Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4/19.0YQSTR.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
PROCESSO DE INTIMAÇÃO
ERRO SOBRE A FORMA DE PROCESSO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 08/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTES
Sumário: I. O visado, num processo sancionatório por práticas restritivas da concorrência instruído pela Autoridade da Concorrência, não pode intentar um processo de intimação, previsto nos artigos 109 e seguintes do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, para obrigar a AdC a disponibilizar cópias de processos de contra-ordenação respeitantes a terceiros e para determinar a suspensão de prazo (até à efectiva disponibilização daquelas cópias) que esteja a correr naquele processo sancionatório.
II. Os procedimentos administrativos a que se refere o regime jurídico da concorrência e de que fala o art. 112/2-a da LOSJ, correspondente ao art. 92/1 do RJC, são apenas os procedimentos administrativos relativos ao exercício dos poderes de supervisão da AdC [com posterior recurso para as secções cíveis dos tribunais da relação – art. 67/5, 1.ª parte, da LOSJ] e não os procedimentos contra-ordenacionais, onde são exercidos os poderes sancionatórios da AdC [com posterior recurso para as secções criminais dos tribunais da relação – art. 67/5, 2.ª parte, da LOSJ], o que serve para demonstrar que estes não se confundem com aqueles, nem estão sujeitos ao regime deles.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A S-SA, foi notificada por carta elaborada a 22/03/2019 de uma nota de ilicitude deduzida contra si no âmbito do processo contra-ordenacional 2017/1 dirigido pela Autoridade da Concorrência, iniciando-se então o prazo para o exercício do direito de defesa, o qual, depois de prorrogado, terminaria no dia 27/06/2019.
A 27/05/2019, a S-SA veio intentar a presente acção especial de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 109/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, conjugado com o disposto no art. 92 do novo Regime Jurídico da Concorrência, peticionando que (i) a AdC seja intimada a permitir a efectiva consulta de três processos de contra-ordenação, mediante a disponibilização imediata de cópias em suporte digital das versões não confidenciais dos mesmos; e (ii) seja determinada a suspensão do prazo para a apresentação de pronúncia escrita pela S-SA no âmbito daquele processo, desde o dia 28/03/2019, inclusive, até à efectiva disponibilização daquelas cópias.
Esta intimação foi liminarmente indeferida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.
A S-SA vem recorrer deste indeferimento para que seja revogado e substituído por uma decisão de admissão da intimação requerida e, em consequência, que mande baixar os autos para prosseguimento dos ulteriores termos do processo; bem como para que seja reformada quanto a custas, determinando-se a aplicação do regime de isenção previsto no artigo 4/2-b do Regulamento de Custas Processuais ao presente processo.
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Questão que importa decidir: se a intimação não devia ter sido indeferida liminarmente; e a decisão quanto a custas deve ser reformada.
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O tribunal recorrido, tendo em conta que a S-SA juntou prova documental suficiente e bastante de todos os ofícios, requerimentos e respostas da AdC que refere, considerou como hipótese de trabalho para aquele indeferimento os seguintes factos:
1. No dia 22/03/2019, mediante ofício da AdC com a ref.ª S-AdC/2019/1063, a S-SA, foi notificada, enquanto visada, da decisão de inquérito adoptada pelo Conselho de Administração da AdC, no âmbito do PRC/2017/1, acompanhada da respectiva nota de ilicitude.
2. Nos termos da referida notificação, foi conferido à S-SA o prazo de 30 dias úteis para o exercício do respectivo direito de defesa, ao abrigo do disposto no artigo 25/1 do RJC.
3. Em 25/03/2019, a S-SA apresentou 3 requerimentos junto da AdC, nos termos dos quais pediu que lhe fosse disponibilizada a consulta e cópia simples em suporte digital da versão não confidencial dos processos de contra-ordenação PRC/2017/07, PRC/2017/13 e PRC/2016/4.
4. Ao abrigo do disposto no artigo 33/33 do RJC, a S-SA fundamentou seu pedido de consulta na necessidade de conhecer o teor destes processos de contra-ordenação, por os mesmos se encontrarem em relação com aquele em que é visada, pelo que o seu conhecimento é um elemento essencial na preparação da sua defesa,
5. Os requerimentos referentes aos PRC 2017/13 e 2017/7 foram objecto de decisão da AdC em 28/03/2019, através de ofícios do Departamento de práticas restritivas, nestes termos: (…) comunica-se o deferimento do requerido”; sem prejuízo “(…) informa-se que a versão não confidencial do referido processo, que corre termos na AdC (…), se encontra em preparação para efeitos de acesso nos termos do artigo 33/3 do RJC; “nestas circunstâncias será oportunamente comunicado o momento a partir do qual as cópias requeridas estiverem em condições de ser disponibilizadas, bem como as condições em que se procederá à respectiva disponibilização”; e o requerimento relativo ao processo 2016/04 foi objecto de decisão da AdC em 01/04/2019, em termos semelhantes, lendo-se que: “(…) concluído o tratamento das confidencialidades […], será oportunamente comunicado […] o momento em que se procederá ao respectivo acesso.”
