Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1436/14.5T8PDL-C.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITOS LABORAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: “I–O privilégio imobiliário especial, concedido aos créditos laborais pelo artigo 333.º, n.º 1, al, b), do Código do Trabalho, abrange todos os bens imóveis integrantes do património da insolvente afetos ao desenvolvimento da respetiva atividade empresarial, exigindo-se uma conexão, em termos funcionais, entre a atividade dos trabalhadores reclamantes e a unidade empresarial da insolvente, integrada por tais imóveis.
II–Tendo sido apreendidos para a massa insolvente dois imóveis pertencentes à insolvente, sendo um, um armazém e o outro um espaço destinado em exclusivo ao comércio, é de presumir terem estado tais imóveis afetos à organização empresarial da insolvente, uma sociedade comercial por quotas, tendo por objeto o comércio de mobiliário, artes decorativas, eletrodomésticos, eletrificações e colocação de alcatifas.
III–Nessa circunstância, os créditos dos trabalhadores da insolvente – distribuidores, vendedores, empregados de limpeza, fiéis de armazém, gerente de loja, administrativos – gozam de privilégio imobiliário sobre os referidos imóveis.”.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


I–Nos autos de insolvência em que foi declarado insolvente P.J. M.J., Lda., apresentou o nomeado Administrador de Insolvência, uma relação – retificada – de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do art.º 129º do C.I.R.E, como de folhas 26 a 29 resulta.

Merecendo tal lista impugnação por parte da credora I. da C.R. Melo – por alegada incorreção do montante do crédito por si reclamado e reconhecido – e da credora Banif – Banco Internacional do Funchal, S. A. - esta pugnando por que a graduação dos créditos reclamados pelos trabalhadores que referencia, não sejam graduados como garantidos por privilégio imobiliário especial sobre o produto da venda dos imóveis que identifica, e “sobre os quais detém hipoteca.”.

Houve resposta do Administrador da Insolvência à impugnação deduzida pela credora Banif, S. A., sustentando a manutenção dos aludidos créditos laborais dos trabalhadores da insolvente, como gozando de privilégio imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos para a massa insolvente.

Por despacho reproduzido a folhas 117, foi julgada extemporânea a impugnação apresentada pela credora I. da C.R.Melo, dando-se a mesma sem efeito.
 
Inexistindo comissão de credores e dispensada a realização de tentativa de conciliação, foi proferido saneador-sentença, julgando improcedente a impugnação deduzida pela credora Banif, S. A., e “verificados e graduados os créditos nos precisos termos constantes da lista dos credores reconhecidos, que homologo, e nos moldes acima expostos”.

Inconformado, recorreu o credor Banif, S. A., dizendo, em conclusões das suas alegações:

