Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MÁRIO MORGADO | ||
Descritores: | MEIOS DE PROVA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/05/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | 1. Em sentido amplo, o reconhecimento abrange, entre outras, três realidades essencialmente distintas: a) o reconhecimento fotográfico; b) o reconhecimento propriamente dito, regulados nos arts. 147º e 149º, CPP; c) a identificação do arguido em audiência. 2. O reconhecimento fotográfico não é, verdadeiramente, um meio de prova, mas um ponto de partida para a investigação propriamente dita: em si mesmo, o seu valor probatório é, em princípio, nulo. 3. As linhas de investigação abertas pelo reconhecimento fotográfico têm que conduzir, posteriormente, a verdadeiras provas, nomeadamente à prova por reconhecimento (em sentido técnico) – em estrita observância do formalismo descrito nos arts. 147º e 149º, CPP – e às declarações em audiência (agora sujeitas ao princípio do contraditório) daquele(s) que tenha(m) feito a identificação. 4. Não constituindo o reconhecimento fotográfico um meio de prova, propriamente dito, será, em princípio, insusceptível de inquinar – no plano da validade – os meios probatórios que nele radiquem. 5. Mas a força probatória das provas posteriormente produzidas não poderá deixar de considerar-se (fortemente) condicionada pelas circunstâncias – e pela forma – em que tenha decorrido a identificação fotográfica. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM, em audiência, na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa. I. 1. Em Processo Comum (singular) do 5º Juízo Criminal de Lisboa (1ª Secção), foi proferida sentença, condenando a arguida A…: - Como autora material de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, e 204º, nº 1, e), do Código Penal (1), na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 15.00 €; - Como autora material de um crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito, na forma continuada, p. e p. pelo art. 225º, nº 1, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 15.00 €; - Como autora material de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, b), na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 15.00 €; - Em cúmulo jurídico, na pena única de 250 dias de multa, à taxa diária de 15.00 €. 2. Inconformada, interpôs recurso da sentença a arguida, a qual, na sua motivação, concluindo, sustentam, em síntese: - A prova produzida não permite considerar provados os factos constitutivos da sua responsabilidade criminal, pelo que deve ser absolvida. - O reconhecimento presencial da arguida, efectuado pelas testemunhas AAs…, encontra-se “inquinado” pelos termos em que decorreu o reconhecimento fotográfico com base no qual se desenvolveu todo o processo; - A fundamentação da decisão de facto é insuficiente, pelo que foi violado o art. 374º, nº 2, CPP;
- Na sentença recorrida não se explica a razão pela qual, estando em causa compras efectuadas em cinco lojas, com alegada utilização de cartão de crédito alheio, a arguida foi condenada pela prática de um único crime de falsificação, pelo que também por isto se configura a nulidade da se tença, por falta de fundamentação, ou o vício previsto no art. 410º, nº 2, b), CPP.
3. A arguida também interpôs recurso do despacho de 10/10/2003, proferido no decurso da audiência, de indeferimento da requerida junção aos autos de todas as fotografias tiradas pela queixosa (a sete funcionários do hospital em que esta e a arguida trabalhavam), aquando do momento em que tirou as já constantes dos autos, e respectivos negativos.
