Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
867/2008-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Nas acções de simples apreciação, não significa que os interessados tenham já visto o seu pretenso direito violado ou ameaçado por outrem que dele se arrogue; este tipo de acções potencia a paz social, prevenindo futuros litígios, fixando-se atempadamente a certeza da existência ou inexistência do direito ou de um facto;
II - O direito do Réu – Estado de herdeiro da falecida (artº1254 do Código Civil) pré -existe à instauração da acção, não constitui simples expectativa, e para fazer valer o seu direito não precisa de o reclamar, e em lado algum, disse renunciar a tal direito;
III - A melhor interpretação do disposto no artº343 do Código Civil aponta para que nas acções de simples apreciação, a lei faz impender sobre o Autor a obrigação de provar os factos impeditivos e extintivos, enquanto, ao Réu caberá a prova dos factos constitutivos;
IV - O Réu dispensou-se de alegar factos que demonstrassem que os bens e valores descritos pelos Autores eram da plena propriedade da falecida, pelo que jamais podia o Tribunal levá-los à base instrutória, como é dito nas alegações;
V - O non liquet do julgador converte-se contra a parte que tem o ónus de prova, de acordo com o estabelecido no artº8, nº1 do Código Civil.
(IS)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa. 
I – RELATÓRIO

J…, Jo…, C…., e A… intentaram acção declarativa com processo comum e forma ordinária, contra o Estado Português, pedindo em síntese, que seja declarado que os bens e valores depositados e titulados pela falecida S…, no Banco Espírito Santo, bem como quaisquer outros em seu nome, juros e outros proveitos, não lhe pertenciam, por fazerem parte das heranças de Jos… e da mãe dos Autores, alegando, que tendo aquela ficado como usufrutuária da quota disponível do marido pré-falecido, não foram todos os bens relacionados no inventário deste e a sua viúva, extravasou os poderes da qualidade de usufrutuária, alienando alguns desses bens e fazendo seu o respectivo produto.
Regularmente citado o Réu contestou.
Como questão prévia invoca a pendência de outra acção intentada pelos Autores contra o Réu cujo êxito conduzirá à inutilidade da presente, pelo que requer a suspensão da instância.
Por impugnação, e por não serem do seu conhecimento pessoal, alega desconhecer a factualidade invocada pelos peticionantes, à excepção dos factos constantes de documento autêntico, pugnando pela improcedência da acção.
Em articulado subsequente os Autores tomaram posição no sentido da improcedência da requerida suspensão da instância por não existir conexão entre ambas as acções.
Entretanto, os Autores apresentaram desistência do pedido na outra acção referida, ficando prejudicada a apreciação de tal excepção.    
Seguida a tramitação processual, o Sr.Juiz saneou os autos e seleccionou os factos assentes e controvertidos, que motivaram reclamações atendidas.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, proferindo-se sentença que julgou totalmente procedente a acção.
Inconformado, o Réu interpôs recurso recebido adequadamente como de apelação, fixando-se o efeito suspensivo ao abrigo do disposto no artº692, nº3 do CPC.
Culminou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1 - Para que se aplique o regime do art.º 343.º do Código Civil, é necessário que o Autor venha invocar que o Réu se arroga um direito incompatível com o seu.
2 - Na presente acção nem os Autores invocaram que o Réu se arrogou titular de qualquer direito, nem este se arrogou como proprietário dos bens em causa na acção ou invocou qualquer direito seu ou da falecida S, por contraposição ao direito invocado pelos Autores.
3 - O Réu limitou-se a impugnar a matéria da petição inicial negando a causa de pedir e o pedido, não tendo sido apresentada Réplica, nem poderia haver.
4 - Se o Réu tinha que provar alguns factos por si alegados, do que discordamos, então estes teriam que ter sido levados à Base Instrutória. 
5 - Porém, na Base Instrutória apenas foram formulados quesitos relativamente a factos alegados pelos Autores.
6 - Com o devido respeito, e segundo a óptica da douta sentença recorrida, a audiência de julgamento teria sido absolutamente desnecessária, pois que mesmo que nada se tivesse provado, sempre o direito invocado pelos Autores seria julgado procedente.
