessária. Neste âmbito, tendo em conta as modificações físicas naturais subjacentes ao crescimento das crianças (inclusivamente, em algumas, da cor do cabelo e até dos próprios olhos), salientado e bem pelo digno Ministério Público, sendo certo que as fotografias serão recentes, achamos assim natural que a testemunha não pudesse reconhecer as mesmas de forma absoluta, tendo o seu depoimento revelado sinceridade e total espontaneidade.

O relatório pericial à escrita da arguida e queixosa revelou-se inconclusivo no que toca à escrita da arguida, porquanto, passa-se a citar “As semelhanças e diferenças encontradas na comparação das escritas suspeitas com a da autografada, bem como o traçado parcialmente ilegível, filiforme, com poucas formas definidas e relativamente incaracterístico dos dizeres suspeitos, não permitem formular uma conclusão segura quanto à possibilidade de poder ter sido, ou não, A… a autora das assinaturas apostas nos talões ...- Cfr. fls. 299.
Note-se por seu turno que as compras efectuadas com o cartão de crédito em causa, foram realizadas entre as 17.27 e as 20.05, do dia 23Out2001.
O turno da queixosa, que depôs de forma serena e credível, que esta terá efectuado no dia 23Out2001, iniciou-se pelas 8 h. e terminou pelas 20 h., tendo a queixosa dado conta da subtracção dos seus haveres pelas 21 h., altura em que se deslocou ao seu cacifo. A queixosa confirmou a natureza dos objectos subtraídos e o estado em que se encontrava o seu cacifo, ou seja, com a fechadura forçada e inutilizada.
Porque a arguida era a médica tutora da queixosa, saberia da localização do respectivo cacifo e do horário desta. Era pessoa aparentemente insuspeita e terá agido de tal forma, pouco ou nada fazendo para camuflar os seus actos.
Neste contexto probatório tendo em conta os ditos factos circunstanciais (posição de superioridade hierárquica profissional constituída pela tutela directa em relação à queixosa, horários, fácil acesso ao cacifo e o período temporal das compras, efectuadas no próprio dia da subtracção do cartão), conjugado com os depoimentos e reconhecimentos tão peremptórios das testemunhas AAs…, o tribunal não teve dúvidas em dar como provados os factos descritos na acusação.
Não foi possível apurar a real motivação dos actos aparentemente tão gratuitos e irracionais praticados pela arguida, desconhecendo-se a então situação financeira da arguida, sendo certo que o tribunal desconhece os seus hábitos de consumo.
A arguida prestou os necessários esclarecimentos sobre a sua situação sócio-económica.
A falta de antecedentes criminais conhecidos é confirmada pelo CRC actualizado junto aos autos.
III.

8. Como se afirma na respectiva motivação, a questão central do recurso reside na impugnação da matéria de facto.

No essencial, questiona-se a suficiência da prova por se considerar que toda ela assenta num “bizarro” reconhecimento fotográfico, com base no qual todo o processo se desenvolveu.

Conexamente, também se sustenta no recurso que o reconhecimento presencial da arguida, efectuado pelas testemunhas AAs…, se encontra “inquinado” pelos termos em que decorreu tal reconhecimento fotográfico.

(a) – Quanto à validade do(s) reconhecimento(s) da arguida.


9. O reconhecimento é, como se sabe, um meio de prova especialmente problemático e falível quando não sejam tomadas as devidas precauções.

Por isso mesmo, as respectivas formalidades são estabelecidas na lei sob pena de invalidade (nº 4 do art. 147º, CPP).

A este propósito, escreve-se, paradigmaticamente, no Ac. de 12/05/04 desta 3ª Secção da Relação de Lisboa (proc. 2691/2004-3):

A existência de um reconhecimento positivo é um dos meios de prova que, quer entre nós, quer em muitos países estrangeiros, mais influencia os tribunais no sentido de afirmar a culpabilidade da pessoa assim identificada, sobretudo quando a pessoa que efectuou o reconhecimento afirma a sua convicção sem margem para dúvidas.

