Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
322/18.4PCSXL.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: ANIMAIS PERIGOSOS
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/29/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Impõe-se a realização de um esforço interpretativo em ordem a compatibilizar o regime instituído pelo Decreto-Lei n. 315/2009, de 29 de Outubro, com o regime geral das contraordenações e com o código penal, tendo em vista a harmonia do sistema jurídico penal, a letra da lei e o pensamento legislativo, na base do princípio de que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Ainda que a técnica legislativa não tenha sido a mais apurada, o que ressalta do diploma em questão é que o legislador procurou vincar a preocupação com crimes desta natureza e consolidar o regime que decorria da aplicação do Código Penal, ao abrigo do qual as condutas de ofensas à integridade física causadas por animais eram integradas, estabelecendo garantias acrescidas de combate à criminalidade envolvendo animais.

Não se configura qualquer descriminalização de condutas que já se integravam na tipicidade do crime de ofensa à integridade física simples, por negligência, devendo o concurso de normas ser resolvido tendo em atenção que o novo regime visa reforçar e não diminuir a protecção dos bens jurídicos e a confiança comunitária, sem ter revogado expressamente nenhuma norma do Código Penal.

A não ser assim, colocar-se-ia a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 315/2009, por violação do disposto no artigo 168.º, n.º 1 al. c) da CRP, tendo em vista a Lei de Autorização Legislativa n.º 82/2009, de 21/08.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 322/18.4PCSXL procedeu-se ao julgamento de TV, identificada mais completamente nos autos, pela imputada prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punível pelo disposto no artigo 148.°, n.° 1, do Código Penal.

EB deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida/demandada, peticionando a condenação desta a pagar-lhe indemnização no valor de 2.089,35€, por danos patrimoniais e não patrimoniais.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

«Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas:
a)-Absolvo a arguida TV da prática do crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelo artigo 148.°, n.° 1, do Código Penal, que lhe era imputado.
b)-Sem custas, por não serem devidas.
*
c)-Com base nos fundamentos fáctico-jurídicos que ficaram exarados, por impossibilidade da lide, absolvo a demandada TV da instância onde deduziu Pedido de Indemnização Civil, EB .
d)-Sem custas, por não serem devidas.
(…)»

2.O Ministério Público recorreu da referida sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

