Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9217/2008-8
Relator: BRUTO DA COSTA
Descritores: SEPARAÇÃO JUDICIAL DE PESSOAS E BENS
LEI APLICÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/29/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. A norma de conflitos portuguesa estatuída no artº 52º do CC estabelece a seguinte ordem de prioridades, sendo sucessivamente aplicável, para casos de separação judicial de pessoas e bens:
- Lei nacional comum dos cônjuges; na sua falta,
- Residência habitual comum; na sua falta,
- Lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.
2. Se um português casa com uma austríaca e com ela estabelece a vida familiar na Áustria durante 9 anos, aí tendo nascido e vivido os dois filhos do casal, e se decorridos esses 9 anos o casal se separou, deve concluir-se que é à Áustria que a vida familiar esteve estreitamente ligada em termos relevantes para o cit. artº 52º.
3. Assim, é aplicável ao caso em apreço a lei civil austríaca, a qual não prevê a separação judicial de pessoas e bens mas tão só o divórcio.
4. Por esse motivo não pode proceder o pedido de declaração judicial de pessoas e bens formulado em Portugal.
(BC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório.

No Tribunal de Família da comarca de Lisboa OH e Intentou acção de separação judicial de pessoas e bens contra RH

Alegando que casou com a Ré em 26.3.1993, estando separados de facto ininterruptamente desde 2003.

Conclui pedindo se declare a separação judicial de pessoas e bens entre Autor e Ré.

Citada, e frustrada a conferência para tentativa de conciliação, a Ré contestou suscitando a incompetência internacional do tribunal e defendendo que a lei substantiva aplicável ao caso é a lei austríaca, de acordo com a norma de conflitos portuguesa.

O Autor replicou, mantendo e desenvolvendo quanto peticionara.

Foi depois lavrado douto despacho julgando o tribunal internacionalmente competente.

Saneado, instruído e julgado o processo, foi proferida douta sentença julgando improcedente a acção por se entender que é aplicável ao caso sub judice a lei civil austríaca, a qual não prevê a separação judicial de pessoas e bens mas tão só o divórcio.

Da douta sentença vem interposto o presente recurso de apelação.

Nas suas alegações o apelante formula as seguintes conclusões:

I - A presente acção só foi julgada improcedente por que foi considerado que a mesma está sujeita à lei substantiva austríaca, que não reconhece o instituto da separação de pessoas e bens, mas apenas o divórcio.

II - Pese, embora, os factos articulados e tidos como provados constituírem, face à referida lei substantiva, fundamento suficiente para ser decretado o divórcio litigioso entre as partes.

III - Sucede que, ao assim decidir, o Tribunal "a quo" fez menos correcta interpretação e aplicação dos artigos 55° e 52° do Código Civil português, já que a lei substantiva aplicável é a portuguesa e não a austríaca.

IV - Com efeito, a lei reguladora da relação matrimonial em causa é a lei portuguesa, e não a austríaca, já que, na sequência do estatuto de agente diplomático de Portugal do recorrente durante toda a decorrência de tal relação, esta esteve subordinada à legislação portuguesa e não à austríaca.

V Só por decorrência de sua função diplomática do recorrente, colocado por decisão administrativa, na Austria, neste país casou no Departamento Consular da Embaixada de Portugal.

VI - Os agentes diplomáticos, como o recorrente, têm o seu domicílio permanente em Portugal, independentemente do local aonde estejam a desempenhar as suas funções.

VII - Aliás, logo que terminadas estas, o recorrente regressou a Portugal, tendo a recorrida permanecido aonde se encontrava, em expressa recusa de acompanhamento daquele, apesar de este tanto lhe ter solicitado.

VIII - Face aos critérios de determinação da lei substantiva aplicável constantes dos artigos 52 e 55 do Código Civil português, a relação matrimonial estava legalmente conexionada com a lei portuguesa e não com a austríaca, sendo irrelevante a estadia tísica, por meramente funcional, na Austria.

IX - Outra interpretação dos citados preceitos legais implicaria a total instabilidade da lei reguladora de questões tão relevantes nos direitos pessoais dos seus sujeitos subordinados à mobilidade geográfica que lhes é imposta e que funcionalmente têm de aceitar.

