Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA TERRITORIAL DIREITO DE PROPRIEDADE ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/22/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I - Alegando que, apesar de lhe terem entregue a fracção em causa logo que concluída, a 1ª e a 2ª rés nunca chegaram a cumprir a prestação a que se obrigaram, de outorgarem escritura pública de transmissão da propriedade da fracção a favor do autor, invoca o autor a sua aquisição por usucapião, para efeitos de a mesma se sobrepor à hipoteca efectuada a favor da 3ª R., penhoras, e venda efectuada em execução fiscal, esta a favor dos 4ºs. RR.. II - Fundamentando o autor a sua pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre a identificada fracção – e o consequente pedido de cancelamento das inscrições prediais respeitantes a hipoteca, penhora e aquisição dos compradores em execução fiscal – na aquisição por usucapião, encontramo-nos perante uma acção real, a intentar no tribunal da situação do imóvel. (Sumário da Relatora | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção): I. RELATÓRIO A (…) instaura a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra: · A (…), S.A.; · B (…), S.A., · Banco (…), S.A., · B e mulher, C; · Estado Português, representado pelo Ministério Público, alegando, em síntese: por escritura de 23.09.1942, o pai do autor e E, compraram o prédio rústico id. no art. 1º, da p.i., prédio que veio a registado na CRP com a descrição referida no art. 9º da p.i.; o pai do A. faleceu a 14.06.1969, deixando como seus únicos herdeiros legais, o seu cônjuge, o ora autor e o seu irmão F; por escritura de 09.01.1989, o A., a sua mãe e o seu irmão F compraram aos herdeiros de E, a outra metade indivisa do identificado prédio; desde 13.01.1989, que a propriedade de tal prédio rústico, se encontra registada a favor do A., sua mãe, G, e seu irmão, F; em 16.08.1994, o A., a sua mãe e o seu referido irmão, por escritura pública, entregaram a propriedade do prédio em questão à 1ª Ré, então designada por “ (…), S.A.”, atribuindo-lhe o valor de 126.000.000$00; em contrapartida, ficou, na mesma escritura, convencionado receberem da 1ª ré: a) 50.000.000$00, no acto da celebração daquela; b) 40.000.000$00, a pagar em quatro prestações semestrais de 10.000.000$00; c) 36.000.000$00, através da transmissão para o A. e para o seu irmão F, de um apartamento tipo T2 para cada um, no valor unitário de 18.000.000$00, a serem construídos no empreendimento que aquela ré se propunha construir no prédio objecto do contrato; a referida Ré registou a aquisição de tal prédio a seu favor em 19.05.1995; porque a 1ª Ré pretendia vender à 2ª Ré, (…), S.A., o imóvel id. nos arts. 1º e 9º, o A. e o seu irmão, por si e na qualidade de representantes da sua mãe, celebraram com a 1ª Ré um acordo pelo qual aceitaram que esta substituísse as obrigações anteriormente assumidas, pela obrigação única de transmitir, livres de quaisquer ónus ou encargos, assim que os mesmos se encontrem concluídos, a propriedade de dois fogos T3, sendo a fracção do Bloco A para o R... e a fracção do Bloco G para o ora A., encontrando-se tais fogos devidamente assinalados na planta anexa; por escritura outorgada a 05.02.2002, a 1ª Ré vendeu à 2ª Ré o prédio id. nos arts. 1º e 9º da p.i., com exclusão das duas fracções autónomas a construir no mesmo, obrigando-se a 2ª Ré a construir e entregar tais fracções ao A. e ao R..., livres de quaisquer ónus e encargos; a 2ª Ré construiu no prédio id. nos arts. 1º e 9º, um edifício para habitação constituído em propriedade horizontal e que obteve a respectiva licença de utilização a 29.11.2004; logo que o imóvel foi concluído, o A. ocupou a fracção “AN”, aí estabelecendo a sua casa de família e ocupou também dois lugares de garagem; o autor por si e antepossuidores praticou, desde 13.09.1942, actos de posse sobre o prédio rústico onde foi construído o mencionado edifício, e a partir de 29.11.2004, passou a praticar actos de posse sobre a identificada fracção e lugares de estacionamento, invocando a sua aquisição por usucapião; a 11.08.2008, foi-lhe comunicado pelo Serviço de Finanças de ... que tinha o prazo de cinco dias para restituir a posse com a consequente entrega da fracção AN pelo facto de a mesma ter sido adquirida por A... em processo de execução fiscal; na sequência de tais factos, o autor