Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1163/22.0T8FNC.L1-7
Relator: EDGAR TABORDA LOPES
Descritores: UNIÃO DE FACTO
ACÇÃO DE RECONHECIMENTO
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL DE COMPETÊNCIA ESPECIALIZADA CÍVEL
JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – A união de facto assume uma aceitação social como entidade familiar, que encontra abrigo constitucional nas normas que protegem a família (a começar pelo artigo 36.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa-CRP), enquanto realidade emergente de uma “efectividade de laços interpessoais”, conforme a interpretação e densificação do conceito efectuada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a propósito dos artigos 8.º e 12.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (que, por via dos artigos 8.º e 16.º da CRP, sempre se sobreporiam à interpretação literal do artigo 1576.º do Código Civil).

II – No nosso ordenamento jurídico português, para o que concerne à aquisição da nacionalidade, o casamento e a união de facto estão em total equiparação em termos de efeitos (sendo apenas mais exigente a forma de comprovação desta última – acção judicial – por razões evidentes).

III – Os Juízos de Família e Menores são os materialmente competentes para preparar e julgar as acções de reconhecimento judicial da união de facto para aquisição de nacionalidade portuguesa, assim preenchendo a previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário-LOSJ («Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: (…) outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família»).

IV - O artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade-LN (conjugado com o artigo 14.º, n.ºs. 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa) não pode ser interpretado como constituindo uma norma especial que derroga lei geral (o artigo 122.º, n.º1, alínea g)) uma vez que:
a - o objectivo da norma foi apenas o de obstar a que estas acções ficassem sob a égide da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais (como decorreria do artigo 26.º da LN que, por via da legislação aplicável, atribui o contencioso da nacionalidade aos Tribunais Administrativos e Fiscais);
b - no momento da publicação da LN inexistia norma semelhante à da alínea g) do artigo 122.º da LOSJ e a acção sempre seria da competência dos Tribunais Cíveis, não se tendo pretendido efetuar uma atribuição diferente daquela que na altura resultava da aplicação das regras gerais da LOFTJ;
c - podendo o legislador atribuir competência material para o tipo de processos que entender e nos instrumentos legislativos que tiver por convenientes, é linear que a Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal natural, normal ou mesmo óbvia, para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais para uma determinada acção, sendo esse o motivo pelo qual no n.º 3 do artigo 3.º, a Lei aceitou, se conformou e se adequou ao que a LOFTJ regulava, não constituindo a escolha dos Tribunais Cíveis uma opção autónoma, mas apenas um sancionar da realidade normativa existente;
d - se o legislador não criou nenhuma norma especial que contrariasse o que decorria da lei geral não faz sentido que, com a vigência da alínea g) do artigo 122.º da LOSJ, se passe a considerar ex post o n.º 3 do artigo 3.º da LN, como norma especial, quer por não haver dúvidas de que está em causa matéria de Direito da Família, quer por não haver razões materiais e substantivas que apontem para isso;
e - tal interpretação constituiria forçar o legislador a, décadas depois, dizer o que não quis dizer no momento da elaboração da norma, e contrariar a sua opção inicial de respeitar a opção da LOFTJ (hoje LOSJ) e sem qualquer razão de fundo que o justificasse;
f - tal interpretação tornaria a norma inconstitucional, porque teria o resultado de discriminar entre as várias formas de constituir família, contra o disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 36.º da CRP.
V - Também pelo critério operacional da “Natureza das Coisas”, no processo de valoração das normas de definição da competência, a consideração de que a acção de reconhecimento judicial da existência de união de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade, pudesse ser da competência dos juízos cíveis (existindo uma norma como a da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, com o enquadramento constitucional que representa), daria ao nosso edifício jurídico uma traça desconforme à que resulta da Constituição e à que decorre do sistema jurídico enquanto unidade (por colocar matérias de Direito da Família fora da competência dos Tribunais de Família, sem uma justificação substantiva minimamente compreensível).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decide-se na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
A… e A1 intentaram a presente acção declarativa de reconhecimento de união de facto, sob a forma de processo comum, contra o ESTADO PORTUGUÊS.
Liminarmente o Tribunal a quo proferiu a seguinte Decisão:
“Decorre do artigo 122.º, supra citado, que o os Juízos de Família e Menores são os que estão vocacionados para tomar decisões acerca do estado civil das pessoas e inclusivamente a respeito de situações de união de facto (veja-se, em partícula, as alíneas b) e g) do artigo 122.º, n.º 1, supra citado).
Por sua vez, o artigo 3.º, n.º 3, supra citado, da Lei 37/81, de 3 de novembro, não obsta a que se considere que é o juízo de Família e Menores o competente para conhecer a presente causa em que se pretende o reconhecimento da situação de união de facto, não se afigurando que tivesse sido esse o intuito do legislador, sendo certo que a área de família e menores não deixa de ser uma área especializada dentro da área cível.
Daí que não se concorde com a jurisprudência que interpreta o artigo 3.º, n.º 3, aludido, no sentido de que apenas os juízos locais cíveis e não os juízos centrais de família e menores têm competência para reconhecer situações de união de facto com vista à atribuição da nacionalidade portuguesa, designadamente o Ac. STJ de 03.03.2021.
Conforme decorre da epígrafe do artigo 122.º da Lei 37/81, de 3 de novembro, o mesmo define a competência dos juízos centrais de família e menores para litígios atinentes ao estado das pessoas, numa aceção que inclui as situações de união de facto. Refere o aludido acórdão, “(…) Alguns acórdãos dos Tribunais das Relações de Coimbra e de Lisboa [1], têm vindo a decidir que a competência para julgar estas ações pertence aos tribunais de competência especializada de família e menores, considerando que esse tipo de ações se enquadra na competência especializada atribuída na referida alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ, aos tribunais de família e menores, por se tratarem de ação relativas ao estado civil das pessoas, uma vez que esta designação se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto. (…)”.
Concordamos com esta visão (manifestada entre outros, pelo Ac. RC de 31.03.2020), considerando-se que é o Juízo de Família e Menores competente para conhecer uma ação como a presente em que se pretende o reconhecimento de situação de facto com vista à atribuição de nacionalidade portuguesa, à luz do artigo 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ, sendo certo, ademais, que, conforme realça o Ac. RP de 26.04.2021, a “(…) Constituição não admite a redução do conceito de família à união conjugal baseada no casamento, isto é, à família “matrimonializada”; constitucionalmente, o casal nascido da união de facto juridicamente protegida também é família (…)”. Importa notar ainda que o juízo local cível tem competência residual, apenas sendo competente em causas não atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (veja-se artigo 130.º, n.º 1, da LOSJ), pelo que, havendo juízo de competência especializada, como é o caso, fica afastada a competência do primeiro.
Em face ao exposto, verifica-se que o presente Juízo Local Cível é absolutamente incompetente para conhecer a causa, sendo competente o Juízo Central de Família e Menores.
A incompetência absoluta é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que determina a absolvição da instância, nos termos dos artigos 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1 e 576.º, n.º 2, do CPC.
Pelo exposto, absolvo o réu da instância.
As custas ficam a cargo dos autores.
Valor da casa: 30.000,01€.
Registe e notifique”.
É desta Decisão que os Autores interpuseram recurso, apresentando as suas Alegações e formulando as seguintes Conclusões:
1.ª Para que um estrangeiro que viva em união de facto há mais de três anos com nacional português possa adquirir a nacionalidade portuguesa deve ser reconhecida dita união de facto por ação interposta em tribunal cível, conforme dispõe o nº 3 do art.º 3º da Lei 37/81, de 03 de outubro, com a redação introduzida pela Lei 2/2020 de 10 de novembro.
2.ª A ação foi interposta no Tribunal Local Cível do Funchal, que declara a sua incompetência absoluta para conhecer a causa e refere como competente o juízo central de família e menores, absolvendo o réu da instância.
3.ª Interposta a ação no Juízo de Família e Menores do Funchal, com processo nº 1297/22.0T8FNC-J2 o ministério Público apresenta contestação alegando que: “o art.º 3º, nº 3 da Lei 37/81, de 03/10, dispõe que o Tribunal Cível é o competente para conhecer da presente ação.