X - Esta questão ultrapassa o Direito Comunitário Europeu, já que as funções diplomáticas são exercidas, universalmente, ou seja, fora do respectivo espaço geográfico.

XI - Contudo, o artigo 23° do Regulamento (CE) n° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, publicado no Jornal Oficial da União Europeia de 23-12-2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n° 1347/2000, consagra solução idêntica à adequada ao presente recurso.

XII - Não deixando de poder valer como norma subsidiária, definidora de princípios jurídicos essenciais, pese embora se saiba que são questões diversas a determinação da competência processual do Tribunal e o da lei substantiva que este deva aplicar nos casos que lhe são submetidos.

XIII - Os factos que integram o pedido e a causa de pedir, tidos como provados, ocorreram em solo português, aonde o recorrente se encontrava e para onde a recorrida não quis vir, em manifesta violação dos seus deveres matrimoniais.

XIV - Face a todo o exposto, e considerando verificarem-se, como está reconhecido, os pressupostos suficientes e necessários para ser decretada a requerida separação judicial de pessoas e bens, deve a presente acção ser julgada Procedente e Provada por a lei aplicável ser a portuguesa e não a austríaca.

Nestes termos, e com o douto suprimento de Vossa Excelências, que expressamente se solicita, deve o presente recurso ser julgado Procedente e Provado e, em consequência, revogada a douta sentença recorrida e substituída por douto Acórdão que julgue a acção Procedente e Provada e, em consequência, decretada a separação judicial de pessoas e bens entre as partes com as legais consequências, assim sendo feita a habitual Justiça.

A Ré apelada contra-alegou, defendendo a confirmação da decisão, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 - A sentença recorrida conclui e bem pela aplicação ao caso concreto da lei austríaca

2- Tal conclusão resulta do regime contido nas disposições conjugadas do art. 52° n° 2 e 55° n° 1 do Código Civil, pois é a Áustria o país com o qual a vida familiar se acha mais estreitamente conexa.

3- A conexão de vida conjugal e familiar com a Áustria não é posta em causa no presente recurso.

4 - A lei austríaca, IPR - Jornal Federal n° 58/2004, não contempla a separação judicial de pessoas e bens.

5 - Decidiu bem o tribunal recorrido ao declarar improcedente o pedido do aqui Recorrente.

6- Pelo que deve a sentença ser mantida e confirmada, negando-se provimento ao recurso.

Nestes termos e com o doutro suprimento de V. Excelências deve o presente recurso ser julgado improcedente e não provado e em consequência mantida a sentença recorrida, e consequentemente recusada a separação judicial de pessoas e bens com as legais consequências e assim se fazendo Justiça.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

A questão a resolver consiste em apurar se deve ou não plicar-se ao caso dos autos a lei substantiva austríaca, com todas as legais consequências.

 

II - Fundamentos.

Está provado que:

a) o A. e a R. casaram um com o outro em 29.10.92, em Viena, sem convenção antenupcial (doc. de fls. 8 a 10, 78 a 79 e 81);

b) o casamento encontra-se registado na Conservatória dos Registos Centrais, em Lisboa, sob o n° 3256 do ano de 1994 (doc. de fls. 8 a 10);

c) o A. nasceu em Lisboa e tem nacionalidade portuguesa (doc. de fls. 11);

d) a Ré nasceu na Alemanha (doc. de fls. 12 e 70);

e) a R. tem nacionalidade alemã e austríaca (doc. de fls. 70 e 120);

f) Alexander H nasceu no dia 21.01.95 e é filho do A. e da R. (doc. de fls. 12);

g) Félix H nasceu no dia 27.09.96 e é filho do A. e da R. (doc. de fls. 13 e 14);

h) o poder paternal em relação aos menores encontra-se regulado por sentença proferida pelo Tribunal do Centro de Viena da República da Áustria, no âmbito do Processo n° 3 P 249/00, em 12.01.04, tendo os mesmos sido confiados à guarda e cuidados da R., que exerce o poder paternal (doc. de fls. 20 a 22);

