Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3689/19.3T8LRS-F.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: ADEQUAÇÃO FORMAL
MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) A decisão que estabelece uma específica tramitação processual em substituição da tramitação legal típica é uma decisão de adequação formal e integra-se na previsão do artigo 547.º do CPC, aplicável aos processos de promoção e protecção ex vi artigo 126 da LPCJP.
II) É admissível recurso da decisão de adequação formal susceptível de contender com o princípio do contraditório.
III) Se essa decisão não foi impugnada, a tramitação nela estabelecida é tão obrigatória quanto a tramitação legal típica na ausência de tal decisão.
IV) Apenas a absoluta falta de fundamentação, que não a sua insuficiência, determina a nulidade da decisão a que se acolhe o Recorrente; à falta absoluta assimila-se a fundamentação que não permita descortinar as razões de decidir.
V) A fundamentação por remissão para despacho judicial anterior - fundamentação per relationem ou per remissionem – não determina por si só nulidade por falta de fundamentação, desde que cumpra com a razão de ser da imposição constitucional e legal da fundamentação: dar a conhecer as razões de decidir de modo que, nomeadamente, permita dissentir.
VI) A fundamentação por remissão ultrapassa o limiar da nulidade quando inviabiliza a perceptibilidade das razões de decidir.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO
Nos presentes autos de promoção e protecção que correm em favor de Á…, nascido em 13 de Abril de 2007, filho de F…e de S…, o MINISTÉRIO PÚBLICO veio recorrer da decisão que converteu em definitiva a medida cautelar provisória aplicada de acolhimento residencial, concluindo como segue as suas alegações:
I. Deverá ser fixado ao recurso efeito suspensivo da decisão impugnada porquanto o menor deverá permanecer acolhido residencialmente, não questionando o Ministério Público essa medida de promoção e protecção.
II. Sem prejuízo, o Ministério Público considera que a medida de acolhimento residencial aplicada provisoriamente não pode ser convertida em definitiva por despacho judicial, mediante simples notificação dos interessados, inclusive do menor, para se oporem, apesar da advertência de que, não se opondo, a medida é aplicada a título definitivo, ainda que por 6 meses.
III. O despacho judicial a quo violou lei expressa que determina a realização de conferência com vista à obtenção de acordo de promoção e protecção, nos termos previstos no Art. 110º, nº 1 al. b) da LPCJP.
IV. O facto do processo judicial de promoção e protecção ser de jurisdição voluntária não dispensa a realização da audição dos pais e do menor com vista à obtenção de acordo de promoção e protecção, dado o objectivo da diligência.
V. Quer o menor quer os seus pais têm que ser devidamente informados do alcance e das implicações da medida que o Tribunal considera adequada a salvaguardar todos ou alguns dos perigos enunciados no Art. 3º, nº 1 da LPCJP.
VI. A aplicação de medida de promoção e protecção ao menor depende da sua não oposição, decorrendo das disposições conjugadas dos Art. 10º, nº 1 e 110º, nº 1 al. b) da LPCP que o menor tem que ser ouvido pelo juiz, não bastando a notificação no sentido de que se nada se disser, o tribunal pode concluir que não se opõe à aplicação da medida de acolhimento residencial.
VII. De outro modo, far-se-á tábua rasa do disposto no Art. 110º, nº 1 al. b) da LPCJP e estaria na disponibilidade do Tribunal avaliar da oportunidade de cumprir ou não esta disposição legal.
VIII. Em última instância, o menor e os pais poderão nunca ser ouvidos pelo tribunal, bastando a intermediação das equipas de apoio ao tribunal que avaliam no terreno a necessidade ou não de aplicação das medidas de promoção e protecção. 
IX. “ Sendo certo que as medidas de promoção e protecção decididas no âmbito da LPCJP (art.º 34.º, alíneas a) e b)) visam afastar o perigo em que a criança se encontre e proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, certo é também que a medida de acolhimento residencial (alín. f) do n.º 1 do art.º 35.º), (…) não deixa de configurar uma privação de liberdade(…) - Acórdão do STJ, de 15.02.2018, Francisco Caetano, processo 1980/17.2T8VRS-A-SI, www.dgsi.pt.
X. Desta forma, os pais têm que dar o seu consentimento expresso em tribunal, e o menor a sua não oposição também expressa, mediante acordo de promoção e protecção à medida proposta de acolhimento residencial, ou em alternativa, tem que ser efectuado debate judicial, na falta desse acordo ( Arts. 110º, nº 1 al. c) e 114º da LPCJP ).
