Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1417/08.8TCSNT.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ABUSO DE DIREITO
EXECUÇÃO
PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: A pretensão da exequente de prosseguir a execução depois de lhe ter sido entregue o imóvel hipotecado, que não cobriu a dívida exequenda, com o fim de obter a satisfação da parte do empréstimo não coberto, não configura, sem mais, um abuso de direito.
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

O Banco “A”, SA (= exequente), requereu execução contra “B” e outros dois executados, para pagamento, entre o mais (que se refere a um crédito cambiário de 17.460,90€ + 321,47€ de juros), de 80.069,89€ (+ 11.101,19€ de juros), que eram o remanescente de um empréstimo para compra do imóvel que é a habitação da executada, garantido por hipoteca deste mesmo imóvel que a executada tinha comprado a terceiro por 89.160,12€ em 2001. A hipoteca foi registada com referencia ao valor máximo de 123.834,50€.
A executada “B” (a partir daqui será referida apenas como executada) foi citada pessoalmente a 08/02/2010 (fls. 59). Os outros dois executados acabaram por o ser em 24/02/2010
A executada requereu apoio judiciário na Segurança Social a 15/02/2010 (fls. 67 a 70) e veio fazer prova disso no processo a 02/03/2010 (fls. 66). No ponto 5 do pedido de apoio judiciário, antes da assinatura da executada, consta a seguinte certificação da própria: tomei conhecimento de que devo […] entregar cópia do presente requerimento no tribunal onde decorre a acção, no prazo que me foi fixado na citação/notificação (fls. 69).
Por requerimento junto a 19/03/2010, a advogada que tinha sido nomeada para patrocinar a executada dá conhecimento ao processo da nomeação (fls. 73/75), o que lhe tinha sido comunicado por carta datada de 26/02/2010 (fls. 74).
A 03/12/2010 foi penhorado o imóvel da executada (do que a advogada nomeada à executada foi notificada com carta de 23/12/2010, conforme PE/370/210) e depois foi programada a venda do mesmo, tendo a executada sido notificada a 23/05/2011, na pessoa da mesma advogada, de que tinha sido designado o dia 27/06/2011 para abertura de propostas pelos interessados na compra do imóvel, cujo valor mínimo seria de 70.000€ (fls. 110).
No dia 27/06/2011 foi aceite a única proposta apresentada para o efeito, que era da exequente “A”, pelo valor de 76.000€ (fls. 114/116).
A 07/07/2011, a executada juntou procuração passada a outro advogado (fls. 120/123).
A 13/07/2011 (fls. 128 a 132), este, em nome da executada, apresentou um requerimento que termina assim:
“A) Anular o processado entre o pedido de apoio judiciário e a respectiva concessão;
B) Anular o processado até que o co-executado S. seja notificado para constituir mandatário;
C) Ordenar a realização de perícia no âmbito da qual seja determinado o valor da fracção o qual valor vincula não só a executada como a exequente, devendo esta esclarecer se se conforma ou não com o valor indicado designadamente para efeitos de redução até esse montante do valor da divida.
D) Concordando a exequente com o valor da fracção deve ser declarado que quer a executada quer as pessoas que indicou como fiadores nada mais devem por conta do contrato de mútuo com hipoteca, solicitando a retirada das mesmas da lista de devedores do Banco de Portugal.
Para tanto se requer a V. Exa se ordenar o ora solicitado, declarando-se que até que seja proferida tal sentença a execução fica suspensa dado que nada justifica que a executada e os seus 3 filhos fiquem sem habitação até porque sempre será possível renegociar a regularização com prolongamento do período de carência do empréstimo.”
Alegou para tanto o seguinte:
“1. A executada foi demandada conjuntamente com dois fiadores.
2. Pessoas pelas quais tem grande estima.
3. No prazo da citação a executada solicitou a concessão do benefício de apoios judiciário.
4. Até ao deferimento ou indeferimento do pedido o processo deveria ter estado parado. Todavia, foram praticados actos com a consequente afectação dos direitos da executada.
5. No presente processo é obrigatória a constituição de advogado por parte designadamente de todos os executados.
6. O [co-]executado S. nunca constituiu mandatário nos autos e deveria tê-lo feito.
7. Aliás, só após tal constituição o processo poderia ter prosseguido para a fase subsequente à citação.
8. Acresce, afinal a exequente adquiriu a fracção autónoma, em 27/06/2011 pelo valor de 76.000€ quando tinha a seu favor uma hipoteca de 110.405,83€.