4. Na sua resposta, a Digna Magistrada do Ministério Público pronuncia-se no sentido do improvimento do recurso.
II. 6. Com relevância para a decisão do presente recurso, consideraram-se provados no acórdão recorrido os seguintes factos: 1) No período compreendido entre as 8h do dia 23 de Outubro de 2001 e as 17h do mesmo dia a arguida, que desempenha funções como médica no serviço de Hematologia do Hospital Egas Moniz em Lisboa, dirigiu-se aos cacifos do pessoal que desempenha funções naquele serviço situado no 7° piso. 2) Em tal local forçou a fechadura do cacifo da sua colega …, também médica daqueles serviços e que à data se encontrava sob a sua alçada formativa, inutilizando a fechadura de forma não concretamente apurada e apossou-se da quantia de 10 mil escudos, de cartão multibanco duma carteira no valor de 9 mil escudos e de diversa documentação pertencente aquela onde se incluía um cartão de crédito UNIBANCO com o número 000000000000000-F. 3) Na posse de tais objectos, cujo valor ascendia a cerca de 19 mil escudos, abandonou o local integrando-os no seu património e como detinha o cartão de crédito supra-mencionado pertencente à queixosa elaborou plano para conseguir com o uso do mesmo a obtenção de produtos e serviços. 4) Desta forma pelas 17h27 do mesmo dia deslocou-se à loja Pisadela sita na Avenida Guerra Junqueiro e aí efectuou compras no valor de Esc. 10.710$00 que pagou com aquele cartão, assinando no final o talão como se da sua própria titular se tratasse. 5) De seguida ainda na mesma Avenida deslocou-se ao n°18 à loja Massimo Dutti onde procedeu da forma efectuando compras no valor de Esc. 8.450$00 assinando o talão com o nome da verdadeira titular do cartão. 6) Ainda na sequência da mesma resolução a arguida pelas 18h49 do mesmo dia dirigiu-se ao estabelecimento comercial ZARA naquela Rua e ai efectuou compras no valor de Esc. 13.160$00, assinando novamente o talão que foi entregue com o nome da queixosa. 7) Pelas 19h deslocou-se ainda à loja Mango no n°3 da referida artéria e aí procedeu à compra de vestuário no valor de Esc. 48.070$00 que pagou com o cartão de crédito pertencente à queixosa A ... assinando o respectivo talão com o nome da queixosa. 8) Ainda cerca das 19h20 do mesmo dia e na mesma rua dirigiu-se à loja Perfumes & Companhia no nº7 onde efectuou compras no valor de Esc. 37.710$00 que pagou ainda com o cartão de crédito pertencente à queixosa. 9) Por fim cerca das 20h ainda do mesmo dia agora na loja Cenoura da Avª de Roma a arguida procedeu à compra de diversa roupa descrita a fls. 15 que mais uma vez pagou com o cartão pertencente à queixosa, assinando o respectivo talão como se da sua legitima proprietária se tratasse. 10) Em virtude da sua conduta a queixosa veio a sofrer prejuízos que ascenderam a cerca Esc. 190.600$00, sucedendo porém que em face da existência de seguro de extravio de cartão foi indemnizada no valor de Esc. 100.000$00 pela seguradora da UNICRE. 11) A arguida agiu com intenção de se apropriar dos objectos existentes no cacifo, bem sabendo que aquele armário se encontrava trancado e que se destinava à guarda de objectos pessoais da queixosa, agiu ainda com intenção de obter benefício ilegítimo e de se fazer passar pela verdadeira titular do cartão abusando da facilidade que a sua posse lhe conferia e ao assinar os talões das operações bem sabia que a assinatura que aponha nos mesmos não era o seu, fazendo-se passar pela verdadeira titular do mesmo. 12) Agiu livre conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. 13) A arguida é médica auferindo um rendimento mensal líquido aproximado a 2992, 79 €. 14) Tem quatro filhos, três dos quais menores a seu cargo. 15) Paga uma prestação mensal de aproximadamente 250 €, para amortização de um empréstimo bancário para aquisição de habitação. 16) A arguida não tem antecedentes criminais conhecidos. 