i) quando casou com a Ré e até 31.10.99, o A. trabalhava e trabalhou como funcionário diplomático nos serviços da O.N.U. em Viena;

j) O Autor foi colocado na Embaixada de Portugal em Viena de Áustria após ter cessado em Outubro de 1999 a sua colaboração à Delegação da O.N.U. na mesma cidade;

k) a partir de 5 de Outubro de 2001, a R. foi viver para a Alemanha

1) e o A. veio viver para Portugal porque, entretanto, também cessara as suas funções na Áustria;

m) a Ré não acompanhou o A. em tal mudança;

n) o A. convidou a R. a retomar a coabitação conjugal, agora em Portugal;

o) a Ré não acompanhou o marido,

p) optando por ficar onde vivia;

q) desde Outubro de 2001 que o A. e a R. se encontram separados, sem qualquer convivência ou coabitação entre ambos,

r) o que sucede contra a vontade do A.;

s) datada de 26.03.04, o A. enviou à R. que a recebeu, a carta cuja cópia consta de fls. 72 e cuja tradução consta de fls. 203, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzindo, solicitando uma chave da "garçonniere" para ter acesso a um frigorífico.

A douta sentença sob a apreciação funda a sua decisão nos arts. 55º, nº 1 e 52º, ambos do Código Civil.

Rezam tais disposições:


ARTIGO 55º

(Separação judicial de pessoas e bens e divórcio)


1. À separação judicial de pessoas e bens e ao divórcio é aplicável o disposto no artigo 52º.

2.Se, porém, na constância do matrimónio houver mudança da lei competente, só pode fundamentar a separação ou o divórcio algum facto relevante ao tempo da sua verificação.


ARTIGO 52º

(Relações entre os cônjuges)


1. Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei nacional comum.

2. Não tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, é aplicável a lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.

Como vemos, a norma de conflitos portuguesa estabelece a seguinte ordem de prioridades, sendo sucessivamente aplicável, para casos de separação judicial de pessoas e bens:

· Lei nacional comum dos cônjuges; na sua falta,

· Residência habitual comum; na sua falta,

· Lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.

Comentando o preceito, dizem Pires de Lima e Antunes Varela[1]:

Não tocando no texto do nº 1, a versão do Código manteve o princípio fundamental de que as relações entre os cônjuges se regem pela lei nacional comum. Se ambos forem espanhóis, italianos ou franceses, será a lei espanhola, italiana ou francesa que cumpre observar na matéria, de acordo com o critério da nacionalidade, geralmente aceite como estatuto pessoal e familiar nas legislações europeias.

Respeitou-se, além disso, a primeira regra subsidiária fixada no nº 2 do artigo 52º, que manda recorrer à lei da residência habitual comum, quando os cônjuges não tiverem a mesma nacionalidade. Se um, cidadão espanhol, casado com uma inglesa, vive habitualmente em Lisboa com a mulher, é a lei portuguesa que define o estatuto das suas relações pessoais e patrimoniais. É na residência comum que, perante a' diferente nacionalidade dos cônjuges, assenta a lex familiae.

A inovação trazida pela Reforma refere-se à hipótese de os cônjuges não terem a mesma nacionalidade e não residirem habitualmente no mesmo país. Nesse caso, segundo a primitiva versão do Código, recorria-se à lei pessoal do marido, solução que tinha a apreciável vantagem da certeza do estatuto aplicável, num sector em que esse factor reveste uma importância especial.

O Decreto-Lei n.° 496/77, com a manifesta preocupação de eliminar todos os vestígios de tratamento discriminatório entre os cônjuges, manda aplicar a lei do país com. o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.

Se os cônjuges não residem habitualmente no mesmo Estado, mas todos os filhos vivem com um deles, não será difícil saber qual o pais mais estreitamente: associado à vida da família.

Se, .porém, os filhos estão repartidos entre os pais, se o casal não tem filhos, ou se os filhos vivem num país diferente daquele onde os progenitores têm residência, "a aplicação do novo critério pode encontrar sérios embaraços e criará sobretudo as maiores incertezas entre os interessados(...)