9. A exequente exerceu o direito de instaurar a execução por falta de pagamento das prestações hipotecárias.
10. Todavia, exerceu tal direito, atento resultado, de forma abusiva pois que bem sabia que a hipoteca deveria garantir o pagamento da divida, ou seja, aceitou as regras de funcionamento do mercado na certeza de que o produto da venda da casa seria sempre bastante para que a divida ficasse integralmente paga.
11. A executada sempre acreditou que o exequente não lhe estava a emprestar quantia superior àquela a todo o momento devesse resultar da venda do bem.
12. O gorar dessa expectativa é gravoso não só para a executada como para os fiadores com os inerentes prejuízos de penhora ilegítimas.
13. Todavia o exequente afigura-se à executada que tem um beneficio ilegítimo fazendo repercutir apenas sobre os executados os prejuízos resultantes das variações do mercado e tendo paradoxalmente um resultado exagerado uma vez que não só pretende prosseguir com a execução da diferença como até pode vender de imediato a fracção a outra pessoa novamente por 100.000€ e assim sucessivamente.”
Por despacho proferido em conclusão aberta a 15/02/2012 (fls. 152), foi indeferida a pretensão da executada e a mesma condenada pelas custas do incidente a que deu causa, cuja taxa de justiça foi fixada em 5UC.
A fundamentação de tal despacho consiste no seguinte (depois de uma síntese completa das alegações da executada):
1. Compulsados os autos constata-se que a executada foi citada, por contacto pessoal, no dia 08/02/2010 (cfr. "nota de citação pessoal" de fls. 59).
Por requerimento de 02/03/2010 veio dar conhecimento aos autos de que tinha requerido junto dos serviços da Segurança Social apoio judiciário na modalidade de, para além do mais, "nomeação e pagamento da compensação de patrono" (cfr. fls. 66 a 70), o qual foi deferido por decisão comunicada aos autos a 04/03/2010 (cfr. fls. 71 e 72). Consequentemente foi-lhe nomeada patrona oficiosa (…) – cfr. fls. 74 –, estando, assim, a executada, ora requerente, devidamente patrocinada nos autos desde Fevereiro de 2010.
A executada não deduziu oposição à execução nem à penhora.
Resulta do disposto no art. 24/4, da Lei 34/2004, de 29/07 que “Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência da acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo”. (sublinhado nosso)
Porém, in casu, a junção aos autos de tal documento teria de ser feita dentro do prazo concedido para a apresentação da oposição à execução, a saber 20 dias.
Tendo sido a executada citada em 08/02/2010 e junto tal documento em 02/03/2010, constitui um facto irrefutável a circunstância do prazo legal de oposição ter decorrido sem que a executada houvesse feito entrar em juízo o documento comprovativo da apresentação do requerimento solicitando o apoio judiciário.
Trata-se aqui de um ónus que a lei lhe impõe e que, por isso mesmo, teria que ser obrigatoriamente observado pela interessada, sob pena de não se poder produzir o efeito legalmente previsto: a interrupção do decurso do prazo para apresentação de oposição à execução.
Mas ainda que assim não tivesse sido, sempre se dirá que a atempada junção aos autos de tal comprovativo faria interromper o prazo em curso, mas não tinha por efeito a suspensão dos autos de execução, contrariamente ao defendido pela executada.
Falece, assim, o primeiro dos fundamentos invocados pela executada para obtenção dos efeitos pretendidos a final.
2. No que concerne à obrigatoriedade de constituição de mandatário por parte dos executados, dispõe o art. 60 do CPC que a mesma se verifica “nas execuções de valor superior à alçada da Relação e nas de valor inferior a esta quantia, mas excedente à alçada do tribunal de primeira instância, quando tenha lugar algum procedimento que siga os termos do processo declarativo” (sublinhado nosso).
Nesta conformidade, a falta de constituição de mandatário por parte dos executados não tem, assim, como efeito a suspensão dos termos da execução, contrariamente ao pretendido pela executada, ora requerente.
Termos em que improcede o fundamento invocado.