7- A acção de simples apreciação positiva ou negativa está prevista no art.º 4.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do Código do Processo Civil e coloca o réu na posição semelhante à do autor, com o ónus de fundamentar e provar o seu direito.
8 - O Réu não assumiu no processo, como se demonstrou, uma posição substancial ou materialmente coincidente com a de autor.
9 - Aquele princípio só tem aplicação quando o Réu se arrogue um direito que o Autor pretende negar, o que não é o caso, face ao exposto.
10 - Como resulta das respostas dadas sobre a matéria de facto os Autores apenas lograram demonstrar parcialmente os factos constantes dos quesitos n.ºs 10.º, 11.º, 18.º, 19.º, 25.º, 37.º, 40.º, 44.º e 45.º, não tendo efectuado na totalidade a prova da matéria de facto inserta nos n.ºs 20.º, 21.º, 32.º a 36.º, 46.º e 47.º, da Base Instrutória (na respostas aos quesitos 20.º e 21.º apenas remete para a alínea Q, o que na prática resulta como se tais factos não tenham sido provados).
 11 - Também não provaram os Autores que as 2060 acções da Estamparia a que aludem os quesitos 16.º e 17.º tivessem ficado na posse da falecida S…, tendo-se provado precisamente o contrário.
12 - Isto é, ficou provado que “ (…) todas essas 2.060 acções ficaram na posse material e detenção exclusivas do Jos…” - respostas aos quesitos 16.º, 17.º e negativas aos quesitos 20.º e 21.º, relativamente às quais apenas se remete para a al. Q).
13 - Não ficou igualmente provado que as acções a que aludem os quesitos 38.º a 46.º pertencessem à herança do falecido Jos…- respostas aos quesitos 10.º, 11.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 38.º, 45.º e 46.º.
14 - Também não ficou demonstrado sequer que não tenha sido dado conhecimento aos Autores ou à sua mãe, das trocas e vendas ali referidas - resposta negativa ao quesito 46.º
15 - E também não ficou provado que os depósitos a que alude o quesito 47.º fossem constituídos com o produto das alienações citadas e indicadas nos mesmos quesitos 39.º a 46.º, da Base Instrutória.
        16 - A abertura de contas bancárias no BES por parte da falecida, e por si tituladas, conforme resulta da douta sentença proferida, e a que alude o citado quesito n.º 46.º da Base Instrutória, e o art.º 90.º da Petição Inicial, não impugnado pelo Réu nesta parte, constitui um facto que se traduz na existência de uma presunção legal de que tais depósitos eram propriedade da mesma (1268.º, n.º 1, do Código Civil)
17 - O mesmo sucede com os títulos a que alude a alínea R) e o quesito 1.º, não estando também demonstrado que pertencessem à herança do falecido.
18 - Pelo que, a concordar-se hipoteticamente com a Mm.ª Juíza, a referida presunção não foi ilidida pelos Autores dadas as respostas aos quesitos supra referidos, o que era essencial para proceder a acção.
19- Sem conceder, aquele circunstancialismo implicaria a inversão das regras do art.º 343.º, n.º 1, nos termos art.º 344.º, n.º 1, do C. Civil.
20 - De acordo com o art. 342º, n.º1, do Código Civil que distribui, entre as partes, o ónus da prova, resulta que quem invocar um direito, deve fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, tendo a douta sentença recorrida feito incorrecta interpretação do art.º 343.º, n.º 1, do Código Civil.
21- E é de acordo com o ónus da prova que o Tribunal determinará como deve ser decidida a questão no caso de não ser feita a prova do facto pela parte onerada, sendo o ónus dos Autores, conforme exposto.            22 - No caso em apreço não se pode considerar que os Autores provaram os factos constitutivos do seu direito e que serviam de fundamento à acção.
23 - A matéria de facto dada como provada é insuficiente para se poder concluir que os bens e valores depositados nas contas bancárias supra mencionadas, a que alude o quesito 47.º, não eram pertença da falecida S…, sem recurso à regra do n.º 1, do art.º 343.º, citado, como aliás implicitamente se reconhece na douta sentença em apreço.
24- Consequentemente, não podia proceder a acção, devendo o Réu ter sido absolvido do pedido e a acção ter sido julgada improcedente.