XI. Acresce que o despacho judicial não se mostra devidamente fundamentado, remetendo para os pressupostos do despacho que determinou o acolhimento residencial cautelar, mas que não enuncia, não escrutinando, dos relatórios remetidos aos autos, quais as razões que justificam a aplicação actual da medida em causa a título definitivo, violando o Art 154º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, sendo, por conseguinte nulo ( Art. 615º, nº 1 al. b) Código de Processo Civil). 
Termos em que a decisão judicial a quo deve ser revogada, sendo substituída por outra que designe data para conferência ao abrigo do disposto no Art., 110º, nº 1 al. b) da LCPJP e, assim,  Superiormente, V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA.  
Não houve contra-alegações.
Cumprido o demais legal, cumpre apreciar e decidir, já que a tal nada obsta.
II) DO RECURSO
1. Apreciação liminar
O Ministério Público, recorrente, veio defender que deveria ser fixado efeito suspensivo ao recurso porquanto o menor deverá permanecer acolhido residencialmente, não questionando o Ministério Público essa medida de promoção e protecção.
A Ex.ma Senhora Juiz fixou ao recurso efeito meramente devolutivo, nos termos do artigo 124.º, n.º 2, da LPCJP.
A favor da criança havia sido estabelecida medida cautelar e provisória de acolhimento residencial. A decisão sob recurso converteu tal medida em definitiva. O Recorrente concorda em que a medida de acolhimento residencial se deve manter, embora a título provisório.
No caso, a diferença entre efeito suspensivo ou devolutivo consiste apenas em a medida ter carácter provisório (no primeiro caso) ou “provisoriamente” definitivo (no segundo). A situação da criança é exactamente a mesma e a protecção de que beneficia igual.
Em consequência, não se vê qualquer motivo para alterar a decisão que fixou o efeito.
O Ministério Público veio recorrer de decisão proferida de acordo com sua promoção anterior, indicando que entende que tal não impede o recurso.
Assim é. A questão foi, aliás, objecto de uniformização de jurisprudência pelo acórdão com o n.º 046444 proferido em 27 de Outubro de 1994 (Costa Pereira)[1], em sede processual penal, não se vendo que outras razões militem no sentido de entender diversamente em sede de promoção e protecção.
2. Objeto
Tendo em atenção as conclusões do Recorrente e inexistindo questões de conhecimento oficioso - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, são as seguintes as questões a decidir:
1. Da violação da tramitação legal na prolação da decisão recorrida
2. Da nulidade por falta de fundamentação
III) FUNDAMENTAÇÃO
1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade a atender é a que resulta da tramitação dos autos de que se salienta o seguinte:
1. Á…. nasceu em 13 de Abril de 2007, filho de F.. e de S….
2. Em 27 de Agosto de 2019 foi lavrada nos autos principais a seguinte promoção: Atento o princípio da simplificação e agilização processual (art.º 100 da LPCJP e art.º 6º do RGPTC), p. se notifique os intervenientes processuais para declararem se concordam com a conversão da medida cautelar de acolhimento residencial em medida definitiva de acolhimento institucional, entendendo-se na afirmativa caso nada declarem (art.º 35/1-f) da LPCJP).
4. Em 29 de Agosto de 2019, concordando com a promoção, a Ex.ma Senhora Juiz determinou a notificação nos seus precisos termos, tendo sido notificados os pais, a criança e o Ministério Público.
5. Em 8 de Maio de 2019 teve lugar conferência para obtenção de acordo de promoção e protecção.
2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
2.1. Desrespeito pela tramitação legal
2.1.1. A questão colocada pelo Ministério Público é a de saber se a medida cautelar e provisória de acolhimento residencial pode ser convertida em definitiva por despacho proferido após notificação do menor e dos pais para se pronunciarem sobre a conversão, com a indicação de que a mesma seria decidida por essa via, sem audição presencial e sem realização da conferência a que alude o artigo 110.º, n.º 1, alínea b), da LPCJP.
Para dela conhecer é necessário apreciar a tramitação ocorrida, descrita nos factos assentes.
Dela decorre que nos presentes autos o Ex.mo Senhor Juiz proferiu decisão que determinou uma específica tramitação processual em substituição da tramitação legal típica: apreciação da aplicação da medida definitiva por despacho e após notificação para pronúncia, sem audição presencial (advirta-se que nos autos houve conferência para obtenção de acordo de promoção e protecção).
A decisão mencionada integra-se na previsão do artigo 547.º do CPC, aplicável nos autos ex vi artigo 126 da LPCJP. Dispõe aquela norma que o juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.
O referido despacho foi notificado aos diversos intervenientes processuais, entre os quais o Ministério Público, não tendo sido impugnado nem antes nem no presente recurso.