3. No que à restante matéria alegada concerne, cumpre referir, desde já, que a presente execução prosseguiu os seus termos sem que qualquer dos executados tenha deduzido oposição (à execução e/ou à penhora), mostrando-se já adjudicada à exequente a fracção sobre a qual incidia a hipoteca que garantia a dívida exequenda, o que sucedeu no âmbito da venda judicial mediante abertura de propostas em carta fechada.
É neste contexto que a executada, de forma manifestamente extemporânea, pretende pôr em causa os actos praticados.
Os fundamentos ora invocados – independentemente da respectiva bondade – seriam susceptíveis de integrar matéria de eventual oposição à execução, cujo prazo para a respectiva dedução já se mostra largamente ultrapassado.
Nesta sede, são manifestamente improcedentes tais fundamentos.”
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A executada vem agora interpôr recurso deste despacho, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª - Contrariamente ao sustentando na sentença recorrida a junção aos autos do documento comprovativo é obrigação dos serviços da Segurança Social e estando demonstrada nos autos a data da apresentação do requerimento na Segurança Social é essa a data a que se deve atender para o pretendido efeito de interrupção do prazo que se encontre em curso.
2ª - As decisões judiciais sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.
3ª - No que respeita à obrigatoriedade de constituição de mandatário por parte da executada e recorrente e uma vez que o valor da execução é superior à alçada da Relação, porquanto a questão foi suscitada, ou seja, tendo ocorrido procedimento o processo deveria ficar suspenso.
4ª - A falta de fundamentação gera a nulidade do despacho (art. 666/3) ou da sentença [art. 668/1b)]. Tratando-se da decisão sobre a matéria de facto, pode determinar-se em recurso a baixa do processo a fim de que o tribunal da 1ª instância a fundamente (art. 712º nº 5).
5ª - Por outro lado, não é pelo facto de já ter sido promovida a venda do bem que deixa de ser atendível a apreciação e declaração de procedência do pedido formulado em primeira instância. Bem ao invés, é precisamente por esse facto que a pretensão assume maior pertinência.
6º - A condenação pelas custas em 5UCs afigura-se manifestamente desproporcionada face é simplicidade e pertinência das concretas questões suscitadas pela recorrente.
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Questões que importa solucionar: se a execução devia ter sido suspensa na data da apresentação do requerimento de apoio judiciário na Segurança Social e se era esta que devia ter junto ao processo cópia desse requerimento; se o despacho recorrido não está fundamentado; se a execução devia estar suspensa até à constituição de mandatário judicial pelo co-executado; se o crédito da exequente já se deve considerar satisfeito e por isso se a execução não deve prosseguir, sob pena de se estar a permitir um abuso de direito; se a taxa de justiça fixada é excessiva.
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Os factos são os que constam do relatório que antecede.
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Quanto à 1ª conclusão:
A decisão recorrida diz, fundamentadamente – pois que invoca a lei e depois tece as considerações necessárias para demonstrar o que diz -, que era à executada que incumbia fazer entrar “em juízo o documento comprovativo da apresentação do requerimento solicitando o apoio judiciário.”
A executada limita-se, na 1ª conclusão do seu recurso, a dizer que a junção aos autos do documento comprovativo é obrigação dos serviços da Segurança Social, sem invocar qualquer norma legal que a apoie.
Daqui já decorre a sem razão da executada.
Acrescente-se, no entanto, o seguinte, às razões que já constam da fundamentação da decisão recorrida:
Como se viu no relatório deste acórdão, a executada, no ponto 5 do pedido de apoio judiciário, subscreveu a seguinte certificação: tomei conhecimento de que devo […] entregar cópia do presente requerimento no tribunal onde decorre a acção, no prazo que me foi fixado na citação/notificação (fls. 69).
Ou seja, ela própria sabe que era ela que tinha o dever de entregar a cópia do requerimento no tribunal.
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Diz, entretanto, a executada que a data a que se deve atender para o pretendido efeito de interrupção do prazo que se encontre em curso é a data da apresentação do requerimento na Segurança Social.
De novo sem qualquer razão, pois que decorre expressamente da norma invocada na decisão recorrida que o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo.
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Por fim, saliente-se o seguinte:
Aquilo que a junção aos autos do documento comprovativo do requerimento de apoio judiciário faria, era interromper o decurso do prazo para a dedução da oposição.