4.ª Neste sentido o Ministério Público alega a jurisprudência dos nossos Tribunais antes assinalada e que algumas foram invocadas na ocasião da petição inicial.
5.ª O legislador quis manter uma norma especial na Lei da Nacionalidade no que respeita há adquisição da nacionalidade nos termos do nº 3 do Art.º 3 da Lei 37/81, de 03/10.
6.ª O Juízo Cível não aderiu à recente jurisprudência dos nossos tribunais.
O Ministério Público apresentou Contra-alegações, propugnando a revogação da Decisão proferida.
*
Questões a Decidir
São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do Tribunal ad quem (“exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções na contestação”, como refere, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, Almedina, 2020, página 135), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
Assim, em causa nestes autos estará a questão do Tribunal materialmente competente para a tramitação e decisão das acções de simples apreciação positiva de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto, para efeitos de atribuição da nacionalidade portuguesa (nos termos previstos no artigo 3.º da Lei da Nacionalidade).
Cumpre decidir.
Os Factos
A factualidade a considerar é a que resulta do Relatório.
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O Direito
O enquadramento e organização do sistema judiciário português tem a sua arquitectura desenhada pela Lei da Organização do Sistema Judiciário-LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) onde, no seu artigo 37.º[1] (“Extensão e limites da competência”), n.º 1, se preceitua que, na “ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território”[2].
Acresce que, nos termos do artigo 40.º (“Competência em razão da matéria”) do referido diploma:
 - os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (n.º 1 e artigo 64.º do Código de Processo Civil[3]);
 - a competência em razão da matéria é definida por esta Lei, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada (n.º 2).
O procedimento que daqui decorre na definição do Tribunal competente em razão da matéria, já José Alberto dos Reis - com a sua clareza linear - explicava (ainda que à face do, similar na matéria, Código de Processo Civil anterior) que assenta num critério geral de orientação que passa por:
- “as causas que não forem atribuídas pela lei a alguma jurisdição especial são da competência do tribunal comum”;
- a “lei, ao criar e organizar os tribunais especiais, deve delimitar, cuidadosamente, e delimita na verdade, a sua zona de competência, isto é, deve especificar as causas para as quais é competente”;
- todas “as causas que, por lei, não são da competência dalgum tribunal especial pertencem ao foro comum. De modo que a competência dos tribunais especiais determina-se por investigação directa: vai-se ver qual é, segundo a lei orgânica do tribunal, a espécie ou espécies de acções que podem ser submetidas ao seu conhecimento”;
- “a competência do foro comum determina-se por exclusão: apurado que a causa de que se trata não entra na competência de nenhum tribunal especial, conclui-se que para ela é competente o tribunal ou juízo comum. Portanto, a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais especiais e de se ter verificado que nenhuma disposição de lei submete a acção em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial”[4].
Está em causa - na situação dos autos e como já se disse - a competência material para apreciação do reconhecimento judicial da existência de uma união de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade portuguesa:
- entre os Juízos de Família e Menores (posição assumida pelo Tribunal a quo) – baseada no artigo 122.º (Competência relativa ao estado civil das pessoas e família), n.º 1, alínea g)[5] (“Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: (…) g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família”) da LOSJ;
 - e os Juízos Cíveis (posição defendida pelos Autores e pelo Ministério Público) – baseada no artigo 130.º (Competência), n.º 1 (“Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada”), da LOSJ e do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade.

Sabendo que os tribunais judiciais de 1.ª instância são, nos termos do artigo 79.º da LOSJ - por norma - os tribunais de comarca, que estes se desdobram em juízos (que podem ser de competência especializada[6], de competência genérica e de proximidade - artigo 81.º, n.º 1, da LOSJ), que compete aos juízos centrais cíveis (entre muitas outras) a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a €50.000 (artigo 117.º, n.º 1, alínea a)) e as demais competências conferidas por lei (alínea d)), tendo os juízos locais cíveis têm uma competência residual (artigo 130.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e seguindo o procedimento definido, importa começar por definir se o Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa é, ou não, competente para preparar e julgar a presente acção, por a ele estar atribuída.
De sublinhar que para a decisão desta questão, para além do artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio (Lei que adopta medidas de protecção das uniões de facto) – que define a união de facto como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos” – são ainda relevantes dois diplomas respeitantes ao direito da nacionalidade:
 - a Lei da Nacionalidade-LN (aprovada pela Lei n.º 37/81, de 03 de Outubro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 25/94, de 19 de Agosto e pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril); e
- o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa-RNP (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro).
Quanto ao primeiro (LN), o seu artigo 3.º dispõe que:
“1 - O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio.
2 - A declaração de nulidade ou anulação do casamento não prejudica a nacionalidade adquirida pelo cônjuge que o contraiu de boa-fé.
3 - O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível”[7] [8].

Quanto ao segundo (RNP), o seu artigo 14.º (Aquisição em caso de casamento ou união de facto mediante declaração de vontade) define regras que têm de ser levadas em consideração:
- no n.º 2, que o “estrangeiro que coabite há mais de três anos com português em condições análogas às dos cônjuges, independentemente do sexo, se quiser adquirir a nacionalidade deve declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto”;
- no n.º 3, que essa declaração “é instruída com certidão do assento de casamento e com certidão do assento de nascimento do cônjuge português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º”;
- no n.º 4, que tal “declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do cidadão português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto”.
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Partindo das mesmas bases normativas, os Tribunais não têm tido um entendimento uniforme quanto à competência para este tipo de acção (de simples apreciação positiva de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto, para efeitos de atribuição da nacionalidade portuguesa):
 I - no sentido da competência pertencer aos tribunais de competência especializada de família e menores (considerando que esse tipo de ações se enquadra na competência especializada atribuída na referida alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ), por se tratarem de acção relativa ao estado civil das pessoas e família (uma vez que a designação abarca as condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, onde se devem incluir as que resultam da união de facto[9]):
- Acórdãos da Relação de Lisboa de:
- 11 de Dezembro de 2018 (Processo n.º 590/18.1T8CSC.L1-6-António Santos);
- 30 de Junho de 2020 (Processo n.º 23445/19.8T8LSB.L1-José Capacete);
- 15 de Dezembro de 2020 (Processo n.º 379/20.8T8MFR.L1-7-Micaela Sousa);
- 11 de Outubro de 2022 (Processo n.º 18030/21.7T8LSB.L1-7-Micaela Sousa);
- Acórdãos da Relação de Coimbra de:
- 08 de Outubro de 2019 (Processo n.º 2998/19.6T8CBR.C1-Luís Cravo);
- 31 de Março de 2020 (Processo n.º 136/20.1T8CBR.C1-Luís Cravo);
- 23 de Junho de 2020 (Processo n.º 610/20.0T8CBR-B.C1-Fonte Ramos);
- 15 de Julho de 2020 – Decisão Sumária (Processo n.º 160/20.4T8FIG.C1-Vítor Amaral);
- Acórdão da Relação de Évora de 09 de Setembro de 2021 (Processo n.º 2394/20.2T8PTM-A.E1-Vítor Sequinho dos Santos);
- Acórdão da Relação do Porto de 26 de Abril de 2021 (Processo n.º 12397/20.1T8PRT.P1-Mendes Coelho);

 II - no sentido da competência pertencer aos tribunais de competência especializada cível (basicamente, considerando que decorre do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da LN a atribuição de competência específica ao juízo cível[10] e por nada impedir que o legislador atribua competência específica para o julgamento de determinadas acções, de forma distinta da que decorre das regras constantes da LOSJ[11]):
 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2021 (Processo n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1-João Cura Mariano);
 - Acórdãos da Relação de Lisboa[12] de:
 - 23 de Outubro de 2014 (Processo n.º 5187/10.1TCLRS.L1-8-Maria Amélia Ameixoeira);
 - 16 de Dezembro de 2021 (Processo n.º 2142/20.1T8LSB.L1-2-Carlos Castelo Branco);
 - 16 de Dezembro de 2021 (Processo n.º 787/20.4T8MTJ.L1-2-Orlando Nascimento);
 - 29 de Abril de 2022 (Processo n.º 26016/21.5T8LSB.L1-Inês Moura), com voto de vencido (Pedro Martins);
- 23 de Junho de 2022 (Processo n.º 2380/21.5T8VFX.L1-6-Anabela Calafate);
 - 07 de Julho de 2022 (Processo n.º 258/22.4T8FNC.L1-2-Inês Moura);
- 29 de Setembro de 2022 (Processo n.º 1832/21.1T8CSC.L1-6-António Santos);
 - 27 de Outubro de 2022 (Processo n.º 14919/21.1T8LSB.L1-2-Nelson Borges Carneiro), com voto de vencido (Pedro Martins);
- Acórdão da Relação do Porto de 22 de Março de 2022 (Processo n.º 34/22.4T8PRD.P1-Rodrigues Pires).