“A)Veio o Tribunal a quo julgar improcedente a impugnação à lista de credores definitiva apresentada pela ora apelante, graduando m primeiro lugar os créditos dos trabalhadores
A.F.P.Ventura, A.P.R.M.Machado, A.J.S.Ponte, C.A.Frias, F.M.M., S.Costa, I. da C.R.Melo, J.A.F.Costa, J.H.C.Oliveira, J.M.S.Santos, M.R.M.Afonso, M.G.S.Colaço e R.S.F.Lourenço, tendo para o efeito, qualificado os referidos créditos como sendo créditos de natureza privilegiada, gozando de privilégio imobiliário especial sobre o produto da venda dos imóveis identificados no ponto 3° dos factos dados como assentes.
B)Sucede que, os créditos daqueles trabalhadores não gozam de tal privilégio.
C)Com efeito, e para que sejam reconhecidos como créditos com privilégio imobiliário especial, é necessário que o trabalhador alegue e prove o local onde prestava a sua actividade laboral, o que, no presente caso não sucedeu.
D)Com efeito, aqueles trabalhadores não indicaram nem provaram que os imóveis em questão, sobre os quais a ora apelante é credora hipotecária, era o local onde prestavam a sua actividade laboral.
E)Logo, não poderão os créditos dos referidos trabalhadores serem verificados e graduados como créditos com privilégio imobiliário especial sobre o produto da venda dos imóveis identificados no ponto 3° dos factos dados como assentes, com preferência sobre o crédito hipotecário da ora apelante.
F)Até porque, ao não se entender assim, estar-se-ia a cair em abuso de direito, com prejuízos colossais para todos os credores hipotecários.
G)Doutra forma, o privilégio incidiria sobre todos os imóveis do empregador nenhuma diferença existindo entre um privilégio imobiliário especial ora contemplado na lei e o privilégio imobiliário geral contemplado na legislação anterior e que o legislador afastou inequivocamente
H)Por tudo quanto exposto, não se afiguram preenchidos os requisitos que permitissem a atribuição da natureza privilegiada (privilégio imobiliário especial) ao crédito dos referidos trabalhadores, sobre os referidos imóveis, de que a ora apelante é credora hipotecária.
I)Pelo que, sempre terá a ora Apelante de ver o seu crédito reconhecido à frente dos créditos dos indicados trabalhadores.
J)Assim, terá a ora apelante de ver o seu crédito reconhecido com preferência aos créditos daqueles trabalhadores quanto ao produto da venda dos imóveis identificados no ponto 3° dos factos dados como assentes.
L)A sentença recorrida violou o artigo 333.°, n.° 1 do Código do Trabalho e artigos 342.°, 604.° e 686.° todos do Código Civil.”.

Remata com a revogação da sentença recorrida, “julgando-se procedente a impugnação à lista de credores definitiva apresentada pela ora apelante, consequentemente, verificando-se, reconhecendo-se e graduando-se o crédito da apelante com preferência sobre os créditos dos trabalhadores (…) no que respeita ao produto da venda dos imóveis identificados no ponto 3° dos factos dados como assentes (…)”.

Não se mostram produzidas contra-alegações.

II–Substituídos que foram os vistos pela remessa às Exm.as Adjuntas do “histórico” do processo, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 635º, n.º 3, 639º, n.º 3, 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, do Código de Processo Civil – é questão proposta à resolução deste Tribunal, a de saber se, in casu, os créditos laborais reclamados beneficiam de privilégio imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos para a massa insolvente.
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Considerou-se assente, na 1ª instância, sem impugnação a propósito, e nada impondo diversamente, a factualidade seguinte:
“1.-a devedora foi declarada insolvente por sentença de 26 de dezembro de 2014, transitada em julgado, proferida nos autos principais;
2.-a devedora tinha por objeto o comércio de mobiliário, artes decorativas, eletrodomésticos, eletrificações e colocação de alcatifas (facto assente na cit. sentença de declaração de insolvência com referência ao alegado no artigo 1º da petição inicial);
3.-a devedora era titular, para além do mais, dos dois seguintes imóveis, que foram apreendidos para a massa insolvente: a) prédio urbano sito na Rua do P..., nº..., freguesia de S. M..., concelho de V.F.C., destinado a comércio, inscrito na Conservatória do Registo Predial de V.F.C. sob o nº ...0/1....... da dita freguesia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...º; b) prédio urbano sito na Rua da B.N. em comunicação com a Rua do L., nº ..., inscrito na Conservatória do Registo Predial de P.D. sob o nº ...9/2....... da dita freguesia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...º (auto de apreensão a fls. 2 do apenso “A”);
4.-os imóveis referidos no ponto 3. têm hipotecas constituídas a favor da credora impugnante (artigo 1º da impugnação, não contestado);
5.-O Senhor Administrador de Insolvência reconheceu os créditos reclamados pelos credores A.F.P.Ventura, A.P.R.M.Machado, A. J.S.Ponte, C.A. Frias, F.M.M.S.Costa, I. da C.R.Melo, José A. F. Costa, J.H.C.Oliveira, J.M.S.Santos, M.R.M.Afonso, M.G.S. Colaço e R.S.F.Lourenço, no montante, respetivamente, de 7.394,22 €, 14.674,41 €, 2.383,11€, 27.272,42 €, 10.993,17 €, 6.707,18 €, 21.198,99 €, 9.650,75 €, 3.749,93 €, 8.132,32 €, 19.669,11 € e 19.674,48 €, e classificou-os como privilegiados com reporte aos imóveis referidos no ponto 3. (lista dos credores reconhecidos);
6.-A.F.P.Ventura exerceu funções de distribuidor de mobiliário e de eletrodomésticos (reclamação de créditos, dado de facto não impugnado);
7.-A.P.R.M.Machado exerceu funções de vendas e administrativas (reclamação de créditos, dado de facto não impugnado);
8.-C.A.Frias exerceu funções de distribuidor (reclamação de créditos, dado de facto não impugnado);
9.-F.M.M.S.Costa exerceu funções de empregada de limpeza, mormente de escritórios e lojas (reclamação de créditos, dado de facto não impugnado);
10.-I. da C.R.Melo exerceu funções de empregada de vendedora (contrato de trabalho junto à reclamação de créditos, dado de facto não impugnado);
11.-J.A.F.Costa exerceu funções de distribuidor (reclamação de créditos, dado de facto não impugnado);
12.-J.H.C.Oliveira exerceu funções de distribuidor de mobiliário e de eletrodomésticos (reclamação de créditos, dado de facto não impugnado);
13.-J.M.S.Santos exerceu funções de fiel de armazém (reclamação de créditos, dado de facto não impugnado);
14.-M.R.M.Afonso exerceu funções de fiel gerente de loja, mormente planeamento e organização do espaço comercial, gestão da equipa de vendas e responsável pelas compras das áreas de mobiliário e decoração (reclamação de créditos, dado de facto não impugnado);
15.-M.G.S.Colaço exerceu funções de primeira escriturária (reclamação de créditos, dado de facto não impugnado);
16.-R.S.F.Lourenço exerceu funções administrativas, secretariado e informáticas (reclamação de créditos, dado de facto não impugnado);
17.-Dos referidos trabalhadores, apenas I. da C.R.Melo e M.R.M. Afonso se encontravam ao serviço à data da declaração de insolvência (documento nº 8 junto com a petição inicial a fls. 15v. dos autos principais).”.
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Vejamos.