1.-Por sentença de 28-06-2021, o Tribunal a quo, apesar de ter dado todos os factos como provados, absolveu a arguida TV da prática do crime de crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art 148.°, n.° 1, do Código Penal, por entender que os factos não constituíam crime, mas, antes, a prática de uma contraordenação, p. e p. pelo 38.°, n.° 1, al. r), da Lei n.° 315/2009, de 29 de outubro.
2.-Não concordamos que semelhante entendimento jurídico, pois entendemos que os factos dados como provados consubstanciam a prática do referido crime e não da citada contraordenação.
3.-O Decreto-Lei n.° 315/2009, de 29 de outubro, aprovou o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia.
4.-Como bem refere Plácido Conde Fernandes, “o legislador ao atribuir natureza pública ao crime de ofensa à integridade física negligente do qual resultem lesões graves, teve o intuito de reforçar a resposta punitiva existente, visando alcançar uma maior confiança da comunidade na proteção dos bens jurídicos protegidos".
5.-O pitt bull terrier, mais conhecido apenas por PITT BULL é nos termos da Portaria 422/2004, de 24-04, um cão de raça considerada perigosa e, portanto, abrangido pelo âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.° 315/2009, de 29 de outubro.
6.-A jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem-se dividido entre os partidários de que tal prática apenas deverá ser punida a título de contraordenação, e os que defendem que tal comportamento é crime.
7.-Contra o entendimento de que tal factualidade constitui a prática de contraordenação, manifesta-se Conde Fernandes, nos seguintes termos: “o concurso de normas deve ser resolvido tendo em atenção que o novo regime visa reforçar a proteção dos bens jurídicos e a confiança comunitária sem ter revogado expressamente nenhuma norma do Código Penal".
8.-Segundo Conde Fernandes, «...temos as seguintes situações de concurso aparente ou concurso de normas, em três níveis: Ofensa simples à integridade física por negligência, sem queixa , e sancionada pela contraordenação prevista no artigo 38.° n.° 1 al. r), subsidiária face ao artigo 148.° n.°1, do Código Penal; Ofensa simples à integridade física por negligência, com queixa , é punida pelo artigo 148.° n.º1 do Código Penal, excluindo a contraordenação, prevista no artigo 38. ° n.°1 al. r), por subsidiariedade (ex vi artigo 36.° n.° 3); Ofensa grave à integridade física negligente  (e animal), é punida pelo artigo 33.° é lex specialis face ao artigo 148.° n.°3, do Código Penal.
9.-No caso sub judice entre as normas do artigo 148.°, n.° 1 do Código Penal, e do art. 38.°, n° 1, al. r), do Decreto-Lei n.° 315/2009, de 29 de outubro, existe uma relação de consunção, sendo a contraordenação prevista nesta última norma consumida pelo crime de ofensa à integridade física simples por negligência.
10.-Por isso e por via do disposto no artigo 36.°, n° 3 do Decreto-Lei n.° 315/2009, de 29 de outubro, no caso de ofensa não qualificada como grave causada por animal perigoso ou potencialmente perigoso, tendo havido queixa da ofendida, ocorre apenas o preenchimento do tipo legal de crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.°, n.° 1 do Código Penal.
11.-Solução oposta levar-nos-ia a um resultado verdadeiramente ilógico: as ofensas não graves provocadas por animais perigosos ou potencialmente perigosos, de acordo com os critérios legais, não seriam crime, mas já o seriam as ofensas não graves provocadas por animais que estivessem fora desses conceitos de animais perigosos ou potencialmente perigosos.
12.-Assim, o douto Tribunal, por errada interpretação jurídica violou as referidas normas, pois os factos dados como provados configuram a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148.°, n.° 1, do Código Penal, e não da contraordenação, prevista no artigo 38.°, n.° 1, al. r), do Decreto-Lei n.° 315/2009, de 29 de outubro, pelo que deverá ser revogada a douta sentença e substituída por outra que condene a arguida, numa pena de multa entre os 80 e os 100 dias, ao quantitativo diário entre os € 5,50 e € 6.
Porém, Vossas Excelências melhor decidirão, realizando-se, assim, JUSTIÇA!

3.–Não foi apresentada resposta.

4.Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), pronunciou-se no sentido de que o recurso merece provimento.

5.–Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar e, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II–Fundamentação

1.–Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, identificamos como questão colocada no recurso saber se os factos dados como provados preenchem o tipo de crime imputado à arguida e, em caso de resposta afirmativa, a determinação da respectiva pena.