6. A 10/04/2019, a S-SA requereu a prorrogação do prazo, o que foi deferido, conforme ofício da AdC com a ref.ª S-AdC/2019/1624, passando o término do mesmo para 27/06/2019.
7. Em 07/05/2019 a AdC ainda não tinha disponibilizado os processos para efectiva consulta por parte da S-SA, nem nada comunicou à S-SA.
8. Nesse dia, 07/05/2019, a S-SA apresentou outros três requerimentos, insistindo na disponibilização dos acessos aos processos anteriormente deferidos. Nesses requerimentos, invocou que está “(…) a correr o prazo de apresentação de defesa no âmbito do PRC/2017/01 (…)”, em que a S-SA é visada, sendo que a consulta dos processos requerida tem como objectivo a preparação dessa defesa, pelo que, “(…) não pode a S-SA ficar a aguardar, indefinidamente, ao mesmo tempo que o prazo para a apresentação da sua defesa está a correr, que a AdC dê por concluído o tratamento das confidencialidades, sob pena de ver prejudicado o seu direito de defesa”. Por conseguinte, pediu que lhe fosse “(…) permitido o acesso, prático efectivo (…)” aos processos em causa, nos termos dos anteriores requerimentos da S-SA e conforme deferido pela AdC, “(…) em prazo não superior a 5 dias úteis”; e ainda que fosse “(…) ordenada a suspensão do prazo em curso para a apresentação de defesa por parte da S-SA (…) desde o dia 28/03/2019, inclusive, até ao dia em que for efectivamente disponibilizada à S-SA a cópia [dos processos] (…)”;
9. Em 23/05/2019, sem que a S-SA tivesse obtido qualquer resposta por parte da AdC, contactou telefonicamente a AdC, tendo-lhe sido transmitido, pela Drª M, que os seus requerimentos seriam respondidos no dia 24/05/2019 (6.ª-feira) ou em 27/05/2019 (2.ª-feira).
10. Contudo, apesar desta informação até ao presente momento a AdC não respondeu aos últimos requerimentos da S-SA, apresentados em 07/05/2019.
11. A S-SA continua sem ter acesso àqueles três processos, cuja consulta lhe foi deferida pela AdC, ao mesmo tempo que continua a correr o prazo para a apresentação da sua defesa no âmbito do processo em que é visada.
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O relatório que antecede teve por base o relatório feito pelo tribunal recorrido, apenas com algumas simplificações e modificações.
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A fundamentação do decidido foi a seguinte (tenta-se transcrever só o essencial, mas dado que a fundamentação é extensa, abrange com proficiência todos os argumentos da S-SA, inclusive os desenvolvidos em recurso, e cita também as normas legais aplicáveis, a transcrição também é extensa; os parenteses rectos foram introduzidos por este TRL):
         […]
6. Nos termos do artigo 109/1 do CPTA a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adopção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131
7. Nos termos do artigo 110/1 do CPTA uma vez distribuído, o processo é concluso ao juiz com a maior urgência, para despacho liminar […]
8. Nesse despacho liminar caberá ao juiz aferir da viabilidade da intimação e da existência de excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente.
9. A intimação deve ser objecto de indeferimento liminar quando a falta de razão do requerente seja manifesta ou ostensiva; quando o processo esteja desprovido das necessárias condições de viabilidade substancial, quando a tese propugnada pela requerente não tenha possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a doutrina e a jurisprudência e quando a petição seja inconcludente (as premissas não justificam a conclusão).
10. A improcedência só é manifesta quando, pela simples leitura do requerimento inicial, se torna evidente que os factos alegados se mostram inequivocamente desenquadrados das consequências jurídicas que deles se pretendem extrair, sem necessidade de qualquer diligência suplementar.
