Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1124/2006-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: ACUSAÇÃO
REQUISITOS
DELITO FISCAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – A função de informação da acusação é plenamente satisfeita pelo cumprimento do dever de fundamentação (de facto e de direito) desse despacho, como acto decisório que é (artigo 97º, n.ºs 2 e 4, do Código de Processo Penal).

II – Nesse despacho, o Ministério Público ou o assistente, para além de narrarem os factos imputados ao arguido e de satisfazerem os demais requisitos exigidos pelas diferentes alíneas do n.º 3 do citado artigo 283º, devem esclarecer os motivos pelos quais consideram que existem indícios suficientes dos factos que imputam, explicando, no caso de prova indirecta, quais os factos instrumentais que julgam suficientemente indiciados através de prova directa ou de raciocínios dedutivos e quais as inferências indutivas de natureza reconstrutiva que, com base neles, fazem.

III – A narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, a que se refere a alínea b) do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, não se confundindo com um relatório policial sobre as diligências efectuadas no decurso do inquérito, nem sendo um relato do conteúdo das provas recolhidas nessa fase, também não se deve reconduzir a uma narração de factos instrumentais e de regras de experiência em que assentam e se fundamentam juízos indutivos.

IV – A acusação deve conter uma narração dos factos concretos que são imputados ao agente do crime por quem deduz a acusação, narração essa que tem como sujeito o arguido e inclui os factos que integram os elementos objectivos e subjectivos exigidos pela disposição incriminadora que estiver em causa e as demais circunstâncias relevantes referidas no n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa


I – RELATÓRIO

1 – No termo da fase de instrução do processo n.º 11/02.1TELSB, o sr. juiz colocado no Tribunal Central de Instrução Criminal proferiu, em 15 de Dezembro de 2005, o despacho (fls. 269 a 319) que, na parte relevante, se transcreve:

«Questão prévia:
Saber se até Junho de 2001 os crimes fiscais relevavam ou não para o tipo de crime p. e p pelo artigo 299º do CP.
O M.P. enquadrou os factos no crime de associação criminosa p. p. no art. 299º do CP, à data da verificação de parte dos factos, subsumindo-os, a partir de Junho de 2001, ao tipo previsto no art. 89º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
Os arguidos A., B., C., D., E., F. vieram, nos seus requerimentos de abertura de instrução, invocar a não aplicabilidade do artigo 299º do CP com fundamento da relação de especialidade existente entre o direito fiscal e o direito penal comum para, concluindo no sentido de o crime de associação criminosa, p. p. no artigo 299º do Código Penal só poder verificar-se quando a associação se destina à prática de crimes comuns.
A questão não é nova e tem merecido um tratamento diferenciado quer por parte de doutrina quer por parte de jurisprudência.
No sentido da interpretação ampla indicam-se as seguintes posições:
“Comentário Conimbricense do Código Penal”, dirigido por Figueiredo Dias, em anotação ao artigo 299º.
Ali se deixa anotado que é minoritária a posição jurisprudencial que se pronunciou no sentido restritivo da interpretação do art. 299º e que “deve reconhecer-se, por um lado, que muito do que foi e ainda é direito penal extravagante, nomeadamente direito penal económico, ganhou já uma ressonância ética de tal modo profunda e estabilizada que não se vê hoje razão para que não deva integrar o escopo criminoso da associação (pense-se, v. g., no que se passa com a fraude ou o desvio de subvenções, com a fraude de créditos, com o branqueamento de capitais, mesmo com a fraude fiscal)”. Mais se regista naquele comentário que este e outros factores conduziram a que “na última década certos domínios do direito penal económico se tenham tornado no campo por excelência de actuação da criminalidade organizada e sejam mesmo os principais responsáveis pela sua internacionalização ou globalização”.
Mário Dias Gomes, em artigo publicado na Revista do Ministério Público, ano 4º vol. 15, pag. 126, a propósito de algumas reflexões sobre a nova legislação referente às infracções aduaneiras (DL nº 187/83, de 13-05) refere o seguinte: «quanto ao crime de associação criminosa, não havia que tipificá-lo no DL 187/83, pela simples razão de que o mesmo se acha previsto no Código Penal e nenhum motivo válido existia que justificasse um desvio ao princípio da unidade do sistema jurídico-criminal».
Neste mesmo sentido pronunciou-se Eduardo Maia Costa, em parecer publicado na Revista do Ministério Público ano 7º, vol. 26 pag. 149 onde diz: «o crime do artigo 287º do CP abrange as associações que têm por objecto a prática de crimes aduaneiros».
No que concerne às decisões dos tribunais, cumpre referir que esta questão já foi colocada em outros processos e neste tribunal sendo que mereceu sempre o entendimento de considerar a conduta, hoje especialmente prevista como associação criminosa para a fraude fiscal, subsumível no art. 89º da Lei 15/2001, anteriormente integradora já do crime de associação criminosa, previsto de forma geral no art. 299º do CP.
No que concerne aos tribunais superiores, a questão já foi objecto de apreciação quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa quer pelo Supremo Tribunal de Justiça, em sede de apreciação de incidentes de «habeas corpus», tendo obtido sempre a confirmação superior (v., por todos, os múltiplos recursos interpostos no processo n.º 1/2000.9TELSB) Ac. RL de 8-07-2003 tirado do processo 5665/03, da 5ª secção, ac. do STJ de 5-2-2003.
É certo que existem decisões recentes em sentido contrário, mais precisamente do Tribunal da Relação de Guimarães e mesmo do Tribunal da Relação de Lisboa.
Em face destas divergências de interpretação só uma decisão do STJ de fixação de jurisprudência poderá definir a questão por forma a estabelecer-se se uma determinada conduta integra ou não, antes de Junho 2001, o crime de associação criminosa.
Assim e não existindo nenhuma decisão que vincule este tribunal e ponderando a jurisprudência e doutrina supra referidas e considerando o principio da unidade do sistema jurídico-penal entendemos que, antes de Junho de 2001, os crimes fiscais relevam para o escopo criminoso do crime de associação criminosa p. e p. pelo artigo 299º CP, ou seja, tal preceito abrangia as associações que tinham por objecto a prática de crimes fiscais.
Na verdade, entendemos que, com a publicação da Lei 15/2001, de 5 de Junho, e no que se refere ao crime p e p pelo artigo 89º, o legislador teve apenas em mente acabar com a dualidade de regulamentação legal para os crimes fiscais aduaneiros e não aduaneiros.
Em face do exposto, aceita-se a qualificação jurídica feita na acusação.
No que concerne à questão de saber se existem ou não indícios suficientes para pronunciar os arguidos pelo referido crime a questão será apreciada mais à frente no momento em que o tribunal se debruçar sobre essa matéria.