2.1.2. O regime de recurso da decisão em causa encontra-se estabelecido no artigo 630.º, n.º 2, do CPC norma que estabelece um regime geral de irrecorribilidade das decisões de adequação formal, com três excepções: contender a decisão com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios.
 Ora, no caso dos autos e com o fundamento invocado, a decisão de adequação formal era susceptível de contender com o princípio do contraditório, sendo por consequência admissível recurso.
Na verdade, o princípio do contraditório não se basta com a mera oportunidade formal de as partes se pronunciarem sobre as questões suscitadas, antes exige que possam intervir de forma efectiva no processo comunicacional de que a decisão judicial constitui termo final[2].
Pedra angular de um processo civil equitativo e justo o princípio do contraditório consubstancia-se na possibilidade de a parte participar ativamente em todo o processo, exprimindo-se nos planos da alegação, da prova e do direito[3].
Desse modo, consagra a lei processual civil, na leitura que dela vem sufragando o Tribunal Constitucional, que a correcta compreensão do princípio não se basta com a garantia de que as partes tenham a possibilidade de intervir no processo, tendo conhecimento e possibilidade de pronúncia quanto aos pedidos que deduzem ou contra si são deduzidos. Incluindo tal garantia, implica ainda que as partes possam pronunciar-se quanto às questões efectivas a decidir, possibilitando que a decisão seja o culminar de um processo argumentativo justo e equitativo que permita que cada um dos justiciáveis faça ouvir a sua voz, assim trazendo ao decisor a sua perspectiva e, nessa medida, assim influenciando a decisão.
Como lapidarmente refere o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 17 de Junho de 2014, proferido no processo 233/2000.C2.S1 (Maria Clara Sottomayor):
Admitimos que se deu um avanço no entendimento do princípio do contraditório, na nossa lei processual, perdendo assim actualidade a concepção restrita do mesmo, segundo a qual o processo consistia numa discussão duma parte contra a outra, com o juiz, acima delas, a decidir. Mais do que uma discussão dialéctica entre as partes, está agora aberto o caminho para que estas “influenciem directamente” a decisão. Mas a mais a nossa lei não chega, pois a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja.
É neste contexto que o Recorrente se coloca ao abordar a questão da audição da criança e da inviabilidade de a substituir pela indicada notificação.
Admitindo que a decisão em si é passível de recurso, afigura-se que tal recurso não se encontra indicado entre os recursos autónomos – artigo 644.º, n.º 2, do CPC -, podendo ser interposto com o que o for da decisão final – n.º 3 da norma citada.
Não se ignora posição diversa no sentido de que o recurso seria autónomo. Assim, Lebre de Freitas admite que a norma do art. 630-2 talvez deva, por isso, ser racionalmente interpretada no sentido de só excluir o recurso autónomo de apelação das decisões de gestão processual, que não sejam de mero expediente (…), deixando aberta a possibilidade da sua impugnação com a sentença final, nos termos do art. 644-3. Suscetíveis, pelo contrário, de apelação autónoma (cf. art. 644-2-i, bem como o art. 644-2-d) são as decisões que contendam com os princípios do contraditório ou da igualdade ou com as normas que regulam a introdução dos factos no processo e a admissibilidade dos meios probatórios»[4].
A questão é, porém, indiferente no caso. Nem autonomamente nem com a decisão final a referida decisão foi impugnada, nomeadamente no presente recurso que se cinge à impugnação da decisão final, cuja revogação pede para prosseguirem os autos com conferência para obtenção de acordo de promoção e protecção.
Na verdade, limita-se o Recorrente a pedir a revogação da decisão que converteu a medida por entender que a mesma não obedeceu à forma processual legal, quando não impugnou a decisão que verdadeiramente postergou essa forma legal, adoptando outra. Em consequência, está formado caso julgado formal quanto ao decidido sobre tramitação.
Nem contra tal pode argumentar-se esgrimindo a natureza de jurisdição voluntária do processo – artigo 100.º da LPCJP.
Certo é que, em processos desta natureza, a formação de caso julgado formal não impede a alteração das resoluções, como o dispõe o artigo 988.º, n.º 1, do CPC, ao determinar que nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso[5].
Essa alteração constitui, todavia, questão a suscitar no tribunal que tomou a resolução, não sendo objecto do presente recurso.
Ao impugnar a decisão ora recorrida com fundamento em que a mesma não segue a tramitação legal, esquece o Ministério Público – repita-se - que nos autos ficou estabelecida tramitação diversa, sem impugnação, a qual é tão obrigatória quanto a tramitação legal.