2.– Da sentença recorrida

2.1.-O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1.-No dia 6 de Junho de 2018, cerca das 11h15m, a ofendida EB encontrava-se na residência sita na Rua ..., Seixal, pertencente à sua mãe, juntamente com o seu filho RB, à data com dois anos de idade.
2.-Naquele instante, surgiu à porta de tal residência, que se encontrava aberta, um canídeo de nome “Wolf”, raça “X-Pitbull”, pertencente à arguida, sem trela ou açaime, e desacompanhado da arguida, tendo o mesmo saído de um anexo existente na zona traseira da residência da mesma residência, onde residia a arguida, sem estar limitado nos seus movimentos.
3.-Ao visualizar o animal, EB agarrou o seu filho, de forma a impedir que o mesmo ficasse à mercê daquele canídeo.
4.-Porém, este entrou na residência de EB e, de imediato, correu na direcção desta, e desferiu diversas dentadas, atingindo-a nos braços, pernas e glúteos.
5.-Em consequência directa e necessária da conduta do cão da arguida, a ofendida sofreu as seguintes lesões:
i.-Cicatriz de ferida contusa, hipercrómica, na face posterior da extremidade distal do braço esquerdo;
ii.-Complexo cicatricial formado por múltiplas cicatrizes de feridas contusas, hipercrómicas, na face postero externa da extremidade distal do braço esquerdo;
iii.-Cicatriz de ferida contusa, hipercrómica, na face interna do cotovelo esquerdo;
iv.-Duas cicatrizes de feridas contusas, hipercrómicas, na face posterior da extremidade distal do antebraço esquerdo;
v.-Cicatriz de ferida contusa, hipercrómica, na face posterior da raiz da coxa direita;
vi.-Cicatriz de ferida contusa, hipercrómica, ligeiramente deprimida, na face lateral do 1/3 médio da perna direita;
vii.-Cicatriz de ferida contusa, hipercrómica, ligeiramente deprimida, na face anterior do 1/3 médio da perna direita;
viii.-Três cicatrizes de feridas contusas, hipercrómicas, na face anterior do 1/3 médio da perna direita;
ix.-Cicatriz de ferida contusa, hipercrómica, na face posterior do 1/3 médio da perna direita;
x.-Cicatriz de ferida contusa, hipercrómica, na face lateral posterior do 1/3 superior da perna esquerda;
xi.-Duas cicatrizes de feridas contusas, hipercrómicas, na face postero externa do 1/3 superior da perna esquerda;
6.-Tais lesões determinaram-lhe um período de 26 (vinte e seis) dias de doença, sendo os primeiros 10 (dez) dias com afectação da capacidade para o trabalho em geral.
7.-A arguida, ao actuar nos termos em que o fez, agiu com manifesta falta de cuidado da arguida, não tendo acautelado, como podia e devia, a presença do cão na via pública, o animal saísse do local onde inicialmente estava, sem qualquer vigilância, caminhasse na via pública sem trela ou açaime, e se dirigisse ao interior da residência da ofendida EB, atacando-a, tendo admitindo como possível que o animal naquelas condições pudesse ofender a saúde e a integridade física de terceiros com quem se cruzasse, designadamente a ofendida.
8.-A arguida bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
9.-Em consequência dos factos descritos em 1. a 8. EB esteve de baixa nos meses de Junho, Julho e Agosto de 2018, o que lhe determinou perda do vencimento no valor de € 1279,70.
10.-E despendeu em farmácia a quantia de € 24,75.
11.-Bem como gastou € 34,90 em tratamentos médicos.
12.-Mais sofreu dores e temeu pela sua integridade física e pela do seu filho.

Apuraram-se, ainda, os seguintes factos:
13.-A arguida tem quatro veículos registados em seu nome.
14.-A sua última inscrição na Segurança Social é de Maio de 2021.
15.-Não tem antecedentes criminais registados.