       25 - A douta sentença recorrida ofendeu os art.ºs 342.º, 344.º e, por erro de interpretação o art.º 343.º, n.º 1, todos do Código Civil, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que decida em conformidade com o exposto.
Os Autores não apresentaram alegações.

         Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

          II – FUNDAMENTAÇÃO
A. OS FACTOS
A instância recorrida fixou como provada a factualidade seguinte:
1. No dia 15 de Maio de 1973, faleceu JOS…, no estado de casado com S…, sob o regime de separação de bens;
2. Deixou testamento, no qual instituiu seus universais herdeiros a sua filha única, M…, ao tempo casada com H…, no regime da comunhão geral, a quem deixou a legítima; e a seus únicos netos, filhos daquela sua filha e do H…, e que são os ora A.A., a quem deixou a quota disponível;
3. Nessas disposições de última vontade, o testador instituiu legatária do usufruto daquela quota disponível, o cônjuge sobrevivo, a referida S…;
4. Para partilha da herança do Jos… foi instaurado inventário obrigatório, o qual correu termos pela 3ª Secção do 10º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, Pº. nº.230;
5. No mesmo foram relacionados e descritos os bens da herança do de cujus, a saber: títulos de crédito, quotas em sociedade, móveis, imóveis e dinheiro, tudo no total Esc: 23.580.638$05;
6. Nesses autos de inventário teve-se em atenção o testamento do falecido, no qual instituiu herdeira da sua quota disponível, em usufruto vitalício, a sua viúva, S…, atribuindo a nua propriedade dessa mesma quota disponível, em partes iguais aos seus quatro (4) netos, filhos da sua única filha, M…, ora, A.A., na presente acção;
7. No ano de 1962, a S… fez um primeiro testamento outorgado no mesmo dia e local e em acto seguido ao do testamento de seu marido, no qual na falta deste e de sua mãe, instituiu os AA. Como “seus universais herdeiros”;
8. No ano de 1986, a S… fez um testamento, onde, além do mais, declarou revogar um testamento anteriormente feito no ano de 1962, no qual instituiu, na falta de seu marido e de sua mãe, como seus herdeiros universais os, ora, A.A., netos de seu marido;
9. No dia 3 de Abril de 1996, faleceu o pai dos A.A., H…, no estado de casado com a M…;
10. No dia 10 de Dezembro de 1998, faleceu a mãe dos A.A., M…, no estado de viúva do H…, tendo-lhe sucedido os seus filhos, os ora A.A.;
11. No dia 4 de Dezembro de 2000, faleceu a S… contando à data do óbito 93 anos de idade;
12. Não tendo deixado cônjuge, ascendentes ou descendentes;
13. Nos termos do inventário mencionado no ponto 4 foi adjudicado à S…, de entre outros, o usufruto vitalício dos seguintes bens e direitos: 375 Acções da COMIMBA – Comércio e Indústria de Bacalhau SARL; 550 Acções da Estamparia do Braço de Prata Graham SARL; direito e acção correspondente a ½ de uma quota de 75.000$00, no capital da Colex – Companhia Ultramarina de Legumes Secos, Ldª; Direito e acção correspondente a ½ de uma quota de 2.000.000$00, no capital da Armazéns J e Companhia Limitada; Esc. 7.225.021$50, em dinheiro;
14. Todos estes bens e direitos ficaram confiados à guarda e fruição exclusivos da S…, que não prestou caução;
        15. Não foram relacionadas no inventário referido em 4) 750 acções da “Comimba-Comércio e Indústria de Bacalhau, S.A.R.L.” nem, 3.040 acções da “Estamparia Braço de Prata Graham SARL”;
17. Não foram relacionados os seguintes títulos ao portador:
1 Acção do BIP 30.750$00
2 Acções do Banco Borges e Irmão                                  22.000$00
159 Acções do Banco Nacional Ultramarino          1.367.000$00
4 Acções do Banco de Angola 32.000$00
4 Acções do Banco Totta & Açores· 45.000$00
65 Acções da EMPOR· 40.000$00
1046 Acções da CRGE 434.000$00
3000 Acções da Cª do Buzi 750.000$00
65 Acções do Banco da Agricultura 487.250$00
76 Acções do Crédito Predial Português· 495.000$00
130 Acções do Banco Português do Atlântico 1.035.000$00
51 Acções da Lusitânia – Cª da Pesca· 684.000$00
TOTAL                                     5.422.000$00