Efectuada a adequação, ou seja, estabelecida pelo juiz uma determinada sequência processual, esta torna-se tão vinculativa como aquela que resulta da fixada na lei. Desta consideração resulta que a violação da tramitação determinada pelo juiz pode constituir nulidade processual nos mesmos termos que a preterição da sequência fixada pela lei[6].
Do que se conclui que a decisão de alteração da tramitação formal do processo concreto transitou em julgado no processo e apenas pode ser alterada naquelas indicadas circunstâncias. Não pode esta Relação apreciar do mérito da adequação formal, porque tal não lhe foi pedido.
Em consequência, improcede nesta parte o recurso.
2.2. Da nulidade por falta de fundamentação
2.2.1. A decisão recorrida é do seguinte teor:
Revisão da medida e conversão em definitiva:
Encontra-se aplicada nos autos medida provisória de acolhimento institucional a favor do menor Á…s, tendo sido proferido despacho, a determinar a notificação dos intervenientes processuais sobre a revisão da medida ser efetuada por escrito, com a sua conversão em definitiva ser efetuada por despacho, nada tendo sido dito ou oposto.
Por inalterados os pressupostos de facto e de direito em que se baseou a decisão de aplicação, a título provisório, a favor do menor … da medida de acolhimento institucional, ao abrigo do disposto nos arts 62º, nº 3, al. c) da LPCJP e 6º, nº do Código de Processo Civil, decido manter a medida de promoção e proteção de acolhimento em instituição (“acolhimento residencial” na terminologia legal) aplicada ao referido menor, convertendo-a em definitiva, com a duração de ano e revisão em seis meses.
Sem custas.
Registe e notifique.
Comunique à instituição de acolhimento e à Segurança Social.
Oportunamente solicite à Segurança Social a elaboração de novo relatório de acompanhamento e cumpra o disposto no artº 85º da LPCJP, sendo ambos por forma a permitir a revisão da medida, dentro de seis meses.
Entende o Recorrente que a mesma é nula por falta de fundamentação por isso que remetendo para os pressupostos do despacho que determinou o acolhimento residencial cautelar, mas que não enuncia, não escrutinando, dos relatórios remetidos aos autos, quais as razões que justificam a aplicação actual da medida em causa a título definitivo, violando o Art 154º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, sendo, por conseguinte nulo ( Art. 615º, nº 1 al. b) Código de Processo Civil).
2.2.2. Dispõe o artigo 205º, nº 1, da CRP, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O primeiro requisito de imposição de fundamentação é o da natureza da decisão em causa, expressa pela negativa «decisões que não sejam de mero expediente». Estatui o artigo 152º nº 4, do CPC, serem decisões de mero expediente as que se destinam a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesse entre as partes.
A decisão em causa aplicou uma medida de protecção de criança, convertendo em definitiva medida que até aí tinha carácter cautelar e provisório.
É apodíctico que a decisão que dessa matéria se ocupa não é uma decisão de mera regulação do processo, uma vez que tem interferência na regulação dos direitos das pessoas numa dimensão essencial. Está, por isso, o julgador vinculado à sua fundamentação, nos termos das normas citadas.
A Constituição não cuida da concretização do alcance do dever de fundamentação, antes determina que as decisões são fundamentadas nos termos definidos na lei. Deve assim buscar-se a delimitação do dever de fundamentação na lei ordinária.
O artigo 154º, do CPC, ocupa-se justamente da densificação desse dever estatuindo, desde logo, que o mesmo se estende a todos os pedidos controvertidos e a todas as dúvidas suscitadas (necessariamente aquelas que influenciem a decisão e que não sejam meramente académicas, lúdicas, etc.).
Esta fundamentação, suscitada pela controvérsia e pela dúvida, deve, em consequência, incidir sobre a explicitação dos motivos que levaram o julgador a dirimir a controvérsia no sentido em que o fez.
A fundamentação, expressão da legitimidade de exercício jurisdicional, deve satisfazer este requisito ou seja, deve ser a necessária a explicitar as razões da decisão enquanto escolha e a suficiente a que essas razões resultem patentes para os intervenientes processuais e para a sociedade.
Ou seja, não impõe uma enumeração exaustiva de todas as soluções possíveis mas antes se basta com indicação das determinantes que a fundam e que simultaneamente arredam outras possibilidades.
2.2.3. É pacífica a jurisprudência no sentido de que só a absoluta falta de fundamentação, não apenas a sua insuficiência, determina a nulidade da decisão a que se acolhe o Recorrente. Falta absoluta à qual se assimila a fundamentação que não permita descortinar as razões de decidir, o que se impõe face à razão de ser do dever de fundamentar que acima abordámos.