1.-Nos termos do artigo 333º, do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, e no que agora interessa:
“1–Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) (…)
b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.
2–A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) (…)
b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.”.

Por outro lado, decorre do artigo do 128º, n.º 1, alínea c), do CIRE, que os credores da insolvência devem, no requerimento de reclamação de créditos, “acompanhado de todos os elementos probatórios de que disponham”, indicar a “sua natureza comum, subordinada, privilegiada, ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objeto da garantia e respetivos dados de identificação registral, se aplicável”.

Sendo que de acordo com o artigo 47º, n.º 4, alínea a), do C.I.R.E., para efeitos daquele código, são “«Garantidos» e «privilegiados» os créditos que beneficiem, respetivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes.”.
Ou seja, e no que agora interessa, são créditos de natureza garantida, também, os que beneficiem de privilégio imobiliário especial.

2.-Tendo-se considerado na sentença recorrida, seguindo o que ali foi entendido como correspondendo à jurisprudência recente maioritária, “que os créditos reclamados pelos trabalhadores gozam de privilégio imobiliário especial sobre os imóveis afetos à atividade comercial da insolvente, independentemente de qualquer uma concreta conexão específica entre os bens  e a atividade laboral daqueles, seja esta num ou noutro local ou, inclusivamente, no exterior (veja-se, por exemplo, a atividade de distribuição dos trabalhadores A.F.P.Ventura, C.A.Frias, J.A.F. Costa e J.H.C.Oliveira).”.

E, bem assim, que “é inequívoco que os credores da insolvência, incluindo os trabalhadores, devem indicar a natureza do crédito e os bens objeto de garantia (art. 128º nº 1 al. c) do CIRE), porquanto se tratam de factos constitutivos do seu direito (art. 342º nº 1 do Código Civil).”, sendo que “No caso, nenhum dos trabalhadores cuidou de indicar a natureza do crédito, nem tão pouco os bens objeto de garantia.”.