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Da nulidade da acusação
Nos termos do art. 283° nº 3, do CPP, a acusação deverá ser uma narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada, o que no caso dos autos foi satisfeito.
O que o preceito exige é a narração sintética a partir da qual seja definido o objecto do processo por forma a que os arguidos saibam de que devem defender-se, publicitando-se os limites materiais da acusação. Com efeito, a acusação deduzida nestes autos e na parte relativa aos arguidos B., C., D., A. e E.I mostra-se devidamente articulada, com minuciosa apresentação do desenvolvimento factual lógico e cronológico das diversas situações que a integram, revelando-se perfeitamente compreensível ao descrever os factos e proceder à respectiva qualificação jurídica, o que satisfaz plenamente as garantias de defesa dos arguidos, facultando-lhes a dimensão real do objecto do processo.
Na verdade, basta lermos a acusação e na parte relativa aos ora arguidos, ou seja, os artigos 138 e ss e 211 e ss e 287 e ss para vermos que factos lhes são imputados, a forma, o lugar e o tempo, os motivos da sua prática, a descrição dos procedimentos adoptados, circuitos comerciais e financeiros detectados.
Com efeito, a acusação em apreço tem concretização suficiente para permitir a cada arguido defender-se da mesma, refutando os elementos em que assenta. Matéria diferente é saber se existe nos autos suporte probatório suficiente para imputar a todos os arguidos os crimes de que são acusados, o que será apreciado mais adiante em sede de apreciação indiciária.
Termos em que se indefere a nulidade da acusação suscitada, perante o teor do art. 283°/3 b) do CPP.
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Da Violação do Princípio do «ne bis in idem»
Os arguidos G., H., B., C., D., A., E. e I.., esta a fls. 4881, invocaram a nulidade da acusação com fundamento na violação do princípio do «ne bis in idem» alegando, em resumo, o seguinte:
Aos arguidos está imputada a realização de operações irregulares de compra e vendas com as sociedades I. e J. e L. e relativas ao período de Fevereiro a Outubro de 2001;
Dos autos constam elementos no sentido de que essas relações comerciais se prolongaram até Fevereiro de 2002 e de quem são as empresas envolvidas;
Estes factos constituem uma unidade que foi cindida pela acusação;
Os factos relacionados com a M. foram comunicados ao Ministério Público no âmbito dos presentes autos;
A separação dos factos relativos à M. aconteceu em 2 Junho de 2005;
Existem outros inquéritos onde estão a ser investigadas as restantes operações para Espanha entre Outubro de 2001 a Fevereiro de 2002 feitas nas mesmas circunstâncias e para o mesmo cliente;
As relações com as empresas espanholas não se alterou a partir de Outubro de 2001;
Concluem, dizendo que, têm direito a serem julgados apenas uma só vez pelos mesmos factos e que a assim não ser estão violadas as garantias de defesa.
Por sua vez aE. alega, em resumo, o seguinte:
As transacções a que se referem os presentes autos correspondem a uma parte das transacções que a E. realizou, no âmbito do mesmo negócio;
Nos presentes autos estão apenas em causa as transacções relativas a 16-05-01 e 03-10-01;
As transacções posteriores a essa data (3-10-01) estão a ser objecto de investigação no âmbito do inquérito nº 29/05.2TELSB instaurado em 13-05-05;
Cumpre decidir:
Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos em causa pela prática de um crime de associação criminosa p. e p. pelo artigos 299º do CP e artigo 89º nº 2 da lei nº 15/2001, de 5 de Junho e um crime de fraude fiscal p e p pelo artigo 23º nº 1 al. a) b) e c), 3 a), e), c) e 104º nº 1 D.) e) e 2 da Lei 15/2001, de 5 de Junho e por factos descritos nos artigos 167 a 173, 201 a 203, 242 e 243 da acusação e relativos às compras feitas à empresa I. e às posteriores vendas dos mesmos produtos à J. e L...
Por despacho proferido pela Digna Magistrada do Mº Pº a fls. 3765 foi ordenada a extracção de certidão do relatório Intercalar nº 2 e respectivo anexo para junção aos autos de inquérito nº 29/05.2 TELSB e 30/05.6TELSB, onde estão a ser investigados factos relacionados com a empresa M. enquanto «missing trader».
Da leitura do relatório intercalar nº 2 e seu anexo verifica-se que constam indícios de que, a partir de determinado momento, a empresa M., no caso dos presentes autos descrita na qualidade de «buffer» terá actuado, também, na qualidade de «missing trader».
Desses elementos, resultam, também indícios de que a arguida H. terá feito vendas para Espanha que se prolongaram até Fevereiro de 2002 e que a E. terá feito vendas para Espanha – L. e J. e posteriores a 3-10-2001.
Da conjugação desta informação, resulta a necessidade de, existindo a possibilidade de se concluir pela verificação de continuação criminosa, ou unidade criminosa entre os factos objecto da presente acusação e os factos constantes do inquérito supra referido, tomar posição quanto à questão de violação do chamado princípio do «ne bis in idem» - artº 29º nº 5 do CRP.
O caso julgado não possui, no actual CPP, regulamentação sistemática, sendo ainda certo que, face à especificidade do processo penal nesta matéria, não haverá lugar ao recurso às disposições sobre caso julgado constantes do CPC (tenha-se em conta a utilização de conceitos de certa forma incompatíveis, tais como a identidade das partes, do pedido e da causa de pedir).
No entanto, a afirmação do caso julgado é incontroversa, quer mediante a conjugação de diversos preceitos do CPP (em especial, os respeitantes aos recursos), quer, evidentemente, à luz da Constituição da República Portuguesa que, no seu artigo 29º, n.º 5, determina que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime. Trata-se de imperativo constitucional ao qual é devida obediência imediata, por força do disposto no seu artigo 18°, n.º 1.
Consagrado desta forma, o princípio “ne bis in idem” consubstancia, além da óbvia segurança e paz jurídicas, uma garantia fundamental do cidadão traduzida na certeza de não poder voltar a ser judicialmente perseguido pela prática do mesmo crime.