Temos, em suma, duas orientações muito definidas e com sólidos argumentos de ambos os lados, mas sobre as quais importa tomar posição.
Há desde logo que sublinhar dois pontos que deveriam ser tidos como assentes:
 - a matéria do reconhecimento da união de facto é matéria de direito da família;
 - a não existir o artigo 3.º, n.º 3, da LN a acção seria claramente da competência dos Juízos de Família e Menores;
 De facto, é insofismável que a evolução sociológica e cultural que vem já do século XX, teve continuidade no século XXI e originou alterações ao nível da família, do seu conceito e da sua vivência: tornou-se mais informal e mais afectiva, desestruturou formas e conceitos (ainda que – pelo seu carácter estrutural – sem deixar de ser o mais comum ponto central da vida das pessoas), tudo interligado com o(s) individualismo egoísta(s) que se afirma(m) e progride(m), com a volatilidade dos tempos e dos sentimentos, com a busca quase insana do prazer consumista, com a fragilidade da(s) felicidade(s) que no dia-a-dia se procuram conquistar[13].
É neste contexto que surgem as novas formas de família. Aquelas que obrigam (naturalmente) à mudança das leis para acompanhar a evolução da sociedade.
Precisamente o que sucedeu com a união de facto (que hoje – leia-se em 2021 – abrange já cerca 1.008.604 pessoas em Portugal[14], mais 38,2% que em 2011[15]).
Definida como já vimos na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, não podem subsistir dúvidas de que - assente no texto do artigo 36.º, n.º 1[16], da Constituição da República Portuguesa-CRP (que distingue “constituir família” de “contrair casamento”) – se lhe “atribui relevância jurídica como forma de constituição de família paralela ao casamento"[17], constituindo, por assim dizer, uma relação "paraconjugal"[18].
É Margarida Silva Pereira quem afirma com clareza que “os argumentos a favor do carácter familiar da união de facto adensaram-se logo com a conceptualização legal actual.
A lei é rigorosa na definição que apresenta de união de facto. Trata-se de um modo de vida em condições análogas às dos cônjuges(…). Ora, os cônjuges constituem família. Não vemos assim, como não admitir que as uniões de facto, caracterizadas por um modo de vida análogo, possam não ser fontes de relações familiares”[19].
É por isso que, de forma confortável, podemos concluir como no Acórdão da Relação de Lisboa de 30 de Junho de 2020 (Processo n.º 23445/19.8T8LSB.L1-7-José Capacete) que o “conceito de família não é estanque, antes se mostrando recetivo a fenómenos que pela sua evidência social mereçam o seu abrigo. A união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não pode já ser posta em causa, sobretudo a partir do momento em que, nos termos do n.º 1 do art.º 36.º da CRP, passou a beneficiar de proteção constitucional, devendo, por isso, ser considerada uma relação familiar, apesar de não constar do elenco das fontes jurídico-familiares do art.º 1576.º, do Código Civil”[20].
Como de forma lapidar se afirma no Acórdão da Relação do Porto de 26 de Abril de 2021 (Processo n.º 12397/20.1T8PRT.P1-Mendes Coelho), a “Constituição não admite a redução do conceito de família à união conjugal baseada no casamento, isto é, à família “matrimonializada”; constitucionalmente, o casal nascido da união de facto juridicamente protegida também é família”.
A união de facto integra hoje o Direito da Família, mesmo aceitando o estado de turbulência que o envolve: nas palavras de Jorge Duarte Pinheiro, “falar de turbulência para exprimir o estado actual do Direito da Família é capaz de ser, afinal, um eufemismo. Já não é correcta a ideia de que se está perante um ramo que regula a instituição “família”, entendida como o grupo de pessoas unidas por relações jurídicas familiares. O objecto do Direito da Família alargou-se de forma a englobar as relações familiares nominadas, ditas parafamiliares, v.g., a união de facto”[21].
O conceito de família - escreve Rossana Martingo Cruz - “não é estanque daí que esteja sempre recetivo a fenómenos que pela sua evidência social mereçam o seu abrigo”, sendo que, a “união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não parece posta em causa. Já a aceitação jurídica ainda não logrou, na nossa ótica, o ponto ótimo de equilíbrio que poderia atingir. Contudo, não deixa de se salientar alguma inclinação do legislador ordinário para considerar a união de facto como família quando, no disposto no n.º 2 do art.º 46.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, exara que para efeitos de acolhimento familiar, “(...) considera-se que constituem uma família duas pessoas casadas entre si ou que vivam uma com a outra há mais de dois anos em união de facto (...)”. Ou seja, para a integração de uma criança numa família, a união de facto cumpre o modelo exigido. Pois, para o seu saudável e harmonioso desenvolvimento uma família é indiferente se esta é unida pelo casamento ou se é uma vivência em condições análogas a este. A sua essência é a mesma e, como tal, está igualmente apta a favorecer a realização pessoal de quem a integra.
Na maioria das vezes, a realização do cidadão ocorre (também) no seio da família, por isso a vida familiar deve ser enaltecida e protegida. Nesta senda o art.º 16.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece que ‘A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado’. Cabe ao Estado fomentar diferentes formas de vivência em família, sem a fazer depender unicamente de conceitos jurídicos espartilhados que a realidade vai ultrapassando”[22].
De salientar, ainda, uma circunstância que aqui merece relevo, considerando especialmente a nossa arquitectura constitucional: como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 05 de Fevereiro de 2015 (Processo n.º 13857/14.9T8PRT.P1-Joaquim Correia Gomes), o legislador pretendeu abranger o “carácter fluído e flexível que hoje caracteriza a vida familiar, uma vez que esta não se restringe ao laços decorrentes do casamento, como sucede quando os progenitores não estão casados entre si, podendo essa relação ser ou não estável”, considerando-se a existência de “uma diversidade constitutiva da família e de distintos níveis de relacionamento da vida em família, que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a reconhecer a partir do artigo 8.º da CEDH”, o que exige uma “leitura mais consistente do segmento normativo em causa ao referir-se a “outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família” se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (…) de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar, tendo em atenção a natureza complexa e multinível que actualmente tem a família”.
Esta referência ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos-TEDH e à Convenção Europeia dos Direitos Humanos-CEDH tem a importância de:
 - permitir realçar o valor atribuído pela Constituição da República Portuguesa (decorrente da análise dos seus artigos 8.º e 16.º) à CEDH, situando-a num patamar superior ao das leis ordinárias internas[23], o que impõe que os Tribunais portugueses levem - efectivamente - em conta, a jurisprudência do TEDH[24];
 - sublinhar que o TEDH inclui a união de facto no conceito de vida familiar do artigo 8.º[25] da CEDH e de constituir família do artigo 12.º, ambos da CEDH[26] (assim, o argumento que decorresse do texto do artigo que elenca as fontes jurídico-familiares - o artigo 1576.º do Código Civil - seria facilmente ultrapassável por via da aplicação directa dos artigos 8.º e 12.º da CEDH que se situam em plano superior).
De todo o modo, tem de se dizer que no estrito respeito por tudo o que acabamos de referir, o nosso ordenamento jurídico, para o que concerne à aquisição da nacionalidade, o casamento e a união de facto estão em total equiparação em termos de efeitos (assente que seja a sua existência - o que para o casamento é simples e para a união de facto exige a acção de simples apreciação que a comprove).