7. Decisão de facto assim fundamentada: A prova das compras efectuadas foi fundamentalmente extraída dos depoimentos das testemunhas A…, à data funcionária da loja “Mango” e AA.., funcionária da loja da “Cenoura”. Tais testemunhas quando confrontadas com as vendas descriminadas nos documentos de fls. 25 (listagem dos movimentos do cartão de crédito da queixosa relativos ao dia 23Out2001) e os talões de venda juntos aos autos e referentes às lojas em causa (Cfr. em especial fls. 39 e 40), reconheceram a arguida como a respectiva compradora, sem quaisquer dúvidas. Os seus depoimentos, no decurso das inquirições pormenorizadas a que foram sujeitas, não denotaram quaisquer razões para duvidar da sua credibilidade. Neste âmbito, destaca-se que a testemunha A…, revelou que o reconhecimento por si efectuado em julgamento baseava-se no facto de lembrar-se da arguida, porquanto esta terá entrado uma primeira vez na loja “Mango” – Av. Guerra Junqueiro acompanhada de crianças, e depois, passado pouco tempo entrou de novo, desacompanhada e já a uma hora próxima do encerramento da loja quando esta não era frequentada por muitos clientes (a loja encerrava pelas 19h.). A arguida terá mostrado interesse num casaco de pele castanho com picotado branco, de algum valor – cerca de Esc. 40.000$00, sendo certo que a testemunha terá tido necessidade de se deslocar por duas vezes ao armazém com vista a obter o modelo da inteira satisfação da então cliente (em cor e tamanho). A testemunha recordou-se que a arguida experimentou o casaco sem ir aos respectivos gabinetes de prova e que a mesma encontrava-se com pressa, talvez por ter deixado as crianças no automóvel. Ou seja os factos ora relatados estão assim presentes na memória da testemunha Almerinda, devido às características especiais do casaco em questão (de algum valor económico – cerca de Esc. 40.000$00), ao facto da arguida ter entrado por duas vezes na mesma loja, sendo a primeira vez acompanhada de crianças, à hora em que foi efectuada a compra (próxima do fecho) e ao facto de ter se dirigido por duas vezes ao armazém para encontrar a cor e tamanhos ideais de um casaco específico do agrado da arguida. Por sua vez a testemunha A…, reconheceu a arguida, descrevendo-a como “muito simpática”, sendo certo que não a esqueceu porquanto estava com três crianças que terão permanecido no seu automóvel estacionado na via pública. A testemunha A… foi capaz de fornecer uma descrição algo pormenorizada das crianças, sendo um rapaz moreno ainda pequeno, uma rapariga com cerca de 9 anos de idade também morena e uma menina “do meio” loura e olhos claros que faria, segundo a mãe anos em data próxima, motivo pelo qual queria comprar algumas peças de vestuário para a mesma. Note-se, neste âmbito, que dos três filhos menores da arguida, a criança “do meio”, é efectivamente loura (e as demais morenas) e tem o seu aniversário a 03Nov, sendo certo que os factos em causa ocorreram a 23Out – Vide fls. 195. Do seu depoimento resulta ainda que a arguida terá adquirido um vestido ou saia, um blusão de ganga para a criança mais crescida com cerca de 9 anos de idade e uns sapatos denominados de “princesa” para a menina “do meio”. Porque as crianças se encontravam no automóvel e porque a arguida era muito simpática, a testemunha em causa terá proposto que levassem as peças para tal local com vista à sua experimentação. Assim a menina mais crescida terá experimentado o blusão no automóvel e a sua irmã mais nova terá experimentado os sapatos, ditos de “princesa”, em cima de uma caixa de sapatos colocado na via pública pela própria testemunha. No contexto descrito pela testemunha A…, descreve-se as transacções de forma pormenorizada e pouco vulgar (com experimentações de peças de vestuário na via pública), o que justifica o reconhecimento tão peremptório feito pela mesma. Dos dois depoimentos descritos, apesar da insistência das suas inquirições por todos os sujeitos processuais, não vislumbramos qualquer interesse ou incoerência que pudesse abalar a sua credibilidade. Admite-se que os factos descrevem uma situação insólita constituída por actos ilícitos e aparentemente gratuitos praticados por uma pessoa de nível sócio-económico superior à média. Contudo, não vemos quaisquer razões para afastar a credibilidade das referidas testemunhas. Poder-se-ia aventar a hipótese, aliás sustentada pela Defesa em sede de alegações, da eventual existência de um plano maquiavélico