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11. […C]onsiderando a natureza das partes, o objecto da causa de pedir e a tutela jurisdicional peticionada, afigura-se-nos evidente a subsistência de erro na forma do processo [A nossa lei processual civil configura o erro na forma de processo – cfr. art. 193 do CPC, na dupla qualidade de nulidade processual e de excepção dilatória, tal como o faz para a ineptidão da petição inicial. O que é ínsito ao erro na forma de processo é que, ao pedido formulado, corresponda forma de processo ou processo especial diverso do empregado, e que não se mostre possível através da adequação formal, fazer com que, com a forma de processo utilizada, se venha, de todo o modo, a conseguir o efeito jurídico pretendido pelo autor. Assim, só em derradeira análise é que o erro na forma de processo pode conduzir à absolvição da instância, visto que a lei impõe o aproveitamento de todos os actos que puderem aproveitar-se] para a tutela pretendida ou, subsidiariamente, a manifesta improcedência dos pedidos por absoluto demérito das alegações e da causa de pedir, impondo-se tais conclusões nesta fase liminar e sem necessidade de promover qualquer contraditório por via da notória procedência das excepções dilatórias face às normas de enquadramento processual e de organização do sistema judiciário.
12. Se o amplo enquadramento e contexto alegatório da S-SA é apto a gerar a assinalada e frontal oposição intelectual ao regime processual sancionatório previsto no RJC, julgamos que essa oposição deve ser liminar e processualmente resolvida pela procedência de excepções dilatórias prototípicas e de erro sob a forma do processo, ainda que admitamos outras leituras possíveis como sejam a ineptidão do requerimento, a falta de interesse em agir ou a ilegitimidade substantiva da S-SA para obter a procedência da presente intimação.
         […]
14. Em primeiro lugar, a S-SA labora em grosseiro e intencional lapso sobre a caracterização da natureza do processo sancionatório previsto no RJC.
15. O art. 13/1 do RJC [Lei 19/2012 de 08/05], sob a epígrafe processo sancionatório relativo a práticas restritivas, é inequivocamente expresso quando aponta que os processos por infracção ao disposto nos artigos 9, 11 e 12 regem-se pelo previsto na presente lei e, subsidiariamente, pelo regime geral do ilícito de mera ordenação social, aprovado pelo DL 433/82, de 27/10 [RGCO].
16. Ou seja, quando a S-SA chama a tutela do art. 109 do CPTA por via do art. 92 do RJC para tutela do seu direito de defesa em processo sancionatório da concorrência introduz um enquadramento jurídico equívoco e espúrio, posto que esse artigo expressamente refere que das decisões da AdC proferidas em procedimentos administrativos a que se refere a presente lei, cabe recurso para o TCRS, a ser tramitado como acção administrativa especial.
17. Ora, os procedimentos administrativos previstos no RJC – por exemplo o procedimento de controlo de operações de concentração - não incluem o processo sancionatório relativo a práticas restritivas, o qual dispõe de um regime recursivo interlocutório próprio e autónomo previsto no art. 85.
18. Mas, atenta a garantia constitucional de tutela jurisdicional efectiva, dir-se-ia que a pretensão da S-SA sempre demandaria a existência de vias processuais adequadas.
19. Pois bem, o art. 55 do RGCO permite, antes de mais, que as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são susceptíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem.
20. Já o RJC, reconhece que cabe recurso das decisões proferidas pela AdC cuja irrecorribilidade não estiver expressamente prevista – art. 84/1 do RJC, sendo que das decisões proferidas pela AdC cabe recurso para o TCRS – art. 84/2 do NRJC.
21. Sobre recursos de decisões interlocutórias, refere o art. 85/1 do RJC que interposto recurso de uma decisão interlocutória da AdC, o requerimento é remetido ao Ministério Público no prazo de 20 dias úteis, com indicação do número de processo na fase organicamente administrativa.
22. Por conseguinte, qualquer lesão do direito de defesa da S-SA em processo sancionatório relativo a práticas restritivas determinado por decisão interlocutória da AdC deve ser tutelado por via da impugnação judicial interlocutória do art. 85/1 do RJC, carecendo de qualquer sentido crítico a aplicação subsidiária do art. 109.º do CPTA para afirmação desse direito de defesa.
23. Todavia, pela mera análise do objecto processual da petição, é possível descobrir, além do supra exposto, a manifesta improcedência da tutela aqui reclamada, pela maior razão de que a AdC proferiu decisões que salvaguardam, precisamente, esse direito de defesa ao deferir o pedido de acesso àqueles processos e ao prorrogar o prazo de defesa no PRC/2017/1.
24. Ao contrário do que [a S-SA] afirma, e assinalando a proximidade sistemática deste meio jurisdicional aos procedimentos cautelares, o direito ou interesse juridicamente tutelado de garantir uma defesa ampla, esclarecida e equitativa no PRC/2017/1 foi expressamente assumido pela AdC quando admitiu o acesso àqueles PRC.