Por sua vez, a notificação ao patrono da sua designação faz iniciar o prazo que tivesse sido interrompido [art. 24/5a) da Lei 34/2004].
Como essa notificação do patrono, feita por carta de 26/02/2010, se presume ter ocorrido no dia 01/03/2010 (2ª feira), a partir desta data ter-se--ia iniciado de novo o prazo, que já não poderia – logicamente - ser interrompido pelo pedido anterior de apoio judiciário.
Pelo que a junção aos autos do documento comprovativo do pedido – ocorrida a 02/03/2010 (3ª feira) – já não poderia interromper nada.
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Para além de tudo isto e como diz a decisão recorrida, a junção do documento comprovativo do requerimento de apoio judiciário apenas teria o efeito de interromper o prazo de oposição, não o de suspender a execução (art. 24, nºs. 1 e 4, da Lei 34/2004).
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Quanto às 2 e 4ª conclusões:
Transcreveu-se acima a fundamentação da decisão recorrida tendo principalmente em vista esta conclusão da executada, pois que a simples existência da mesma é suficiente para rebater esta conclusão.
Por sua vez, a 4ª conclusão não passará de um lapso, visto que a decisão recorrida não se baseia em factos sobre os quais tenha recaído produção de prova.
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Quanto à 3ª conclusão:
Para além de esta conclusão estar truncada - por não concretizar que “procedimento” é que teria ocorrido - e de estar em contradição com o requerimento indeferido - onde a questão que se levantava era a de falta de constituição de mandatário pelo co-executado, enquanto agora se está a referir à falta de constituição de mandatário pela executada – ela ainda está duplamente errada.
Por um lado, porque a executada está representada por advogada desde 01/03/2010 e depois porque o que estava em causa no requerimento indeferido era a falta de constituição de advogado pelo co-executado. Ora, este não é parte em qualquer procedimento que siga os termos do processo declarativo, pelo que, em relação a ele, como diz a decisão recorrida, não era necessária a constituição de advogado (art. 60/1, parte final, do CPC).
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Quanto à 5ª conclusão
Pode-se entender, com esforço, que esta conclusão se reporta a toda a restante matéria do requerimento indeferido da executada: arts. 8 a 13, alíneas c) e d) e parte final do referido requerimento.
A decisão recorrida entendeu toda esta matéria como dizendo respeito à pretensão da executada de pôr em causa os actos praticados.
E nesta perspectiva era evidente que, já tendo ocorrido a venda do bem penhorado, as pretensões que a executada formulava no requerimento não tinham aparentemente qualquer viabilidade.
É certo que, se houvesse alguma nulidade anterior, que levasse à anulação dos actos, poderia a validade dos actos subsequentes ser arrastada pela nulidade dos anteriores, mas a decisão recorrida já tinha afastado os dois fundamentos de nulidade invocados e por isso já não tinha que se referir a eles de novo.
Pelo que, era perante a restante fundamentação da executada que a decisão recorrida tinha que apreciar as pretensões ainda não decididas. Ora, como o imóvel já tinha vendido, não tinha sentido proceder à sua avaliação.
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Desnecessidade de continuação da execução ou do abuso do direito de a prosseguir
Quer-se crer, no entanto, que o que a executada pretende é antes levantar a questão da desnecessidade da continuação da execução e de novas penhoras, com base no facto de o bem penhorado e já vendido ser suficiente para dar satisfação ao direito de crédito do credor, complementando tal argumentação com a invocação do abuso de direito da exequente ao pretender continuar com a execução.
Ou, pelo menos, atento o teor do artigo 12 do seu requerimento, estas questões podem ser apreciadas nesta perspectiva, sendo que elas, nos termos em que são colocadas pela executada, não se levantavam antes da venda do bem, do apuramento do valor da venda e da executada ser colocada perante a pretensão da exequente de prosseguir com a execução, pelo que não poderiam ter sido objecto de oposição à execução.
Dito de outro modo, as questões levantadas nos artigos 8 a 13 do requerimento indeferido, têm lugar ao abrigo dos arts. 809/1d) e 821/3, ambos do CPC e, nesta perspectiva, o despacho recorrido não lhes dá inteira resposta, o que se passa agora a fazer.
