Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10780/2007-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
ALIMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2007
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: Deve ser fixada uma pensão de alimentos a cargo dos pais do menor, apesar da ausência de elementos factuais respeitantes à situação pessoal e profissional destes, sendo mesmo desconhecido o seu paradeiro.
GF
Decisão Texto Integral: DECISÃO LIMINAR:
1.
O Digno Curador de Menores intentou a presente acção, em representação e no interesse da menor [Ana] contra seus pais, [Jorge] e [Rosa], visando a regulação do exercício do poder paternal daquela menor, alegando, em síntese, que a mesma é filha dos requeridos, os quais não são casados entre si. São ambos dependentes do consumo de estupefacientes, designadamente, cocaína e heroína, estão desempregados e em processo de cura de desintoxicação da toxicodependência em Espanha, não revelando possuir capacidades, nem condições para cuidar, proteger e educar a filha, a qual vive, por isso, desde finais de 2003 ou inícios de 2004, com a sua avó paterna, [Maria], em cujo agregado se integrou adequadamente, prestando-lhe esta os cuidados necessários ao seu harmonioso desenvolvimento físico e psicológico.

Conclui, no sentido da menor ser confiada à guarda e cuidados da sua avó paterna, devendo os pais ser condenados a prestar-lhe alimentos.

A conferência de pais não se realizou por falta dos Requeridos, cujo paradeiro se não apurou, tendo sido citados editalmente. Tomaram-se, entretanto, declarações à avó paterna da menor.

Solicitou-se, posteriormente, a realização de inquérito à avó paterna da menor, não tendo sido possível realizar inquérito à pessoa dos Requeridos, por virtude dos mesmos se encontrarem ausentes em parte incerta.

O Digno Curador de Menores emitiu o “Parecer” de fls. 89-90.
Seguidamente, foi proferida sentença, tendo-se decidido regular o exercício do poder paternal relativo à menor [Ana] nos seguintes termos:
a) - A menor fica entregue à guarda e cuidados de sua avó paterna, que sobre ela exercerá em exclusivo o poder paternal;
b) – O poder paternal residual sobre a menor será exercido pela sua progenitora.
c) – No caso dos pais da menor decidirem reaparecer na sua vida e pretenderem reiniciar convívios com a filha poderão visitar e conviver com a menor, combinando previamente essas visitas e convívios com a avó paterna da criança com uma antecedência mínima de 24 horas, decorrendo essas visitas na habitação daquela avó e sem prejuízo dos horários de descanso e de repouso da menor;
d) – Os pais da menor não poderão retirá-la do interior da habitação da avó paterna da criança sem autorização de [Maria].

Discordando da sentença por não haver condenado os progenitores a pagarem uma pensão alimentícia à menor, recorreu o Digno Curador de Menores, formulando as seguintes conclusões:
1ª - É dever dos pais proverem o sustento dos seus filhos, quer exerçam o poder paternal quer estejam inibidos de o fazer, pelo que a sentença que regula o exercício do poder paternal não pode deixar de fixar a prestação de alimentos por eles devidos sob pena de os descartar dessa sua responsabilidade.
2ª - O critério dos “meios do obrigado”, para fixação da prestação de alimentos, previsto no artigo 2004º n.º 1 do Código Civil, consiste apenas num aspecto a considerar a par das necessidades do alimentando, não sendo necessário tal conhecimento para a fixação dos alimentos, cujo critério deve obedecer ao superior interesse da criança.
3ª - As possibilidades dos pais para alimentarem os seus filhos, por modestas que sejam, partirão sempre de um patamar acima de zero, competindo-lhes a natural obrigação de tudo fazerem para garantir aos filhos o máximo que estiver ao seu alcance, considerando o conteúdo do poder paternal, pelo que deve ser este o ponto de partida para a fixação de alimentos nos casos de desconhecimento da situação económica.
4ª - Verificando-se que a capacidade alimentar dos pais se mostra insuficiente ou relapsa, cabe ao Estado substituir-se-lhes, garantindo aos menores as prestações existenciais que lhe proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento integral e a uma vida digna.
5ª - Esta preocupação foi expressa na criação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, pela Lei n.º 73/98, de 19 de Novembro, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio.
6ª - No âmbito dos aludidos diplomas, o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegura as prestações alimentícias quando aqueles que foram judicialmente obrigados a prestar não o façam.
7ª - Existindo a preocupação de garantir o direito a alimentos por parte das crianças carenciadas, não poderá haver distinção, no sentido da atribuição de prestações de alimentos, entre as crianças cujas condições económicas dos pais eram conhecidas à data da prolação da sentença de regulação do exercício do poder paternal, daquelas crianças relativamente às quais se desconhecem (ab initio) tais elementos, uma vez que todas carecem de protecção.
8ª - Assim, para a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, e consequente protecção dos menores carenciados, é necessário fixar sempre a prestação de alimentos a cargo dos progenitores a quem a guarda dos filhos não foi confiada.
9ª - Pelo exposto, a sentença recorrida deveria ter fixado a prestação alimentícia a cargo dos progenitores da menor [Ana], sob pena de não ser atendido o superior interesse da menor.
10ª - A menor [Ana] tem necessidades básicas em montante não inferior a € 200 (duzentos euros) mensais, pelo que cada progenitor deverá contribuir com uma prestação alimentar em montante não inferior a € 75 (setenta e cinco euros) mensais.
11ª - Ao omitir a fixação da prestação de alimentos devidos à menor Ana Catarina por parte de ambos os progenitores, a quem a mesma não foi confiada, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 9.º n.º 1, 1874.º, 1878.º n.º 1, 1905.º, 2003.º e 2004.º, todos do Código Civil e 36.º n.º 5, 63.º n.º 3, 67.º n.º 1 e 68.º n.º 1 e 2, todos da Constituição da República Portuguesa.