18. À data da abertura da sucessão do Jos…, a S… era titular do usufruto vitalício de um prédio urbano situado na Rua…, nº…., em Lisboa, inscrito na matriz predial da …no artigo…, sendo nu proprietário o seu marido;
19. A S… tinha residência permanente na Rua…, nº…., R./C Esquerdo, em Lisboa;
20. Os títulos referidos em 17) mantiveram-se na posse da S…;
21. Relativamente à Comimba projectou-se um capital inicial de 10.000 contos, representado por 10.000 acções de valor nominal de esc.1.000$00 subscrevendo cada um dos fundadores participações iguais de 2000 contos, a serem subscritas por pessoas singulares;
22. Das 2000 acções com o valor nominal de esc.2.000.000$00, Jos… subscreveu 750 em seu próprio nome, 700 em nome da sua esposa S, e 50 em nome do seu neto mais velho, J…, tendo F… subscrito as restantes 500;
23. A razão por que o Jos… fez subscrever as 700 acções pela S… foi a de que ele desejava assegurar que elas viessem a reverter na totalidade para os seus quatro netos (e não, no todo ou em parte, para a sua única filha) por via da qualidade de herdeiros testamentários que esses netos tinham da S…, à luz do Primeiro Testamento, já então outorgado;
24. Foi o Jos… quem pagou e realizou integralmente o preço da subscrição daquele lote de 1500 acções.
25. As quais ficaram na sua posse material e detenção;
26. Era pacífico e consensual entre os fundadores da COMIMBA que as 1500 acções referidas em 5) eram de sua propriedade;
27.e que as 700 + 50 acções subscritas em nome de S… foram subscritas no seu exclusivo nome e interesse;
28. E foi sempre o Jos… e só o Jos… quem exerceu os direitos de voto correspondentes às referidas 1.500 acções da COMIMBA, bem como os demais direitos que lhe cabiam enquanto proprietário exclusivo dos títulos;
29. As acções referidas em 22, após a morte de Jos… ficaram na detenção material da S…;
30. No ano de 1987, o capital da COMIMBA por via de incorporação de reservas, já havia aumentado para 200.000 contos;
31. Em data anterior à do falecimento de Jos…, a COMIMBA e os sócios desta adquiriram a totalidade do capital de uma outra sociedade denominada “Estamparia de Braço de Prata – Graham SARL”, por aplicação dos lucros apurados na COMIMBA ao longo de vários exercícios sociais;
32. A Estamparia não tinha qualquer actividade;
33. Pelas mesmas razões referidas em 23) o Jos… fez subscrever a sua participação no capital da Estamparia – 2.060 acções, por ele próprio – 1100, e pela sua mulher S… – 960;
34. Foi Jos… quem pagou e realizou o preço dessas 2.060 acções sendo consensual entre os subscritores e demais interessados que esses títulos, mesmo os que não estavam em seu nome mas no nome da S… eram de sua propriedade;
35. Todas essas 2.060 acções ficaram na posse material e detenção exclusivas do Jos…; e foi sempre o Jos… quem exerceu os direitos de voto correspondentes às referidas 2.060 acções, bem como os demais direitos que lhe cabiam enquanto proprietário exclusivo desses títulos;
36. Em resultado de operações financeiras efectuadas entre a Comimba e seus accionistas as acções da Estamparia baixaram o seu valor vindo, depois, a aumentar;
37. A participação da S… na Estamparia por via das acções veio a ser reduzida por via da cedência à Estamparia da participação que no seu capital detinham os respectivos accionistas;
38. À data da morte de seu marido, a S… vivia exclusivamente do dinheiro que este lhe dava para satisfazer as despesas domésticas;
39. O rendimento produzido pelo imóvel referido em 19) que não atingia à data da morte de Jos… os 150 contos /mensais, era apropriado integralmente por este;
40. Realizada a partilha a S… passou a dispor dessas quantias e dos capitais afectos ao usufruto que ascendiam a cerca de 150 contos;
41. A sociedade “Armazéns J e Companhia Limitada”, sustentáculo da fortuna do falecido marido da S…, entrou em crise financeira após o 25 de Abril de 1974, deixando de distribuir lucros aos sócios, perdendo os activos patrimoniais-navios, imóveis, armazéns, seca de bacalhau e estabelecimentos comerciais e sede- nos anos seguintes;
42. A sociedade “Colex” com sede em Angola entrou em crise após a descolonização, foi extinta tendo sido apurado um saldo de cerca de 700 contos correspondente a metade do capital que o Jos… detinha no seu capital que foi integralmente recebido pela S…;