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Antes de mais diga-se o seguinte:
A argumentação que a executada expende nos arts. 8 a 13 do seu requerimento indeferido só se entende minimamente tendo como pano de fundo as questões que foram levantadas por algumas decisões judiciais, bem como as críticas às leis em vigor e os fundamentos que têm sido invocadas em defesa de novas leis – designadamente em defesa de uma que dispusesse que a entrega do imóvel hipotecado ao banco saldasse a dívida contraída para a compra do mesmo.
As decisões judiciais em causa são:
- decisão de 04/01/2012 do Tribunal Judicial de Portalegre – publi- cada em http://www.inverbis.pt/2012/ficheiros/doc/tribunalportalegre_creditohipotecario.pdf;
- decisão do Juzgado de Primera Instancia e Instrucción núm. 2 de Estella, que foi confirmada por uma outra decisão, núm. 111/2010, da Sección Segunda da Audiencia Provincial de Navarra de 17/12/2010 – publicada em http://afectadosporlahipoteca.files.wordpress.com/2011/01/autoapnavarra17-12-2010ejecucic3b3nhipotecaria.pdf,
- uma outra do Juzgado de Primera Instancia núm. 44 de Barcelona, de 24 de enero de 2011, nº. 10/0259 – publicado em http://hipotecaconderechos. org/documentos/sentencias/Auto_Juzgado_Primera_Instancia_44_Barcelona_vivienda_como_dacion_en_pago.pdf
e ainda uma outra do Juzgado de primera instancia e instrucción numero 3 de Arenys de Mar de 22/02/2012 auto 38/2.012 – publicada em http://www.observatoridesc.org/sites/default/files/Auto-Arenys-de-Mar.pdf
(as decisões de Navarra e Barcelona foram analisadas numa tese de mestrado sobre o Incumprimento do contrato de mútuo para aquisição de habitação e adjudicação do imóvel hipotecado por valor inferior ao da dívida exequenda, de Gil Teles de Meneses de Moraes Campilho, de Dez2011, publicada em http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/8939/1/111229%20 DISSERTA%C3%87%C3%83O%20DE%20MESTRADO%20-%20GIL%20CAMPILHO.pdf e referenciadas num artigo de Guillermo Orozco Pardo / José Luis Perez Serrabona González sobre a Problemática de la Ejecución Hipotecaria en el Contexto de la Crisis Financiera, publicado no Liber Amicorum Mário Frota - A Causa dos Direitos dos Consumidores, Almedina, 2012. A decisão do TJ de Portalegre foi analisada por Isabel Menéres Campos num “Comentário à (muito falada) sentença do Tribunal Judicial de Portalegre”, publicado nos Cadernos de Direito Privado, nº. 38, Abril – Junho de 2012 [onde se diz, sem razão, que a decisão de Portalegre reproduz, com algumas adaptações, certas decisões que vieram a ser proferidas por tribunais espanhóis; que o comentário não tem razão nesta crítica resulta claro da leitura de todas aquelas peças processuais]).
Mas a decisão das questões colocadas pela executada tem de ter em conta apenas os factos que estão provados nestes autos e os argumentos com eles relacionados (sendo que aqueles que têm a ver com a defesa de novas leis têm pouco relevo quando se trata de aplicar a lei em vigor: sendo argumentos críticos desta, com o fim de a modificar, é lógico que não têm a pretensão de serem a interpretação correcta da mesma).
Posto isto:
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A executada entende que com a entrega à exequente do produto da venda (melhor se diria: do imóvel vendido) a dívida exequenda devia considerar-se extinta. Isto porque, na lógica das coisas, a exequente não lhe devia ter emprestado mais dinheiro do que aquele que resultasse da venda do imóvel para a compra do qual o empréstimo serviu.
Repara-se desde logo que este argumento só faria minimamente sentido se se supusesse que entre o empréstimo e a venda posterior não decorria qualquer período de tempo.
Sem este pressuposto, o que deste argumento resulta é que a executada entende que se ao fim de 10 anos o bem já não vale o que valia antes, quem deve arcar com o risco da diferença é a exequente. Assim: se a exequente lhe emprestou 89.000€ em 2001, para comprar o imóvel, a executada só lhe tiver restituído entretanto 9000€, e o imóvel, em 2011, só for vendido por 76.000€, quem deve ficar a perder os cerca de 4.000€ de diferença é a exequente na lógica da executada.
