Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3366/11.3TCLRS.L1-6
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
APREENSÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Nas causas a que se refere a segunda parte do n.º 1 do artigo 74.º CPC, a opção do tribunal em que é proposta a acção ou procedimento cautelar efectuada pelo requerente não pode ser oficiosamente sindicada pelo tribunal, ainda que a opção não se quadre no quadro traçado pelo legislador.
(Da responsabilidade da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório

A - Banco, S.A., com sede em Lisboa, intentou contra B , Lisboa ….. Unipessoal, Ld.ª., com sede em ..., procedimento cautelar de entrega judicial, nos termos do disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de Junho, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro, e dos artigos 381.º e seguintes do CPC, pedindo se decrete a entrega judicial do veículo de matrícula 00-00-00, com posterior antecipação do juízo sobre a causa principal.
Alegou, para tanto e em síntese, que celebrou com a Requerida um contrato de locação financeira relativo ao veículo automóvel supra referido, o qual lhe foi entregue, não tendo a Requerida pago as rendas que se venceram em 2008.11.02, 02.12.2008.12.02 e entre 2009.02.02 a 02,05. 2010.05.02, o que o levou a resolver tal contrato e a pedir o cancelamento do registo do ónus de locação financeira, não tendo, contudo, a Requerida procedido entrega do veículo ao Requerente.
Foi proferida sentença julgando o 5.º Juízo Cível do Tribunal de Loures incompetente em razão do território para conhecer do procedimento cautelar, considerando para tal competentes os Juízos de Média Instância Cível da Comarca da Grande Lisboa Noroeste.
Inconformada, apelou a Requerente, formulando as seguintes conclusões:
1 - Dispõe o n° 1 do art. 100° do C.P.C. que "'As regras de competência em razão da matéria, da hierarquia, do valor e da forma de processo não podem ter afastadas por vontade das partes; mas é permitido a estas afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território, salvo nos casos a que se refere o art. 110°"
2 - Por seu lado refere o n° 1 do art. 110° do C.P.C. que "A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes: a) Nas causas a que se referem os artigos 73°, a primeira parte do n° 1 e o n° 2 do art. 74°, os artigos 83°, 88° e 89°, o n° 1 do artigo 90°, a primeira parte do n° 1 e o n° 2 do artigo 94°; (...)"
3 - Os presentes autos dizem respeito a um procedimento cautelar para entrega judicial de bem, nos termos do n° 1 do art. 21 ° do Decreto-Lei n° 149/95, de 24 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei 30/2008, de 25 de Fevereiro, o qual estatui que, findo o contrato por resolução e o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente e que são subsidiariamente aplicáveis a esta providência, as disposições gerais sobre providências cautelares previstas no Código de Processo Civil.
4 - Nos termos exarados na alínea c) do n° 1 do art. 83° do C.P.C. para este procedimento cautelar será competente o tribunal em que deve ser proposta a acção respectiva.
5 - Perante o disposto no n° 1 do art. 74° do CPC. a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento deve ser proposta no tribunal do domicílio do réu.
6 - Porém, alude a 2.ª parte do n° 1 do mesmo normativo, que o credor pode optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicilio na mesma área metropolitana.
7 - Na situação vertente, a requerida trata-se de uma pessoa colectiva e a requerente manifestou no seu requerimento inicial, a opção pelo tribunal do lugar do cumprimento da obrigação, isto nas instalações da Requerente sita no Edifício ….S.Julião do Tojal, sendo por isso competente o Tribunal da Comarca de Loures.
8 - Ao ser aplicável ao caso concreto o n° 1 do artigo 74° ex vi artigo 83°, n° 1, alínea c), ambos Código de Processo Civil, pode a Requerente usar a prerrogativa da segunda parte do referido n° 1 do artigo 74° do Código de Processo Civil, o que fez como resulta do teor do seu artigo 15° conjugado com o art° 30° do requerimento inicial.
9 - Não tem razão o Exm° Sr. Dr. Juiz a o quando refere que das condições gerais do contrato "não se vislumbra a existência de qualquer cláusula relativamente ao local de entrega do veiculo em caso de resolução".