43. A COMIMBA não distribuía os lucros que obtinha da sua actividade, os quais foram sempre afectos a reservas livres e subsequentemente a aumentos de capital por incorporação daquelas e à compra da ESTAMPARIA, bem como à cobertura de custos respeitantes à urbanização do terreno para construção de que era proprietária;
44. A S… dispunha de uma segunda residência que mantinha aberta todo o ano na Parede;
45. Em Lisboa tinha ao seu serviço duas empregadas domésticas e um motorista e na Parede uma terceira serviçal e jardineira a tempo parcial pagando a tais empregados mais de esc.150.000$00/mensais;
46. A Estamparia propôs aos seus sócios e estes aceitaram comprar-lhe para a carteira da própria sociedade uma percentagem das suas participações de capital;
47. A S… era detentora de um lote de 3040 acções do capital da  Estamparia;
48. No contexto daquela proposta, que aceitou, a S… entregou à sociedade 600 acções reduzindo o lote a 2.440 acções e recebendo em contrapartida da transmissão a importância de 810 contos;
49. A S…, após a morte do marido, encetou negociações com accionistas da Comimba e da Estamparia com vista à venda de acções destas duas sociedades;
50. Invocava dificuldades económicas para fazer face a dívidas fiscais.
51. O imposto sobre sucessões e doações liquidado à falecida S…ascendia a esc.4.750.454$00;
52. Na sequência do referido de 49) a 51) os accionistas da Conimba, A… e Na… compraram à S… 8000 acções ao preço unitário de esc.3.000$00 que a S… recebeu;
53. A L comprou à S acções da Estamparia;
54. A S…vendeu acções da Comimba.

B. ENQUADRAMENTO JURÍDICO
1) Delimitação do objecto do recurso.
Por organização de raciocínio, convém partir da premissa consabida, segundo a qual, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes, importando conhecer das questões nelas colocadas, à parte das que exijam apreciação oficiosa – artº 684, nº3 e 690 do CPC.
A matéria exige a análise das seguintes questões:
· O Réu (não) reclamou qualquer pretensão perante os bens;
·  A acção de simples apreciação negativa e o ónus de prova;
· Da ausência de prova do conteúdo declarado na sentença quanto aos bens e valores identificados.
2) Mérito do Recurso.
No tocante à primeira das questões inventariadas.
Vigorando entre nós o princípio da livre convicção da prova – artº396 do CCivil e artº655 do CPC, sem embargo da aplicação das regras da prova vinculada em certos casos, o recorrente sustenta que o Sr.Juiz assentou o julgado exclusivamente na regra da inversão do ónus de prova concernente às acções de simples apreciação, tese, segundo a qual seria inevitável julgar procedente a acção logo após os articulados, e uma vez que, o Réu não se arrogou de qualquer direito, e também não houve instrução sobre essa eventual factualidade.
Nesse conspecto, afirma ainda, que os Autores apenas provaram parcialmente que os referidos bens não pertenciam à falecida S…, além do mais, não tendo alegado que aquela, ou, o Réu invocassem direito sobre os mesmos, a eles incumbia o ónus de prova dos factos constitutivos do seu direito.    
Constitui matéria incontornável na abordagem do processo civil e das regas do direito probatório, a especificidade e o regime legal de excepção contemplado quanto às denominadas acções judiciais de mera declaração ou de apreciação negativa.    
A sentença recorrida definiu e identificou correctamente este tipo de acção com a lide em discussão, pelo que, circunscrevemos o debate teórico da questão ao indispensável para a compreensão da solução que preconizaremos para os autos, a seu tempo.
As acções de simples apreciação (declaratory judgments) que podem ser de facto negativo ou positivo, são aquelas em que o interessado carece apenas de tornar certo o seu direito ou facto, e requer assim a declaração judicial da sua existência ou inexistência – artº4, nº2 al) a do CPC.[1]
No caso espécie, os Autores requerem contra o Estado, que seja declarada a inexistência de direito da falecida S… (sem deixar herdeiros) sobre determinados.