Assim, a questão fulcral radica no que deve ser entendido pela expressão “mesmo crime”, dessa forma se mostrando controversa a matéria respeitante à admissibilidade de julgamento de uma das condutas da continuação criminosa se anteriormente já tiver havido julgamento de outra dessas condutas.
Em síntese, importa determinar em que medida a decisão que recaia sobre uma das condutas integrantes da continuação constitui caso julgado relativamente a todo o crime, porque, se tal acontecer, a condenação autónoma por duas ou mais condutas constituirá violação do referido princípio “ne bis in idem”.
De acordo com Germano Marques da Silva (Direito Penal Português, Parte Geral, vol II, Teoria do Crime, pp. 328 e 319) a resposta depende da posição que se assumir quanto à natureza do crime continuado, em termos de ser visto como uma unidade natural ou real (que considera existir um único acto criminoso), uma ficção jurídica (unidade resultante por via de ficção jurídica), um tertius genus (não seria nem um crime único nem um concurso de crimes, mas um novo conceito), ou, ainda, como uma pluralidade de crimes apenas unificados para efeitos de punição.
A este propósito, contrapõem-se dois principais entendimentos: por um lado, defende-se ser possível o julgamento em separado de factos integrantes da continuação criminosa, dada a autonomia das várias infracções parcelares que a compõem (neste sentido, a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Março de 2000, proferido no processo 00P002 -, in www.dgsi.pt), por outro, considera-se a questão definitivamente resolvida com a primeira sentença, a qual detém a virtualidade de consumir todos factos os integrantes do crime continuado (assim, o Acórdão da Relação de Coimbra de 14 de Janeiro de 2004, proferido no processo 3501/03 -, in www.dgsi.pt).
O crime continuado apresenta-se como uma solução legislativa (artigo 30º do CP) que consagra um critério normativo para a quantificação dos crimes. Desta forma, o legislador distanciou-se de critérios meramente naturalísticos, apoiando-se, para tanto, numa ficção jurídica. Logo, o crime continuado surge como uma pluralidade de acções unificadas pela lei e tratadas, por esta, como um só crime.
Assim agregadas, as diversas condutas têm de ser entendidas como consumidas pela primeira sentença, que abrangerá todo o objecto do processo (logo, todo o crime continuado), quer o mesmo tenha ou não sido, efectivamente, apreciado na sua totalidade (“[…] os factos praticados pelo arguido até à decisão final, que formem uma unidade de sentido com o pedaço de vida apreciado, ainda que não conhecidos ou não tomados em consideração, não podem ser apreciados, devido ao princípio da consumpção: a questão colocada ao tribunal encontra-se irrepetivelmente decidida[…]”, Ivo Barroso, in Estudos sobre o Objecto do Processo Penal, pp. 30 e 31).
Conforme refere o Prof. Eduardo Correia (A Teoria do Concurso em Direito Criminal; Unidade e Pluralidade de Infracções; Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, p.273), “desta forma, […] apreciado qualquer facto do crime continuado, tudo fica de uma vez por todas resolvido; de uma vez por todas se liquida o problema da valoração jurídico-criminal das várias actividades que constituem a continuação criminosa, já que contra a promoção de qualquer novo processo se pode sempre invocar a excepção de caso julgado”.
Importa, agora, apreciar se, no caso em apreço, se pode considerar ter sido praticado, em termos de indiciação, pelos arguidos, um único crime na forma continuada.
Os elementos essenciais à caracterização da continuação criminosa são, geralmente, elencados da seguinte forma: realização plúrima do mesmo tipo legal de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico; homogeneidade na forma de execução; pluralidade de resoluções criminosas; unidade do dolo (as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma linha psicológica continuada); persistência de uma situação exterior que facilite a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente; proximidade temporal entre as diversas condutas, geralmente relacionada com a manutenção da aludida situação exógena apta a propiciar as subsequentes repetições.
Para que se possa fazer essa comparação necessário se torna proceder à análise dos factos, imputados às arguidas em ambos os processos, para, assim, se poder concluir serem integradores do mesmo tipo legal de crime (fraude fiscal), cometidos através de actuação idêntica em todas as situações.
Ora, no caso concreto temos apenas uma acusação que é a referente aos presentes autos enquanto que, os inquéritos supra enunciados estão em fase de investigação e não temos notícia de já ter sido proferido despacho final. Deste modo, nesses inquéritos ainda não temos definido o objecto do processo, o qual é constituído pelo crime, no sentido que lhe dado pelo artigo 1º al. a) do CPP e será definido pela eventual acusação. Neste sentido v. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal pag. 357 «No processo penal com estrutura acusatória é pela acusação que se define o objecto do processo nas fases jurisdicionais»
Assim, não estando, ainda, definido o objecto do processo nos inquéritos acima referidos não se poderá, por agora, concluir que os factos constantes da acusação fazem parte integrante de um crime continuado ou de uma única resolução criminosa de fraude fiscal pelo qual os arguidos estão a ser investigados.
Daqui decorre, por outro lado, que não fica prejudicado o princípio “ne bis in idem”, plasmado no artigo 29º, nº 5 da CRP, pois, como se escreveu no ac. do STJ, de 04/07/90, in CJ XV, Tomo III, pág. 25, “sendo o crime continuado constituído por várias infracções que se verificam sob a presença de um condicionalismo externo, a sentença que incide sobre alguma ou algumas dessas infracções não produz força de caso julgado sobre as que foram descobertas e processadas posteriormente, aplicando-se o princípio “ne bis in idem” somente em relação aos factos que já tinham sido julgados” .
Assim, conclui-se pela improcedência da alegada nulidade.