Essa credibilidade tem sido, porém, contrariada pelos numerosos estudos empíricos que têm sido realizados, sobretudo nestes últimos 30 anos, e mesmo por relatórios elaborados por responsáveis de diversos países, podendo dizer-se que este é um dos meios de prova mais problemáticos e de resultados menos fiáveis. E isso mesmo que se tenham cumprido rigorosamente as formalidades estabelecidas na nossa ou noutras legislações e que mais não visam do que diminuir a margem de erro desse meio de prova.

É que, como os trabalhos empíricos têm revelado, a testemunha ocular tende a fazer um julgamento relativo, mesmo quando avisada de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel, procurando localizar a pessoa que mais semelhanças apresente com o agente do crime.

Para além disso, a identificação que faz pode facilmente ser influenciada por inúmeros factores, entre os quais o comportamento, consciente ou inconsciente, da pessoa que orienta a diligência (2). O próprio grau de confiança que a testemunha ocular tem na precisão da identificação efectuada dependente mais do comportamento, muitas vezes corroborante, do investigador que dirigiu as operações e da confirmação do seu veredicto por outras testemunhas do que da nitidez das suas próprias recordações do cenário do crime. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, confiança e precisão não são vectores necessariamente relacionados. Mais importante do que conhecer o grau de confiança manifestado pela testemunha é averiguar as condições em que ela observou o agente do crime e o tempo de que ela dispôs para o fazer.

Por isso mesmo, muitos psicólogos aconselham que, para se incrementar a fiabilidade deste meio de prova, sobretudo quando ele for o único ou o decisivo elemento da identificação de um suspeito, se adoptem especiais cautelas, como sejam:

- O alargamento do número de pessoas que integram o painel de reconhecimento;
- A exigência de que a pessoa que conduz o reconhecimento pessoal não tenha conhecimento da identidade do suspeito;
- A exigência de que a testemunha ocular seja previamente informada de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel de reconhecimento;
- A exigência de que todas as pessoas que compõem o painel reúnam as características indicadas previamente pela testemunha, não devendo nenhuma delas apresentar, quanto a esses aspectos, nenhuma característica dissonante;
- A prévia apresentação à testemunha de um outro painel de reconhecimento em que o suspeito se não encontra para verificar se a mesma tem a propensão para efectuar um julgamento relativo.

Também López Barja de Quiroga, Tratado de Derecho Procesal Penal, Thomson – Aranzadi, p. 1041, chama a atenção para este problema:

Está empiricamente comprovado que um dos âmbitos que produz maior número de erros judiciários é o da identificação e, precisamente, devido ao número de erróneas identificações realizadas por testemunhas. Daí que devam ser utilizados todos os meios possíveis para o evitar ou, pelo menos, para reduzir “a margem de erro”. A forma de conseguir este resultado é colocando dificuldades à testemunha. Esta é a razão pela qual a LECrim (3) prevê normas relativas à forma como deve realizar-se a identificação por testemunhas, funcionado tais normas como garantias para a apreciação da prova, de tal maneira que só cumprindo-se estas normas o tribunal poderá apreciar tal prova.

10. Em sentido amplo, o reconhecimento abrange, entre outras, três realidades essencialmente distintas:

a) O reconhecimento fotográfico;

b) O reconhecimento propriamente dito, regulados nos arts. 147º e 149º, CPP (4);

c) A identificação do arguido em audiência.

11. A nossa lei processual penal não se refere ao reconhecimento fotográfico, enquanto meio de prova.

E bem, na medida em que este acto não é, verdadeiramente, um meio de prova, mas uma técnica inicial de investigação: é um ponto de partida para a investigação propriamente dita; mas, em si mesmo, o seu valor probatório é, em princípio, nulo.

Como nota López Barja de Quiroga, ob. cit., p. 1038:

A fotografia não é um meio absoluto de identificação, pelo que se afirma que ninguém pode ser condenado por ter sido identificado através de uma fotografia. (…) Isso não quer dizer que não seja um método adequado de investigação. De facto, pode servir para iniciar uma linha de investigação, mas não constitui uma prova. (…) Quando uma pessoa tenha sido identificada por meio de fotografia, deverá realizar-se sempre um “reconhecimento em painel” ( “en rueda”) posteriormente.