Mas que “mesmo havendo omissão de alegação quanto aos fundamentos da garantia do crédito, do mesmo, deve o Tribunal atender aos elementos disponíveis nos autos “susceptíveis de, só por si, e de acordo com a invocada aquisição processual, revelarem aqueles fundamentos”, de acordo com o princípio consagrado no art. 413º do CPC (…)”.

Posto o que, “Revertendo estas considerações para o caso dos autos, verificamos que (…) tendo sido apreendidos os imóveis em questão para a massa insolvente, é de presumir (e nada resulta dos autos em contrário) que se encontravam inscritos no âmbito da sua atividade comercial, pelo que, no quadro já desenhado, nada obsta à conclusão de que, efetivamente, beneficiam de tal privilégio.”.

Contrapondo a Recorrente, e como visto, que para serem reconhecidos como créditos com privilégio imobiliário especial, necessário seria que os trabalhadores em causa tivessem indicado e provado “que os imóveis em questão, sobre os quais a ora apelante é credora hipotecária, era o local onde prestavam a sua actividade laboral.”, o que não fizeram.

E, desse modo, sob pena de abuso de direito e de nenhuma diferença existir “entre um privilégio imobiliário especial ora contemplado na lei e o privilégio imobiliário geral contemplado na legislação anterior e que o legislador afastou inequivocamente.”.

3.-A jurisprudência não é, quanto a esta temática, rigorosamente uniforme.

Assim, o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 21-04-2015,[1] decidiu que  “III - Constando daquela lista de créditos não impugnada uma série de créditos de trabalhadores da insolvente, como beneficiando de privilégio imobiliário especial, mas sem especificar sobre que imóvel versa esse privilégio, não pode o julgador, sem mais, fazer incidir esse privilégio sobre todos os imóveis apreendidos para a massa insolvente. IV - Incumbia ao julgador mandar completar essa lista com a identificação do imóvel sobre que versava o referido privilégio imobiliário especial, previsto no art. 333.º, n.º 1, al. b) do CT. V - Tendo o julgador graduado os referidos créditos laborais, em primeiro lugar, no tocante ao produto de todos os imóveis apreendidos e apurando-se, posteriormente, que dois deles não estavam afectos à actividade da insolvente – logo, aí não prestavam, os referidos trabalhadores a sua actividade laboral – e sobre aqueles imóveis havendo uma hipoteca a favor de um banco reclamante, não se verifica qualquer erro manifesto da lista de créditos referida, mas antes ocorrendo um erro de julgamento do julgador passível e ser impugnado em recurso nos termos gerais.”.

Tendo o mesmo Tribunal, em anterior Acórdão de 13-11-2014,[2] julgado que “III - O privilégio imobiliário estabelecido no art. 377.º, n.º 1, al, b), do CT (aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27-08) abrange os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador exercia a sua actividade, exigindo uma conexão entre a actividade do trabalhador e o prédio onde essa actividade era exercida e, bem assim, que esse imóvel integre o complexo organizacional do empregador. IV - Esses bens imóveis, devem, pois, integrar de uma forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores; devem estar afectos à actividade prosseguida pela empresa e, como tal, à actividade de cada um desses trabalhadores, independentemente das funções concretamente exercidas por estes.”.

Esta Relação, em Acórdão de 07-07-2016,[3] enfileirando com a doutrina do sobredito Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-04-2015, decidiu que “Constando daquela lista de créditos não impugnada créditos de trabalhadores da insolvente, como beneficiando de privilégio imobiliário especial, mas sem especificar sobre que imóvel versa esse privilégio, não pode o julgador, sem mais, fazer incidir esse privilégio sobre os imóveis apreendidos para a massa insolvente.”.

E, em Acórdão da mesma Relação, de 14-07-2016,[4] julgou-se que “Para que os créditos laborais gozem do privilégio creditório imobiliário especial previsto no artigo 333º nº1 b) do Código do Trabalho, é necessário provar-se a conexão entre o imóvel penhorado e a actividade da entidade patronal, cabendo às titulares dos créditos laborais o ónus da respectiva alegação e prova.” (grifado nosso).