Do que decorre então que os Autores que são herdeiros testamentários da quota disponível do pré-defunto Jos…, seu avô e que foi marido daquela, em regime de separação de bens, pretendem acautelar por esta acção que o Estado use da prerrogativa legal do chamamento sucessório previsto no artº2152 do CCivil.
Bom, mas, o Estado-Réu defende nas suas doutas alegações, que não se arrogou de direito algum sobre os referidos bens da de cujus, faltando, pois, o requisito necessário à causa de pedir nesta acção.
Salvo melhor opinião, a razão não está com o apelante.      
Na verdade, nas acções de simples apreciação, não significa que os interessados tenham já visto o seu pretenso direito violado ou ameaçado por outrem que dele se arrogue. De resto, este tipo de acções, fora a sua especificidade processual, potenciam um papel de relevo na paz social,[2] prevenindo futuros litígios, fixando-se atempadamente a certeza da existência ou inexistência do direito ou de um facto.
De resto, se porventura o apelante concluísse que nada tinha que ver com a relação jurídica delineada na acção, invocaria certamente a sua ilegitimidade, o que não sucedeu, perante o direito substantivo de herdeiro que assiste ao Estado em ser chamado à herança daquele que faleceu sem deixar cônjuge ou parentes sucessíveis (note-se que os AA não possuem qualquer vínculo parental com a falecida S…).
Sublinha-se que de harmonia com o disposto no artº2154 do CCivil “ a aquisição da herança pelo Estado, como sucessor legítimo, opera-se de direito, sem necessidade de aceitação, não podendo o Estado repudiá-la”.      
 Isto é, os Autores pretendem ver declarado, como indevidamente integrados no acervo hereditário de S…, os bens que enunciam, alegando para tanto, que aqueles pertenciam antes à herança de seu falecido marido Jos…, alguns não relacionados no inventário que correu termos aquando da abertura da herança, e outros, encontravam-se na posse da falecida em consequência do usufruto vitalício que lhe fora instituído pelo marido, e outros ainda produto da respectiva alienação ilegítima.
Ora, o Réu - Estado, ao tempo da morte da S…e da abertura da sua sucessão, tem desde logo, ipso jure, relativamente à herança daquela todos os direitos e obrigações como qualquer herdeiro, bastando-lhe a declaração de herança vaga, visto que não deixou herdeiros sucessíveis ou cônjuge-artº2152 do CCivil. 
Donde, o direito do Réu - Estado pré-existe à acção, não constitui sequer uma simples expectativa, e para o fazer valer não precisa de o reclamar, pelo que é contra o Estado, que os Autores dirigem esta acção de simples apreciação negativa, pretendendo demonstrar -ver reconhecido, que os referidos bens e valores não pertenciam em vida à falecida, mas integravam a herança de seu avô de quem são herdeiros testamentários, e dos quais aquela era mera usufrutuária vitalícia; ademais, o Estado em lado algum diz renunciar a esse direito. 
     Fica, nesta medida, ultrapassado o primeiro segmento recursivo apresentado pelo apelante.
Passando, agora, aos requisitos da acção de simples apreciação negativa e à invocada falta de prova por banda dos Autores.
Parecerá numa leitura apressada, que o carácter generalista do artº4, nº1 al.) a do CPC para que neste tipo de acções bastaria aos Autores uma inércia processual para o êxito da mesma.
Não é assim, na verdade.[3]
Não basta ao litigante activo uma mera incerteza subjectiva no direito, exigindo-se-lhe que tenha interesse em agir, e que a dúvida que pretende ver ultrapassada decorra de uma concreta alteralidade de um direito/ facto juridicamente relevante, não obstante se expressa na mera necessidade de reconhecimento judicial da existência ou inexistência do mesmo.[4]
No caso concreto, repetindo, já vimos que os Autores, herdeiros testamentários da quota disponível do falecido J, que foi marido de S… têm um interesse em agir qualificado, movem-se no domínio de relações jurídicas actuais, porquanto aquela morreu em 2000, momento da abertura de sucessão, em conformidade com o previsto no artº2031 do CCivil. A apreciação do objecto da lide que os Autores solicitam ao Tribunal é nessa medida, necessária, para afastar (ou não), aqueles bens da sua titularidade, deparando-se-nos, desta forma um pedido com evidentes consequências jurídicas nas relações futuras entre os Autores e o Réu - Estado.    