         […]
26. Em conformidade, a AdC admitiu esse acesso, reservando a oportunidade de elaboração de versão para terceiros, atentas as contingências impostas pelos artigos 30 e 33, n.º 3 e 4, do RJC, que a sujeitam ao tratamento das confidencialidade de informação com potencial valor de segredo de negócio.
         […]
29. […] qualquer decisão da AdC que frustrar o direito de defesa da visada no PRC/2017/1, nomeadamente por não prorrogar o prazo de defesa em caso de não entrega tempestiva das versões para terceiros dos PRC/2017/07, PRC/2017/13 e PRC/2016/4 é plenamente susceptível de recurso autónomo para o TCRS por via do art. 85 do RJC.
30. O que a S-SA pretende nesta instância mais não é do que uma salvaguarda administrativa extemporânea, inútil e inócua desse direito de defesa em processo sancionatório […].
31. Inexiste, por completo, qualquer gravidade, ameaça, risco e/ou difícil reparabilidade da lesão do directo de defesa da S-SA no PRC/2017/1.
32. […] a imposição à AdC de uma decisão de mérito que lhe imponha o acesso da S-SA àqueles processos não se revela minimamente indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito de defesa no PRC/2017/1, porquanto essa garantia já foi procedida pela própria AdC e qualquer lesão por via de decisões supervenientes deve ser tutelada por via de recurso interlocutório.
33. Para mais diga-se que a procedência da pretensão da S-SA envolveria inexoravelmente a violação dos direitos das visadas daqueles processos à tutela da informação confidencial existente nesses processos a expensas de um risco de lesão do direito de defesa no PRC/2017/1 meramente aparente e desgarrado de qualquer atendibilidade procedimental pela actuação da AdC.
         […]
38. Na verdade, a procedência da pretensão da S-SA encerraria uma apodíctica e assertiva desproporcionalidade entre a tutela do seu direito de defesa no PRC/2017/1 e a fatal violação da protecção de informação confidencial naqueles processos, no sentido em que a S-SA pretende que este Tribunal vincule a AdC à elaboração das versões para terceiros, mediante a disponibilização imediata de cópias em suporte digital das versões não confidenciais dos mesmos.
39. Por outro lado, se a S-SA pretende verdadeiramente a suspensão do seu prazo de defesa no PRC/2017/1 até ao efectivo acesso àqueles processos bastará apresentar essa pretensão à AdC, com fundamento nas suas decisões precedentes, sendo que qualquer resposta negativa pode ser objecto de recurso para este Tribunal.
40. Por tudo isto, além do equívoco jurídico-processual, não se consegue vislumbrar qualquer interesse, motivo ou razoabilidade para o deferimento da pretensão aqui formulada.
         […]
43. É para qualquer decisor indiscutível que a falta de disponibilização, de facto, do acesso àqueles processos, cuja consulta – na forma de cópias em suporte digital – foi pedida em 25/03/2019 e deferida em 28/03/2019 e em 01/04/2019 pode prejudicar o exercício do direito fundamental de defesa da S-SA.
44. Diga-se que quem o afirma implicitamente é a própria AdC quando admitiu o respectivo acesso e quando deferiu a prorrogação do prazo de defesa do art. 25 do RJC.
45. A oportunidade de afirmação, tutela e garantia desse direito de defesa por via dos expedientes processuais típicos previstos no processo sancionatório do NRJC em nada diminui a sua natureza de direito fundamental.
46. Na verdade, perante o contexto factual definido na petição inicial, as regras do processo sancionatório do RJC acautelam a posição jurídica da S-SA, porque prevêem mecanismos que protejam, de facto e de direito, o exercício do seu direito de defesa.
47. Qualquer preposição que ateste o contrário desta afirmação pretende expor uma perspectiva ab-rogante do próprio RJC e da natureza do processo sancionatório, cuja utilidade só pode servir para o incremento litigioso e dilatório da acção sancionatória.
         […]      
49. […] a aplicação subsidiaria desse meio processual administrativo ao processo sancionatório do RJC afigura[-se] incongruente, inócuo e impertinente.
50. A possível configuração do acesso àqueles processos sancionatórios como procedimentos administrativos autónomos em nada desmerece o aqui dito pois que o direito fundamental a tutelar é exclusivamente o direito de defesa no PRC/2017/1 e a previsibilidade de terminar o prazo de prorrogação sem que seja facultado aquele acesso já admitido pela AdC.