A LECrim não prevê o sistema da fotografia, mas é amplamente admitido pela jurisprudência como meio de investigação. Esta situação suscita o problema das garantias que devem rodear a prática de tal identificação. Afirma-se unânime e rotundamente que devem seguir-se os mesmos requisitos que se exigem para a validade do “reconhecimento em paine””. Assim, por exemplo, não é admissível que se mostre uma única fotografia do suspeito. É preciso que exiba a fotografia do suspeito em conjunto com uma ampla variedade de outras fotos de pessoas de características similares.

O problema que então se suscita é o da sua validade quando não sejam cumpridos os ditos requisitos. Evidentemente, a diligência é nula, mas também o será qualquer diligência de identificação posteriormente realizada? Noutros termos, tal identificação viciará as identificações posteriores que com todas as garantias se realizem depois? A esta pergunta a jurisprudência responde assinalando que efectivamente uma diligência pode viciar as posteriores, embora não caiba uma resposta apriorística que só é possível em face das circunstâncias do caso.

Mais incisivo é Jaime de Lamo Rubio, José Francisco Moratalla, António Villar e Joaquin Vallina, in El proceso penal, Bosch, p. 150, nota 26, para o qual o reconhecimento fotográfico que não se completa com a diligência de reconhecimento propriamente dito constitui uma corruptela inadmissível e desnecessária, pois nada impede que se proceda com total ortodoxia, com observância do formalismo legal.

Em suma: as linhas de investigação abertas pelo reconhecimento fotográfico têm que conduzir, posteriormente, a verdadeiras provas, nomeadamente à prova por reconhecimento (em sentido técnico) – em estrita observância do formalismo descrito nos arts. 147º e 149º, CPP – e às declarações em audiência (agora sujeitas ao princípio do contraditório) daquele(s) que tenha(m) feito a identificação.

Deste modo, não constituindo o reconhecimento fotográfico um meio de prova, propriamente dito, será, em princípio, insusceptível de inquinar – no plano da validade – os meios probatórios que nele radiquem (é este o sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal espanhol, como noticia Francisco Alonso Pérez, Meios de investigación en el processo penal, Dykinson, 2003, 157 e 171 – “que a diligência de identificação fotográfica não tenha valor probatório por si mesma, não quer dizer que vicie as identificações posteriores, através das quais se confirme a firmeza e segurança do primeiro testemunho”).

Mas é apodíctico que a força probatória das provas posteriormente produzidas não poderá deixar de considerar-se (fortemente) condicionada pelas circunstâncias – e pela forma – em que tenha decorrido a identificação fotográfica.

Em sentido contrário se pronuncia, porém, entre outros, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, p. 151: “é evidente que se a testemunha tiver tido indicações prévias de quem é a pessoa (…) a identificar, nomeadamente pela prévia indicação da suspeita, o reconhecimento carecerá de valor probatório. O reconhecimento só tem valia probatória desde que substancial e formalmente se respeitem as regras de procedimento estabelecidas na lei”.

12. Como se sabe, o nosso mais Alto Tribunal tem julgado que o reconhecimento do arguido, feito por uma testemunha no decurso da audiência, não tem de obedecer ao formalismo prescrito pelo art. 147º, CPP, por se entender que este preceito legal só se aplica nas fases de inquérito e de instrução.

No mesmo sentido se vem pronunciando a generalidade da jurisprudência espanhola – cfr. Luís Alfredo de Diego Díez, Identificación fotográfica y reconocimiento en rueda del inculpado, Bosch, 2003, p. 108.

Este entendimento não suscita qualquer dúvida nos casos em que – com observância do formalismo legal – o reconhecimento já tenha tido lugar no decurso da investigação.

Em rigor, não se estará, então, perante um reconhecimento propriamente dito, mas, antes, perante um depoimento de natureza testemunhal, sujeito ao contraditório.