Já em Acórdão desta Relação, de 24-02-2015,[5] se considerou que: “1. Reclamando o trabalhador créditos salariais (emergentes do contrato, da sua violação, ou cessação), e sendo caso de poder beneficiar do privilégio creditório imobiliário, está o trabalhador obrigado à alegação e prova de que presta a sua actividade no imóvel sobre o qual invoca o referido privilégio, nos termos do art. 342º, nº 1 do CC, por se tratar de facto constitutivo do seu direito. 2. Contudo, o tribunal deve considerar o facto (não alegado pelo trabalhador) de que este exercia a sua actividade no imóvel apreendido nos autos, se nos autos existem elementos nesse sentido, por força do princípio da aquisição processual, consagrado no art. 413º do CPC e atenta a natureza peculiar do processo de insolvência.” (grifado nosso).

Numa abordagem mais abrangente, já se julgou porém em Acórdão desta Relação, de 18-06-2015,[6]  que “Os créditos dos trabalhadores gozam de privilégio imobiliário especial sobre a universalidade de imóveis do insolvente onde era exercida a actividade comercial do insolvente.”.

Escrevendo-se, em Acórdão desta Relação, de 14-04-2016:[7]

“O privilégio imobiliário especial, concedido aos créditos laborais pelo referido artº. 333.º, n.º 1, al, b), do CT, abrange todos os bens imóveis integrantes do património da insolvente afectos ao desenvolvimento da respectiva actividade empresarial, exigindo-se uma conexão, em termos funcionais, entre a actividade dos trabalhadores reclamantes e a unidade empresarial da insolvente, integrada por tais imóveis.
E essa conexão é a «…conexão entre a actividade profissional do trabalhador e os imóveis do seu empregador e deve ser entendida em termos funcionais e não naturalísticos. Isto é, quando a lei diz que o privilégio imobiliário incide sobre os "bens do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade" está a referir-se à ligação funcional do trabalhador a determinado estabelecimento ou unidade produtiva e não propriamente à localização física do seu posto de trabalho» - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/10/2012.
(Cfr., ainda, Acórdão do STJ, de 13/11/2014)
E só ficam excluídos os imóveis do património do empregador não afetos à sua organização empresarial, quer os destinados à fruição pessoal do empregador ou integrados em estabelecimento diverso daquele em que o trabalhador reclamante desempenhou o seu trabalho.
É esta a posição que é mais consentânea com a interpretação do artigo 333º, do Código de Trabalho por assentar nos princípios da igualdade e não discriminação injustificada dos trabalhadores, sendo que uma interpretação meramente literal do preceito e sem atender aos critérios plasmados no nº 1 do artigo 9º do Código Civil, conduziria a uma iníqua situação de desproteção de uns trabalhadores face a outros da mesma entidade patronal.
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 26/11/2013 (in www.dgsi.pt), «basta pensar em todos aqueles trabalhadores que desenvolvem atividades que, pela sua natureza, recusam um centro estável ou permanente, ou ainda naqueles que, desempenhando idênticas funções, desenvolvem a sua atividade em imóvel arrendado, caso em que os seus créditos concorreriam sem proteção, no confronto com colegas de trabalho que, por desempenharem funções em imóvel pertencente à entidade patronal, veriam os seus créditos dotados de reforçada garantia».
Assim, o privilégio imobiliário especial previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 333º do Código de Trabalho abrange todos os imóveis do empregador afetos à respectiva organização empresarial.”.

Na mesma linha indo o Acórdão desta Relação, também de 07-07-2016, mas com diverso Relator do citado supra em nota 3:[8] “I. Para o efeito de graduação de créditos reclamados no processo de insolvência, o juiz poderá reconhecer aos trabalhadores da insolvente privilégio imobiliário especial sobre imóvel apreendido, ainda que na respetiva reclamação aqueles não tenham alegado terem exercido a sua atividade no referido imóvel, embora tenham invocado a natureza privilegiada do seu crédito, se dos elementos constantes no processo se colher que o imóvel em causa estava afetado à atividade empresarial da insolvente, existindo por conseguinte e em princípio uma ligação funcional entre o mesmo e o trabalhador, enquanto elementos da mesma organização produtiva.”.