Da insuficiência do inquérito por omissão de diligência obrigatória:
Os arguidos B., C., D., A. e E. vieram ainda arguir a nulidade da acusação por insuficiência de inquérito, nos termos do artigo 120º, nº 2 d) do CPP, face à omissão de uma diligência obrigatória, omissão essa, traduzida na falta de liquidação dos impostos a qual é da competência da Administração Tributária.
A pretensão dos arguidos é retirada do parecer 45/05, de 18.05.05 do Centro de Estudos Fiscais da Direcção Geral dos Impostos, sancionado por Despacho do Director Geral dos Impostos de 07.06.05 e feito circular pelo ofício nº 279, de 16.06.05, “para actuação da Inspecção Tributária nos termos nele preconizados”, parecer esse, que fizerem juntar aos autos.
Cumpre decidir:
Vejamos, em primeiro lugar, as disposições legais, relativas à questão.
De acordo com o disposto no artigo 211º nº 1 da CRP os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
O artigo 219º da mesma lei fundamental refere que, «ao Ministério Público compete … exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade …».
O artigo 262º nº 1 do CPP refere que, o inquérito compreende o conjunto de diligencias que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
Um vez realizados os actos de inquérito e com as finalidades supra referidas, o Ministério Público decide-se pelo arquivamento no caso de não ter recolhido prova bastante de não se ter verificado crime, ou de o arguido o não ter praticado ou de quem foi o seu agente, pela suspensão provisória do processo, nos casos do artigo 281º ou, profere despacho de acusação no caso de terem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente.
Por sua vez o artigo 7º nº 1 do mesmo diploma refere que o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.
O art. 120º nº 2 al. d) do CPP, refere que, a insuficiência do inquérito ou da instrução e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta de verdade, constitui uma nulidade dependente de arguição.
No que concerne ao artigo 42º n.º 4 do RGIT refere que, não serão concluídas as investigações enquanto não for apurada a situação tributária ou contributiva da qual dependa a qualificação criminal dos factos, cujo procedimento tem prioridade sobre outros da mesma natureza.
O artº 47º do mesmo diploma dispõe que, se estiver a correr processo de impugnação judicial ou estiver lugar oposição à execução …, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.
A nulidade em causa – insuficiência de inquérito – só se verifica quando, no decurso do inquérito, tiverem sido omitidos a prática de actos que a lei prescreve como sendo obrigatórios e desde que para essa omissão não disponha a lei de forma diversa.
A este propósito veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 05.02.04, in www.dqsi.pt "Constituem duas realidades distintas por um lado a presença ou ausência de indícios em inquérito ou instrução e, por outro a insuficiência de instrução enquanto nulidade de instrução ou de inquérito prevista na al. d) do nº 2 do artigo 120.° do CPP, sendo que esta insuficiência só pode ter lugar em casos contados de omissão de actos prescritos na lei como obrigatórios se para tal omissão a lei não dispuser de forma diversa, o mesmo acontecendo com os actos de instrução. "(leia-se no Ac. Rei. Lx. de 2002-06-12 (Rec. Nº 2845/02 - 3.° secção, Rel:- Santos Monteiro)
No mesmo sentido “A nulidade da “insuficiência do inquérito” não significa o mesmo que ausência de indícios suficientes para acusar. A insuficiência do inquérito, como nulidade só pode respeitar à omissão de actos que a Lei prescreva como obrigatórios, se para essa omissão a Lei não dispuser de forma diversa”. In - Ac. Rel. Lx. de 2001-05-08 (Rec. n.º 2236/01 – 5.ª secção, Rel:- Santos Rita, in www.dgsi.pt).
Assim, a omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do M.º P.º artigo 263º do CPP.
O acto de inquérito que os arguidos consideram como tendo sido omitido pelo Mº Pº consiste na não liquidação dos impostos por parte da administração tributária com violação do citado parecer.
Invocam, ainda, os arguidos que de acordo com o artigo 42 nº 4 do RGIT, não se dará por concluído o inquérito respeitante a infracções tributárias que constituam simultaneamente crimes fiscais, enquanto não for apurada a situação tributária de cada um dos arguidos/contribuintes situação essa de que, dependeria a qualificação como crime da conduta do contribuinte.
Por outro lado, após o apuramento do imposto e em respeito pelas garantias dos contribuintes definidas no artigo 95º da Lei Tributária, teria ainda de ser facultado aos arguidos o direito à impugnação e ao recurso.
Antes de mais, cumpre referir que o invocado parecer apenas vincula a administração tributária e não o Ministério Público, nem os OPCs que actuam sob sua direcção no decurso do inquérito ao abrigo do disposto no artigo 263º nº 2 do CPP.
No caso em apreço, o inquérito foi dirigido pelo Mº Pº e os funcionários da DSPIT actuaram como OPCs em inquérito aberto pelo MP e por ele dirigido, elaboraram o relatório final em 08.06.05, data anterior ao ofício que circulou o dito parecer.
No que concerne à invocada violação do disposto no artigo 42º nº 4 do RGIT, cumpre dizer, antes de mais que, como refere Paulo Dá Mesquita "O crime de fraude fiscal caracteriza-se essencialmente por ser um crime de aptidão ou perigo abstracto-concreto, pois o tipo não se limita a descrever uma conduta genericamente perigosa nem exige a comprovação concreta de uma situação de perigo, mas exige a comprovação de uma aptidão concreta da acção para diminuir as receitas tributárias. A conduta tem de ser susceptível de causar diminuição das receitas tributárias".
Trata-se, conclui Dá Mesquita, de um crime de resultado cortado pois se no plano objectivo basta o preenchimento de uma das condutas prevista no tipo e a susceptibilidade de causar diminuição das receitas tributárias, no plano subjectivo exige­-se uma intenção de diminuir as receitas fiscais do Estado, daí a referência no tipo a condutas que "visem" vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias ("A tutela penal das deduções e reembolsos indevidos do imposto. Contributo para uma leitura da protecção dos interesses financeiros do Estado pelos tipos de fraude fiscal e burla tributária" Rev. do Ministério Público", pág. 59).
Por sua vez, como referem Figueiredo Dias e Costa Andrade "a lei penal fiscal não inscreve o dano patrimonial entre os pressupostos objectivos da factualidade típica ( ... ) no que ao chamado tipo objectivo concerne, necessário - e suficiente - ao preenchimento da factualidade típica da fraude fiscal é apenas o atentado à verdade ou transparência corporizado nas diferentes modalidades de falsificação ("O crime de fraude fiscal no novo direito penal tributário português" Revista de Ciência Criminal, ano 6, fas. 1°, 1996, pag.91).
Assim, não constituindo o dano patrimonial do Estado um elemento constitutivo do crime de Fraude Fiscal a sua prévia liquidação é desnecessária para se qualificar uma determinada conduta como constituindo o ilícito criminal em apreço.
Em face de todo o exposto conclui-se pela não verificação da nulidade de omissão de actos obrigatórios de inquérito».