Mais problemática é a questão nos casos de identificação ex novo, sendo certo que é muito frequente na prática judiciária perguntar aos ofendidos e testemunhas no decurso da audiência se “reconhecem” o arguido presente.

Entendem vários autores que uma cabal eficácia probatória do reconhecimento em audiência não dispensará a observância do formalismo exigido na lei - “esta prova pode ter muita importância quando negativa, mas não tem valor de reconhecimento quando positiva, isto é, quando a testemunha declara que sim, que reconhece o arguido” (Germano Marques da Silva, ob. cit., II, p. 150).

Tratando-se de uma diligência probatória atípica e distinta do reconhecimento em sentido técnico (mais adequado às fases do inquérito e da instrução e pouco consentâneo com o formalismo da audiência), que não é expressamente vedada pela lei processual penal, propendemos para considerar que não lhe é aplicável a sanção cominada no nº 4 do citado art. 147º.

Mas uma coisa é certa: a força probatória de tal diligência não pode deixar de considerar-se fortemente condicionada pelos termos – mais ou menos rigorosos – em que decorra.

13. In casu, o reconhecimento fotográfico foi posteriormente seguido de um verdadeiro reconhecimento, realizado com observância do formalismo descrito no art. 147º, CPP (cfr. “auto de reconhecimento” de fls. 310), pelo que, à luz do critério exposto, nenhum problema se suscita no plano da validade formal deste.

O mesmo acontece, pelas razões também já expostas, no tocante aos depoimentos das testemunhas que, em audiência, declararam “reconhecer” a recorrente.

(b) – Quanto à impugnação da matéria de facto.


14. Para além do constante de supra nº 7, em termos de elementos probatórios constantes dos autos, há a realçar, no fundamental, o seguinte:

Os factos em causa terão ocorrido no dia 23/10/2001.

Em data indeterminada, mas compreendida entre 31/10/2001 e 14/11/2001 (como decorre do documento de fls. 10-12, dirigido pela queixosa ao Comandante da 26ª Esquadra da PSP de Lisboa, e das transcritas declarações da mesma na audiência), a queixosa dirigiu-se às lojas mencionadas na factualidade dada como provada.

Em duas delas – na “Cenoura” e na “Mango” –, uma das empregadas (as testemunhas AAs…, respectivamente) descreveu-lhe terem sido efectuadas compras dias antes por uma senhora com as características da arguida.

Posteriormente (não se sabe quantos dias depois, mas antes do dia 14/11/2001), a queixosa voltou às mesmas lojas, com várias fotografias de funcionários do piso 7 do Hospital Egas Moniz, tendo aquelas lojistas identificado a arguida, através de tais fotografias, como sendo a pessoa que, nas circunstâncias descritas na factualidade dada como provada, aí efectuou compras.

Como consta do “auto de reconhecimento” de fls. 310, em 25/1/2002, as testemunhas A… e A… declararam reconhecer a arguida, “sem qualquer dúvida”, como autora dos factos em causa, nos termos constantes do mesmo auto (a arguida encontrava-se juntamente com três agentes da PSP, todas trajando à civil, e com “compleição física e fisionomia quase idêntica à da arguida”).

Na audiência, como decorre da transcrição da prova aí produzida, a queixosa relatou todas as diligências que fez no âmbito da “investigação” dos factos, tendo as referidas testemunhas relatado, por seu turno, os termos em que decorreram os seus contactos com a queixosa (cfr. fls. 524 – 538 e 507 – 523) e com a arguida (que também identificaram na audiência “sem dúvidas nenhumas” e com “certeza”).

Por sua vez, a arguida negou categoricamente a prática dos factos.

15. Antes do mais, refira-se que, apesar de se ter dado como provado que a arguida forçou a fechadura do cacifo da sua colega A… antes de se apoderar da quantia de 10 mil escudos, de cartão Multibanco, duma carteira no valor de 9 mil escudos e de diversa documentação pertencente aquela onde se incluía um cartão de crédito UNIBANCO, a verdade é que a própria queixosa admite ter-se esquecido de fechar a porta do cacifo (fls. 478).