Neste conspecto, a questão fulcral, implicará apenas com a relevância a dar (e a leitura a fazer) do (ao) n.º 3 do artigo 3.º da LN, aceitando-se – em tese[27] – que, a tratar-se de uma norma especial destinada a regular a matéria de uma norma geral (a do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ), esta ficasse afastada e relevasse aquela.
Embora, como é evidente, o legislador seja livre de atribuir competência material para o tipo de processos que entender e nos instrumentos legislativos que tiver por convenientes, também parece ser linear que a Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal natural, normal ou mesmo óbvia, para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais para uma determinada acção.
Este primeiro passo de consenso deveria servir de alerta e de levar-nos a pensar – enquanto intérpretes da lei – que a referência ao “tribunal cível” como sendo o competente para preparar e decidir as acções de reconhecimento da união de facto exigidas para a atribuição da nacionalidade, pode não ser essa, efectivamente, a matéria que está a pretender regular.
Perante isto, devemos começar por nos perguntar porque é que o legislador criaria uma norma especial (n.º 3 do artigo 3.º da LN), para afastar a norma geral do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ.
Como se refere no Acórdão da Relação de Évora de 09 de Setembro de 2021 (Processo n.º 2394/20.2T8PTM-A.E1-Vítor Sequinho dos Santos) a “sede própria para o legislador proceder à delimitação da competência material dos juízos dos tribunais judiciais é a LOSJ e, na realidade, é aí que aquele o faz, nomeadamente através do disposto no artigo 122.º, que delimita a competência material dos juízos de família e menores.
Acresce que não faria sentido o legislador atribuir a juízos de natureza diversa a competência material para preparar e julgar acções de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto propostas consoante tivessem por finalidade adquirir a nacionalidade portuguesa ou outra qualquer finalidade, sendo certo que estas últimas sempre cairiam no âmbito de aplicação do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ”.
Acresce dizer, ainda neste ponto, que se constata - como expressamente se assume no já referido Acórdão da Relação de Lisboa de 30 de Junho de 2020[28] (Processo n.º 23445/19.8T8LSB.L1-7-José Capacete) – “que nos diplomas que têm regulado a competência especializada dos Tribunais de Família, nomeadamente a Lei n.º 52/2008, de 28/02, e a atual LOSJ, sempre se previu como requisito da competência dos mesmos, o conhecimento de ações que versassem sobre o Direito da Família enquanto ramo do Direito Civil”[29], situação que o Supremo Tribunal de Justiça – em Acórdão de 13 de Novembro de 2012 (Processo n.º 13466/11.4T2SNT.L1.S1-João Camilo) – também constatou, ao referir que os Tribunais de Família, desde o momento inicial da sua criação pela Lei n.º 4/70, de 29 de Abril, sempre se mostraram pensados ou vocacionados para o conhecimento de acções que versem o ramo do Direito Civil do Direito da Família: ou seja – e voltando ao Acórdão da Relação – a “longa tradição, que de há muito se mostra sedimentada, é a de atribuir àqueles tribunais, de competência especializada, a competência para a preparação de julgamento em que há lugar à aplicação de normas de direito da família”.
Assim, e concluindo como no Acórdão da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 2020 (Processo n.º 379/20.8T8MFR.L1-7-Micaela Sousa), na alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, “o legislador terá pretendido abranger, em toda a sua amplitude e nuances, o contexto da vida familiar, não se restringido aos laços decorrentes do casamento, mas sim a todos os tipos de relacionamentos que podem caber no conceito de família”.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2021 (Processo n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1-João Cura Mariano) – que serve de sólido alicerce a quem defende a competência dos Juízos Cíveis – faz-se uma contextualizadora viagem às origens do n.º 3 do artigo 3.º da LN que nos pode ainda ajudar na leitura da situação jurídica que apreciamos:
A “previsão destas ações e a atribuição de competência aos tribunais cíveis para as julgar foi da responsabilidade da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, que introduziu alterações à Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, conhecida pela Lei da Nacionalidade.
A redação daquela Lei Orgânica teve na sua origem um texto de substituição elaborado na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, para onde, após a sua aprovação em Plenário, haviam baixado a Proposta de Lei n.º 32/X e os Projetos de Lei n.º 18/X, 31/X, 40/X, 170X, 173/X e 32/X, que propunham alterações à Lei da Nacionalidade, o qual foi aprovado, primeiro nessa Comissão, e posteriormente em Plenário.
Relativamente à parte final da redação do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, onde se determinou o tribunal competente para o julgamento destas ações, a mesma reproduziu o texto do Projeto de Lei n.º 40/X, da autoria do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, o qual atribuía essa competência ao tribunal cível.
Na época em que foi aprovada a Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, estava em vigor a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro.
Na altura, o artigo 64.º, n.º 1, da LOFTJ, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, determinava que podiam existir tribunais de 1.ª instância de competência especializada e de competência específica, esclarecendo o n.º 2, do mesmo artigo, que os tribunais de competência especializada conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável, enquanto os tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas pela espécie de ação ou pela forma de processo aplicável.
Por sua vez o artigo 65.º do mesmo diploma dispunha:
1 – Os tribunais judiciais podem desdobrar-se em juízos:
2 – Nos tribunais de comarca os juízos podem ser de competência genérica, especializada ou específica.
3 – Os tribunais de comarca podem ainda desdobrar-se em varas, com competência específica, quando o volume e a complexidade do serviço o justifiquem.
Aos juízos de competência genérica era atribuída competência para preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal (artigo 77.º, n.º 1, a), da LOFTJ, na redação da Lei n.º 42/2005, de 29 de agosto), e entre os tribunais de competência especializada contavam-se os tribunais de família (artigo 78.º, b), da LOFTJ), que tinham a competência atribuída nos artigos 81.º e 82.º da LOFTJ, a qual não incluía as ações do tipo das referidas pelo artigo 3.º, n.º 3, da Lei na Nacionalidade.
Podiam ser criados juízos de competência especializada cível (artigo 93.º da LOFTJ), aos quais competia a preparação e julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais (artigo 94.º da LOFTJ, na redação da Lei n.º 38/2003, de 8 de março).
Podiam ainda ser criados varas cíveis, juízos cíveis e juízos de pequena instância cível de competência específica (artigo 96.º, a) e c), da LOFTJ), competindo às primeiras preparar e julgar as ações declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal coletivo (artigo 97.º, n.º 1, a), da LOFTJ, na redação da Lei n.º 42/2005, de 29 de agosto), aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível que não sejam da competência das varas cíveis e dos juízos de pequena instância cível (artigo 99.º da LOFTJ), e aos juízos de pequena instância cível preparar e julgar as causas cíveis a que corresponda a forma de processo sumaríssimo e as causas cíveis não previstas no Código de Processo Civil a que corresponda processo especial e cuja decisão não seja suscetível de recurso ordinário (artigo 101.º da LOFTJ).
Era esta a estrutura e o regime dos tribunais judiciais, quando o legislador, pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, previu a necessidade do reconhecimento da situação de união de facto como pressuposto da aquisição da nacionalidade portuguesa por pessoa estrangeira e atribuiu a competência para esse reconhecimento ao tribunal cível.
A mesma Lei alterou o artigo 26.º da Lei da Nacionalidade, passando a constar que ao contencioso da nacionalidade são aplicáveis, nos termos gerais o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislação complementar, onde dantes se dizia que a apreciação dos recursos a que se refere o artigo anterior (recursos relativos à atribuição, aquisição ou perda de nacionalidade portuguesa) era da competência do Tribunal da Relação de Lisboa.
O legislador quando previu a possibilidade de a união de facto com cidadão nacional ser fator de aquisição da nacionalidade portuguesa, optou por definir a competência para o reconhecimento dessas situações de união de facto, atribuindo-a aos tribunais cíveis.
Com essa definição não se pretendeu efetuar uma atribuição diferente daquela que na altura resultava da aplicação das regras gerais da LOFTJ, uma vez que, não existindo a atribuição aos tribunais de família e menores da competência que hoje consta da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ, a competência para o julgamento daquelas ações sempre competiria a um tribunal cível (podia ser uma vara cível, um juízo cível e, onde não existissem estes tribunais de competência específica, os juízos de competência genérica).