obteve certidão da sua fracção, tomando conhecimento das seguintes inscrições: a) registo de hipoteca voluntária, através da Ap. 16 de 2005.08.02, a favor do 3º R. Banco (…); b) registo de penhora, através da Ap. 5 de 2007.10.29, a favor da Fazenda Pública; c) registo de outra penhora, através da Ap. 22 de 2007.11.26, a favor da fazenda Pública; d) aquisição a favor do referido D, por compra em processo de execução fiscal; tendo o autor adquirido tal fracção por usucapião, a hipoteca, penhoras e compra e venda descriminadas devem ser declaradas ineficazes relativamente à fracção AN; a 2ª Ré nunca outorgou escritura pública de transmissão da propriedade da mesma a favor do Autor, e em virtude de ter deixado prosseguir a venda em execução fiscal, já o não poderá fazer; a 1ª e a 2ª Rés, obrigaram-se, solidariamente, a transmitir ao A. a fracção “AN” livre de quaisquer ónus ou encargos; caso seja considerado que tal fracção se encontra actualmente, na esfera patrimonial deste, mas onerada com a hipoteca actualmente registada a favor do 3º R., Banco (…), deverá a expurgação de tal ónus ser suportada, em exclusivo por aquelas rés, as quais deverão ser condenadas a entregar ao A. o débito garantido ou o valor nele correspondente à fracção “AN”, acrescido dos montantes respeitantes aos juros vencidos. Em consequência, pede: I – A título principal: 1. Que seja declarado que o A. é o único e exclusivo proprietário da identificada fracção “AN”, por o haver adquirido por usucapião. 2. Que seja declarada a ineficácia, relativamente ao A., da hipoteca a favor do 3º R., das duas penhoras, e da compra e venda em processo judicial, a favor do 4º R., na parte em que incidam sobre a identificada fracção; 3. Que seja declarada a inoponibilidade ao A. das inscrições efectuadas na CRP relativamente aos actos id. em 2. 4. Que seja ordenado o cancelamento das inscrições prediais que se fundaram nas apresentações enunciadas no ponto anterior, relativamente à fracção AN. 5. Que todos os RR. sejam condenados a reconhecer o que vem pedido nos antecedentes pontos, e a absterem-se da prática de quaisquer actos que perturbem a posse e o direito de propriedade do A. sobre a referida fracção. II – A título subsidiário, para o caso de não procede o pedido formulado em I: 1. Que seja declarado que a 1ª Ré se obrigou a entregar ao A., como contrapartida do reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio id. nos arts. 1º e 9º, uma fracção autónoma, com as características aí referidas; 2. Que seja declarado que a 2ª R. assumiu a obrigação descrita no no nº anterior, obrigando-se ao seu cumprimento. 3. Que as 1ª e 2ª Rés sejam condenadas solidariamente: a) no pagamento ao A. de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do seu incumprimento, a liquidar em sede própria; b) caso seja considerado que tal fracção “NA se encontra actualmente na esfera patrimonial deste, mas onerada com a hipoteca registada actualmente a favor do Banco (…), deverão as 1ªs. e as 2ªs. Rés ser condenadas a entregar ao autor o débito garantido ou o valor nele correspondente à fracção “AN”, acrescidos dos montantes relativos a juros vencidos e vincendos, até pagamento integral. Todos os Réus apresentaram contestação, excepcionando o R. Estado Português, a incompetência territorial do tribunal, pelo facto de na cláusula 12ª do contrato celebrado com a 1ª se ter estipulado que o foro da comarca de Lisboa é o competente para O autor replicou, invocando a nulidade de tal cláusula por falta de forma, sendo que, o foro competente para o litígio é o tribunal na situação do bem, concluindo pela improcedência da excepção de incompetência territorial. Foi proferido despacho saneador que, julgando procedente a excepção de incompetência em razão do território, determinou o envio do processo às varas Cíveis de Lisboa. Inconformado com tal decisão, o Autor interpôs recurso de apelação, concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões: 1. O Recorrente na réplica, defendendo-se da excepção dilatória de incompetência territorial deduzida pelo estado Português, suscitou, além do mais, as seguintes questões, a propósito da questão jurídica “competência territorial”: a) nos termos do art.º 100º n.