Afastamo-nos assim do apelante quando afirma nas suas alegações, que o Sr.Juiz se limitou à aplicação da regra da inversão do ónus de prova estabelecida no artº343 do CCivil, aliviando os Autores de qualquer esforço de prova dos requisitos da acção.
Com efeito, tal não seria correcto e não se verificou nos autos em concreto.
Na melhor interpretação do disposto naquele normativo legal quanto à inversão do ónus de prova nas acções de simples apreciação, a lei faz impender sobre o Autor a obrigação de provar os factos impeditivos e extintivos, enquanto, ao Réu caberá a prova dos factos constitutivos.[5]
 Observe-se, que na acção negatória, o autor não visa demonstrar apenas o seu direito no caso, de suceder nos bens e valores descritos, mas também, que sobre eles não existe outro titular.
Donde, os Autores alegaram e provaram que a S… morreu sem deixar herdeiros sucessíveis ou cônjuge, que foi casada em regime de separação de bens com o avô dos Autores, e que os referidos bens, alguns não relacionados no inventário daquele, e outros apenas detinha a falecida usufruto ou produto dele, caducando com a sua morte.
Que posição entendeu o Réu assumir na acção?
Digamos que, de mero observador.
Assim, de harmonia com o que lhe permite o disposto no artº490, nº3 in fine do CPC, o Réu impugnou por negação a factualidade articulada pelos autores, exceptuando os factos provados por documento autêntico, cuja falsidade não suscitou e alegou que não se arrogara de direito sobre tais bens.
Nas suas doutas alegações vem agora defender que face à posição da sentença, poderia, o Tribunal ter logo julgado procedente a acção no saneador, o que, salvo melhor opinião, não constitui ilação correcta a retirar.
Conforme atrás explanado, os Autores articularam, como lhes era exigido, e foram levados à instrução, os factos que impediriam ou extinguiriam o seu pedido, quais sejam, que a falecida nunca possui em vida rendimentos ou bens próprios, que tudo o que detinha eram bens do seu marido, dos quais era mera usufrutuária, extravasando ela os poderes deste direito.                 
Respigando os factos dos autos assentes (não impugnados pelo Réu, porque resultantes de documentos autênticos), a falecida S…era viúva de Jos…, com quem foi casada em regime de separação de bens, e por disposição de última vontade institui aquela usufrutuária da quota disponível do seu património sucessório.
O usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância - artº 1439 do CCivil. De que resulta serem características essenciais do instituto, a plenitude do gozo e a sua limitação temporal, um jus in Re aliena, única servidão pessoal do nosso direito na medida em que se dá a um indivíduo um direito sobre utilidades de um prédio alheio, direito esse que não tem de ser utilizado por intermédio de um prédio dominante. Nos termos do artº 1446 do CCivil, o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou o direito como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico. A primeira limitação - actuar como um bom pai de família - impõe ao usufrutuário a observância de regras próprias de uma pessoa de normal diligência, no uso, fruição e administração da coisa de um proprietário prudente. O respeito do destino económico da coisa refere-se tanto à sua aplicação corrente, segundo a sua própria natureza, como à que lhe vinha a ser dada pelo seu proprietário.
       O Réu, por saber não corresponder à verdade, ou, por outro motivo que não releva, dispensou-se de alegar, (cfr. inversão legal do ónus de prova que sobre ele impendia), factos que demonstrassem que os bens e valores descritos pelos Autores eram da plena propriedade da falecida S…, e não oriundos do usufruto vitalício da herança de Jos…, logo, jamais podia o Tribunal levá-los à base instrutória, como é dito nas alegações;
sibi imputet!  
De todo em todo, o Réu não pode desconhecer, que pese embora a dificuldade compreensível na satisfação desta inversão legal do ónus de prova, imposto nas acções de mera apreciação, a sua inércia na demanda pode criar uma solução jurídica que precluda definitivamente o direito de chamamento na herança desses bens da falecida S… por força do disposto no artº2152 do CCivil.[6]
Destarte, soçobra igualmente o segundo ponto da argumentação do recorrente.
