Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1943/14.0T8SNT-B.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
INCIDENTE DE HABILITAÇÃO
VALOR DA CAUSA
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
DEVER DE COOPERAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Cumpre ao juiz dirigir activamente o processo e cooperar com as partes e seus mandatários, tendo em vista a justa composição do litígio (art. 6º e 7º do CPC).
II - Assim, como os documentos juntos aos autos não são esclarecedores quanto à cessão do crédito invocada no requerimento de habilitação da cessionária, deveria a 1ª instância ter convidado a requerente a explicar a razão da discrepância entre o valor do crédito reclamado nos autos de execução e o valor em dívida que está indicado no documento por ela junto e bem assim a juntar o documento que comprova a correspondência entre a alegada renumeração do crédito cedido e o número do contrato de mútuo invocado na execução.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
Por apenso à execução que foi instaurada por Banco Popular Portugal, SA contra M…, P…, A…, J… e P.. & B…, S.A., foi deduzido incidente de habilitação de cessionário por EOS Credit Funding, DAC contra os executados e contra Banco Santander Totta SA, em 29/08/2019, requerendo a sua habilitação como exequente na posição do Banco Popular Portugal, SA.
Alegou, em síntese:
- por escritura pública outorgada em 27/12/2017 o exequente Banco Popular Portugal, SA foi incorporado, por fusão, no Banco Santander Totta SA, tendo este passado a ser titular dos créditos reclamados na execução;
- por Contrato de Cessão de Créditos outorgado em 19/12/2018 o Banco Santander Totta SA cedeu à requerente o crédito que detinha sobre os executados (doc.1 e 2);
- no âmbito da cessão contratual, foi transmitido o contrato de mútuo com o n.º 0380-044-00107-98 correspondendo aquela às contas empréstimo n.º 000601358987096 – 000000000000000, sendo a renumeração que identifica o contrato cedido, cf. doc. 2 que se junta.
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Não foi deduzida oposição.
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Em 21/10/2019 foi proferida decisão em que se lê, além do mais:
«Do documento junto com o requerimento de habilitação resultam provados os factos alegados pela requerente relativos à existência da cessão de créditos através da qual o exequente lhe cedeu os créditos que reclamava na execução a que estes autos se mostram apensos.
Importa por isso julgar procedente a pretensão da requerente, em conformidade com o disposto no aludido art. 356.º, habilitando-a a prosseguir na causa no lugar que era ocupado pelo exequente.».
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Inconformados, apelaram os executados A…, J.., terminando a alegação com as seguintes conclusões:
1.ª-A Eos Credit Dac veio requerer a sua habilitação como Cessionário, pretendendo passar a ocupar a posição do Banco Santander Totta que, segundo alega, incorporou, por fusão, o Banco Popular Portugal, SA, Exequente nos autos principais;
2.ª-Porém, não juntou com o seu requerimento qualquer documento comprovativo da alegada fusão;
3.ª -Sendo certo que o Banco Santander Totta nunca havia requerido a sua habilitação nos presentes autos;
4.ª -Independentemente disso, os Executados, ora Recorrentes, nunca foram notificados, por qualquer forma, pelo Cessionário – nem tão pouco pelo cedente –, da eventual cessão do crédito exequendo;
5.ª -Cessão essa que os Executados nunca aceitaram e que aliás desconheciam em absoluto que tivesse ocorrido;
6.ª -Consequentemente, a invocada cessão de créditos –a ter existido -não poderá produzir efeitos em relação aos Executados, ora Recorrentes;
7.ª-Acresce que os Executados, ora Recorrentes, não foram notificados do incidente de habilitação, razão pela qual não deduziram oposição;
8.ª-Contudo, a falta de contestação em sede de habilitação do cessionário não produz efeitos preclusivos, incumbindo sempre ao Tribunal verificar se o documento junto pelo requerente do incidente de habilitação prova efectivamente a aquisição ou a cessão do crédito em causa;
-Ora, analisando os documentos juntos pelo Cessionário, constata-se que aí não surge identificado o contrato de mútuo n.º 0380-044-00107-98 em causa nos autos executivos;
10.ª-Acresce que o “valor em dívida” referido nesses documentos não coincide coma quantia exequenda ou sequer com o valor do capital em dívida;
11.ª -Finalmente, nesses documentos não há qualquer referência aos Executados, ora Recorrentes, não se identificando que sejam devedores de qualquer crédito alegadamente cedido ao Cessionário;
12.ª-Assim, os documentos juntos aos autos pelo Cessionário não demonstram a existência nem provam a cedência de qualquer crédito relacionado com o mencionado contrato de mútuo n.º 0380-044-00107-98 –em causa nos autos principais –e, em especial, que tenha existido qualquer cedência de crédito sobre os Executados ora Recorrentes;
13.ª-Decidindo como decidiu, a douta Sentença recorrida violou, designadamente, o disposto no artigo 356º n.º 1 alínea b), segunda parte, do CPC e no artigo 583º n.º1 do CC.