º 1 do CPC, o acordo para afastar as regras da competência em razão do território deve satisfazer os requisitos de forma do contrato, fonte da obrigação; b) no caso sub judice a fonte da obrigação deriva da celebração de uma escritura pública; c) no entanto, a designação do foro competente encontra-se aposta num simples documento particular; d) logo, não estão preenchidos os requisitos de validade formal para que tal convenção se considere válida; e) sempre tendo que se considerar que tal cláusula é nula; f) e que o foro competente para a resolução do litígio é o Tribunal Judicial de ... – foro da situação do bem (art.º 73º, n.º 1 do CPC). g) caso assim não se considere, sempre teria também de se ter em conta que a resolução do litígio no Tribunal Judicial de Lisboa, causaria graves transtornos (económicos e pessoais) ao A.; h) “A nulidade de cláusula de foro convencional poderá verificar-se se ponderado o circunstancialismo de facto em causa, se chegar à conclusão que o foro acordado envolve graves inconvenientes para uma das partes” (Ac. da Relação de Lisboa de 14/03/2002: JTRL00040581/ITIJ/Net); i) por tudo o que anteriormente ficou enunciado, deve o Tribunal Judicial de ..., ser considerado como territorialmente competente. 2ª- Na decisão proferida em 25/08/2010, a Exma. Mma. Juiz a quo, em violação do disposto no art.º 660º, n.º 2 do CPC, não se pronunciou sobre qualquer uma dessas questões fundamentais suscitadas, abstendo-se do seu conhecimento. 3ª- A Douta Sentença recorrida encontra-se, assim, inquinada de nulidade, a qual aqui se argui, por falta de pronúncia sobre questões que deveriam ter sido apreciadas - art.º 668º, n.º 1 al. d) do CPC. 4ª- Nessa Sentença, a Exma. Mma. Juiz a quo considerou que: 4ª.1- “malgrado o pedido formulado a título principal ser o do reconhecimento do seu direito de propriedade por usucapião, a causa de pedir é o incumprimento do contrato identificado supra pelas 1ª e Ré sendo nesse contrato que o Autor ancora o direito que pretende fazer valer” (fls 3, linhas 9 a 11) e ainda que 4ª.2- “está em causa o incumprimento definitivo dum contrato de compra e venda” (fls 4, linhas 20 e 21). 5ª- Ora, a causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao pedido (in Manual de Processo Civil, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada). 6ª- Os exactos factos concretos que servem de fundamento ao pedido principal, formulado pelo recorrente na p.i. são os alegados nos art.ºs 1º a 151º desse articulado. 7ª- Deste modo, o recorrente alegou factos concretos que consubstanciam a posse ininterrupta, pública, pacífica e de boa fé, sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...º/ ..., enquanto rústico, do respectivo solo que serviu de base à construção do edifício e, finalmente, da fracção autónoma “AN" neste incorporada. 8ª- Os actos praticados pelo recorrente no prédio identificado na anterior conclusão, integram factos de natureza real e não, obrigacional. 9ª - O pedido principal formulado nos autos assenta, justamente, nessa factualidade. 10ª- Pelo que, outra conclusão não poderá extrair-se do que a de que a causa de pedir que integra os presentes autos, assenta, a título principal, no direito real de propriedade, reivindicado pelo A, e não no incumprimento do alegado contrato. 11ª- Ao decidir pela declaração de incompetência territorial do Tribunal a quo, sustentando-se o seu entendimento na matéria explanada na cláusula 4ª, a Exma. Mma. Juiz a quo, apreciou erradamente a matéria carreada para os autos. 12ª- Deveria, pelo contrário, ter apreciado e decidido no sentido de que a causa de pedir dos presentes autos tem natureza real e não, obrigacional. 13ª- Ao ter considerado que a causa de pedir assentava, exclusivamente, no incumprimento de um “contrato de compra e venda” e que, por isso, o cerne factual assentava no domínio obrigacional, a Exma. Mma. Juiz a quo, violou o disposto no art.º 73º, n.º 1 e 498º, n.º 4 do CPC. 14ª- Além do pedido principal, o recorrente deduziu um outro, a título meramente subsidiário (este último de carácter obrigacional). 15ª- Ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 87º do CPC, em virtude do que ficou alegado nas antecedentes cláusulas 5ª a 10ª, poderia o recorrente escolher como foro competente o Tribunal Judicial de .... 16ª- A Douta Sentença recorrida violou, nestes termos, o art.º 87º, n.º 2 do CPC. 17ª- Deveria a Exma. Mma. Juiz a quo ter aplicado e interpretado esta norma, por forma a declarar como tribunal competente para apreciação do litígio o Tribunal Judicial de .... 