10 - Pode ler-se na cláusula décima sexta que:"em caso de resolução nos termos dos números anteriores a Locadora terá direito: a) à restituição imediata do BEM LOCADO, em lugar por si indicado, correndo os encargos e risco de operação de restituição, nomeadamente o Seguro, por conta do LOCATÁRIO (...)." (sublinhado nosso).
11 - O local indicado pela Requerente para entrega do veículo, na carta de resolução, foi o Edifício …..São Julião do Tojal.
12 - Estão reunidos todos os requisitos contidos no n° 1 do art. 74° do CPC pelo que o Requerente pode optar pelo tribunal do lugar onde a obrigação deveria ser cumprida, ou seja, o Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Loures.
13 - Ao decidir como decidiu, o Exm° Sr. Dr. Juiz a quo violou as normas constantes dos artigos 74°, n° 1 ex vi artigo 83°, 100° e 110° n° 1 alínea a), todas do Código de Processo Civil.
Nestes termos, e nos mais de direito, deite dar-se inteiro provimento ao presente recurso e, por via dele, revogar-se tal despacho, determinando a sua substituição por outro que ordene que o Tribunal competente para os presentes autos é o Tribunal de Família e Menores e da Comarca de Loures, coma é de inteira JUSTIÇA.
2. Fundamentos de facto
Tratando-se de decisão liminar, os factos relevantes são os que constam do relatório.
3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684.º, n.º 3, e 685.º A, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º, n.º 2, in fine).
No caso vertente, embora a apelante não tenha questionado o conhecimento oficioso da incompetência em razão do território, a apreciação desta questão precede à da determinação do tribunal competente.
Na sentença recorrida, o Mm.º Juiz a quo declinou a competência por entender ser competente o tribunal da sede da Requerida, e não o local em que o veículo deveria ser entregue, por não se vislumbrar a existência de cláusula relativamente à entrega do veículo em caso de incumprimento.
Entende a Requerente que, sendo pessoa colectiva e tendo manifestado no requerimento inicial a opção pelo tribunal do cumprimento da obrigação, i.e., as suas instalações sitas em S. Julião do Tojal, Loures, é este o tribunal competente.
A questão a apreciar é prévia à que se discute nas alegações, pois a discussão apenas fará sentido se a incompetência territorial for do conhecimento oficioso, como entendeu o Mm.º Juiz a quo, sob a invocação do artigo 110.º, n.º 1, alínea a) e b) CPC.
No caso vertente importa, pois, determinar se a escolha do tribunal territorialmente competente feita pelo Requerente pode ser oficiosamente sindicada.
A questão ter de ser equacionada em função dos artigos 110.º e 74.º CPC, que tiveram a sua redacção alterada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril.
Este diploma estabeleceu no seu artigo 6.º uma norma transitória de acordo com a qual aplicava-se apenas às acções e requerimentos de injunção instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor.
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 12/2007, de 2007.10.18, Salvador da Costa, www.dgsi.pt.stj, proc. 07B2775, esclareceu que «As normas dos artigos 74º, nº 1 e 110º, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil, resultantes da alteração decorrente do artigo 1º da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, aplicam-se às acções instauradas após a sua entrada em vigor, ainda que reportadas a litígios derivados de contratos celebrados antes desse início de vigência com cláusula de convenção de foro de sentido diverso.»
Dispõe o artigo 110.º, CPC, na redacção introduzida pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, sob a epígrafe «conhecimento oficioso da incompetência relativa», no seu n.º 1 que a incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes:
a) Nas causas a que se referem o artigo 73.º, a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 74.º, os artigos 83.º, 88.º e 89.º, o n.º 1 do artigo 90.º, a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 94.º;
b) Nos processos cuja decisão não seja precedida de citação do requerido.
Não se afigura que a alínea b) seja aplicável ao caso dos autos.
Como referem Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1.ª edição, pg. 203,
«A alínea b) reporta-se aos processos em que não há contraditório prévio à decisão (ou providência executiva), o que hoje só pode ter aplicação em eventual processo que o preveja (art. 3-2) e ainda na acção executiva com processo sumário, fundado em título extrajudicial (art. 1.º do Decreto-Lei 274/97, de 8 de Outubro), uma vez que quer as providências cautelares de restituição provisória de posse (art. 394), arresto (art. 408-1) e outras em que a audiência do requerido poria em risco sério a sua finalidade ou eficácia (art. 385-1), quer a acção executiva com processo sumário, fundado em sentença (art. 925), estão já previstas na alínea a).»
