Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2430/2007-1
Relator: ROSÁRIO GONÇALVES
Descritores: FORO CONVENCIONAL
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/13/2007
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1- A Lei 14/06, de 26 de Abril, não pretendeu pôr em causa as situações já constituídas anteriormente, não padecendo de vício de inconstitucionalidade, não pondo em causa qualquer princípio legal, maximé, da adequação, da proporcionalidade e da não retroactividade.
2- A vontade das partes tem que ser aferida pela lex contractus, não podendo a lei adjectiva vir agora pretender a aplicação de algo novo, a uma situação regulada e cimentada pela lei do tempo da sua celebração.
3- O artigo 21º. do Dec. Lei nº. 54/75, de 12 de Fevereiro, constitui uma lei especial e não foi tacitamente nem expressamente revogada por aquela Lei.
4- Assim, mantém-se vigente a norma do artigo 21º. do Decreto-Lei nº. 54/75, de 12 de Fevereiro, sendo competente para a providência requerida, o tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário.
(R.G.)
Decisão Texto Integral: 1- Relatório:
S, SA, instaurou procedimento cautelar contra, M, pedindo que, como preliminar de uma acção declarativa a intentar, se ordene a apreensão da viatura de marca Volvo, modelo S 40, com a matrícula 98-55-NN e respectivos documentos, ao abrigo do disposto no artigo 15º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro.

Prosseguiram os autos, tendo vindo a ser proferido despacho a declarar a incompetência relativa do tribunal, perante a redacção atribuída ao art. 74º., nº. 1 do CPC., pela Lei 14/2006, de 26 de Abril.

Inconformada, recorreu a requerente, concluindo nas suas alegações, em síntese:
- Entendeu o Meritíssimo Juiz a quo que o Tribunal da Comarca de Lisboa não seria o tribunal territorialmente competente, sendo o Tribunal Judicial da Comarca de Fafe, tribunal do domicílio do Requerido, aplicando para o efeito o art. 74.° do CPC, na redacção dada pela Lei n° 14/2006, de 26/04.
- O presente procedimento cautelar para apreensão de veículo foi instaurado ao abrigo do art. 15° do DL n° 54/75, de 12 de Fevereiro, por se encontrar registada na Conservatória de Registo Automóvel a favor da Recorrente a reserva de propriedade sobre a viatura financiada.
- O dispositivo legal a aplicar ao caso sub Júdice para aferição da competência judicial será o DL 54/75 de 12 de Fevereiro, nomeadamente o seu art. 21º.
- A regra de competência plasmada no art. 21º.do referido diploma é especial face à regra geral de competência do art. 74° do CPC e, como tal, prevalece sobre esta.
- O art. 21° do DL 54/75 de 12 de Fevereiro não foi expressamente revogado pela Lei n.° 14/2006 de 26 de Abril, permanecendo em vigor.
-A Lei 14/2006 não apresenta um preâmbulo que esclareça a real intenção do legislador, face a disposições especiais.
- Nenhuma incompatibilidade se verifica entre a nova redacção do art. 74° do CPC e o art. 21° do DL 54/75, de 12 de Fevereiro.
- Como tal, o tribunal territorialmente competente para apreciar o caso sub Júdice é o da sede da proprietária, isto é, da Recorrente, enquanto proprietária reservatária.
- Ademais, na data da celebração do contrato de crédito foi constituído um pacto de aforamento constante da 15ª.cláusula das condições gerais do contrato, o qual estabelece como foro competente a comarca de Lisboa para resolução de todos os litígios emergentes do contrato celebrado.
- E atendendo ao disposto no artigo 100º.do Código de Processo Civil (redacção do art. 110° anterior à entrada em vigor da Lei 14/2006, de 26/04) às partes "...é permitido afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território..."
- Assim, considera a Recorrente o referido pacto de aforamento contido na Cláusula 15° das condições gerais do contrato, junto aos autos, ser perfeitamente válido e eficaz, porquanto foi celebrado em momento anterior à entrada em vigor da Lei n.º 14/2006.
- Mais, no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da irretroactividade da lei, logo, a nova Lei 14/2006, apenas retirou aos sujeitos jurídicos a possibilidade de celebrarem pactos de aforamento, e não que os pactos anteriormente celebrados deixariam de ser válidos, pois que isso atentaria claramente contra a segurança jurídica que subjaz ao referido princípio da irretroactividade da lei, e consubstanciaria que estaríamos perante, não uma aplicação imediata da lei, mas uma aplicação retroactiva da mesma, o que não se aceita nem concebe.

A questão a dirimir assume simplicidade, sendo apreciada nos termos constantes do nº. 2 do artigo 701º. e 705º., ambos do CPC.
2- Cumpre apreciar e decidir:
As alegações de recurso delimitam o seu objecto, conforme resulta do teor das disposições conjugadas dos artigos 660º., nº.2, 684º., 664º., 690º. e 749º., todos do CPC.

A questão a dirimir consiste em aquilatar, qual o tribunal competente territorialmente, para apreciar da providência cautelar de apreensão de veículos, exarada no Decreto-Lei nº. 54/75, de 12 de Fevereiro, perante a entrada em vigor da Lei nº. 14/06, de 26 de Abril.