2.2.O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

Para formar a nossa convicção sobre a matéria de facto provada e não provada baseámo-nos na análise ponderada e crítica do conjunto da prova produzida, em ordem à reconstituição da dinâmica do acontecido.
O julgamento teve lugar na ausência da arguida.
Pelo que, determinante na determinação dos factos provados foi o depoimento da ofendida EB, a qual, apesar da posição processual que ocupa, prestou um depoimento objectivo, pormenorizado, contextualizado e escorreito, e esclareceu acerca das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que foi surpreendida pelo ataque do cão da arguida. Mais descreveu as lesões com que ficou e, bem assim as deslocações e tratamentos que teve que fazer por causa das mesmas, em conjugação com a análise critica e ponderada dos documentos pelo mesmo juntos ao processo (documentação clinica de fls. 19 a 20 e 46 a 48; fotogramas de fls. 26 29; exame médico de fls. 38/9 e 49; facturas - fls. 170 a 180).
Esclareceu ainda das perdas que teve por causa da cura das lesões, o que foi com firmado pelos documentos juntos aos autos a fls. 181 a 185.
Para prova de que o cão que atacou a ofendida pertencia à arguida e das características que o mesmo tinha, levou-se em consideração, por um lado, as declarações da própria ofendida, que o confirmou, em conjugação com a análise dos documentos juntos (requerimento para inicio de sequestro sanitário - fls. 104; boletim sanitário - fls. 106 a 108; relatório sanitário - fls. 109).
O relato que a ofendida fez do ataque do cão foi ainda confirmado por GL, o qual, por se encontrar no interior da habitação a pintar a casa, tem um conhecimento directo dos factos. Apesar de não ter estado presente em julgamento, devido ao seu óbito, por acordo foram lidas as declarações que o mesmo prestou durante o inquérito. O facto de não ter identificado de forma correcta a cor do cão atacante, não foi impeditivo que se considerassem tais declarações como verdadeiras, o que pode ter sido apenas um lapso de memória.
Relevante foi ainda o depoimento da Sr.a Agente da PSP, MF, que de forma desinteressada confirmou o teor da participação por si elaborada e junta aos autos a fls. 11, descrevendo o que viu quando chegou ao local do incidente, das lesões que a ofendida apresentava, das características do cão atacante e de onde o mesmo se encontrava quando aí chegou - no interior da habitação da arguida.
Por fim, o marido e sogra da ofendida, AB e MB, respectivamente, atenta a relação familiar e de proximidade que têm com a ofendida, puderam ainda confirmar ao Tribunal, das lesões com que a mesma ficou, do tempo de cura das mesmas e do estado em que a mesma ficou após o ataque do cão.
Quanto à situação económica, social e familiar da arguida, o tribunal fundou-se nas pesquisas às bases de dados disponíveis.
Relativamente aos antecedentes criminais, o Tribunal atendeu ao Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 210.
Por fim, do conjunto da prova produzida foi possível concluir que a arguida, ao actuar nos termos em que o fez, agiu com manifesta falta de cuidado, não tendo acautelado, como podia e devia, a presença do cão na via pública, que o animal saísse do local onde inicialmente estava, sem qualquer vigilância, caminhasse na via pública sem trela ou açaime, e se dirigisse ao interior da residência da ofendida EB, atacando-a, tendo admitindo como possível que o animal naquelas condições pudesse ofender a saúde e a integridade física de terceiros com quem se cruzasse, designadamente a ofendida. Na verdade, estamos a falar de um cão potencialmente perigoso, o que a arguida bem sabia, bem como conhecia as características do cão que era de sua propriedade e que, nomeadamente, o mesmo podia facilmente saltar a vedação que dividia o logradouro da casa da arguida do logradouro da casa da ofendida, como efectivamente ocorreu, tanto assim é que quando a PSP chegou ao local já o cão se entrava no interior da habitação da arguida. Ora, conhecendo o seu cão e não podendo ignorar que facilmente saltava a vedação do seu logradouro como saltou e assim, já na rua, sozinho, pudesse magoar alguém, deveria a arguida ou ter mantido o cão no interior da sua habitação ou guardá-lo num local de onde o mesmo não pudesse fugir, nomeadamente, num canil, o que não fez.
O depoimento de MA não teve qualquer influência na determinação dos factos provados e não provados, porquanto era notório que a mesma já não estava no uso de todas as suas capacidades, mostrando-se muito confusa acerca do que poderá ter ocorrido com a sua filha. Pelo que, quando respondia que sim, que os factos se verificaram, o Tribunal ficou com dúvidas acerca se o fazia porque se recordava ou apenas porque lhe estava a ser perguntado e não queria deixar de responder afirmativamente.
           
***
3.–Apreciando

3.1.–O tribunal recorrido fundamentou a absolvição da arguida quanto ao crime imputado nos seguintes termos:
«A primeira tarefa que se impõe passa por determinar se a conduta descrita e imputada ao arguido, e agora dada como provada, coincide com a descrição jurídico- penal legalmente prevista, de modo a que o arguido possa ser responsabilizado pela sua infracção.
Para tanto, dever-se-ão ter em conta os respectivos normativos, aos quais está subjacente a tutela de um determinado bem jurídico. Como afirma MUNOZ CONDE, in Teoria General del Delito" (1984), pág. 9, “a norma jurídico-penal pretende a regulação de condutas humanas e tem por base a conduta humana que pretende regular”, acrescentando ainda que “a norma selecciona uma parte que valora negativamente e que comina com uma pena”.
*