Termos em que, com os mais que resultarão do douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada a decisão recorrida, como é de Justiça.
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Não há contra-alegação.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos apelantes, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:
- como questão prévia: valor deste incidente de habilitação     
- se está demonstrada a incorporação do Banco Popular Portugal no Banco Santander Totta, SA
- se está demonstrada a alegada cessão do crédito a favor da requerente
- se a alegada cessão de créditos não pode produzir efeitos em relação aos executados apelantes por dela não terem sido notificados nem pelo cedente nem pelo cessionário
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III - Fundamentação
A) Questão prévia:
Do valor deste incidente de habilitação de cessionário
No requerimento inicial é indicado o valor de 30.000,01 €, apesar de a requerente alegar que em consequência da cessão de créditos é a actual titular do crédito exequendo e de no requerimento executivo ter sido indicado que o valor da execução é 354.356,72 €.
A 1ª instância não se pronunciou sobre o valor nestes autos, não o tendo fixado no despacho que admitiu o recurso, pelo que não foi observado o disposto no art. 306º nº 3 do CPC em conjugação com o art. 304º.
Assim, na 1ª instância terá de ser proferido despacho fixando o valor da causa.
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B) Se está demonstrada a incorporação do Banco Popular Portugal no Banco Santander Totta, SA
Têm razão os apelantes ao dizerem que a apelada não juntou documento comprovativo da incorporação do primitivo exequente no Banco Santander Totta, SA.
Porém, por consulta do Registo Comercial efectuada oficiosamente pelo tribunal ao abrigo dos princípios do dever de gestão processual e da cooperação (art. 6º nº 1, 7º nº 1 e 412º nº 2 do CPC) foi obtida certidão permanente no portal Empresa on line da qual se verifica que pela Ins.30 OF. Ap.24/20171227- Fusão foi registada a transferência global do património do Banco Popular Portugal SA para o Banco Santander Totta, SA, tendo sido cancelada a matrícula da instituição incorporada pela Insc.31 Of.Ap.24/20171227.
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C) Se está demonstrada a alegada cessão de créditos
No seu requerimento inicial a apelada declarou junta 2 documentos, mas não os numerou.
O documento intitulado «Contrato de Cessão de Carteira de Créditos não garantidos» em que são designados como “Cedente” o Banco Santander Totta, SA e como «Cessionário” a EOS Credit Funding DAC, contém 3 anexos.
No ponto 2 desse «Contrato de Cessão de Carteira de Créditos não garantidos» consta, além do mais:
«2.Objeto
2.1 Nos termos do presente Contrato, o Cedente vende e transmite ao Cessionário, que por sua vez compra e adquire, a Carteira de Créditos, (…) como contrapartida pelo pagamento do Preço de Aquisição, adquirindo a titularidade plena dos Créditos bem como todos os Direitos Acessórios dos Créditos que compõem a referida Carteira de Créditos na Data de, nos termos do presente Contrato (…)
(…)».
No ponto 10 consta, além do mais:
«10. Notificação da cessão aos devedores e aos colaboradores do Cedente
10.1 De modo a formalizar a notificação da Cessão dos Créditos aos devedores por efeito do presente Contrato, o Cedente e o Cessionário acordam que o cessionário será responsável pelo envio da notificação aos devedores dos Créditos, através de uma carta assinada pelos representantes do Cessionário, de acordo com a minuta indicada no Anexo 3 do presente Contrato e a informação contida no CD-RROM a ser enviada pelo Cedente na Data de Fecho ao Gestor dos Créditos (…)
No ponto 22 consta:
«22.Conteúdos dos Anexos
Este Contrato contém os Anexos abaixo identificados, dos quais apenas os Anexos 2 a 5 deverão ser disponibilizados ao Cessionário, enquanto que ao Cedente e ao Gestor dos Créditos serão disponibilizados todos os Anexos (mas que, para todos os efeitos contratuais, a totalidade dos Anexos serão considerados conhecidos e aceites integralmente pelo Cessionário):
Anexo 1: dados da Carteira de Créditos (CD-ROM);
Anexo 2: Declaração de Conclusão;
Anexo 3: Minuta de Carta de notificação aos Devedores;
Anexo 4: Lista dos Créditos, com exclusão dos dados pessoais dos Devedores;
Anexo 5: Lista dos valores depositados em Tribunal;
Anexo 6: Lista dos Créditos, incluindo dados pessoais dos Devedores».