18ª- O documento particular de 30/07/2001, no qual se declarou “para qualquer litígio entre as partes emergente da interpretação deste Aditamento que não possa ser resolvido amigavelmente pela Partes, será competente, com expressa renúncia a qualquer outro, o foro da Comarca de Lisboa” (vide cláusula sétima, ponto 2 do Doc. n.º 4, junto com a p.i.), foi elaborado em alteração a negócio jurídico anterior outorgado por escritura pública. 19ª- A “fonte da obrigação”, in casu, deriva da celebração de uma escritura pública celebrada em 16/08/1994, alterada mediante simples documento particular, em 30/07/2001. 20ª- A determinação do foro competente encontra-se, pois, aposta num simples documento particular, que pretende alterar um negócio jurídico celebrado por escritura pública. 21ª- O acordo quanto à competência territorial não satisfaz, assim, os requisitos de forma do contrato, fonte da obrigação. 22ª – A cláusula sétima, ponto 2 do Doc. n.º 4, junto com a p.i. é nula, por violação do disposto no art.º 100º, n.º 2 do CPC, nos termos do art.º 220º do Código Civil – o que é do conhecimento oficioso do Tribunal, nos termos do art.º 286º do Código Civil. 23ª- De acordo com o disposto no art.º 74º, n.º 1 do CPC, a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ter sido cumprida… 24ª- Nos presentes autos, a obrigação, cujo cumprimento é pedido a título meramente subsidiário, deveria ter sido cumprida no lugar da entrega coisa, ou seja, no lugar onde se encontra situada a fracção “AN” - Rua …, 0000-000 .... 25ª- Ao recorrente assistia a faculdade de “optar” pelo Tribunal Judicial de .... 26ª- Sendo este Tribunal, também deste prisma, competente em razão do território. 27ª- Em consequência, a Douta Sentença recorrida, violou os arts.º 100º, n.º 2 e 74º, n.º 1 do CPC e ainda, 220º e 286º do Código Civil. 28ª- Deveria a Exma. Mma. Juiz a quo ter aplicado e interpretado estas normas, no sentido de: 28ª.1- declarar a nulidade da cláusula sétima, ponto 2 do Doc. n.º 4, junto com a p.i.; 28ª.2- declarar como tribunal competente em razão da territorialidade, o Tribunal Judicial de .... 29ª- A Douta Sentença recorrida deve, assim, ser revogada, devendo ser declarado conforme antecedentes conclusões 1ª a 28ª. O Réu Estado Português apresentou contra alegações. Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do art. 707º, do CPC, há que decidir. II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO. Considerando que as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, as questões a decidir são as seguintes: 1. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos do art. 668º, nº1, al. d), do CPC. 2. Competência territorial do tribunal de .... III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO. 1. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia. O recorrente, na réplica, ao responder à excepção de incompetência territorial deste tribunal, alegou que não se encontrariam reunidos os pressupostos para a validade formal da clausula que designa Lisboa como foro competente, pelo facto da designação do foro se encontrar aposto num documento particular, pelo que tal clausula seria nula, ou caso assim se não considere, sempre haveria que se ter em conta que a resolução do litígio no tribunal judicial de Lisboa causaria graves transtornos (económicos e pessoais) ao A.. Segundo o recorrente, o juiz a quo não se teria pronunciado sobre qualquer uma destas “questões” fundamentais suscitadas, em violação do disposto no art. 660º do CPC, ocorrendo omissão de pronúncia nos termos do art. 688º, nº1, al. d), do CPC. Quanto à primeira questão, o juiz a quo teve tal questão em consideração, ao referir que “A. e Ré celebraram um contrato – por escritura pública[1] – onde declararam, na décima segunda clausula que: “para as questões emergentes deste contrato (…)”, referindo ainda que no aditamento a este contrato voltam a estipular como foro competente o da comarca de Lisboa. Ora, referindo que a clausula que estipula como foro competente o da comarca de Lisboa se encontra inserida na escritura pública, a questão da invalidade por vício de forma derivada de a mesma constar de documento encontra-se necessariamente prejudicada, não tendo o juiz que se pronunciar sobre a mesma. De qualquer modo, o juiz a quo aprecia a questão da validade formal da mesma, referindo-se que tal clausula se