A arguida encontra-se acusada da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previstos e punidos pelo artigo 148.°, n.° 1, do Código Penal.
Prevê e estatui o aludido artigo 148.°, n.° 1, do Código Penal, que: «Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.»
Ora, conforme decorre dos factos provados, o que se verificou foi que, por falta de cuidado da arguida, que lhe era exigível e possível, o cão sua propriedade atacou a ofendida causando-lhe as lesões melhor descritas nos factos provados.
As ofensas à integridade física provocadas por animais vêm tipificadas no Decreto-Lei n.° 315/2009, de 29 de Outubro.
As ofendas à integridade físicas negligentes serão crime ou contraordenação consoante as lesões provocadas sejam ou não graves.
Com a criação do tipo legal p. e p. pelo artigo 33.°, do Decreto-lei n.° 315/2009, entendeu o legislador que apenas as ofensas graves criadas por negligência fossem tipificadas na lei como crime.
Já as ofensas à integridade física negligente onde fosse causadas ofensas não consideradas graves, passaram a constituir a contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 38.°, n.°1, r), daquele diploma legal.
Os factos que se deram como provados estão contidos neste diploma legal e saem do artigo 148.°, do Código Penal. A não ser assim, não fazia sentido a criação do diploma em causa que envolve os animais de estimação e/ou companhia perigosos ou potencialmente perigosos e o dever de por eles zelar evitando lesões a terceiros, uma vez que o Código Penal já punia estas condutas.
Da comparação dos artigos 33.° e 38.° do Decreto-lei supra referido, ressalta que a distinção entre crime e contra-ordenação (ambos decorrentes de omissão de dever jurídico que incumbe ao detentor) opera relativamente ao resultado verificado, consoante se esteja, ou não, em presença de ofensas graves.
Das lesões descritas nos factos provados nenhuma se pode subsumir à noção de ofensa grave, tal como a mesma vem prevista pelo artigo 144.°, do Código Penal (ex vi artigo 34.°, do DL 315/2009, de 29.10).
Donde concluímos que os factos descritos não se subsumem na prática de um crime.
Na verdade, a doutrina penal define o crime como uma acção (ou omissão), típica, ilícita e culposa. Com o termo tipicidade quer-se significar que o legislador descreveu as condutas proibidas ou que tem por obrigatórias dum ponto de vista jurídico-penal. Basicamente, a tipicidade descreve aquilo que é contrário ao Direito, assinalando o que é proibido ou o que é obrigatório. A descrição legal fixa os pressupostos que têm de ser preenchidos para que alguém possa ser perseguido por furto, homicídio, ofensa à integridade física, burla, entre muitos outros, cumprindo-se desta forma o preceito constitucional segundo o qual ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão que não estejam fixados em lei anterior (art.° 29°, n.º1 da Constituição da Republica Portuguesa).
Ao tipo corresponde, pois, a função de selecção dos comportamentos humanos penalmente relevantes.
A noção de crime corresponde à acção típica, culposa e punível, pelo que, na falta de um desses elementos, não há facto criminoso, sendo que, no caso de que nos ocupamos falta a tipicidade.
Em face do exposto tem a arguida necessariamente de ser absolvida do crime por que vinham acusado.»

Vejamos.

O Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, estabeleceu as regras de protecção dos animais de companhia e, concomitantemente, previu o regime para a posse daqueles que, pelas suas características fisiológicas ou comportamentais, viessem a ser enquadrados como animais potencialmente perigosos.

Conforme se assinalou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro, os casos de ataques de animais, nomeadamente cães, a pessoas, causando-lhes ofensas à integridade física graves, quando não mesmo a morte, vieram alertar para a urgente necessidade de rever o Decreto-Lei n.º 276/2000 e de regulamentar, em normativo específico, a detenção de animais de companhia perigosos e potencialmente perigosos, com estabelecimento de regras claras e precisas para a sua detenção, criação e reprodução.