O legislador com a indicação específica de qual o tribunal competente para decidir este tipo de ações, sem que essa atribuição de competência constituísse uma exceção à atribuição que resultava da aplicação das regras gerais de distribuição de competência, em razão da matéria, pelos diferentes tribunais judiciais, terá procurado afastar a possibilidade de se entender que a competência pertencia aos tribunais administrativos, face à atribuição do contencioso da nacionalidade a estes tribunais em resultado da alteração da solução do artigo 26.º da Lei na Nacionalidade, pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril. Poderia tê-lo feito, dizendo que a competência pertencia aos tribunais judiciais, deixando que as aplicações das regras gerais de distribuição de competências nesta ordem jurisdicional definissem o tribunal competente em razão da matéria. No entanto, optou por ser mais específico e, de entre os diferentes tribunais judiciais, definiu que seriam os tribunais cíveis os competentes, o que, como já vimos, se encontrava de acordo com a aplicação das regras gerais da LOFTJ, não constituindo esta definição uma exceção a essas regras”.
Ou seja, e como primeira conclusão, o objectivo da norma foi apenas o de obstar a que estas acções ficassem sob a égide da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo certo que, inexistindo à data norma semelhante à da alínea g) do artigo 122.º da LOSJ, a indicação dos Tribunais Cíveis era a que se justificava, por ser a que decorria da Lei que regulava essa matéria.
Até aqui a concordância é total, valendo a pena repetir: “não se pretendeu efetuar uma atribuição diferente daquela que na altura resultava da aplicação das regras gerais da LOFTJ, uma vez que, não existindo a atribuição aos tribunais de família e menores da competência que hoje consta da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ, a competência para o julgamento daquelas ações sempre competiria a um tribunal cível”[30].
Onde a concordância deixa de se fazer sentir é na conclusão que se segue:
Com “a aprovação da LOSJ, pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, a qual passou a definir as normas de enquadramento e organização do sistema judiciário português, na nova distribuição de competências dos tribunais judiciais, a competência para julgar este tipo de ações passou a ser dos tribunais de família e menores, devido ao aditamento da nova competência constante da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ - as ações relativas ao estado civil das pessoas e família.
Contudo, mantendo-se na Lei da Nacionalidade a atribuição de competência específica, constante do artigo 3.º, n.º 3 – o estrangeiro que à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível – e sendo esta norma, uma norma especial, ela não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário.
Assim sendo, o disposto no referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas.
Ora, dispondo este preceito, especificamente, que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral”.
Ora, se a Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal natural para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais para uma determinada acção, se o objectivo da norma foi o de obstar a que estas acções fossem da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais[31] (uma vez que o artigo 26.º da LN tornou aplicável ao contencioso da nacionalidade, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislação complementar, e, por isso, se atribuiu essa competência aos Tribunais Cíveis), e se não se vislumbra nenhuma razão ou fundamento específico e compreensível para serem os Tribunais Cíveis e não os de Família (só por finalidade última da acção ser a aquisição da nacionalidade portuguesa[32]), a partir do momento em que surgiu - no diploma adequado e que substituiu o anterior - a norma que consta da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, tacitamente a norma do n.º 3 do artigo 3.º da LN foi alterada.
A LN apenas quis respeitar a opção que na altura fazia a LOSJ, não constituindo a escolha dos Tribunais Cíveis uma opção autónoma, mas apenas um sancionar da realidade normativa existente[33].
A norma da LN não constituía uma excepção, não era uma norma especial relativamente a uma norma geral (pelo contrário, ela respeitava e conformava-se com a norma geral).
Respondendo directamente à pergunta atrás formulada[34], o legislador não criou nenhuma norma especial que contrariasse o que decorria da lei geral (LOFTJ).
Assim, alterada a LOSJ (a norma geral), não cremos que faça sentido passar agora a considerar como norma especial o n.º 3 do artigo 3.º da LN, insistindo numa especialidade ex post, injustificada e injustificável, tratando-a como uma opção de excepção que o não foi (a opção foi apenas entre os Tribunais Administrativos e Fiscais e os Tribunais Judiciais), nem faz sentido que o seja agora (por não haver dúvidas de que se trata de matéria de Direito da Família).
Fazê-lo constituiria, aliás, um ir além do que era a pretensão do legislador, contrariando-a.
Constituiria o forçar, décadas depois, o legislador a dizer precisamente o contrário do que quis no momento da elaboração da norma (porque pretendeu apenas respeitar o campo que estava coberto pela LOFTJ).
A estas considerações importa acrescer outra: sempre que numa controvérsia jurídica se apresentam argumentos relevantes de ambos os lados, vale a pena recorrer ao critério operacional da “Natureza das Coisas”[35], de que fala que Pedro Pais de Vasconcelos e que nos diz que para “a operacionalidade do método da “Natureza das Coisas” é necessário por em contacto o dever ser e o ser, mediados pela “Natureza das Coisas”. A mediação entre o ser e o dever-ser deve ser feita a dois níveis, ao nível da legislação – da criação da norma – e ao da concretização – da aplicação da norma aos factos concretos”.
In concretu, estamos colocados no plano da concretização ou, se se preferir, da aplicação da lei: “Logo na clássica tarefa de interpretar a lei, a Natureza das Coisas intervém, como manda o artigo 9º do Código Civil, na reconstituição do pensamento legislativo a partir do texto, na tomada em consideração da unidade do sistema jurídico, das circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Na interpretação da lei, de qualquer lei até da lei constitucional, deve ainda ser chamado a contribuir o modo como, na sua génese, no seu processo legislativo, foi tida em consideração e respeitada a Natureza das Coisas e corrigido, quando não tenha sido suficientemente ou não tenha sido bem tida consideração. Tratar-se-á então de uma interpretação corretiva praeter legis ou mesmo contra legis mas secundum ius[36].
Como dizia Oliveira Ascensão, a “semelhança da situação ou da apresentação faz presumir que o regime jurídico também é semelhante”[37], pelo que, perante “uma incompleição do sistema normativo que contraria o plano deste”[38], importa fazer as necessárias valorações para encontrar a solução adequada: “Podemos fazer a comparação com uma obra de arquitectura. Não dizemos que tudo o que lá não está é lacuna – pode não estar e nenhuma razão haver para estar. Mas pode faltar um bocado – um corpo do edifício, uma varanda, um telhado – que contrarie a própria traça do edifício, e só então dizemos que há lacuna”[39].
No processo de valoração das normas de Direito que temos diante de nós nestes autos, a consideração de que a acção de reconhecimento judicial da existência de união de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade, pudesse ser da competência dos juízos cíveis (existindo uma norma como a da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, com o enquadramento constitucional que representa), daria ao nosso edifício jurídico uma traça desconforme à que resulta da Constituição e à que decorre do sistema jurídico enquanto unidade (por colocar matérias de Direito da Família fora da competência dos Tribunais de Família, sem uma justificação substantiva minimamente compreensível).
Só o entendimento que aponta para a atribuição da competência aos Juízos de Família (relevando a aplicabilidade da norma da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ) corresponde à “Natureza das Coisas” (ou, se se preferir, em palavras de Manuel Henrique Mesquita, à adaptação “aos interesses em jogo, apreciados e valorados à luz das soluções ditadas pelo legislador para os problemas que directa e expressamente se ocupa”[40]).
Acresce (continuando a seguir o recente Acórdão desta Secção de 11 de Outubro de 2022, Processo n.º 18030/21.7T8LSB.L1-7-Micaela Sousa), que “estando subjacente à exigência do reconhecimento judicial da situação de união de facto um interesse nacional e público, pois que através daquela se adquire também a cidadania europeia e os benefícios correspectivos e, bem assim, outros de natureza social, política ou civil, dir-se-ia que o juízo de família, enquanto tribunal especializado, está directamente vocacionado para o apuramento de questões dessa natureza, cujas regras aplicáveis não divergem pela simples circunstância de se pretender, em última instância, obter a aquisição da nacionalidade”.
Por outro lado, também “não se afigura justificável entender que um tribunal especializado, como é o juízo de família, estará menos apetrechado para salvaguardar o interesse nacional e público, sempre subjacente às exigências legais inerentes ao procedimento para aquisição de nacionalidade”.