2 – Em 29 de Dezembro de 2005, os arguidos B., C., D., A. e “E.” interpuseram recurso desse despacho (fls. 65 a 93).

A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:

I. O presente processo assenta, em relação aos ora Recorrentes, num princípio de suspeita, nascido dum modelo de “eficácia”, não sendo os vícios que o afectam mais do que fenómenos aparentes da rebeldia desse princípio aos pilares essenciais do processo penal português, por força da qual têm vindo a ser negadas aos Arguidos, apesar dos seus esforços e da sua disponibilidade para o processo, as garantias de defesa (art. 32º, nº 1, da Constituição), a começar pela presunção de inocência (art. 32º, nº 2, da Constituição) e pelo direito a não ser submetido a julgamento sem indícios suficientes (cfr., por último, Ac. TC nº 439/02);
II. Relativamente à questão prévia que identifica e começa por versar o douto Despacho recorrido, ignorando a argumentação contida em recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça expressamente alegada pelos ora Recorrentes, considerou o art. 299º do CP aplicável ao caso dos presentes autos, o que corresponde a uma interpretação da referida disposição legal que é errónea e conduz, não só à respectiva violação, como a uma ofensa dos princípios da legalidade e da proibição da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais desfavorável ao arguido (arts. 29º da Constituição e 2º do CP);
III. É ilegal o Despacho recorrido ao considerar improcedente a alegação de nulidade da Acusação por falta de indicação dos factos que baseiam a imputação dos crimes no que respeita aos elementos dos respectivos tipos subjectivos, pois que:
a. Constitui exigência das garantias de defesa e do princípio do contraditório que na Acusação, em cumprimento da sua função de informação, sejam indicados os elementos em que se articula a prova indiciária em sentido técnico, a saber, o facto base da ilação (indício ou facto indiciante) e o juízo lógico que conduz à ilação (a incluir, pelo menos implicitamente, a regra da lógica ou da experiência que baseia tal juízo), em termos tais que um inocente possa ficar ciente daquilo que contra ele milita, por forma a que lhe seja dada oportunidade de defesa eficaz;
b. Assim, sobretudo nos casos em que a prova indiciária recorrer a factos diversos e mais longinquamente relacionados com os elementos do crime, a omissão da indicação dos factos probatórios e dos juízos referidos compromete de modo absolutamente decisivo a defesa dos Arguidos – o que dá lugar à nulidade da Acusação, por violação do art. 280º, nº 3, als. b) e c) a f), do CPP;
c. Sendo evidentemente inconstitucional por violação da estrutura acusatória do processo, do princípio do contraditório e das garantias de defesa do Arguido (arts. 32º, nºs 5 e 1, da Constituição) a interpretação segundo a qual o Ministério Público pode reservar esse elementos para si mesmo, podendo os factos e juízos relevantes para o efeito ser depois usados se, como e quando se acha conveniente, e alterados à vontade, ao longo do processo;
d. Nos presentes autos é flagrante a referida nulidade da Acusação, pois a pronúncia dos Arguidos ora Recorrentes fundou-se em factos indiciantes e juízos lógicos omissos da Acusação, tão valorizados pelo Mmo. Juiz “a quo” que o levaram a mesmo dispensar-se de se pronunciar sobre os factos alegados e provados pelos ora Recorrentes, em sua defesa, durante a Instrução.
IV. É ilegal o Despacho recorrido – relativamente aos ora Recorrentes e na medida em que corre outro processo – ao considerar improcedente a alegação de nulidade da Acusação por manipulação arbitrária do objecto do processo. Na verdade:
a. A Acusação assenta numa divisão de um conjunto unitário de transacções por dois processos, o que, para além de violar o princípio “ne bis in idem” processual (arts. 29º, nº 5, da Constituição e 19º, nº 2, e 119º, al. e) CPP) e pôr em risco o “ne bis in idem” substantivo, retira as operações do respectivo contexto, gerando a insuficiência do inquérito (art. 120º, nº 2, al d) CPP), ainda por cima impedindo ou dificultando a defesa dos Arguidos ora Requerentes, com o que viola a garantia constitucional das garantias de defesa e a garantia internacional de um processo justo (arts. 32º, nº 1, da Constituição, 10º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 6º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais);
b. Conclusões que se mantêm ainda no caso improvável de que se esteja perante um simples caso de conexão processual, atento o princípio da unidade do processo (arts. 24º, n 1, al. d) e 29º CPP);
c. Na reduzida medida em que se pronunciou sobre a alegada nulidade, o Mmo. Juiz a quo, não só incorre em evidente e frontal contradição quanto a um dos argumentos em que pretende fundamentar a improcedência da alegação (o da indivisibilidade do crime continuado como objecto do processo), como adopta numa interpretação errónea e inconstitucional das já referidas disposições legais que:
i. Esquece que as exigências de indivisibilidade ou conexão dos objectos do processo se impõem ao inquérito;
ii. Pretende evitar a apreciação da validade dos actos de acordo com a situação processual existente no momento da sua prática;
iii. Corrobora a invalidade, na medida em que conduz a reconhecer ao Ministério Público o poder de, sem qualquer possibilidade de controle separar ou agregar processos, segundo uma configuração e qualificação jurídica dos factos determinada unilateralmente, impedindo aos Arguidos não só a apreciação da validade de tais operações como sobretudo a alegação, em sua defesa, de uma diversa configuração e qualificação dos factos que assente na visão conjunta dos factos e meios de prova disponíveis;
iv. E nessa medida insiste na violação das disposições constitucionais e legais citadas nas als. a) e b).
V. É ilegal o Despacho recorrido, ao considerar improcedente a alegação de nulidade da Acusação por omissão de diligência obrigatória, invocada em requerimento apresentado pelos ora Recorrentes no decurso da Instrução, na medida em que:
a. A lei impõe que se não encerrem as investigações enquanto não for praticado acto definitivo ou proferida decisão final sobre a situação tributária (art. 42º, nº 2 e 4, e 47º do RGIT), sendo inconstitucional a interpretação oposta por violação, tanto da reserva da Administração Fiscal para proceder ao apuramento da situação tributária (que aflora nos arts. 111º e 266º, em conjugação com o art. 103º, da Constituição), como do conjunto de garantias constitucionais dos administrados, tendo em conta, em concreto, o disposto nos números 3, 4 e 5 do artigo 268º da Constituição – o que determina a nulidade da Acusação por insuficiência do inquérito, nos termos do artigo 120º, n.º 2, al. d), do CPP;
b. A fundamentação da improcedência da alegação dessa nulidade assenta numa interpretação errónea do artigo 7º do CPP (que se não aplica ao caso dos autos, já por ser disposição geral que é afastada no domínio do direito penal fiscal, já porque o apuramento da situação tributária não tem a autonomia processual, por ser da competência reservada da Administração Tributária e não de outro tribunal) e do art. 42º, nº 4, do RGIT (cujo sentido só se apreende tendo em conta referências que o Mmo. Juiz a quo ignorou, como a necessidade de distinção entre os crimes de burla tributária e fraude fiscal, a extensibilidade da argumentação aos outros crimes caracteristicamente tributários e os regimes de dispensa e de atenuação especial da pena).
Nestes termos e nos de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, vêm os Recorrentes solicitar que o Despacho recorrido seja revogado e substituído por outro no qual:
1. A questão prévia identificada pelo Tribunal “a quo” seja decidida no sentido de se considerar inaplicável aos presentes autos o art. 299º do CP;
2. Se declare nula, relativamente a eles, a Acusação nos termos conjugados:
a) Dos artigos 283º, nº 3, als. b) e d) e a f), do CPP e dos artigos 32º, nºs 1 e 5 da Constituição;
b) Dos artigos 29º, nº 5, e 32º, nº 1, da Constituição, dos artigos 10º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 6º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, e dos artigos 19º, nº 2 (ou, pelo menos, 29º e 30º), 119º, al. e), e 120º, nº 2, al. d), CPP, “a maiori”;
c) Dos artigos 42º, nº 2 e 4, do RGIT, e 120º, nº 2, al. d) do CPP, e dos artigos 111º e 266º (em conjugação com o art. 103º) e 268º, nºs 3 a 5, da Constituição,
Julgando procedente o presente recurso sobre a decisão ora recorrida fazendo melhor juízo, estarão V.Exas. a fazer a costumada e boa justiça».