No Anexo 1 (página 42 do «Contrato») junto aos autos constam apenas estes dizeres:
«1. Dados da Carteira dos Créditos
CD-ROM incluído numa capa na página seguinte a entregar pelo cedente ao gestor dos créditos em representação do cessionário
(assinado, no rótulo, pelo Cedente e Gestor dos Créditos para efeitos de identificação)».
No Anexo 2 (página 43 do «Contrato» junto aos autos constam apenas estes dizeres num quadro:
«Declaração de Conclusão
Número de créditos cedidos
Montante total em dívida à data de determinação da carteira de créditos
Montantes depositados
Preço de aquisição».
O Anexo 3 é apenas uma «Minuta de carta de notificação aos Devedores».
O documento 2 é uma folha onde consta:
- como «cliente» «Pinto e Bentes Sa, com o NIF 500217858
- como «Número de Cliente» 5100260719,
- como «ID»: 000601358987096 –000000000000000»,
- e como valor em dívida «307.460».
Vem alegado no requerimento inicial que a designação «000601358987096 –000000000000000» corresponde à renumeração que identifica o contrato cedido e que é o contrato de mútuo com o nº 0380- 044-00107-98.
Porém, dos referidos documentos não é possível encontrar tal correspondência, pois neles não está identificado o contrato de mútuo que está na origem da execução.
Além disso no requerimento executivo é exigido o pagamento de:
«Capital: € 333.333,36
Juros Remuneratórios calculados entre 25-11-2013 e 22-05-2014 €8.765,00
Comissões de Processamento €8,26
Comissões de recuperação de valores em dívida €300,00
Juros mora até 17-07-2014 €4.460,57
Imposto de Selo: € 140,80
Despesas de cobrança: € 6.948,17
TOTAL: € 354.356,72 (trezentos e cinquenta e quatro mil trezentos e cinquenta e seis euros e setenta e dois cêntimos).».
Significa que os documentos juntos pela apelada são insuficientes para se concluir, como na sentença recorrida, que estão «provados os factos alegados pela requerente relativos à existência da cessão de créditos através da qual o exequente lhe cedeu os créditos que reclamava na execução a que estes autos se mostram apensos.».
Decorre do art. 356º nº 1 al a) e b) do CPC que o ao requerimento de habilitação do cessionário tem de ser junto o título da cessão e que o juiz tem de verificar se o documento prova a cessão e só no caso afirmativo declara habilitado o cessionário.
Por outro lado, cumpre ao juiz dirigir activamente o processo e cooperar com as partes e seus mandatários, tendo em vista a justa composição do litígio (art. 6º e 7º do CPC).
Assim, como os documentos juntos aos autos não são esclarecedores quanto à invocada cessão do crédito, deveria a 1ª instância ter convidado a requerente a clarificar a razão da discrepância de valores e juntar o documento do qual resulta a correspondência do «ID: 000601358987096 –000000000000000» ao contrato de mútuo invocado na execução.
Por quanto se disse, impõe-se anular a decisão recorrida e ordenar que no tribunal recorrido seja proferido despacho formulando tal convite à apelada.
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IV - Decisão:
Pelo exposto decide-se:
a) ordenar que a 1ª instância fixe o valor da causa;
b) anular a decisão recorrida e ordenar que a 1ª instância convide a apelada a clarificar a razão da supra indicada discrepância de valores e juntar o documento do qual resulta que o «ID 000601358987096 –000000000000000» é a renumeração do contrato de mútuo invocado na execução.
Custas pela parte vencida a final.
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Com a notificação deste acórdão será feita notificação do documento obtido no portal da Empresa on-line.

Lisboa, 05 de Novembro de 2020
Anabela Calafate
António Manuel Fernandes dos Santos