Por último, a questão da insuficiência da prova dos factos alegados pelos Autores.
Desde já, dizemos que não acompanhamos esta linha de raciocínio do recorrente, seja pelo princípio e funcionamento das regras da inversão do ónus de prova que atrás abordámos, como de igual modo, pelo princípio do non liquet reverter, neste caso, contra o Réu, resguardado o devido respeito.
 Não descuramos que os factos dados como provados deixam de fora alguns vectores de alguns bens que os Autores pretendem que o Tribunal declare não serem da propriedade da autora da sucessão, como a questão do apuramento da origem dos valores monetários depositados nas contas bancárias da titularidade da falecida S…, e bem assim, no tocante à indevida e provada alienação de bens que lhe foram confiados em usufruto, o conhecimento e ou assentimento dos herdeiros de J.
Todavia, maioritariamente, decorre dos factos elencados em II, que a falecida dispunha apenas dos valores e bens que o casamento com Jos… lhe proporcionaram e no decesso deste o usufruto da quota disponível da herança do marido.
Neste domínio, poderia o Réu ter alegado (caso assim o apurasse a pré-existência de património) da exclusiva pertença da falecida coincidente com o acervo agora em causa, o que não sucedeu, como se comprova.
De resto, mencionando nas suas alegações a presunção da titularidade da falecida dos valores monetários em conta bancária, o Réu dispensou-se na contestação de qualquer defesa factual nesse sentido, sendo certo, que não está em causa uma presunção legal. 
Sabemos que vigora entre nós um sistema híbrido ou mitigado de direito probatório no processo civil (de que são expressão nomeadamente o disposto nos artº264, nº3 e 515 do CPC), assumindo uma feição marcadamente objectiva e não subjectiva; ou seja, mais importante do que determinar qual das partes trouxe a prova dos factos, é alcançar a verdade material sobre a relação jurídica em presença.[7]         
Doravante, a regra do onus probandi no direito português sobressai quando o Juiz é confrontado com a dúvida insanável sobre os factos e não lhe é permitido abster-se de julgar a causa; aí a causa será julgada em sintonia com as regras substantivas sobre qual das partes incumbe o ónus de tais factos.
O non liquet do julgador converte-se contra a parte que tem o ónus de prova, de acordo com o estabelecido no artº8, nº1 do CCivil.
Daí que, se nesta acção era ao Réu que cabia o ónus dos factos constitutivos do direito que os Autores pretendem ver reconhecido como inexistente, então, alguma lacuna na prova acerca de todos os bens indicados, resolve-se contra o Réu e a favor do pedido formulado pelos Autores.      
 Do exposto concluímos que a prova que os autos contêm permite que as respostas do julgador sejam positivas quanto aos indicados pontos da matéria de facto, sendo certo que, na apreciação da prova o Sr.Juiz não postergou as regras legais atinentes ao direito probatório, não se verificando reparo a fazer quanto à procedência integral do pedido.    
III – DECISÃO  
Pelo que fica exposto, decide este Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, e em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas a cargo do Réu.

                                          Lisboa, 29 de Abril de 2008

                                                      Isabel Salgado

                                                      Soares Curado

                                                    Roque Nogueira

____________________________________________________


[1] Questionou-se longamente no passado da admissibilidade das acções de simples apreciação que não tinham previsão no Direito Romano inspirador, cfr.a propósito Alberto dos Reis in Comentário ao CPC, I, pag.19.
[2] Cfr.Anselmo de Castro in Direito Processual Civil Declaratório. I, 1981, pag.114.
[3] Alguns autores atribuem ampla latitude a este tipo de acções, não exigindo o interesse em agir, destacando-se nesta senda, Castro Mendes in Direito Processual Civil, FDL, I, pag.320 e segts,
[4] Cfr.Manual de Processo Civil, Antunes Varela, 1984, pag.21. 
[5]Cfr. Vaz Serra in Provas, Lisboa, 1962, pag.80.
[6] Cfr.Antunes Varela in CCivil anotado, I 1982,pag.305.
[7] Antunes Varela in Manual de Processo Civil, 1982, pag.434/5.