3 – Esse recurso foi admitido por despacho proferido em 4 de Janeiro de 2006 (fls. 99).



4 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 117 a 140).

5 – Neste tribunal, a srª. procuradora-geral-adjunta, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o parecer de fls. 322 a 332.

6 – Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, vieram os arguidos responder a esse parecer nos termos que constam de fls. 356 a 372.

II – FUNDAMENTAÇÃO

O efeito do recurso interposto

7 – O sr. juiz, ao admitir o presente recurso, determinou que o mesmo subisse imediatamente, em separado, com efeito meramente devolutivo (fls. 99).

Suscitam os arguidos a questão da alteração do efeito atribuído ao recurso, pretendendo que ele tenha efeito suspensivo da marcha do processo, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 408º do Código de Processo Penal.

Não têm, porém, salvo o devido respeito, qualquer razão.

O presente recurso foi interposto da parte da decisão instrutória «relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais Acórdão de Fixação de Jurisprudência publicado como “Assento n.º 6/200” no DR I-A de 7/3/2000.» e não, como por vezes é dito pelos recorrentes, do despacho de pronúncia, o qual, se bem se integre na decisão instrutória, com ela se não confunde.

Por isso, não se pode aplicar ao recurso da mencionada parte da decisão instrutória o regime que se encontra estabelecido para o recurso do despacho de pronúncia, nos casos em que ele é admissível.

Não há, portanto, que alterar o efeito estabelecido para o recurso.

A aplicabilidade do artigo 299º do Código Penal

8 – Os recorrentes, na motivação apresentada, começaram por impugnar a decisão do sr. juiz de instrução de conferir relevância criminal a um segmento do seu comportamento que ele entendeu estar suficientemente indiciado e que considerou consubstanciar a prática de um crime de associação criminosa. Para tanto, alegaram que, antes da entrada em vigor da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, a prática de crimes fiscais não era uma das finalidades que podia constituir o escopo das associações criminosas punidas pelo artigo 299º do Código Penal e que a matéria que se considerou indiciada não preenche os elementos do tipo em causa.

Ora, independentemente do juízo que se faça sobre o mérito da argumentação dos recorrentes, há que reconhecer que a matéria em causa, embora tratada pelo sr. juiz como se fosse uma questão prévia, não é mais do que a fundamentação jurídica de um aspecto da decisão de pronunciar os arguidos pela prática do aludido crime, o que obsta ao conhecimento, nesta parte, do recurso interposto por imposição expressa do artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Por isso, não pode este tribunal, nessa parte, apreciar o recurso interposto.

A falta da indicação dos factos que baseiam a imputação dos crimes no que respeita aos elementos dos respectivos tipos subjectivos

9 – Prosseguem os recorrentes pedindo que se declare nula a acusação, por violação do artigo 283º, n.º 3, als. b) e c) a f) do Código de Processo Penal, esclarecendo que tal pedido não se funda na «imprecisão, indefinição ou falta de concretização da acusação no que respeita à narração dos factos que lhe são imputados», «mas sim que, não havendo qualquer apoio probatório dos factos que lhes são imputados, foi igualmente omitida qualquer referência aos factos dos quais, enquanto indícios em sentido técnico, se podem depreender dos factos imputados (cfr. Artigo 99º do Requerimento de Instrução) e, bem assim, qualquer enunciação ou fundamentação do juízo lógico através do qual se procede à ilação dos factos correspondentes aos elementos dos tipos subjectivos dos crimes imputados ao arguidos (cfr. Artigo 100º do Requerimento de Instrução)».

Diga-se, em primeiro lugar, que o recurso interposto quanto a este segmento da decisão instrutória, na medida em que com ele não se vise discutir a existência ou não de indícios suficientes dos factos incluídos na acusação e no próprio despacho de pronúncia, mas apenas a nulidade da acusação derivada do teor dos factos que a integram, é perfeitamente admissível, devendo, portanto, ser apreciado.

Entendem os recorrentes que, desempenhando a acusação não só uma função de delimitação ou de determinação, mas também uma função de informação, se exige que, no caso de a prova ser indirecta, se façam constar dessa peça processual os factos básicos que se têm por indiciados e o juízo lógico que conduz à ilação sobre a verificação dos factos jurídico-penalmente relevantes.

Ora, se é verdade que compartilhamos integralmente as preocupações garantísticas expressas pelos arguidos, nomeadamente quanto às decorrências do reconhecimento da função de informação da acusação, não vemos que o direito processual penal português as satisfaça exactamente da mesma forma como o fazem os direitos alemão Tendo por base o estatuído no n.º 2 do § 200 do StPO, que não tem correspondência directa no Código de Processo Penal português. e espanhol invocados pelos recorrentes e que, portanto, a sua pretensão mereça acolhimento.

É que, como eles reconhecem, «nem sempre os sistemas jurídicos respondem a estas exigências da mesma forma».