A executada para semelhante entendimento, invoca apenas a ideia de que seria ilegítimo fazer repercutir apenas sobre os executados os prejuízos resultantes das variações do mercado. Mas não fundamenta esta ideia em nenhuma norma legal ou construção jurídica, nem muito menos tenta demonstrar que a variação de preço resulta das “variações do mercado”.
Se o imóvel foi vendido em 2001 por 89.000€ e em 2011 por 76.000€, o que, note-se desde já, nem sequer é uma diferença significativa, tal pode dever-se a uma série de outras razões, entre elas a da depreciação do imóvel devido à sua utilização durante 10 anos. Como cabia à executada fazer a prova das afirmações que poderiam sustentar o seu eventual direito (art. 342/1 do CC), tem-se como não provada tal afirmação.
Por outro lado, a regra é da transferência do risco com a entrega da coisa (art. 796/1 do CC) pelo que a depreciação do imóvel corre por conta do comprador a quem o mesmo foi entregue.
Por fim, as regras legais aplicáveis impõem, obviamente, conclusão diversa àquela que resulta do entendimento da executada: se me emprestam 89.000€, eu fico obrigado a restitui-los (art. 1142 do CC). Se eu só pago 9000€ + 76.000€, fico a dever 4000€ (art. 406/1 do CC).
Assim, em relação a uma outra das afirmações da executada, o que se pode dizer é que seria desejável que a venda de um bem hipotecado, como garantia que é do crédito à restituição do empréstimo feito à executada para compra do mesmo, cobrisse esse valor. Mas, se não o cobre, continua a existir uma dívida pelo que não há razão para que a execução não prossiga.
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Diz ainda a executada que a exequente pode agora vir a vender o imóvel a outra pessoa novamente por 100.000€ e assim sucessivamente.
Quanto a isto diga-se, primeiro, que o argumento não é coerente com o pressuposto de que a executada antes tinha partido de que o valor de 76.000€ resultou do “funcionamento do mercado”; depois, que se a executada está convicta de que conseguia vender o imóvel por 100.000€, devia-o ter feito, pagando depois, com o produto da venda, o crédito hipotecário. Ainda, se a exequente vender o imóvel por 100.000€, celebrando com o comprador um contrato de empréstimo do montante da compra, isto quer dizer que ela estará a emprestar de novo os 100.000€ para essa compra, pelo que o lucro dela não resultará da possibilidade de vender o imóvel de novo, mas do empréstimo que ela tenha de fazer para o efeito. Por fim, se ela o vender, não por 100.000€, mas antes pelo valor pelo qual o comprou, não terá qualquer lucro.
Note-se que este argumento tem sido expresso de outra maneira, como se vê por exemplo em http://www.esquerda.net/opiniao/portugal-%C3%A0-venda-em-paris/24634: “o banco que recuperou a casa pode agora vendê-la novamente e conceder um novo crédito para esta venda, e lucrar a dobrar com o mesmo imóvel. Um ex-proprietário e um novo proprietário pagam ao banco pela mesma habitação. O banco só terá a ganhar se o novo proprietário também entrar em incumprimento, para continuar o ciclo de usurpação, e ir vender novamente o bem imobiliário.” Como se vê, trata-se de um dos tais argumentos de política legislativa, que não tem sentido utilizar como argumento de defesa da interpretação que a executada faz da lei em vigor, já que o que o argumento pretende é a modificação desta lei…
De resto, como se verá de seguida, a situação dos autos não tem o carácter chocante que está pressuposto nesta crítica (e que é pressuposto do funcionamento do instituto do abuso do direito…): a executada, se se descontassem os juros de mora, ficaria a pagar apenas cerca de 4000€ de um empréstimo de cerca de 89.000€ que tinha contraído há cerca de 10 anos e isto devido à desvalorização de um imóvel que ela usou durante esses 10 anos.
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Antes de se dizer mais alguma coisa sobre o assunto, esclareça-se ainda o seguinte:
A argumentação da executada, para além dos já referidos, incorre ainda numa série de outros equívocos:
Desde logo, no caso dos autos, a quantia exequenda não diz só respeito ao crédito hipotecário. Também existe um crédito cambiário, relevante (17.460,90€ + 321,47€), esquecido pela executada…
Assim, logo de imediato, a execução deveria prosseguir por estes cerca de 17.781,47€…
Depois, a dívida hipotecária já não era igual ao empréstimo contraído porque existe um período relevante de mora, com juros vencidos de 11.101,19€ à data do requerimento inicial e que aquando da venda já eram de 32.149,06€ (fls. 162/163 – a admitir-se que este valor está correcto, já que tal questão não é objecto deste recurso).