Neste contexto, é patente, pois, que inexiste prova objectivamente suficiente para dar como provado que a arguida forçou a fechadura do cacifo da sua colega.

Por outro lado:

Como vimos, no plano da validade formal, nenhum problema se suscita quanto ao reconhecimento a que se refere o auto de fls. 310 ou no tocante aos depoimentos das testemunhas que, em audiência, declararam “reconhecer” a recorrente.

Todavia, é indiscutível que a força probatória de tais diligências não pode deixar de considerar-se fortemente diminuída pelos muito sui generis termos em que teve lugar o reconhecimento fotográfico e demais diligências particularmente levadas a cabo pela queixosa a título de investigação, em termos que em absoluto nos impedem de cabalmente aferir do grau de autenticidade, segurança, sugestividade, coerência e espontaneidade dos depoimentos prestados pelas testemunhas AAs… (e, bem assim, dos reconhecimentos que fizeram em 25/1/2002, cerca de três meses após os factos e já depois do grande movimento que todos ao anos caracteriza a época do Natal).

Na verdade: o reconhecimento fotográfico foi antecedido do pré-reconhecimento verbal de uma pessoa que corresponde ao perfil físico da arguida; como decorreram as conversas preliminares entre as testemunhas e a queixosa? Na condução dos interrogatórios, que método utilizou a queixosa? [Sugestivo? Insinuador? Expositivo? Exploratório?].

Também não se percebe, à luz dos depoimentos prestados na audiência pela queixosa e pelas testemunhas A… e A…, como é que – aquando do primeiro contacto entre estas e aquela, sem a exibição de qualquer fotografia da arguida – a conversa foi conduzida por forma a chegar a uma “senhora loira, alta, bem falante”. Vários dias depois das compras terem sido efectuadas, em lojas em que diariamente entrarão dezenas de pessoas, que elementos foram introduzidos nas conversas susceptíveis de levar a tal conclusão? Que elementos permitiram caracterizar tão diferenciadamente tais compras e, depois, estabelecer a ligação entre estas e a “senhora loira”? A queixosa refere no seu depoimento que tal elemento reside no facto de as compras terem sido efectuadas já à hora do fecho das lojas, mas não nos parece que se trate de uma circunstância especialmente anómala…

Decorre ainda do depoimento da queixosa (fls. 476 – 477) que a sua “investigação” terá sido, de alguma forma, estimulada pela directora do serviço, D…, pessoa que tinha relações problemáticas com a arguida (cfr. declarações da arguida a fls. 470 e da testemunha I…, a fls. 495 – 496).

Por fim, refira-se que o exame pericial à escrita da arguida se revelou inconclusivo e, por outra banda, que não pode subvalorizar-se o facto de a arguida ser uma médica com responsabilidades, com 43 anos à data dos factos (5), sem antecedentes criminais e sem que quem quer que fosse lhe apontasse qualquer distúrbio ao nível da personalidade, tudo a reforçar o défice de verosimilhança que nos factos e na prova se patenteia.

16. Neste contexto, afigura-se-nos, tendo em conta o princípio in dubio pro reo, não poder considerar-se suficientemente Ilidida a presunção de inocência da arguida.

Sem necessidade de mais considerações, e com prejuízo da apreciação das demais questões suscitadas (nomeadamente no recurso interlocutório), impõe-se, pois, a absolvição da recorrente.

IV.

17. Em face do exposto, concedendo provimento ao recurso, acorda-se em revogar a sentença recorrida e consequentemente, em absolver a arguida da prática de todas as infracções em causa.

Sem tributação.

Notifique.

Processado e revisto pelo 1º signatário

Lisboa, 5/7/2006

Mário Morgado

Conceição Gomes

Teresa Féria




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(1).-Como todos os demais que se citarem sem menção em contrário.

(2).-Todos os sublinhados e destaques são nossos.

(3).-Ley de enjuiciamento criminal.

(4).-Designado no direito espanhol por reconocimiento en rueda.

(5).-Consta dos autos que nasceu em 15/8/1958.