51. O não envio, até ao momento, de cópias para consulta ou de permissão de acesso àqueles processos, conjugado com as prévias decisões de deferimento do acesso e de prorrogação do prazo de defesa enuncia uma actuação da AdC necessariamente conforme ao melhor exercício do direito de defesa em processo sancionatório, sendo que o atraso apresenta uma justificação objectiva e ínsita à tutela de direitos das demais visadas.
52. A circunstância da AdC não se ter comprometido a qualquer prazo de entrega não significa nem implica que o direito de defesa da S-SA se inutilize até ao términus da prorrogação.
53. Não há, portanto, qualquer contradição na actuação da AdC, sendo matéria de tergiversação defender que a AdC [não] deferiu [de facto] o acesso àqueles processos sancionatórios para exercício do direito de defesa em sede do processo sancionatório PRC/2017/1.
54. É a própria S-SA que reitera que nos requerimentos de 07/05/2019 […] pediu que fosse determinada a suspensão do prazo para o exercício do direito de defesa […] até ao dia em que os processos forem efectivamente disponibilizados à S-SA.
55. Ora, tal requerimento não foi sequer objecto de decisão por parte da AdC, sendo que, recorde-se, qualquer decisão contrária aos interesses da S-SA pode ser recorrível para este Tribunal por via do art. 85 do RJC, pelo que não nos merece acolhimento a posição da S-SA […], segundo o qual a S-SA não está a reagir contra uma decisão expressa, mas sim, contra uma omissão de acção da AdC ou contra uma decisão tácita revogatória de uma anterior decisão expressa de concessão do acesso, que, em qualquer dos casos, vem na sequência de uma decisão administrativa anteriormente proferida por essa Autoridade […] e que tem repercussões – prejudiciais para a S-SA – no âmbito de um processo contra-ordenacional instaurado pela mesma AdC.
         […]
57. Olvida a S-SA que a AdC também não inviabilizou, de facto, o exercício do direito de defesa no PRC/2017/1, nem tal risco se assume concretizado pela actuação da AdC descrita na petição inicial.
58. Por inexistir decisão expressa, conjugado com o circunstancialismo inerente às demais decisões expressas da AdC e favoráveis aos interesses da S-SA, é que decorre a manifesta improcedência da tutela aqui reclamada, não havendo na nossa posição qualquer sustentação argumentativa com base numa diferença formal – entre decisão e omissão.
59. Se, como admite a S-SA, é verdade que o RJC prevê a recorribilidade imediata de todas as decisões interlocutórias da AdC em processos sancionatórios, tem cabonde questionar as razões da desgarrada construção interpretativa pela qual nos artigos 92 e 84 se lê “decisões” deve entender-se também estarem aí incluídos os casos de omissão, tal como no CPTA se prevê que os administrados possam recorrer de omissões da Administração ou pedir a condenação à prática do ato devido […].
60. Não vislumbramos qualquer viabilidade a esta interpretação
61. […A] competência material do TCRS, por assim dizer numa palavra, restringe-se ao conhecimento de processos sancionatórios de autoridades administrativas independentes, e ao conhecimento de decisões da AdC proferidas em procedimentos administrativos.
62. A competência do TCRS no que respeita a processos contra-ordenacionais refere-se ao public enforcement de Direito da Concorrência e não se pode, como pretende a S-SA, estender essa competência material de public enforcement à tutela administrativa por falta de norma habilitante, sendo a remissão proposta para o regime do art. 109 do CPTA manifesta e absolutamente inepta, sistemática e teleologicamente infundada, perante a previsão de um meio típico de impugnação judicial de decisões processuais tomadas pela AdC no âmbito de processos sancionatórios previstos no RJC.
63. Neste seguimento, o processo contra-ordenacional consubstancia um processo sancionatório de natureza pública, sendo que o regime processual aplicável concede tutela jurisdicional bastante e suficiente para a tutela processual da protecção de segredo de negócio e do exercício de direito de defesa na pendência do processo na fase organicamente administrativa, mormente através do adequado recurso de impugnação judicial interlocutório de medidas da autoridade administrativa, e em que o recebimento do recurso pode fixar efeito suspensivo à tramitação do processo.
64. A conceptualização que a S-SA elabora sobre os pressupostos do art. 109 do CPTA aplicados ao processo sancionatório da Concorrência, nomeadamente quanto à lesão do seu direito de defesa e ao prejuízo para o mesmo e encerra, para nós, uma flagrante subversão e ab-rogação da natureza da acção sancionatória prevista no RJC, desmerecendo-a, para esse efeito.