Assim, “para além do elemento literal (cf. art.º 9º do Código Civil), o intérprete tem de se socorrer algumas vezes dos elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a lógica, entre eles:
- o elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei e occasio legis [circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada];
 - o elemento sistemático, que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema;
 - o elemento racional ou teleológico, que atende ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, a sua razão de ser (ratio legis)”;
Por fim, não pode deixar de dar-se nota que, na defesa deste entendimento e duma forma sumária e assertiva, os votos de vencido constantes dos citados Acórdãos da Relação de Lisboa de 28 de Abril de 2022 (Processo n.º 26016/21.5T8LSB.L1) e de 27 de Outubro de 2022 (Processo n.º 14919/21.1T8LSB.L1-2), elaborados pelo Juiz Desembargador Pedro Martins, são também particularmente elucidativos. Do mais recente, transcrevem-se alguns excertos que merecem concordância:
 - “Se os autores tivessem pedido, sem mais, que o Estado fosse condenado a reconhecer que eles viviam em união de facto (e esta pretensão, só por si, preenche o pressuposto do interesse em agir – sendo que nada mais tem de ser alegado, nem, sendo-o, tem de ser considerado já que o fim mediato visado com a acção não é um elemento a ter em conta para aferição da competência do tribunal), o tribunal materialmente competente para o efeito seria o tribunal de família, por força do artigo 122/1-g da LOSJ, já que a união de facto é uma das formas que as pessoas têm de constituir família”;
- “Se os autores juntassem essa sentença numa acção de aquisição de nacionalidade de forma a, com ela, preencherem o requisito de sentença judicial resultante de uma acção de reconhecimento da união de facto (artigo 3/3, da Lei 37/81, de 03/10, na redacção já de 2006), não haveria qualquer razão aceitável para que o tribunal recusasse a sentença”;
 - “Só haveria uma razão formal, qual seja, a de que a norma da lei da nacionalidade diz que a sentença teria de ser proferida numa acção interposta no tribunal cível. Mas isto não teria qualquer justificação material, antes pelo contrário, pois que é o tribunal de família que, naturalmente, tem mais competência (no sentido de saber especializado) para aplicar as normas de direito de família, entre elas as que estabelecem os requisitos para que haja uma união de facto protegida”
 - “entender que a norma do art.º 3/3 da Lei da nacionalidade, exige (para preencher o requisito da sentença de reconhecimento) uma sentença de um tribunal cível, recusando a sentença de um tribunal de família, no âmbito de uma acção que tem de aplicar normas do direito de família, para além de contrariar as normas que visam uma maior especialização dos tribunais, é fazer dela uma interpretação inconstitucional, porque tem o resultado de discriminar entre as várias formas de constituir família[41], contra o disposto na primeira parte do n.º 1 do art.º 36 da CRP. É o mesmo que dizer que a união de facto é uma forma menos boa de constituir família ou que dá origem a uma família de menor qualidade, que não merece sequer que as acções que lhe digam respeito sejam tratadas pelo tribunal mais competente para o efeito, ao contrário das famílias constituídas por casamento”;
 - “o art.º 3/3 da Lei da nacionalidade pode ser interpretada em conformidade com a Constituição, como indicando qual o tribunal onde a acção de reconhecimento deve ser proposta, mas sem permitir a recusa de uma sentença judicial que reconhecesse a união de facto e tivesse sido proferida num tribunal de família. De resto, até bastaria interpretar aquela norma de forma correctiva, pondo-a também de acordo com a Constituição, pois que a lei terá querido apenas afastar a competência dos tribunais administrativos, tendo querido dizer que os tribunais judiciais seriam os competentes, apesar de ter escrito tribunais cíveis (neste sentido, repare-se, aliás, que o art.º 14/4 do regulamento da lei da nacionalidade, fala só numa sentença judicial, não numa sentença cível)”.
Em função de tudo o exposto e seguindo o procedimento inicialmente descrito para a definição do Tribunal competente em razão da matéria (não ser a causa atribuída a nenhuma jurisdição especial; ter a lei especificado qual o Tribunal que para a causa é competente), porque o n.º 3 do artigo 3.º da LN não constitui norma especial que excepcione o artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ, porque a acção interposta pelos Autores  é uma das «outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família», onde se abrange com toda a amplitude o contexto da vida familiar, fazendo a necessária individualização e concretização das situações jurídicas pessoais familiares (por se reportar às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, aí se incluindo as resultantes das uniões de facto - artigos 8.º e 12.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 1576.º do Código Civil, Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto e Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio), a competência material para apreciação da presente acção pertence aos Juízos de Família e Menores e não aos Juízos Cíveis: a situação sub judice enquadra-se na previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, razão pela qual, a decisão recorrida terá de ser mantida, por o Juízo Local Cível do Funchal ser materialmente incompetente.
O Recurso será, pois, julgado improcedente.
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos dos artigos 663.º e 656.º do Código de Processo Civil, decide-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida às disposições legais citadas, julgar improcedente o recurso e, em conformidade, confirmar a decisão recorrida.
As custas do recurso ficam a cargo dos Recorrentes.
*
Registe e notifique.
**
Lisboa, 06 de Dezembro de 2022
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete
_______________________________________________________
[1] Artigo 37.º da Lei Orgânica do Sistema Judicial (Extensão e limites da competência)
1 - Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território.
2 - A lei de processo fixa os factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais.
[2] Fixando-se – artigo 38.º (Fixação da competência) – no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto (salvo nos casos especialmente previstos na lei) ou de direito ocorridas na pendência da acção – n.º 1 (excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa – n.º 2).
[3] Artigo 64.º (Competência dos tribunais judiciais)
São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Acrescentando o artigo 65.º (Tribunais e secções de competência especializada) que:
“As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.
[4] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 1982, página 201.
[5] Cremos ser dispensável a abordagem da aplicabilidade da alínea b) (Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum), uma vez que o reconhecimento da existência de uma situação de união de facto, não constitui um processo de jurisdição voluntária (seja por via dos artigos 986.º a 1081.º do Código de Processo Civil, seja por via de qualquer outro específico instrumento legal), estando a alínea apenas reservada para as situações em que estão em causa questões relativas à casa de morada de família dos unidos de facto (artigo 4.º, alínea d) e 5.º, da Lei n.º 7/2001) ou de quem vive em economia comum (por aplicação dos artigos 3.º, alínea a) e 4.º, da Lei n.º 6/2001, de 11 de Maio).
Neste sentido, assertivamente, António José Fialho, Competências das secções de família e menores nas uniões de facto e na economia comum [em linha], in Blog do IPPC, 26/02/2015, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2015/02/competencias-das-seccoes-de-familia-e.html.
[6] Enumerados no n.º 3, neles se encontrando quer os juízos centrais e locais cíveis (alíneas a) e b)), quer os juízos de família e menores (alínea g)), quer os juízos de competência especializada mista (artigo 81.º, n.º 4),
[7] Carregado nosso.
[8] Este n.º 3 foi aditado pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril.
[9] No Acórdão da Relação de Lisboa de 16 de Dezembro de 2021 (Processo n.º 2142/20.1T8LSB.L1-2-Carlos Castelo Branco), resume-se de forma clara e linear esta posição, valendo a pena transcrever este excerto:
“1.ª O legislador utilizou o conceito de “estado civil” na sua aceção mais restrita, considerando o seu significado na linguagem corrente, apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo o artigo 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ, de carácter mais genérico e abrangente, no sentido de abranger toda e qualquer ação que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida;
2.ª Os Tribunais de Família, desde o momento inicial da sua criação - pela Lei n.º 4/70, de 29 de abril – e regulamentação - pelo DL n.º 8/72, de 7 de janeiro - sempre se mostraram vocacionados para o conhecimento de ações que versem o ramo do Direito Civil do Direito da Família, sendo tradição a de lhes atribuir a competência para a preparação de julgamento em que há lugar à aplicação de normas de direito da família;
3.ª A realidade jurídica portuguesa revela que, presentemente, a união de facto integra o Direito da Família;
4.ª Ao se reportar ao “estado civil das pessoas e família” (cfr. artigo 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ), o legislador terá pretendido abranger, em toda a sua amplitude e nuances, o contexto da vida familiar, não se restringido aos laços decorrentes do casamento, mas abrangendo todos os tipos de relacionamentos que podem caber no conceito de família, em conformidade, aliás, com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por referência ao artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
5.ª A natureza familiar da união de facto não se altera em função da finalidade com que o seu reconhecimento judicial seja pedido, estando em discussão uma matéria relativa ao estado civil e à família, pelo que a competência material para preparar e julgar a acção caberá necessariamente a um juízo de família e menores, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ;
6.ª A alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ abrangerá todas as acções que se reportam às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto, de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar;
7.ª A Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal própria para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais, circunstância que deve levar o intérprete a concluir que, ao mencionar o “tribunal cível” (no artigo 3.º, n.º 3) como competente para preparar e decidir as acções de reconhecimento da união de facto nos termos por ela exigidos, não pretende regular aquela matéria; e
8.ª Não faria sentido o legislador atribuir a juízos de natureza diversa a competência material para preparar e julgar acções de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto propostas consoante tivessem por finalidade adquirir a nacionalidade portuguesa ou outra qualquer finalidade, sendo certo que estas últimas sempre cairiam no âmbito de aplicação do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ”.