encontraria sujeita à forma escrita, forma que foi no caso concreto respeitada. Não se verifica, assim, qualquer omissão de pronúncia quanto à primeira das referidas questões. Quanto à segunda “questão”, constata-se que o juiz a quo não se pronuncia expressamente sobre o argumento de “a resolução do litígio no tribunal judicial de Lisboa causaria graves transtornos (económicos e pessoais) ao A.”, embora implicitamente o rejeite ao referir que foram o autor e a ré que “afastaram as regras da competência territorial, celebrando um pacto de aforamento pelo qual foi estipulado que, em caso de conflito na interpretação e aplicação do contrato seria competente o Tribunal da comarca de Lisboa” e que a “competência fundada na estipulação do pacto é vinculativa para as partes”. De qualquer modo, esta não nos parece configurar uma verdadeira questão que o juiz deva conhecer ao abrigo do disposto no art. 660º, nº2, do CPC, mas um mero argumento aduzido pelo autor em favor da sua tese. “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art. 660º, nº2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado[2]”. Pelo exposto, não se considera verificada a invocada nulidade da sentença por omissão de pronúncia. 2. Competência em razão do território. A jurisprudência e a doutrina são unânimes em considerar que a competência se determina pelo pedido do autor – pela forma como o autor configura a sua pretensão, ou seja, pelo pedido e causa de pedir, tal como vem explicitado na petição inicial[3]. A competência do tribunal afere-se pelo quid disputam (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum), determinando-se pelo pedido do autor: “É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deveriam ser as partes e os termos dessa pretensão. Mesmo quanto a lei, não se atendo pura e simplesmente aos termos em que a acção está deduzida, requer a indagação duma circunstância extrínseca (valor ou situação dos bens pleiteados, domicílio do réu, lugar do contrato ou do facto ilícito, etc.), é através desses termos que há-de saber-se o ponto a indagar[4]”. A competência em razão do território resulta da atribuição a cada tribunal de uma certa circunscrição territorial, situando em cada uma das circunscrições as várias causas através de um elemento de conexão que a lei considera decisivo. Entre os elementos de conexão, relevantes para a determinação da competência territorial, encontram-se o foro do réu, o foro real ou da situação dos bens, o foro obrigacional e o foro sucessório. O Autor fundamenta a sua pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre a id. fracção “AN” e o consequente pedido de cancelamento das inscrições prediais respeitantes à hipoteca, penhoras e aquisição a favor dos compradores na execução fiscal, na aquisição de tal fracção por usucapião. Segundo o juiz a quo, “malgrado o pedido formulado a título principal ser o reconhecimento do seu direito de propriedade por usucapião, a causa de pedir é o incumprimento do contrato id. supra pelas 1ª e 2ª Ré, sendo nesse contrato que o autor ancora o direito que pretende fazer valer”. Ora, é bom de ver que a causa de pedir na presente acção extravasa por completo a apreciação do contrato celebrado por “escritura de compra e venda” 16.08.1994, entre o ora A., a sua mãe e o seu irmão, como 1ºs. outorgantes, e a ora, 1ª ré, como 2ª outorgante. Com efeito, com a presente acção o autor não visa a condenação da 1ª e 2ª rés no cumprimento de qualquer obrigação emergente de tal contrato e respectivo aditamento. O autor pretende que lhe seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre a referida fracção, não pelo facto de o mesmo lhe ter sido transmitido por qualquer contrato, mas apesar de tal transmissão não ter ocorrido – embora pelo contrato celebrado a 16.08.1994, a 1ª Ré se tenha obrigado a transmitir para o ora Autor a propriedade de um apartamento tipo T2 (como pagamento parcial do preço do prédio rústico que através de tal escritura declararam vender à Ré), obrigação esta posteriormente assumida pela 2ª Ré, e de ter entregue tal fracção ao Autor em Novembro de 2004, a 2ª Ré nunca chegou a outorgar a escritura pública de transmissão da propriedade da mesma a favor do autor. E, com a presente acção, o autor não pretende a condenação das rés a celebrarem a escritura em falta (aliás, note-se que, a título principal, o autor acaba por