65. As decisões interlocutórias da AdC, identificadas na petição inicial, correspondem a actos processuais próprios e típicos do processo de contra-ordenação, processo esse previsto, regulado e constante do RJC.
66. De resto, a iminência da verificação da lesão para o direito de defesa corresponde, afinal, a um hipotético acto processual de prosseguimento da acção sancionatória que iria contraria aquelas mesmas decisões interlocutórias da AdC.
67. Ora, como a S-SA pode saber, a iminência de lesão decorrente de decisões interlocutórias é matéria de constantes e abundantes pronúncias deste Tribunal em sede de recursos interlocutórios de impugnação judicial de medidas da AdC, sindicadas nos tribunais superiores.
68. Ou seja, entende a S-SA que a presente intimação deve ser admitida liminarmente por via de um acto futuro e incerto relativo à lesão do direito de defesa em processo contra-ordenacional quanto, no que importa, a AdC protegeu integralmente esse direito com as respectivas decisões interlocutórias.
69. Este entendimento revela e descobre, quanto a nós, a apodíctica inaplicabilidade do art. 109 do CPTA para obtenção de tutela urgente e provisória de um efeito típico da admissão de recursos interlocutórios de impugnação judicial no âmbito do RGCO e do RJC, aqui resolvida pela procedência da excepção dilatória de erro sob a forma do processo, e, subsidiariamente, pela manifesta improcedência da tutela requerida.
O recurso da S-SA termina com as seguintes conclusões (transcreve-se na parte útil mas com simplificações):
4.ª O exercício pleno e esclarecido do direito de defesa da S-SA no processo em que é visada, depende do acesso aos três processos sancionatórios referidos, motivo pelo qual requereu acesso aos mesmos, alegando como interesse legítimo a preparação da sua defesa, o que foi deferido pela AdC.
         […]
6.ª O que está em causa são condutas omissivas por parte da AdC no âmbito de procedimentos administrativos de acesso a processos, as quais, por sua vez, têm o efeito de lesar o direito de defesa da S-SA num outro processo, desta feita sancionatório, que está em curso.
7.ª Em primeiro lugar, a sentença proferida fundamenta o indeferimento, por erro na forma de processo utilizada, considerando que tal intimação, que é um processo consagrado no CPTA, não tem enquadramento face aos meios impugnatórios do processo sancionatório por práticas restritivas da concorrência, previstos no RJC, e como tal, o meio de tutela aplicável à situação, seria o recurso interlocutório previsto no art. 85/1 do RJC.
8.ª A S-SA não se conforma com tal entendimento, porquanto o acesso aos processos sancionatórios requerido pressupõe procedimentos administrativos autónomos (um por cada processo), sujeito a normas procedimentais administrativas e, por força do princípio da tutela jurisdicional efectiva, sujeito também às garantias típicas do procedimento e do contencioso administrativo, como a Intimação requerida.
9.ª Não se verifica qualquer erro na forma de processo, por ser a intimação requerida plenamente adequada a tutelar a posição da S-SA, atendendo aos pedidos formulados, e considerando ainda que aquela forma de processo é adequada a pôr fim à omissão da AdC em tempo útil, impedindo a violação definitiva e consumada do direito de defesa da S-SA no processo sancionatório em que é visada.
10.ª Por outro lado, a intimação, tendo sido liminarmente rejeitada, deveria ter levado o Tribunal a quo a convidar a S-SA a substituir o pedido formulado pela petição de adopção de uma providência cautelar, e, ao não o fazer, o Tribunal incorre em erro na aplicação das normas processuais aplicáveis ao litígio.
11.ª Em segundo lugar, o Tribunal a quo também fundamenta, subsidiariamente, o indeferimento liminar da intimação na manifesta improcedência do pedido, pela circunstância de os actos de deferimento da consulta requerida acautelarem o direito de consulta da S-SA, sendo a lesão do seu direito fundamental à defesa um evento futuro e incerto.
12.ª Mas em face do decurso do prazo para a defesa, e tendo em conta a omissão da AdC, a Intimação requerida afigura-se o único meio processual adequado a evitar a violação do seu direito de defesa.
13.ª Está demonstrado, pela matéria de facto nos autos, a verificação dos requisitos de admissibilidade e procedência da intimação requerida, atenta a natureza jusfundamental do direito que se visa tutelar, em face do previsto no artigo 17, conjugado com o artigo 32/10 da CRP, e da carência de uma tutela urgente e definitiva da sua situação.