Ora, foi devido à existência destes juros de mora - que tiveram de ser pagos antes do capital do empréstimo – que restou tão pouco do produto da venda para pagamento do capital de empréstimo, falhando aqui também o argumento da executada de que o produto da venda do imóvel devia ser suficiente para cobrir o empréstimo.
É óbvio que a crítica agora poderia recair sobre o valor dos juros, mas a executada não alargou a questão aos juros…
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Continuando, diga-se que o primeiro argumento da executada - a exequente não lhe devia ter emprestado mais dinheiro do que aquele que resultasse da venda do imóvel para a compra do qual o empréstimo serviu – costuma estar ligado à crítica de que, para fazer o empréstimo pelo valor da compra, a exequente/ /mutuante teria hiperinflacionado a avaliação do imóvel. No caso dos autos não há qualquer prova disso.
Por outro lado, não há prova nos autos de que a variação de valores de mercado do imóvel, entre 2001 e 2011, seja imputável à crise financeira de 2008. Por outro lado, a diferença entre o valor do imóvel em 2011 e 2001, de cerca de 13.000€, não se pode dizer que seja escandalosa, como o teria que ser para que se começasse a pensar sequer no abuso de direito (art. 334 do CC).
Outro dos argumentos que está implícito na argumentação da executada – em contradição com vários outros - é de que o actual valor do imóvel é igual ao valor pelo qual ele foi avaliado aquando do empréstimo (daí que, segundo ela, o produto da venda devesse bastar para cobrir a dívida exequenda…). Mas não há a menor prova de que assim seja. Ora, a executada podia ter requerido, antes da venda do imóvel, que o mesmo fosse avaliado (art. 886-A/3 do CPC). Se não o fez, mantendo-se inactiva ao longo de todo o longo período pelo qual a execução já se estendeu, apesar de representada por advogado, só dela se pode queixar.
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Voltando ao argumento inicial da executada: se a exequente tivesse emprestado 100.000€ para a compra do imóvel por esse preço (o que permitiria presumir que o tinha avaliado por esse valor) e logo a seguir viesse a ficar com o imóvel para si por 50.000€, ficando a executada ainda a suportar o pagamento de uma dívida de 50.000€, teria sentido que se pusesse a questão do abuso de direito, nalguma das várias modalidades do mesmo.
Só que a questão dos autos é bem diversa, já que o empréstimo foi de 89.000€, o imóvel foi adquirido 10 anos mais tarde pela exequente por 76.000€ (possivelmente desvalorizado pela utilização durante esse período) e a executada, se se descontassem os juros de mora em que incorreu, só ficaria a pagar cerca de 4000€ pelo empréstimo ainda em dívida.
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Em suma, por muitas e variadas razões são de rejeitar os argumentos da executada e a conclusão 5ª do recurso.
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6ª conclusão
Os incidentes, mesmo os não nominados e os não anómalos, são tributáveis (art. 7/3 do RCP e Salvador da Costa, RCP anotado e comentado, 2009, Almedina, págs. 185, 188/189 e 192/193; dada a data do incidente, invoca-se a redacção anterior à da Lei 7/2012, de 13/02).
A respectiva taxa de justiça é fixada entre 1 e 3 UC (segundo a tabela II).
Assim, a fixação de 5 UC como taxa de justiça do incidente não se justifica.
Tendo em conta os limites supra referidos e o facto de o incidente se poder aproximar materialmente de uma oposição à execução e à penhora e que, por isso, ao contrário do que diz a executada, não se reveste de simplicidade, fixa-se a taxa em 2 UC.
Nesta única medida, o recurso é procedente.
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(…)
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente quanto à taxa de justiça aplicada ao incidente, que se fixa agora em 2 UC em substituição dos 5 UC da decisão recorrida, mantendo-se, em tudo o mais, a decisão recorrida.
Custas pela executada em 9/10, sem prejuízo do concedido apoio judiciário. Sem custas quanto ao outro 1/10.

Lisboa, 11 de Outubro de 2012.

Pedro Martins
Eduardo Azevedo
Lúcia Sousa