não deduzir qualquer pretensão quanto a tais rés). O que o autor pretende é que lhe seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre tal fracção, apesar de tal escritura nunca ter sido celebrada, invocando uma forma originária de aquisição, a usucapião. A causa de pedir na presente acção é a invocada situação de posse sobre a identificada fracção, exercida por si antepossuidores, primeiramente sobre o prédio rústico id. nos arts. 1º e 9º da p.i., e, posteriormente, sobre a fracção que lhe veio a ser entregue, pelo tempo necessário à sua aquisição por usucapião[5]. Com a presente acção, o autor visa fazer valer o seu alegado direito de propriedade, que terá adquirido pela via da usucapião, não contra essas rés, mas contra terceiros alheios aos contratos celebrados entre o autor e as 1º e 2ª Rés, fazendo prevalecer o seu alegado direito de propriedade sobre a hipoteca registada a favor do 3º R. Banco (…), sobre as penhoras e a venda efectuadas em execução fiscal (venda esta efectuada a favor dos 4ºs. RR.). A presente acção tem por objectivo ou fim imediato o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a identificada fracção, sendo as demais pretensões do autor – inoponibilidade das inscrições efectuadas no registo contra esse direito e a abstenção da prática de quaisquer actos que perturbem tal direito –, uma mera consequência do reconhecimento de tal direito de propriedade, enquanto direito absoluto, com eficácia erga omnes. Encontrar-nos-emos, assim, sem dúvida, perante uma acção real, cuja causa de pedir reside no facto jurídico de que deriva o direito real – nº4 do art. 498º do CPC – ou seja, nos factos jurídicos concretos constitutivos do seu direito. Na definição de Dias Ferreira, “são reais todas as acções que derivam quer da propriedade perfeita quer dos diferentes elementos que a constituem e que tem por objecto o direito à coisa sem obrigação pessoal por parte do réu. A acção pessoal tem por objecto exigir o cumprimento de uma obrigação que pesa directa e imediatamente sobre o réu[6]”. Como refere Anselmo de Castro, “nas acções reais o facto jurídico (de que deriva o direito real) não é simplesmente o acto translativo da propriedade para o autor da acção. Por definição, a acção real, de que é paradigma a reivindicação, supõe que nenhum vínculo pessoal liga o autor ao réu, por força do qual, e independentemente de a propriedade da coisa pertencer ou não autor, lhe incumba a obrigação de restituir ou entregar. Sendo assim, o acto translativo em si mesmo não é título que se imponha ao réu mas somente na medida em que com os actos translativos anteriores, e em última análise por posse conducente à prescrição, portanto posse durante o prazo necessário, invistam o autor no direito de propriedade ou domínio invocados[7]”. Para as “acções reais”, o art. 73º, do CPC, estabelece o critério do forum rei sitei, foro da situação dos bens: “Devem ser propostas no tribunal da situação dos bens as acções referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis, as acções de divisão de coisa comum, de despejo, de preferência e de execução específica sobre imóveis, e ainda as de reforço, redução ou expurgação de hipotecas”. O nº1 do art. 73º sujeita ao foro da situação dos bens, as acções que digam respeito a direito reais sobre imóveis, a acção de despejo (que não diz respeito a direitos reais), e ainda algumas outras que, respeitando a direitos reais sobre imóveis o legislador achou por bem enumerar especificadamente (acções de divisão de coisa comum, de preferência e de execução específica sobre imóveis) e ainda outras acções não imobiliárias, como as de reforço, redução ou expurgação de hipotecas). Anselmo de Castro, num esforço para delimitar o âmbito de aplicação de tal norma, uma vez que remete para o conceito de “acções relativas a direitos reais sobre imóveis”, afirma: “Ao referir-se a acções imobiliárias, lei teve em vista naturalmente aquelas em que há aderência do seu objecto ao imóvel ou móvel em causa. Não serão, portanto, acções reais as que nada tenham a ver, em si mesmo, com eles, visando antes o cumprimento de uma obrigação, ou que tenham na sua base uma qualquer obrigação que a eles respeite. Protótipo da acção real é a de reivindicação, em que, como já notámos, se pretende efectivar o direito à entrega de uma coisa, com base no direito de propriedade sobre ela, sem que