Na verdade, em nosso entender, a função de informação é entre nós plenamente satisfeita pelo cumprimento do dever de fundamentação (de facto e de direito) do despacho de acusação, como acto decisório que é E não se diga que, quanto à acusação, esse dever é afastado pelo facto de ele não constar expressamente do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal (quando aí se enunciam os requisitos desse despacho e se estabelece a nulidade como sanção para a sua violação), uma vez que ele resulta de uma norma de âmbito geral como é o artigo 97º do Código de Processo Penal.

A opção legislativa de não incluir expressamente o dever de fundamentação entre os requisitos da acusação só se pode explicar pelo desejo de não cominar como nulidade a sua violação. Com isto, degrada-se a natureza do vício. Não sendo abrangido pela cominação de nulidade, trata-se de uma mera irregularidade. (artigo 97º, n.ºs 2 e 4, do Código de Processo Penal). Nesse despacho, o Ministério Público ou o assistente, para além de narrarem os factos imputados ao arguido e de satisfazerem os demais requisitos exigidos pelas diferentes alíneas do n.º 3 do citado artigo 283º, devem esclarecer os motivos pelos quais consideram que existem indícios suficientes dos factos que imputam, explicando, no caso de prova indirecta, quais os factos instrumentais que julgam suficientemente indiciados através de prova directa ou de raciocínios dedutivos e quais as inferências indutivas de natureza reconstrutiva Ver ABELLÁN, Marina Gascón, in «Los Hechos en el Derecho – Bases Argumentales de la Prueba», Marcial Pons, Madrid, 1999, 101 e segs. que, com base neles, fazem.
Por este meio justificam o juízo que fizeram de considerar suficientemente indiciados os factos jurídico-penalmente relevantes que imputaram à pessoa contra quem deduziram acusação O que, embora num contexto diferente, pode e deve ser retomado nas exposições introdutórias (artigo 339º do Código de Processo Penal)..

Quer isto dizer que, na nossa opinião, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, a que se refere a alínea b) do n.º 3 citado, não se confundindo, ao contrário do que muitas vezes sucede, com um relatório policial sobre as diligências efectuadas no decurso do inquérito, nem sendo um relato do conteúdo das provas recolhidas nessa fase, também não se reconduz a uma narração de factos instrumentais e de regras de experiência em que assentam e se fundamentam juízos indutivos.

Deve ser, essencialmente, uma narração dos factos concretos que são imputados ao agente do crime por quem deduz a acusação, narração essa que tem como sujeito o arguido E não o investigador, como sucede no relatório policial sobre as diligências efectuadas. e inclui os factos que integram os elementos objectivos e subjectivos exigidos pela disposição incriminadora que estiver em causa e as demais circunstâncias relevantes referidas no n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal.

A inclusão dos factos pretendidos pelos recorrentes também não encontra qualquer suporte na alínea f) do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, que se refere às provas a produzir ou a requerer em julgamento Que a parte final da alínea c) do n.º 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal injustificada e inconsistentemente confunde com as provas que fundamentam a acusação (como as três primeiras alíneas desse número se relacionam com os requisitos da acusação enunciados no n.º 3 do artigo 283º - limitando-se aquelas a permitir o conhecimento oficioso de vícios que de outra forma estavam dependentes de arguição – considera-se que aquela parte final da alínea c) deve ser interpretada em consonância com a alínea f) do n.º 3 do artigo 283º, atribuindo a ambas um sentido equivalente). (e não às recolhidas no inquérito em ordem à decisão sobre a acusação), nem em qualquer outra alínea do citado preceito legal.

Resta apenas acrescentar que, em nossa opinião, esta forma de entender as coisas em nada belisca a estrutura acusatória do processo penal, o princípio do contraditório e as garantias de defesa do arguido. Pelo contrário, respeita-os integral e plenamente.

Por isso, e porque os recorrentes não arguíram sequer (como nulidade ou mera irregularidade) a falta de fundamentação da acusação, não se pode deixar de considerar improcedente este ponto do recurso por eles interposto.

A manipulação arbitrária do objecto do processo e as suas consequências

10 – Os recorrentes, afirmando que «as transacções a que se referem os presentes autos correspondem tão-somente a uma parte das transacções que a E. realizou», consideram que a «divisão do conjunto de transacções em dois blocos representa uma manipulação arbitrária do objecto do processo que é inteiramente inadmissível e que vicia completamente os presentes autos e a acusação que neles foi deduzida», sendo geradora de nulidade insanável da acusação, nos termos da alínea e) do artigo 119º do Código de Processo Penal, por violação do princípio “ne bis in idem” processual.

Analisemos então essa questão.

O legislador português, ao estabelecer as regras de competência material, funcional e territorial (artigos 27º e 28º do Código de Processo Penal) no caso de existir uma conexão de processos, sentiu a necessidade de definir previamente as situações em que essa conexão se verificava (artigos 24º a 26º) e os meios de a implementar e de lhe pôr termo (artigos 29º a 31º).

Porém, isso não significa que as duas vertentes dessa regulação se confundam e que as questões relativas à conexão de processos se reconduzam directa e necessariamente a problemas de competência.

No caso, o que na perspectiva dos recorrentes se verifica é uma indevida separação de processos, com uma consequente redução do objecto dos presentes autos.

Nada disso, a confirmar-se, implica a nulidade da acusação, nos moldes em que ela se encontra cominada no corpo do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, e, muito menos, uma sua nulidade insanável, nos termos da alínea e) do artigo 119º do mesmo diploma legal. É que, quanto à acusação deduzida, não houve, como não podia nunca haver, qualquer violação das regras de competência do tribunal.

Também não se verificou, até porque se desconhece por completo quais os factos que o Ministério Público considera suficientemente indiciados no “outro” processo, qualquer violação do princípio “ne bis in idem”. Para se poder afirmar uma tal violação seria sempre necessária a prévia definição do objecto desse segundo processo através de uma acusação deduzida, o que até à data em que foi proferida a decisão instrutória não se tinha verificado.

Acrescente-se apenas que, para além de os arguidos poderem, através dos factos que narram no requerimento de abertura de instrução e na própria contestação, alargar o objecto de um processo em que se encontram acusados integrando os factos que lhe são imputados no contexto em que os mesmos, na sua perspectiva, se verificaram (contribuindo, assim, para lhes retirar relevância criminal e para alargar o âmbito do caso julgado que se vier a formar), podem também, verificado, nomeadamente, o condicionalismo previsto no n.º 2 do artigo 24º, requerer a apensação dos processos conexos (ou, por maioria de razão, dos dois processos se se verificar que eles têm por objecto a prática do mesmo crime). Não fica, assim, de modo nenhum, desguarnecido o seu direito de defesa.