[10] Entendimento que parecer ser seguido também por Irene Espinheira Oliveira (Acção de reconhecimento da união de facto para aquisição de nacionalidade portuguesa [em linha], in Casamento & união de facto – questões da jurisdição civil, e-book CEJ, Novembro de 2020, página 122, disponível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=Vlcj_6pom9Y%3D&portalid=30, estando o vídeo da intervenção disponível em https://educast.fccn.pt/vod/clips/17sll6t8rq/desktop.mp4?locale=pt), sustentada fundamentalmente no entendimento literal do artigo 3.º, n.º 3, da LN.
[11] No citado Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de Outubro de 2022 (Processo n.º 18030/21.7T8LSB.L1-7-Micaela Sousa), resume-se de forma clara e linear esta posição, valendo a pena transcrever este excerto:
 “- Nada impede o legislador de atribuir competência específica para o julgamento de determinadas acções, contrariando as regras gerais de competência dos diferentes tribunais judiciais especializados constantes da LOSJ;
- A previsão destas acções e a atribuição de competência aos tribunais cíveis para as julgar foi da responsabilidade da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de Abril, que introduziu alterações à Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, vigorando, à data da sua aprovação a LOFTJ, cujo art.º 64.º, n.º 1, da LOFTJ determinava que podiam existir tribunais de 1.ª instância de competência especializada e de competência específica, esclarecendo o respectivo n.º 2 que os tribunais de competência especializada conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável, enquanto os tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas pela espécie de acção ou pela forma de processo aplicável;
- O legislador quando previu a possibilidade de a união de facto com cidadão nacional ser factor de aquisição da nacionalidade portuguesa, optou por definir a competência para o reconhecimento dessas situações de união de facto, atribuindo-a aos tribunais cíveis, o que não implicava uma atribuição diferente da que resultava da aplicação das regras gerais da LOFTJ, por não existir a atribuição aos tribunais de família e menores da competência que hoje consta da alínea g), do n.º 1, do art.º 122.º da LOSJ, pelo que a competência para o julgamento daquelas acções sempre competiria a um tribunal cível (podia ser uma vara cível, um juízo cível e, onde não existissem estes tribunais de competência específica, os juízos de competência genérica);
- Com essa indicação específica, o legislador terá pretendido afastar a possibilidade de se entender que a competência pertencia aos tribunais administrativos, face à atribuição do contencioso da nacionalidade a estes tribunais em resultado da alteração do art.º 26.º da LN, o que podia ter feito dizendo que a competência pertencia aos tribunais judiciais, mas optou por ser mais específico e definiu que seriam os tribunais cíveis os competentes;
- Apesar da entrada em vigor da LOSJ e respectivo art.º 122º, n.º 1, g), a LN manteve a atribuição de competência específica constante do art.º 3.º, n.º 3, que constitui norma especial e não foi tacitamente revogada, pelo que não é possível aplicar a regra geral constante do referido art.º artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ”.
[12] Embora atribuam competências aos juízos cíveis, não cremos que seja possível considerar a favor desta solução o decidido nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 23 de Outubro de 2014 (Processo n.º 5187/10.1TCLRS.L1-8-Maria Amélia Ameixoeira) – porque, à face da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, considerou continuar a pertencer aos juízos cíveis a competência para a atribuição da casa de morada de família nos casos da união de facto; e de 25 de Outubro de 2018 (Processo n.º 25835/17.1T8LSB.L1-6-Adeodato Brotas) – este porque nele se discutia apenas uma questão de competência internacional e não a da competência material que ora nos ocupa.
[13] Nas palavras de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (A Cultura-Mundo - Resposta a uma Sociedade Desorientada, Edições 70, 2010, página 66), a “família contemporânea regista baixa da nupcialidade, aumento de divórcios, coabitação prénupcial, aumento significativo dos nascimentos fora do casamento e baixa da fecundidade. À ordem constrangedora do passado sucedeu a família diversificada, que cada um escolhe, sem modelo nem norma absolutos, em função da sua ideia de felicidade(…)”, arrastando-se “para um processo de desinstitucionalização radical: tornou-se um assunto estritamente afectivo e psicológico, um instrumento de realização pessoal, liberto das exigências de grupo(…)”, em que a “instituição obrigatória e dirigista de antigamente metamorfoseou-se em instituição emocional e flexível, em laço contratual que se pode construir e reconstruir livremente. Tendo perdido qualquer carácter de evidência, a família tornou-se “incerta”, objecto de hesitação, de deliberação de decisão estritamente individual” (e acrescenta o mesmo Gilles Lipovetsky, que este “processo de individualização faz-se acompanhar de expectativas mais elevadas relativamente à vida de casal e, simultaneamente, de uma proliferação de conflitos e decepções do foro íntimo: enquanto o sentimento justifica exclusivamente a formação do casal, as rupturas, as crises relacionais, as desilusões vulgarizam-se” - A Felicidade Paradoxal – Ensaio Sobre a Sociedade do Hiperconsumo, Edições 70, 2007, página 146).
[14] Dados do CENSOS 2021, aqui disponíveis: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_publicacoes&PUBLICACOESpub_boui=65586079&PUBLICACOESmodo=2.
[15] “A união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não parece posta em causa” - Rossana Martingo Cruz, União de Facto Versus Casamento, Gestlegal, 2019, página 57.
[16] Artigo 36.º (Família, casamento e filiação)
1. Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade. (…)
[17] Castro Mendes, Direito da Família, edição revista por Miguel Teixeira de Sousa, AAFDL, 1990/91, página 14.
[18] Expressão de Nuno de Salter Cid, A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português, Almedina, 1996, páginas 13 e 360. Com ideia similar, Josserand, citado por Bernard Demain (La Liquidacion de Bienes en las Uniones de Hecho, Editorial Reus, SA., Madrid, 1992, página 18), coloca a união de facto relativamente ao casamento, nos mesmos termos que a posse relativamente à propriedade.
[19] Maria Margarida Silva Pereira, Direito da Família, 3.ª edição-reimpressão, AAFDL, 2020, página 646 (vd. páginas 638 a 648). Em obra anterior, vd., também, Direito da Família-Elementos de Estudo, AAFDL, 2014, páginas 90 A 96,
[20] Neste sentido, Rossana Martingo Cruz, quando afirma que “a união de facto é uma relação familiar mesmo não constando do elenco das fontes jurídico-familiares do art. 1.576.º” e que a “partir do momento em que a Constituição passa a proteger a união de facto, no n.º 1 do art. 36.º, dever-se-á considerar igualmente familiar” (União de Facto Versus Casamento, Gestlegal, 2019, páginas 57-58).
[21] O Direito da Família Contemporâneo, 5.ª Edição, Almedina, 2017, página 17.
[22] Rossana Martingo Cruz, União de Facto Versus Casamento, Gestlegal, 2019, páginas 57-58 e nota 187.