medeie ou se invoque qualquer relação obrigacional entre reivindicante e reivindicado[8]”[9]. Em sentido semelhante se pronuncia Gonçalves Salvador, segundo o qual se integram na categoria de acções reais aquelas em cuja base esteja o domínio ou a titularidade de um direito real, sem que haja qualquer vínculo pessoal entre o autor e o réu que a acção se proponha efectivar[10]. Encontrando-se assente que, no caso em apreço, nos encontramos perante uma acção referente a direitos reais sobre imóvel, o tribunal competente será o da situação do imóvel em causa, por força do art. 73º, regra esta de carácter imperativo. E, como tal, torna-se irrelevante a existência da referida cláusula pela qual as partes intervenientes no contrato celebrado a 16.08.94, e no respectivo aditamento, convencionaram o foro da comarca de Lisboa para “as questões emergentes de tal contrato”. Ou seja, não se discutindo na presente acção, pelo menos a título principal, qualquer questão emergente de tal contrato e respectivo aditamento, tal clausula não se aplicará à presente acção, pelo que não haverá que proceder à apreciação da questão da (in)validade da mesma, suscitada pelo autor nas suas alegações de recurso. Será assim de proceder o recurso interposto pelo autor, reconhecendo-se a competência territorial do tribunal de judicial de .... IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e reconhecendo-se a competência do Tribunal das ... para conhecer da presente acção. As custas do incidente bem como as do recurso, serão suportadas pelo Estado Português. IV – Sumário elaborado nos termos do art. 713º, nº7, do CPC. 1. Alegando que, apesar de lhe terem entregue a fracção em causa logo que concluída, a 1ª e a 2ª rés nunca chegaram a cumprir a prestação a que se obrigaram, de outorgarem escritura pública de transmissão da propriedade da fracção a favor do autor, invoca o autor a sua aquisição por usucapião, para efeitos de a mesma se sobrepor à hipoteca efectuada a favor da 3ª R., penhoras, e venda efectuada em execução fiscal, esta a favor dos 4ºs. RR.. 2. Fundamentando o autor a sua pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre a identificada fracção – e o consequente pedido de cancelamento das inscrições prediais respeitantes a hipoteca, penhora e aquisição dos compradores em execução fiscal – na aquisição por usucapião, encontramo-nos perante uma acção real, a intentar no tribunal da situação do imóvel. Lisboa, 22 de Março de 2011 Maria João Areias Luís Lameiras Roque Nogueira ----------------------------------------------------------------------------------------- [1] Na sentença, a expressão “escritura pública” encontra-se em “bold” ou “negrito”, e com uma nota de rodapé a remeter para o art. 14º da petição inicial. [2] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado, Vol.2, 2ª ed., pag. 684. [3] Cfr., entre outros, José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2ª ed., Coimbra Editora, pag. 136, nota 4 ao art. 64º, e Acórdão do TRC de 02-03-2010, disponível in http://www.dgsi.pt.tjrc. [4] Manuel A. de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1993, Reimpressão, pag. 91. [5] Questão diferente, e que não será de apreciar nesta fase por respeitar ao mérito da acção, será a da legitimidade da invocação da posse exercida sobre o prédio rústico para efeitos de a somar à posse por si posteriormente exercida sobre a fracção. [6] Cfr., Código de Processo Civil Anotado, I, pag. 5. [7] Cfr., “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. I, Almedina, 1981, pag. 208. [8] “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. II, Almedina, 1982, pag. 67. [9] Já não será real, não obstante o seu objecto vir a ser eventualmente a entrega de um imóvel, a acção em que o comprador demande o devedor a fim de obter a entrega da coisa comprada, ou a acção de anulação de venda de um imóvel, em que a obrigação de devolução do imóvel resulta do relação obrigacional agora desfeita – cfr., neste sentido, Anselmo de Castro, “Direito Processual (…) Vol. II, pag. 68; e, no sentido de que o art. 73º não se aplica às acções de declaração de nulidade ou de anulação de contratos reais relativos a imóveis, para os quais vigora a norma geral do art. 85º, cfr., José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2ª ed., Coimbra Editora, pag. 151. [10] Cfr. Revista dos Tribunais, Ano 80, pag. 66. |