Foi assim que o Decreto-Lei n.º 312/2003 estabeleceu o regime jurídico de detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos como animais de companhia, que veio a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, presentemente em vigor (alterado pela Lei n.º 46/2013, de 04/07, Lei n.º 110/2015, de 26/08, DL n.º 82/2019, de 27/06 e DL n.º 9/2021, de 29/01).

Diz-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 315/2009:
«Pela experiência adquirida com a aplicação daqueles normativos [referindo-se à legislação anterior] legais [conclui-se, no entanto, que a punição como contra-ordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime.
A convicção de que a perigosidade canina, mais que aquela que seja eventualmente inerente à sua raça ou cruzamento de raças, se prende com factores muitas vezes relacionados com o tipo de treino que lhes é ministrado e com a ausência de socialização a que os mesmos são sujeitos leva a que se legisle no sentido de que a estes animais sejam proporcionados os meios de alojamento e maneio adequados, de forma a evitar-se, tanto quanto possível, a ocorrência de situações de perigo não desejáveis.
Para além disso, é necessário estabelecer obrigações acrescidas para os detentores de animais de companhia perigosos ou potencialmente perigosos, entre as quais se destacam a exigência de que reprodução ou criação de quaisquer cães potencialmente perigosos das raças fixadas em portaria do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas se faça de forma controlada, em locais devidamente autorizados para o efeito, com requisitos especiais quer no alojamento dos animais quer no registo dos seus nascimentos e transacções

O artigo 3.º contém as definições de animal de companhia, animal perigoso e animal potencialmente perigoso, definindo como potencialmente perigoso qualquer animal que devido às caraterísticas da espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência da mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente, os cães pertencentes às raças previamente definidas como potencialmente perigosas por portaria. Houve preocupação do legislador, em abranger não só as “raças puras”, que pelas suas caraterísticas representam um maior perigo para os humanos, como também os cruzamentos com outras raças, mas em que se tenha obtido uma tipologia semelhante às raças puras.

Tal portaria, foi publicada em 2004 – Portaria n.º 422/2004 de 24 de abril –tendo-se declarado como raças potencialmente perigosas, as seguintes: I) Cão de fila brasileiro; II) Dogue argentino; III) Pit bull terrier; IV) Rottweiller; V) Staffordshire terrier americano; VI) Staffordshire bull terrier; VII) Tosa inu.

Dispõe o artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 315/2009:
«1-Constituem contraordenações puníveis com coima de (euro) 750 a (euro) 5000, no caso de pessoa singular, e de (euro) 1500 a (euro) 60 000, no caso de pessoa coletiva:
(…)
r)-A não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves

Por sua vez, estabelece o artigo 33.º, sob  epígrafe Ofensas à integridade física negligentes:
«Quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas graves à integridade física é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias

Até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 315/2009, as lesões nos bens jurídicos através de condutas provocadas pela intervenção de animais eram integradas, no plano jurídico-criminal, exclusivamente em normas do Código Penal.
Com o referido diploma, surgiram outras normas penais, como o transcrito artigo 33.º e os artigos 31.º, 32.º e 33.-A, colocando-se a questão de como relacionar tais normas incriminadoras com as do Código Penal, mais concretamente, no que agora nos importa, o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 315/2009 com o artigo 148.º do Código Penal.

Com efeito, o artigo 148.º do Código Penal prevê a punição da ofensa negligente, com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias, para as ofensas simples (n.º 1), e até dois anos ou multa até 240 dias, no caso de ofensas graves (n.º 2).
Já o mencionado artigo 33.º prevê a ofensa grave com pena idêntica à prevista no n.º 3 do artigo 148.º do Código Penal, sem, contudo, prever a possibilidade de dispensa de pena e a dedução de queixa como necessário impulso do procedimento criminal.