Ora está provado que o Autor é português e a Ré é alemã/austríaca, pelo que não há lei nacional comum; também se prova que o casal deixou de ter residência conjunta, pelo que não pode ser aplicado o critério da residência habitual comum.

Sobra a terceira opção, sendo pois necessário apurar a que país é a vida familiar se acha/achou mais estreitamente ligada.

Autor e Ré casaram entre si em 29.10.92, em Viena de Áustria, onde residiam e onde tiveram os seus dois filhos, Alexander, nascido em 1995, e Félix, nascido em 1996 e durante cerca de 9 anos viveram em Viena.

Em 2001 a Ré foi viver para a Alemanha e o Autor veio para Portugal.

O casal, que se saiba, nunca viveu com habitualidade em Portugal.

Os filhos do casal viveram com seus pais em Viena até que em 2001 foram para Alemanha com a mãe, a quem veio a ser atribuído o poder paternal por sentença de 2004 do Tribunal do Centro de Viena.

Não cremos que haja qualquer dúvida sobre qual o país ao qual o casal, enquanto tal, mais esteve ligado.

É certo que sendo o Autor um diplomata português, tem o seu domicílio oficial em Portugal e está, como é evidente, profundamente ligado ao seu país, que representa no estrangeiro.

Mas, por um lado, como vimos acima, o casal deixou de ter residência comum, sendo inaplicável o critério da residência; e por outro lado, a ser aplicável tal critério, ele apontaria igualmente para a aplicação da lei substantiva austríaca, pois a residência do casal sempre foi em Viena.

Também é certo que, como aliás doutamente se alega na apelação, que a conexão da vida conjugal com a Áustria não decorreu de um acto voluntário do Autor, mas sim das suas obrigações enquanto diplomata português integrado na respectiva carreira, por determinação da estrutura orgânica em que se integrava.

Porém o critério seguido pela norma de conflitos não é o da atribuição aos diplomatas de especial estatuto, mas sim e apenas o estrito critério objectivo da conexão espacial do casal com um determinado país – e não há dúvida nenhuma de que a vida do casal sempre se desenrolou em Viena, durante cerca de 9 anos, até à separação de facto; foi lá que nasceram os filhos, foi lá que foi regulado o poder paternal após o casal se ter desentendido.

Finalmente, no tocante à solução adoptada pelo artº 23º do Regulamento CE nº 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, como o apelante reconhece, a sua previsão é substancialmente diferente da previsão a que se reportam estes autos: aí se diz que o reconhecimento de uma decisão não pode ser recusado com o fundamento de a lei do Estado-Membro requerido não permitir o divórcio, a separação ou a anulação do casamento com base nos mesmos factos; ora a actividade que se exige ao tribunal que reconhece sentença estrangeira e a introduz no ordenamento jurídico interno é radicalmente diversa da actividade do Juiz a quem é pedida a definição do direito com base em certo ordenamento jurídico.

Referindo-se a situações substancialmente diversas, não vemos como pode fazer-se a interpretação da segunda situação usando critérios atinentes à primeira, como defende o Autor – e sendo certo que há uma clara opção da norma de conflitos portuguesa que contraria uma tal interpretação.

A douta sentença sob apreciação decidiu por isso muito sensatamente e nem o Exmo. Juiz poderia ter decidido de forma diversa, atendendo à matéria de facto provada e tendo em conta o direito aplicável, produzindo aliás, diga-se a talhe de foice, uma decisão solidamente fundamentada, doutamente motivada, abordando sintética mas rigorosamente a questão sub judice.

Termos em que, e sempre salvo o devido respeito por opinião contrária, a apelação não pode proceder.

III - Decisão.

De harmonia com o exposto, nos termos das citadas disposições, acordam os Juízes desta Relação em declarar improcedente a apelação, confirmando-se na totalidade a douta sentença do Tribunal a quo.

Custas pelo apelante.


Lisboa e Tribunal da Relação, 29/01/2009

Os Juízes Desembargadores,

Francisco Bruto da Costa

Catarina Arelo Manso

Pedro Lima Gonçalves


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[1]              Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 87.