Nesse sentido vejam-se por todos os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 2016 proferido no processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1 (Fernanda Isabel Pereira) e de 15 de Maio de 2019 proferido no processo 835/15.0T8LRA.C3.S1 (Ribeiro Cardoso) e desta Relação de 8 de Março de 2018, proferido no processo 908/17.4T8FNC-B.L1.8 (Teresa Prazeres Pais)[7].
No caso a nulidade invocada encontra fundamento, na perspectiva do Recorrente, na remissão para os fundamentos constantes de anterior decisão.
Na sua decisão, efectivamente, o Ex.mo Senhor Juiz fez apelo aos fundamentos de facto e de direito constantes da decisão de aplicação da medida provisória de acolhimento residencial, indicando as normas a que se acolhia.
Ou seja, utilizou o modo de fundamentação per relationem ou per remissionem. Determina tal método a nulidade por falta de fundamentação? A resposta tem de assentar na já indicada razão de ser da estatuição constitucional e legal: dar a conhecer as razões de decidir de modo que, nomeadamente, permita dissentir.
Na verdade, inexiste proscrição legal da fundamentação por remissão, com a excepção do artigo 154.º, n.º 2, I.ª parte, do CPC, inaplicável ao caso. A mesma remissão está aliás prevista quanto à Relação no artigo 663.º, n.º 5 e 6, do CPC.
O Tribunal Constitucional julgou já bastante às exigências constitucionais tal tipo de fundamentação, aliás no caso, talvez de maior exigência dela, de aplicação de medida de prisão preventiva. Veja-se a respeito o acórdão 147/2000 de 21 de Março de 200 (Artur Maurício). Nele se lê:
O que a fundamentação visa – disse-se já também – é assegurar a ponderação do juízo decisório e permitir às partes – no caso, ao arguido – o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos.
(…)
Mas se isto é assim, não é o facto de, na sua fundamentação, o despacho judicial remeter para as razões expressas noutras peças processuais que, só por si, põe em causa a razão de ser da imposição constitucional. Sucede, apenas, que a leitura do despacho em causa não é directa e imediata, como o seria se o acto decisório contivesse, ele mesmo, as razões do decidido; ela só se completa com o conhecimento das outras peças processuais para que o despacho remete, o que, de todo, não compromete as garantias de defesa do arguido.
No limite, poderia, apenas, suscitar dúvidas a constitucionalidade da norma em causa, nos casos em que, pelo facto da remissão, a acessibilidade dos fundamentos se tornasse labiríntica ou particularmente complexa. Mas não é o caso.
O que se deixa dito e que poderá justificar a conformidade constitucional de uma norma que expressamente permitisse a fundamentação por remissão não nos desvia da questão concreta de constitucionalidade agora em causa.
  Ora, concluindo que a Constituição não obsta à fundamentação por remissão e não impõe, por isso, que a ela corresponda a nulidade do acto decisório, por maioria de razão se convirá que a não violará a sujeição do despacho que ordena a prisão preventiva, proferido com tal forma de fundamentação, ao regime das irregularidades em processo penal, por força das normas do Título V do Livro II, em particular do artigo 123º nº 1, do CPP.
Em conclusão se dirá que a fundamentação por remissão não é fundamentação que se recomende, mas não ultrapassa o limiar da nulidade quando não inviabiliza a perceptibilidade das razões de decidir.
Ora, no caso, é perfeitamente claro que a razão de decidir é a consideração de que a instrução efectuada confirmou os fundamentos de facto constantes da decisão provisória, sendo idêntico o direito aplicável.
Improcede o recurso também quanto a esta questão e, assim, in totum.
IV) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Sem custas – artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do RCP.
Notifique, nomeadamente o Ministério Público.
*
Lisboa, 5 de Dezembro de 2019
Ana de Azeredo Coelho
Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves
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[1] Com o seguinte sumário: Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 52.º e 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a origem, natureza e estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do Ministério Público, tem este legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.
[2] Cf. Jürgen Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1992.
[3] Cf. José Lebre de Freitas, Introdução ao processo Civil - conceito e princípios gerais à luz do novo código, Coimbra Editora 2013, p. 124 e ss
[4] Idem p. 231 e ss.
[5] Nesse sentido, que é pacífico, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2016, proferido no processo 671/12.5TBBCL.G1.S1 (Alexandre Reis).  
[6] Pedro Madeira de Brito, O novo princípio da adequação formal in Aspectos do novo processo civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 63.
[7] Como é entendimento pacífico da doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artº 615º.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.