[23] Ponto em que vale a pena salientar ainda o artigo 9.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Direito de contrair casamento e de constituir família), que afirma “O direito de contrair casamento e o direito de constituir família são garantidos pelas legislações” (o que é feito precisamente “para abranger novas formas de constituir família que emerjam nos estados membros” - Margarida Silva Pereira, Direito da Família, cit., página 643), sendo que, a sua anotação oficial é ainda mais explícita: “Este artigo baseia-se no artigo 12.º da CEDH, que tem a seguinte redacção: «A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de se casar e de constituir família, segundo as leis nacionais que regem o exercício deste direito.» A redacção deste direito foi modernizada de modo a abranger os casos em que as legislações nacionais reconhecem outras formas de constituir família além do casamento. Este artigo não proíbe nem impõe a concessão do estatuto de casamento a uniões entre pessoas do mesmo sexo. Este direito, é pois, semelhante ao previsto pela CEDH, mas o seu âmbito pode ser mais alargado sempre que a legislação nacional o preveja” (disponível em https://infoeuropa.eurocid.pt/registo/000040181/documento/0001/).
[24] Desde logo e em última análise para evitar – desnecessárias - condenações do Estado Português.
Assim, o artigo 46.º, n.º 1, da CEDH obriga os Estados aderentes a respeitar as sentenças definitivas do Tribunal nos litígios em que forem partes, tendo o TEDH ido mais além, na busca de uma maior uniformização e harmonização das ordens jurídicas em causa.
Assim, no Acórdão Modinos vs. Chipre, de 22 de Abril de 1993 (aqui disponível https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-62391) fixou-se o entendimento de que “Os Estados que conservam na sua ordem jurídica normas contrárias à Convenção, tal como consta dos Acórdãos do Tribunal, mesmo que o país em causa nele não seja parte, devem conformar-se com tal jurisprudência sem que tenham de esperar para serem demandados no Tribunal Europeu”.
Daqui decorre que a jurisprudência do TEDH, toda ela e independentemente de os Estados serem ou não partes dos concretos processos, deve por todos ser considerada e respeitada.
[25] No Acórdão da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 2020 (Processo n.º 379/20.8T8MFR.L1-7-Micaela Sousa) expressamente se assinala que a “união de facto assume actualmente uma aceitação social como entidade familiar, que não é colocada em crise e encontra justificação na protecção da família, enquanto realidade emergente de uma “efectividade de laços interpessoais”, conforme a interpretação e densificação do conceito efectuada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a propósito do artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”.
[26] Vd., por todos, Margarida Silva Pereira, Direito da Família-Elementos de Estudo, AAFDL, 2014, páginas 17 a 23; e Cristina Araújo Dias, Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e as novas formas de família [em linha], Revista Jurídica, n.º 15, Universidade Portucalense, 2012, páginas 35-48, disponível em http://hdl.handle.net/11328/1102.
[27] Desde logo para respeitar o artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil, onde se preceitua que “A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”.
[28] Em linha, aliás, com os também já referidos Acórdãos da Relação de Lisboa de 11 de Dezembro de 2018 (Processo n.º 590/18.1T8CSC.L1-6-António Santos) e da Relação de Coimbra de 08 de Outubro de 2019 (Processo n.º 2998/19.6T8CSC.C1-Luís Cravo).
[29] E onde se acrescenta que “Tal como afirmado no Ac. da R.C. de 24.04.2016, citado nos acórdãos referidos na nota anterior, ao aludir, na al. g) do nº 1 do art. 122º da LOSJ, a propósito das ações relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou tal conceito na sua aceção mais restrita, considerando o seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo a citada alínea, de carácter mais genérico e abrangente, no sentido de abranger toda e qualquer ação que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida”.
[30] Assim, também, o citado Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de Outubro de 2022 (Processo n.º 18030/21.7T8LSB.L1-7-Micaela Sousa).
[31] “Se a razão de ser da menção a tribunais cíveis é a de afastar a competência dos tribunais administrativos para a apreciação desta questão, como se tem admitido, e se se tiver em conta que a norma do art.º 3º, n.º 3 da LN se insere no capítulo atinente à “Aquisição da nacionalidade”, conforme a respectiva epígrafe, integrado no TÍTULO I (“Atribuição, aquisição e perda da nacionalidade”), onde não mostra propriamente regulado o procedimento para a aquisição da nacionalidade (vertido no RNP), tal menção não impressiona em ordem a nela configurar uma norma de atribuição de competência específica, tanto mais que, como se referiu, não se afigura plausível que o legislador, em face do interesse público subjacente, tenha entendido o tribunal cível como o melhor vocacionado para a apreciação da existência e reconhecimento de uma situação de união de facto” - Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de Outubro de 2022, cit..
[32] Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de Outubro de 2022, cit. (“nem se vislumbra que tal finalidade específica justifique, por si só, a opção pelo tribunal cível”).
[33] “Aliás, para além do elemento literal da norma e do seu elemento histórico, não impressiona a ideia de que o legislador terá querido designar, em específico, o tribunal cível como o competente para este tipo de acção, até porque, como se refere no aludido acórdão, à data, face ao estatuído na LOFTJ, seriam sempre os tribunais cíveis a apreciar esta matéria” (Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de Outubro de 2022, cit.).
[34] Porque é que o legislador criaria uma norma especial (n.º 3 do artigo 3.º da LN), para afastar a norma geral do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ?
[35] Ao qual se refere Pedro Pais de Vasconcelos na sua “Última Aula”, aquando da jubilação (Última lição-A Natureza das Coisas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - 16 de Maio de 2016, edição do Autor): “A Natureza das Coisas recolhe o seu nome na tradicional Rerum Natura e pede-lhe emprestado algum do seu sentido, mas com uma modificação profunda. Não é uma natureza que as pessoas e as coisas tenham de permanente e imutável determinada pelo Criador na Criação, também não é o presente estado das coisas, seja ele qual for – é algo de mais complexo.
Na esteira de Pufendorf, a Natureza das Coisas distingue enthia physica e enthia moralia. Pufendorf diz, de modo expressivo, que os enthia physica são o que Deus fez e os enthia moralia são o que o homem fez. É semelhante.
Os enthia physica são as realidades do mundo físico, como diz a expressão, com que o homem contacta e o envolvem, que o condicionam e que o limitam. São as coisas, as pedras, os rios, as aves, as forças da natureza, a sequência dos dias e das noites, as forças cósmicas, etc.
Os enthia moralia são as realidades morais e culturais em que as pessoas vivem, os usos, os costumes e as ideologias, a maneiras de viver, as religiões, as éticas e as morais, as estéticas, as ciências, a memória e a história, etc.
Tanto os enthia physica como os enthia moralia limitam, influenciam e condicionam a acção humana na vida. O Direito, como disciplina ética que é, realiza-se em comportamentos e ações humanas e, por isso, é também limitado, influenciado e condicionado pelos enthia physica e pelos enthia moralia que constituem a Natureza das Coisas. Esta é a consequência trivial da verdade nada trivial de que o Direito só rege sobre pessoas e só pode o que as pessoas puderem.
E assim, é totalmente ineficaz uma lei ou um comando jurídico que revogue a lei da gravidade, que proíba que o quadrado da hipotenusa seja igual à soma do quadrado dos catetos ou revogue a lei da morte ou que ordene a felicidade de todos. É impossível.
Não é, já ineficaz, mas é insensata, uma lei ou um comando jurídico que determine o que é perigosos ou imprudente, que decrete, por exemplo, limites de velocidade de circulação na estrada que sejam irrazoáveis, impostos injustos, políticas criminais contraproducentes, qualifique como crimes condutas que não atentem contra o bem comum nem contra a vida em sociedade e que a generalidade das pessoas considera lícitas e aceitáveis.
Os enthia physica e os enthia moralia tanto limitam e forçam, como condicionam e influenciam o Direito” (páginas 8-9).
[36] Pedro Pais de Vasconcelos, Última lição…, cit., página 11.
[37] José de Oliveira Ascensão, O Direito-Introdução e Teoria Geral, 3.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, página 323.
[38] José de Oliveira Ascensão, O Direito…, cit. página 347.
[39] José de Oliveira Ascensão, O Direito…, cit., página 348.
[40] Manuel Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, 1990, página 184 (onde se propõe esse “caminho metodologicamente correcto para esclarecer dúvidas interpretativas ou resolver problemas de interpretação” - páginas 183-184).
[41] Carregado e sublinhado nossos.