14.ª Ao indeferir liminarmente a intimação, o Tribunal a quo nega a tutela jurisdicional à situação concreta,
15.ª Por fim, o Tribunal a quo vem condenar a S-SA em custas, afastando o regime de isenção previsto no artigo 4/2-a do RCP, em face da limitação à isenção introduzida pelo n.º 5 do mesmo artigo, nas hipóteses em que se verifica uma improcedência manifesta do pedido formulado.
16.ª Inexiste qualquer fundamento para que se considere existir uma improcedência manifesta do pedido, o qual dependeria da verificação de uma atitude de falta de diligência ou imprudência por parte do requerente da intimação, sem qualquer fundamento nos autos; pelo que também quanto a essa decisão incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento.
            Decidindo:
É evidente que o tribunal recorrido tem razão, sendo manifesto quer o erro na forma de processo usado, quer a manifesta improcedência da pretensão da S-SA.
Não se vão repetir aqui as inúmeras razões dadas pelo tribunal recorrido para a sua decisão, com as quais se concorda.
            Posto isto.
É frequente, nos processos, as partes apresentarem os seus articulados com documentos em falta ou ilegíveis. Nunca houve dúvida em que a contagem dos prazos relacionados com esses articulados só se inicia a partir do momento em que a contraparte fosse deles notificada ou notificada em condições. E isso, naturalmente, resolve-se no próprio processo.
A situação, aliás, está expressamente prevista para a citação. Se ela for feita sem a observância das formalidades prescritas por lei (art. 191/1 do CPC), entre elas a remessa ou entrega dos documentos que acompanham a petição inicial (art. 227/1 do CPC), a citação é nula, o que natural e logicamente implica a sua repetição e só a partir da nova citação se começa a contar o prazo para a contestação. O n.º 3 do art. 219 do CPC “confere à ideia preconizada alcance geral”, “não obstante o disposto, para a citação, no art. 227” (ambas as passagens entre aspas vêm de Lebre de Freitas, com Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, Set2014, pág. 415). De várias outras normas (das regras do justo impedimento - art. 140 do CPC -, da regra de que os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes - art. 157/3 do CPC -, da regra de que quando se notifiquem despachos, sentenças ou acórdãos, deve enviar-se, entregar-se ou disponibilizar-se ao notificado cópia ou fotocópia legível da decisão e dos fundamentos - art. 256 do CPC, etc.) seria possível extrair um princípio geral no mesmo sentido.
Qualquer parte pode contar com estas regras e, por isso não tem que pedir a suspensão do prazo para o efeito, nem tem que haver uma pronúncia expressa nesse sentido para que elas se apliquem. Se, no momento em que apresentar a sua contestação ou resposta, ela não for admitida, por despacho judicial, a parte terá a oportunidade de recorrer desse despacho (nos termos do art. 644/2-d do CPC, ou, no caso, das normas dos arts. 84 e 85 do RJC nos termos referidos na decisão recorrida).
O facto de o requerimento da S-SA de suspensão do prazo não ter sido objecto de despacho, não quer dizer que a AdC tenha indeferido o requerimento, nem quer dizer que a AdC venha indeferir a apresentação da resposta da S-SA por intempestiva. E se o fizer a S-SA poderá recorrer de tal despacho (nos termos referidos na decisão recorrida).
É isto que, entre o mais, o tribunal recorrido diz, por outras palavras, pelo que, como se vê, se lhe dá razão.
Do que antecede resulta que a questão se resolve no âmbito do processo contra-ordenacional, sem qualquer prejuízo para o direito de defesa da S-SA, não havendo, por isso, qualquer inconstitucionalidade na interpretação feita nas normas aplicadas.
Não é, pois, fora, do próprio processo contra-ordenacional, num outro processo, que a S-SA podia acautelar o seu direito de defesa, o que, aliás, para já, não havia necessidade de fazer.
Seria inconcebível, por exemplo, que num processo cível em que fosse demandada uma entidade administrativa por via de factos praticados por ela no âmbito de uma relação administrativa – e a situação colocou-se, por exemplo, com a demanda do Banco de Portugal e do Fundo de Resolução, nos inúmeros processos intentados a propósito do caso do BES -, a contraparte, que tivesse recebido uma contestação daquelas entidades com falta de documentos ou com documentos ilegíveis, fosse intentar uma acção administrativa especial num tribunal administrativo para que este obrigasse aquela entidade administrativa a entregar os documentos em falta ou documentos legíveis e suspendesse o processo cível (à revelia dos tribunais judiciais).