Não podemos estar mais de acordo, subscrevendo integralmente os argumentos e conclusões, assim alinhados nestes últimos arestos.

4.-Revertendo à situação dos autos, verificamos que conquanto os reclamantes de créditos laborais se hajam limitado a invocar e provar a relação laboral, a origem e montantes daqueles, sem especificar sobre que imóvel recai o privilégio em causa, ponto é que se tratam, os imóveis da insolvente apreendidos para a massa – e como se dá nota na resposta do Exm.º Administrador da Insolvência à impugnação deduzida pelo credor Banif, para aquela se remetendo na sentença recorrida, e sendo esse ponto que não sofre crise – “((…) um de armazém e de um outro espaço destinado em exclusivo ao comércio, como se pode ver pela descrição constante do Auto de Apreensão). Por outro lado, haverá que ter em consideração o afirmado pelo insolvente na sua petição inicial e documentos que a anexam.” (grifado nosso).

Ora, é efetivamente de presumir terem estado tais imóveis afetos à organização empresarial da insolvente, consabidamente uma sociedade comercial por quotas, tendo por objeto o comércio de mobiliário, artes decorativas, eletrodomésticos, eletrificações e colocação de alcatifas.

Não podendo recusar-se a existência de uma conexão funcional – que não naturalística – entre a atividade dos trabalhadores da insolvente – distribuidores, vendedores, empregados de limpeza, fiéis de armazém, gerente de loja, administrativos – ora credores reclamantes, e tal organização, integrante dos referidos imóveis, estes, por sua vez, reconduzíveis ao plano dos meios de produção da insolvente.

O que tudo tinha o julgador de ter em atenção, certo que por força do princípio do inquisitório, consagrado no artigo 11º do C.I.R.E. e do disposto nos artigos 5º, 7º, nº 2, 411º, 412º, nº 2, e 413º do Código de Processo Civil, deve aquele considerar todos os dados do processo principal e apensos (para além de, sendo caso disso, determinar as diligências instrutórias adequadas para apurar aquela ligação).
*

Diga-se, a finalizar, não vislumbrarmos em que medida a apresentação de reclamação de créditos por parte de trabalhadores da insolvente possa integrar abuso de direito….

Afigurando-se-nos manifesto que o acolhimento, por parte do tribunal, de uma determinada interpretação de normativo do Código do Trabalho, que consagra o privilégio imobiliário especial de créditos dos trabalhadores, nunca poderia fazer incorrer esses trabalhadores em abuso de direito….

Remetendo-se, quanto a este ponto, para o disposto no artigo 334º do Código Civil e Menezes Cordeiro, in “A boa-fé no direito civil”, Coleção TESES, Almedina, 2001.
*

Em suma, improcedem as conclusões da Recorrente.

III–Nestes termos, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente, que decaiu.
***


Lisboa, 2017-01-19


(Ezagüy Martins)
(Maria José Mouro)
(Maria Teresa Albuquerque)


[1]Proc. 793/10.7T2AVR-A.C1.S1, Relator: JOÃO CAMILO, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.       
[2]Proc. 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1, Relator: PINTO DE ALMEIDA, no mesmo sítio da Internet.
[3]Proc. 10163-14.2T2SNT-A.L1-8, Relatora: TERESA PAIS, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf.
[4]Proc. 73-09.7TCFUN-A.L1-6, Relatora: MARIA TERESA PARDAL, ibidem.    
[5]Proc. 1288/10.4TYLSB-AB.L1-7, Relatora: CRISTINA COELHO, ibidem.       
[6]Proc. 293/09.8TBHRT-E.L1-8, Relatora: OCTÁVIA VIEGAS, ibidem. 
[7]Proc. 5327/11.3TBFUN-A.L1-8, Relator: LIMA GONÇALVES, ibidem.
[8]Proc. 286/16.9T8BRR-B.L1-2, Relator: JORGE LEAL, ibidem.