Não houve contra – alegações.
2.
Na 1ª instância consideraram-se provados os seguintes factos:
1º - [Ana] nasceu em 6 de Dezembro de 2002 e encontra-se registada como filha de [Jorge] e de [Rosa].
2º - [Maria] é avó paterna da [Ana].
3º - Os progenitores da [Ana] não são casados entre si e são ambos toxicodependentes, designadamente de cocaína e de heroína, tendo o progenitor efectuado várias curas de desintoxicação, sem sucesso, padecendo, ainda, a progenitora de epilepsia.
4º - A menor viveu com os seus progenitores até finais de 2003, inícios de 2004, numa casa bastante degradada, sem água quente, caracterizada por falta de higiene e apresentando indícios claros de consumo de droga no seu interior, carecendo a menor de adequados cuidados ao nível da sua alimentação, higiene e repouso.
5º - A partir dessa altura e tendo tomado conhecimento da situação da neta, a sua avó paterna integrou-a no seu agregado familiar onde a [Ana] se mantém a viver desde então, o que mereceu a anuência dos Requeridos.
6º - Em 17 de Novembro de 2005, os Requeridos decidiram integrar um programa de desintoxicação da Associação “Remar”, em Madrid, onde não se encontram seguramente desde 20 de Fevereiro de 2006, desconhecendo-se actualmente qual o seu paradeiro.
7º - Desde 1 de Novembro de 2005 que os Requeridos deixaram de visitar a menor em casa da avó paterna da criança, tendo as visitas que efectuaram até essa altura sido escassas e perniciosas para o equilíbrio psicológico da [Ana], uma vez que, na sequência delas, a criança ficava emocionalmente desestabilizada e sem dormir algumas noites.
8º - A [Ana] possui uma forte relação afectiva com a sua avó paterna, encontra-se bem cuidada e frequenta com assiduidade um equipamento de Infância que, desde Setembro de 2006, é a Cooperativa de Ensino “Os Pioneiros”, o qual assegura o transporte da criança, ida e volta.
9º - Após integrar o agregado da avó paterna, a menor iniciou um acompanhamento pedopsicológico e pedopsiquiátrico, que mantêm, o qual tem ajudado a criança a adquirir quer uma linguagem adequada à sua idade, quer um desenvolvimento cognitivo e emocional considerado normal para a sua idade, de que a mesma carecia quando vivia na companhia dos respectivos progenitores.
10º - O agregado familiar de [Maria] inclui ainda uma filha com 20 anos de idade com quem a [Ana] se relaciona muito bem.
11º - A casa habitada pelo agregado da menor é arrendada e reúne condições de habitabilidade que satisfazem as necessidades do agregado.
12º - A avó paterna da menor trabalha como cozinheira, encarregada de refeitório, auferindo de ordenado mensal € 600, faz alguns biscates a título complementar sem contrato e recebe, ainda, mensalmente, ajuda económica da sua filha, que consigo coabita, no montante de € 200.
13º - [Maria] despende mensalmente € 450 com renda de casa, bem como montante não concretamente apurado com o infantário da menor e despesas com alimentação, vestuário, saúde, transportes e consumos domésticos.
14º - Quando a [Maria] se encontra a trabalhar a menor é recolhida no regresso do infantário por uma tia ou pela bisavó materna.
15º - [Maria] revela um grande envolvimento no processo educativo da neta, quer ao nível afectivo, quer ao nível material, denotando adequadas capacidades parentais.
16º - Por decisão exarada a fls. 22-23, a [Ana] foi provisoriamente confiada à guarda e cuidados de sua avó paterna, a qual sobre ela exerce o poder paternal.
3.
A questão a dirimir é a de saber se deve ser fixada uma pensão de alimentos a cargo dos pais da menor, apesar da total ausência de elementos factuais respeitantes à sua situação pessoal e profissional, sendo o seu concreto paradeiro desconhecido.
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O critério estabelecido pela lei com vista ao cálculo da medida da prestação alimentar, obrigacionalmente devida a menor e por parte dos seus progenitores, é um critério aferido pelas possibilidades daquele que os vai prestar e pelas necessidades do beneficiário da prestação. Com efeito, diz o n.º 1 do art. 2004º do CC que “os alimentos são proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los”. Tudo se deve avaliar, pois, na correlação: possibilidade de quem dá - necessidade de quem recebe.