conspirado por colegas da arguida. Tal plano teria então, necessariamente que envolver as testemunhas ora em causa. Contudo as testemunhas não depuseram de forma “mecanizada” ou inconsistente, donde se pudesse extrair o mínimo índice de falsos testemunhos. Aliás, a testemunha A…, quando confrontada com as fotografias das crianças a fls. 195, poderia facilmente ter declarado que as reconhecia, o que iria de encontro à tese da “conspiração”, contudo, declarou a testemunha que actualmente já não podia reconhecê-las com a certeza necessária. Neste âmbito, tendo em conta as modificações físicas naturais subjacentes ao crescimento das crianças (inclusivamente, em algumas, da cor do cabelo e até dos próprios olhos), salientado e bem pelo digno Ministério Público, sendo certo que as fotografias serão recentes, achamos assim natural que a testemunha não pudesse reconhecer as mesmas de forma absoluta, tendo o seu depoimento revelado sinceridade e total espontaneidade. O relatório pericial à escrita da arguida e queixosa revelou-se inconclusivo no que toca à escrita da arguida, porquanto, passa-se a citar “As semelhanças e diferenças encontradas na comparação das escritas suspeitas com a da autografada, bem como o traçado parcialmente ilegível, filiforme, com poucas formas definidas e relativamente incaracterístico dos dizeres suspeitos, não permitem formular uma conclusão segura quanto à possibilidade de poder ter sido, ou não, A… a autora das assinaturas apostas nos talões ...- Cfr. fls. 299. Note-se por seu turno que as compras efectuadas com o cartão de crédito em causa, foram realizadas entre as 17.27 e as 20.05, do dia 23Out2001. O turno da queixosa, que depôs de forma serena e credível, que esta terá efectuado no dia 23Out2001, iniciou-se pelas 8 h. e terminou pelas 20 h., tendo a queixosa dado conta da subtracção dos seus haveres pelas 21 h., altura em que se deslocou ao seu cacifo. A queixosa confirmou a natureza dos objectos subtraídos e o estado em que se encontrava o seu cacifo, ou seja, com a fechadura forçada e inutilizada. Porque a arguida era a médica tutora da queixosa, saberia da localização do respectivo cacifo e do horário desta. Era pessoa aparentemente insuspeita e terá agido de tal forma, pouco ou nada fazendo para camuflar os seus actos. Neste contexto probatório tendo em conta os ditos factos circunstanciais (posição de superioridade hierárquica profissional constituída pela tutela directa em relação à queixosa, horários, fácil acesso ao cacifo e o período temporal das compras, efectuadas no próprio dia da subtracção do cartão), conjugado com os depoimentos e reconhecimentos tão peremptórios das testemunhas AAs…, o tribunal não teve dúvidas em dar como provados os factos descritos na acusação. Não foi possível apurar a real motivação dos actos aparentemente tão gratuitos e irracionais praticados pela arguida, desconhecendo-se a então situação financeira da arguida, sendo certo que o tribunal desconhece os seus hábitos de consumo. A arguida prestou os necessários esclarecimentos sobre a sua situação sócio-económica. A falta de antecedentes criminais conhecidos é confirmada pelo CRC actualizado junto aos autos. III. 8. Como se afirma na respectiva motivação, a questão central do recurso reside na impugnação da matéria de facto. No essencial, questiona-se a suficiência da prova por se considerar que toda ela assenta num “bizarro” reconhecimento fotográfico, com base no qual todo o processo se desenvolveu. Conexamente, também se sustenta no recurso que o reconhecimento presencial da arguida, efectuado pelas testemunhas AAs…, se encontra “inquinado” pelos termos em que decorreu tal reconhecimento fotográfico. (a) – Quanto à validade do(s) reconhecimento(s) da arguida.
(b) – Quanto à impugnação da matéria de facto.
IV. 17. Em face do exposto, concedendo provimento ao recurso, acorda-se em revogar a sentença recorrida e consequentemente, em absolver a arguida da prática de todas as infracções em causa. Sem tributação. Notifique. Processado e revisto pelo 1º signatário Lisboa, 5/7/2006 Mário Morgado Conceição Gomes Teresa Féria
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