Resta a alínea a).
Nos termos do artigo 83.º, alínea c), CPC, é competente para a apreciação do presente procedimento cautelar o tribunal em que deva ser proposta a acção respectiva.
Somos assim remetidos para o artigo 74.º, n.º 1, CPC, na redacção introduzida pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, que dispõe que a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana.
Recorde-se que, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 100.º, CPC, na redacção introduzida pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, a incompetência em razão do território é do conhecimento oficioso nas causas a que se refere a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 74.º CPC, na referida redacção supra referida.
Assim, a 1.ª parte do artigo 74.º CPC — a que permite o conhecimento oficioso da incompetência em razão do território — estabelece para os casos de resolução do contrato o foro do domicílio do réu.
Esta regra, no entanto, comporta duas excepções, bastando a verificação de uma delas para estar vedado o conhecimento oficioso da excepção de incompetência em razão do território:
— quando o réu seja pessoa colectiva; ou
— quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana.
Nessas situações, que integram a segunda parte do n.º 1 do artigo 74.º CPC — a que não permite o conhecimento oficioso da incompetência em razão do território — o credor pode optar pelo tribunal em que a obrigação deveria ser cumprida, em alternativa ao domicílio do réu.
Os municípios integrantes da área metropolitana de Lisboa, nos termos do anexo I da Lei 46/2008, de 27 de Agosto, por força do n.º 3 do seu artigo 1.º são os seguintes: Alcochete, Almada, Amadora, Barreiro, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Moita, Montijo, Odivelas, Oeiras, Palmela, Seixal, Sesimbra, Setúbal, Sintra e Vila Franca de Xira.
Requerente e Requerida têm domicílio na área metropolitana de Lisboa, pois as suas sedes se situam respectivamente nos municípios de Lisboa e Sintra.
Daqui resultam três consequências relevantes para a apreciação do recurso:
1.ª— será válida a convenção de foro se observados os requisitos enunciados no artigo 100.º;
2.ª — não havendo foro convencional, o Requerente poderá optar entre o foro do domicílio da Requerida e o foro do local onde a coisa se encontrava ao tempo da celebração do negócio (artigo 773.º, n.º 1, CC — entrega de coisa móvel —ex vi artigo 83, alínea c), CPC).
3.ª — em qualquer caso não pode o juiz conhecer oficiosamente da incompetência em razão do território.
E não pode de todo, mesmo se o Requerente optar por um tribunal que não se ajuste a nenhum dos critérios legalmente estabelecidos.
A eventual desconformidade entre o foro eleito e aquele que decorre da lei ou de convenção apenas pode ser conhecido se for suscitada pela parte contrária.
Neste sentido refiram-se os acórdãos da Relação de Lisboa, de 2010.05.20, Ondina Carmo Alves, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 6689/09; e da Relação do Porto, de 2009.07.07, Canelas Brás, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 826/07.4TJVNF.
«Está, assim, fora desse conhecimento oficioso precisamente o nosso caso, previsto na segunda parte do n.º 1 do artigo 74.º. É que a mencionada primeira parte desse n.º 1 estende-se até à expressão “é proposta no tribunal do domicílio do réu”, a partir daí começando a 2.ª parte do preceito, reportada às opções que o legislador concedeu ao credor por outros tribunais que não o do domicílio do réu. E em relação a essas opções que foram concedidas ao credor é que não pode haver conhecimento oficioso da incompetência territorial (pois que se a lei entendeu deixar a questão à liberdade do credor, não poderá o Tribunal meter-se nisso sem que o devedor suscite o problema e, só depois, apreciar se tais opções foram, caso a caso, bem ou mal escolhidas pelo credor)».
Não podia, pois, o Mm.º Juiz a quo ter conhecido da incompetência em razão do território.

4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação procedente, declaro o 5.º Juízo Cível do Tribunal de Loures competente em razão do território para julgar o presente procedimento cautelar.
Sem custas.

Lisboa, 30 de Junho de 2011

Márcia Portela
Fernanda Isabel Pereira
Manuela Gomes