Com interesse para a decisão mostra-se apurada a seguinte factualidade:
- Os presentes autos foram instaurados em 19-12-2006.
- A requerente, no dia 08/09/2005 celebrou com o Requerido o contrato de financiamento para aquisição de uma viatura de marca VOLVO, modelo S 40, com a matrícula 98-55-NN.
- Como garantia do referido contrato foi acordada e inscrita a favor do mutuante, reserva de propriedade sobre a mencionada viatura.
- A reserva de propriedade encontra-se registada a favor da requerente.
-O Requerido não pagou as prestações convencionadas.

Vejamos:
Face à entrada em vigor da Lei 14/06, de 26 de Abril, que introduziu nova redacção, nomeadamente, à alínea a) do nº.1 do artigo 110º.e nº.1 do art.74º., ambos do CPC., o tribunal territorialmente competente para as acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é o do domicílio do réu, devendo tal competência ser conhecida oficiosamente.
Dispõe ainda o artigo 6º.da citada lei, que a mesma apenas se aplica às acções apresentadas depois da sua entrada em vigor.
Na situação em apreço, a acção foi instaurada em 19-12-06, mas reporta-se a um contrato celebrado em 8/9/2005, onde foi estipulado, além do mais, na cláusula 15ª. do mesmo, um pacto de aforamento, estabelecendo como foro competente para a resolução de todos os litígios emergentes, a comarca de Lisboa.
A competência convencional é a que emerge de uma convenção entre as partes e está sujeita às regras de formação e de validade comum a qualquer contrato substantivo.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa, in, A Competência Declarativa nos Tribunais Comuns, pág. 102, «As convenções sobre competência visam atribuir ou retirar a um Tribunal o julgamento de uma certa questão ou constituir um Tribunal arbitral para apreciação de determinado litígio».
As partes ao negociarem as cláusulas do contrato que celebraram, de igual modo, definiram qual o tribunal que pretendiam, para em caso de litígio ser chamado a apreciá-lo.
Deste modo, será legítimo afirmar que a fixação da competência se fixou com a celebração do acordo, o que era perfeitamente admissível perante a lei então vigente.
Com efeito nos termos constantes do nº. 1 do art. 12º. do C. Civil, a lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
Preceituando, ainda, o seu nº.2 que, quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Ora, a lei aplicável será a vigente ao tempo da conclusão do contrato, mesmo depois da entrada em vigor da lei nova, sob pena de se proceder a uma interpretação retroactiva, violadora do princípio da não retroactividade consagrado no art. 12º., nº. 1 do Código Civil.
Com efeito, quando foi celebrado o contrato dos autos, o artigo 110º. do CPC. não permitia ao tribunal conhecer oficiosamente da incompetência territorial, em acções idênticas.
Sendo a convenção de competência do tribunal válida ao abrigo da lei em vigor ao tempo da sua feitura, a mesma mantém os seus efeitos, já que entendemos que não será essa a ratio da nova lei.
Efectivamente, a Lei 14/06, expressamente refere no seu artigo 6º., que apenas se aplica às acções instauradas ou apresentadas depois da sua entrada em vigor, o que permite concluir que quis excluir claramente da sua aplicação as acções pendentes, bem como, as situações jurídicas anteriormente celebradas, como é a vertente.
Daí que entendamos que a lei não pretendeu pôr em causa as situações já constituídas anteriormente, não padecendo de vício de inconstitucionalidade, não pondo em causa qualquer princípio legal, maximé, da adequação, da proporcionalidade e da não retroactividade.
A vontade das partes tem que ser aferida pela lex contractus, não podendo a lei adjectiva vir agora pretender a aplicação de algo novo, a uma situação regulada e cimentada pela lei do tempo da sua celebração.
Desse modo, o princípio da segurança jurídica e da confiança ficariam gravemente afectados, o que não terá sido de modo algum, a vontade avisada do legislador.
A competência territorial mantém-se, em consequência da validade da cláusula atributiva de foro convencional, não lhe sendo aplicável, a Lei n º. 14/06, de 26 de Abril, contrariamente ao expendido pelo Sr. Juiz a quo.
Também, de igual modo, não concordamos com o despacho recorrido quando afirma que o artigo 21º. do Dec. Lei nº. 54/75, de 12 de Fevereiro foi tacitamente revogada pela mesma Lei.
Ora, tal diploma constitui uma Lei especial.
Não consta da Lei Nova qualquer revogação expressa daquele.
Conforme resulta do disposto no nº. 3 do artigo 7º. do Código Civil, a lei geral não revoga lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.
Com efeito, o que a recorrente pretende é a apreensão de um veículo no âmbito de uma providência cautelar, perante a existência de reserva de propriedade sobre o mesmo e que se encontra devidamente registada.
A questão a apreciar tem uma tramitação específica, com consagração no mencionado diploma especial.
Assim sendo, não se poderá dizer que a Lei nº. 14/2006, de 26/4, tivesse nesta área introduzido qualquer mudança, ou seja, que pretendesse revogar tal diploma, pois, nada disse, sendo certo que se tal pretendesse, deveria tê-lo mencionado.
Destarte, mantém-se vigente a norma do artigo 21º. do Decreto-Lei nº. 54/75, de 12 de Fevereiro, sendo competente para a providência requerida, o tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário, ou seja, Lisboa.
Destarte, assiste razão à recorrente, procedendo as conclusões de recurso.

3-Decisão:
Nos termos expostos, dá-se provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se o prosseguimento dos autos pelo tribunal a quo, dado ser o competente para o efeito.
Sem custas.
Lisboa, 13/3/07
Rosário Gonçalves