E não se diga que esse direito de defesa é coarctado pelo facto de o outro processo se encontrar ainda na fase de inquérito, o que vedaria o acesso dos recorrentes ao seu conteúdo. Para além de não se líquido que, numa interpretação conforme à Constituição dos artigos 86º e segs. do Código de Processo Penal, esse acesso lhes deva ser impedido, não podem os recorrentes, para alegarem violação do princípio “ne bis in idem”, precisar o objecto desse processo através da menção dos actos de comércio sob investigação e, para invocarem uma limitação inadmissível do direito de defesa, pretender que ignoram o âmbito desse mesmo inquérito e o seu conteúdo essencial, quando os actos de comércio mencionados são vendas que uma das arguida terá feito a outras empresas e que, portanto, conhece perfeitamente. Mesmo que exista alguma limitação, ela não afecta certamente o cerne do direito de defesa.

Por isso, e porque, tendo em conta o objecto do processo definido pelo Ministério Público, não se vislumbra qualquer insuficiência do inquérito, também não se verifica a nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal.

Acrescente-se que, pelo que se disse, nomeadamente quanto à possibilidade de os arguidos contribuírem para a definição do próprio objecto do processo, não se vê qualquer motivo para que tal nulidade, que o legislador ordinário considera sanável, tenha que ser, por força da exigência constitucional (e civilizacional) de um processo penal justo e equitativo, insanável.

A insuficiência do inquérito por omissão de diligência obrigatória

11 – Os arguidos terminam a motivação do recurso impugnando o segmento da decisão instrutória que não declarou a nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal (insuficiência de inquérito) por não ter sido cumprido o disposto no n.º 4 do artigo 42º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, ou seja, por durante o inquérito não ter sido «apurada a situação tributária ou contributiva da qual dependa a qualificação criminal dos factos».

O sr. juiz fundamentou essa decisão, essencialmente, nos seguintes argumentos:

a) a nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal só se verifica no caso de terem sido omitidas diligências impostas por lei;

b) o artigo 42º, n.º 4, do RGIT só impõe o apuramento da situação tributária ou contributiva no caso de delas depender a qualificação criminal dos factos;

c) no caso, a diligência não é obrigatória porque o montante do dano patrimonial não é elemento do tipo da fraude fiscal imputada aos arguidos, razão pela qual não se verifica a invocada nulidade.

Apreciemos então a questão colocada.

Diga-se, em primeiro lugar, que, não obstante a doutrina SILVA, Germano Marques da, in «Curso de Processo Penal», Tomo II, 3ª Edição, Editorial Verbo, Lisboa, 2002, p. 84. e jurisprudência citadas na decisão recorrida e na motivação do recurso, não vemos qualquer razão para sustentar uma concepção da nulidade prevista na citada alínea d) do n.º 2 do artigo 120º tão restritiva como aquela que é defendida pelo despacho recorrido.

Na realidade, compreendendo o inquérito «o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação», a sua insuficiência há-de abranger, tal como sucede em momento posterior às fases preliminares do processo, todas as «diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade».

Só esta concepção salvaguarda devidamente os direitos do arguido e, sobretudo, do assistente, nomeadamente quando este último se vê impossibilitado, por omissão dessas diligências essenciais para a descoberta da verdade, de requerer a abertura de instrução.

Como é que, nesse caso, o assistente poderia, como lhe é imposto, formular uma acusação alternativa se no inquérito não foram realizadas as diligências essenciais para a descoberta da verdade? Como é que ele poderia identificar os agentes do crime e descrever o seu comportamento, se se omitiram as diligências de investigação necessárias para esse efeito? O único caminho que, nesse caso, se lhe abre é o da arguição de nulidade por insuficiência de inquérito para que este seja completado e posteriormente o assistente possa vir a exercer os seus direitos, caso o Ministério Público não altere a sua posição quanto ao arquivamento do processo.

Seja como for, no caso presente, a lei (e não a circular) impõe o apuramento da situação tributária ou contributiva dos arguidos desde que dela dependa a qualificação criminal dos factos e é a violação desse dispositivo que, no entender dos recorrentes, consubstancia a nulidade que oportunamente arguíram e de cuja falta de reconhecimento agora recorrem.

Importa, pois, delimitar o âmbito dessa obrigação legal, ou seja, definir os casos em que a qualificação criminal dos factos depende do apuramento da situação contributiva.

Ora, embora este apuramento seja também relevante para outros efeitos, nomeadamente para se poder impor a condição de suspensão da pena de prisão O mesmo não sucede quanto à reposição da verdade e ao pagamento da prestação tributária, a que alude o artigo 22º do RGIT, uma vez que estes actos, embora se repercutam no processo, são praticados fora dele. (artigo 14º do RGIT), dele só depende a qualificação criminal dos factos quando o valor em dívida seja um elemento do tipo de crime fundamental ou de qualquer tipo qualificado, como acontece com o abuso de confiança.

Só nesse caso é que o valor se torna necessário para que seja proferida decisão final do inquérito e se justifica, portanto, que o processo não possa prosseguir e se deva quedar nessa fase preliminar.

Não sendo esse o caso da fraude fiscal, nem, muito menos, do crime de associação criminosa, quer à luz do RJIFNA, quer à luz do RGIT, não foi cometida a nulidade invocada pelos recorrentes, razão pela qual, também quanto a este ponto, improcede o recurso interposto.

A responsabilidade pelas custas

12 – Uma vez que os arguidos decaíram no recurso que interpuseram são responsáveis pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal).

De acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 3 do artigo 87º do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre ½ e 15 UCs.

Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa, para cada um dos arguidos, em 5 UCs.

III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em:

a) Não apreciar o recurso interposto pelos arguidos B., C, D., A. e “E.” na parte em que ele versa sobre a decisão de os pronunciar por um crime de associação criminosa.

b) Na parte restante, negar provimento ao referido recurso.

c) Condenar os recorrentes no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa, para cada um deles, em 5 (cinco) UCs.


Lisboa, 22 de Março de 2006

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(Carlos Rodrigues de Almeida)

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(Horácio Telo Lucas)

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(António Rodrigues Simão)