É isto, no entanto, mutatis mutandis, que a S-SA quer que um tribunal da concorrência faça em relação a um processo contra-ordenacional, num outro processo.
O absurdo – utiliza-se a expressão, tendo em conta a natureza manifesta da improcedência - da pretensão da S-SA comprova-se também de outro modo:
No art. 112/1 da Lei Orgânica do Sistema Judiciário, diz-se que compete ao TCRS conhecer das questões relativas a recurso, revisão e execução das decisões, despachos e demais medidas em processo de contra-ordenação legalmente susceptíveis de impugnação […] e no art. 112/2 da mesma Lei diz-se que: Compete ainda ao TCRS conhecer das questões relativas a recurso, revisão e execução: a) Das decisões da AdC proferidas em procedimentos administrativos a que se refere o regime jurídico da concorrência, bem como da decisão ministerial prevista no artigo 34 do DL 10/2003, de 18/01; b) Das demais decisões da AdC que admitam recurso, nos termos previstos no regime jurídico da concorrência.
Por sua vez, no art. 67 da mesmo lei diz-se que: 3: Os tribunais da Relação compreendem secções em matéria cível, em matéria penal, em matéria social, em matéria de família e menores, em matéria de comércio, de propriedade intelectual e de concorrência, regulação e supervisão, sem prejuízo do disposto no número seguinte. E no n.º 5 diz-se que: Até à instalação da secção de concorrência, regulação e supervisão, as causas referidas no artigo 112 são sempre distribuídas à mesma secção criminal, com excepção das causas referidas nos n.ºs 2 a 4 do artigo 112, que são sempre distribuídas à mesma secção cível.
Ou seja, a matéria prevista no art. 112/1 da LOSJ é da competência da secção criminal dos tribunais da relação e a matéria do art. 112/2 da LOSJ é da competência da secção cível.
O que se compreende, visto que enquanto no caso do 112/1 da LOSJ se está a julgar decisões proferidas em processo de contra-ordenação, já no caso do art. 112/2 da LOSJ se está a julgar matéria de decisões em procedimentos administrativos do RJC. O que demonstra suficientemente que decisões em processos de contra-ordenação nada têm a ver com decisões em procedimentos administrativos.
Vê-se assim que a construção da S-SA passa por confundir as duas matérias, como se uma decisão proferida num processo contra-ordenacional fosse também uma decisão proferida em procedimento administrativo. E assim, por exemplo, uma secção cível de um tribunal da relação iria julgar decisões proferidas em processos contra-ordenacionais (direito sancionatório) para os quais, evidentemente, não está minimamente vocacionada, o que é, repete-se, um absurdo (uma secção cível do tribunal da relação a suspender um processo contra-ordenacional…).
Mais ainda, os procedimentos administrativos a que se refere o regime jurídico da concorrência, de que fala o art. 112/2-a da LOSJ, com perfeita correspondência ao art. 92/1 do RJC, reportam-se apenas “aos procedimentos administrativos relativos ao exercício dos poderes de supervisão da AdC” (anotação 2, §1.º, ao art. 91 do RJC, pág. 874 da edição de 2013 do Comentário Conimbricense respectivo, Almedina).
Comentário que acrescenta, na anotação 4 ao mesmo artigo que “[a]fastados do âmbito de aplicação da secção II estão os actos administrativos praticados no âmbito de procedimentos contra-ordenacionais, no quadro do exercício dos poderes sancionatórios da AdC” (pág. 877).
                                                      *
Por tudo isto, também, não tem sentido convolar a petição de intimação num requerimento dirigido ao processo contra-ordenacional e muito menos numa providência cautelar contra decisões, actos ou omissões que, aliás, não existem ou verificam.
E justifica-se, perfeitamente, a condenação da S-SA nas custas do processo (art. 4/5 do RCP), sendo que não há nenhuma razão para ler a ‘manifesta improcedência do pedido’ como coisa diferente do que consta do art. 590 do CPC, ou seja, no que importa e como foi entendido da decisão recorrida, “quando não possa haver dúvida sobre a inexistência dos factos que o [ao direito] constituiriam” (Lebre de Freitas, com Isabel Alexandre, obra citada, agora no 2.º vol. 3.ª edição, 2017, Almedina, pág. 623).  
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Pelo exposto, julgam-se improcedentes o recurso e o pedido de reforma da decisão quanto a custas.
Custas do recurso, na vertente da taxa de justiça respectiva, pela recorrente (que ainda não a pagou e que perdeu o recurso).

Lisboa, 02/08/2019
Pedro Martins
Carla Câmara
Alda Tomé Casimiro