No que respeita à possibilidade de prestação de alimentos tem ela de abarcar o acervo de todos os rendimentos, qualquer que seja a fonte, lícita, donde dimanem, de modo a abranger não só os rendimentos do trabalho com todos os seus componentes, fixos e variáveis, como até os ganhos de carácter eventual e outros meios de riqueza.

Para se aquilatar da maior ou menor capacidade do devedor de alimentos terá de se tomar em linha de conta não só com os seus meios de rendimento como também com os encargos a que se encontre adstrito, para além daqueles que possam decorrer da própria prestação alimentícia a determinar. Mas tais encargos, obviamente, que carecem de ser hierarquizados de modo a que só sejam tomados em consideração os que se mostrem justificados pelas necessidades de uma condigna subsistência do prestador de alimentos, excluindo-se todos aqueles que promanem de uma obrigação que não possa, ou não deva, prevalecer sobre a obrigação alimentar.

No que respeita ao apuramento das necessidades dos menores, beneficiários e credores da prestação de alimentos, tem de tomar-se em consideração, em face do custo de vida e das coisas, todos os gastos necessários ao desenvolvimento físico e intelectual daqueles, a começar pela alimentação, vestuário e saúde até a uma adequada formação e a um satisfatório aproveitamento das suas faculdades e aptidões.

Acresce que a quantia com que devem ser onerados os progenitores a quem a menor não foi confiada, em princípio, nunca deve ser inferior àquela com que contribuíam, ou deviam contribuir, enquanto a menor estava à sua guarda.

Aliás, tendo a menor ficado a cargo da avó, a quem passaram a ser exigidos todos os cuidados, tarefas e sacrifícios com a assistência e o acompanhamento diários daquela, sempre se justifica que sejam os progenitores a satisfazer as necessidades primárias da menor, por virtude dos laços familiares que os unem.

Uma vez fixada a pensão de alimentos a cargo do progenitor ou progenitores a quem o menor não estiver confiado, de harmonia com os critérios acima descritos, tem aquele(s) de os satisfazer pontualmente, como é regra do cumprimento das obrigações.

E se não o fizer?

Diz o art. 189º da OTM que quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida dentro de dez dias depois do vencimento, proceder-se-á a pagamento das prestações de alimentos vencidas e vincendas, através de desconto no vencimento, ordenado, salário do devedor, ou de rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos e comparticipações que sejam processadas com regularidade.

Como assinala Tomé d’Almeida Ramião, visa-se por este meio a cobrança coerciva da prestação de alimentos, através de procedimento pré - executivo, ou seja, à margem de uma acção executiva e independente dela. Tal procedimento, que pressupõe que tenha sido fixada judicialmente prestação de alimentos e que essa prestação não seja paga dentro de dez dias após o seu vencimento, deve ser suscitado no processo que fixou a prestação de alimentos e que impede, desde logo, o uso da acção executiva e deve, sempre que possível, ser utilizado, por ser mais célere e garantir mais facilmente os interesses do menor (1).

Mas na hipótese de os alimentos devidos ao filho menor não poderem ser cobrados nos termos previstos no art. 189º da OTM, a Lei n.º 75/98, de 19/11 e o Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/5 atribuem ao Estado, através do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a obrigação de garantir esse pagamento, até ao efectivo cumprimento da obrigação pelo progenitor devedor.

Porém, a atribuição das prestações ao abrigo do regime instituído por estes diplomas pressupõe, cumulativamente, para além da impossibilidade da cobrança da prestação nos termos do art. 189º da OTM, estar a pessoa obrigada judicialmente a prestar alimentos a menor que resida em Portugal e que este não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional, nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre. Entendendo-se que o alimentado não beneficia de tal condição quando a capitação de rendimentos do respectiva agregado familiar não seja superior àquele salário.

Na douta sentença recorrida entendeu-se não dever ser fixada qualquer pensão a cargo dos requeridos por se desconhecer se estes possuem qualquer fonte de rendimentos, uma vez que se desconhece o seu paradeiro, sendo certo que ambos são toxicodependentes.


Deste entendimento diverge o Ex.mo Curador de Menores, defendendo que deve ser fixada uma prestação de alimentos a cargo dos pais da menor e parece-nos que é de seguir o seu entendimento.

Com efeito, na regulação do poder paternal, para além de dever determinar-se a confiança e o destino do menor, deverá sempre fixar-se os alimentos e a forma de os prestar, de harmonia com os critérios acima estabelecidos, independentemente da eventual precária situação económica do progenitor ou progenitores a quem o menor não fique confiado.

Antes de mais, não podem ser desresponsabilizados do dever de contribuir para a alimentação da filha pelo simples facto de a sua fonte de rendimentos ser diminuta, pois que os progenitores poderão ter de partilhar os parcos ganhos que aufiram com a satisfação das necessidades da menor, não devendo as dos progenitores prevalecer sobre as daquela, ainda que estas se prendam com a dependência de qualquer droga ou vício.

Em segundo lugar porque sendo a obrigação de alimentos para vigorar para o futuro, é sempre de admitir que a situação financeira dos progenitores se venha a alterar em sentido favorável a estes melhor poderem cumprir a sua obrigação, sendo até de conjecturar que a obrigação imposta incentive os obrigados a lutar pela melhoria da sua condição económica.

Acresce que, como bem refere o recorrente, a não fixação de qualquer prestação alimentar a cargo dos progenitores poderá inviabilizar a possibilidade de eventual intervenção do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores - regulado pela Lei n.º 75/98, de 19/11 e Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/5 - uma vez que para o seu accionamento se exige, para além da verificação de outros requisitos, que a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não o faça.

No caso sub judice verifica-se que os Requeridos são toxicodependentes há vários anos, desconhecendo-se o que fazem neste momento.

Ora, sendo presumivelmente debilitada e contingente a situação económica dos Requeridos não se pode, todavia, “a priori” aceitar que eles não possam, apesar de tudo, contribuir com algo para o sustento da sua filha.

Por outro lado, os Requeridos poderão vir a deixar a situação crítica em que muito provavelmente se encontram e a integrar-se de outra forma na sociedade e no mundo do trabalho de modo a poder mais facilmente cumprir com o dever de contribuir para o sustento e alimentação da menor, pelo que importa que desde já fique definida a sua obrigação, para em qualquer momento até poder ser exigida coercivamente.

Em todo o caso a fixação da pensão é também exigida para a eventualidade de ter de se chamar à intervenção o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, que em bom rigor só se poderá verificar em face da situação de existirem prestações alimentícias em dívida.

A menor [Ana] tem necessidades básicas em montante não inferior a € 200 mensais, pelo que se justifica que cada progenitor deva contribuir com uma prestação alimentar em montante não inferior a € 75 mensais, tal como proposto pelo Ministério Público.

Procedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de alterar em conformidade a decisão recorrida.
|4.
Pelo exposto, na procedência da apelação, altera-se a douta sentença recorrida no sentido de condenar cada um dos Requeridos [Jorge] e [Rosa] a pagar à menor [Ana] uma pensão de alimentos de € 75 (setenta e cinco euros) mensais.

Sem custas.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2007.
Manuel F. Granja da Fonseca
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1 - Vd. autor citado in “Organização Tutelar de Menores”, Reimpressão, pg. 107.