Da proposta de Lei n.º 224/X11, que está na origem da autorização legislativa contida na Lei n.º 82/2009, de 21 de Agosto, foi clara a motivação do legislador em “garantir que as sanções aplicáveis aos detentores de animais que causem lesões físicas a pessoas são um meio eficazmente dissuasor à sua prática”, pretendendo-se “criminalizar expressa e claramente as ofensas à integridade física humana causadas por animal, quer a título doloso, quer a título negligente por parte do seu detentor”.
Certo é que a jurisprudência, antes da vigência do regime do Decreto-Lei n.º 315/2009, já integrava no crime de ofensas à integridade física por negligência tipificado no Código Penal condutas em que o instrumento da ofensa havia sido um animal – questão que, tanto quanto julgamos saber, sempre foi incontroversa, doutrinal e jurisprudencialmente (ver ac. TRL de 11/04/2007, processo n.º 8059/200-3; TRP de 27/06/2007, no processo n.º 0712060; TRP de 10/10/2007, processo n.º 0743233, em www.dgsi.pt como outros que venham a ser citados sem diferente indicação).

Sendo assim, tendo em vista que o legislador pretendeu  aumentar  a protecção jurídica contra  as  agressões  de  animais,  não  se  compreenderia  que, por via do citado artigo 33.º, tivesse sido descriminalizada a ofensa à integridade física por negligência, provocada por animal, no caso de não ser produzida ofensa grave, transformando-se em contraordenação o que antes constituía crime.

Porém, a essa conclusão – de que existe descriminalização – chegou alguma jurisprudência, sustentando que com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 315/2009 passou a constituir contraordenação, p. e p. pelo artigo 38.º, n.º1, al. r), “a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves”, não integrando tal conduta a prática do crime p. e p. pelo artigo 148.º, n.º1 do Código Penal (cfr. acórdãos TRE, de 05/06/2012, processo 193/10.9GACTX.E1; TRL, de 11/07/2018, processo 73/16.4PHLRS-3; TRP, de 24/09/2020, processo 96/18.6GAVCD-A.P1).

No acórdão da Relação de Évora de 05/07/2012, diz-se, referindo-se ao Decreto-Lei n.º 315/2009, que «da comparação do referido nesses arts. 33.º e 38.º, ressalta inequivocamente, em termos literais, que a distinção entre crime e contraordenação (ambos decorrentes de omissão de dever jurídico que incumbe ao detentor) opera relativamente ao resultado verificado, consoante se esteja, ou não, em presença de ofensas graves».

Conclui-se no referido acórdão que, existindo norma especial que abrange os casos em que da violação do dever de cuidado resultam ofensas simples, não há lugar à aplicação do artigo 148.º do Código Penal por remissão do art.º 34.º do DL 315/2009. O facto de o legislador ter especificamente colocado como crime as condutas negligentes causadoras de ofensas graves para a integridade física e, no mesmo diploma, ter integrado as mesmas condutas, mas cujos resultados se reconduzem a lesões de menor gravidade numa contraordenação, quer significar, segundo o entendimento propugnado no citado aresto, que o legislador expressamente se pronunciou sobre tal matéria e entendeu que as ofensas simples criadas pela intervenção de um animal e sem que tenham sido tomadas as devidas diligências de cuidado integram conduta meramente contraordenacional.

Esta a posição do tribunal recorrido, da qual discordamos pelas razões que passamos a enunciar.

Pese o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 315/2009 afirme que aprova “o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia”, entendemos que, no âmbito dos ilícitos criminais aí previstos, com excepção dos tipos que o artigo 33.º-A  contempla, nos quais a previsão normativa refere, de forma expressa, que o animal em causa terá de ser perigoso ou potencialmente perigoso, todos os demais (artigos 31.º, 32.º, 33.º) e a contraordenação do artigo 38.º n.º 1, alínea r), têm aplicação geral a todos os animais de companhia.

A própria autorização legislativa, pese embora a sua epígrafe, refere-se a ilícitos criminais correspondentes a ofensa à integridade física de pessoa causada por animal, por dolo do seu detentor e a ilícitos criminais correspondentes a ofensa à integridade física grave de pessoa causada por animal, por violação de deveres de cuidado pelo seu detentor.

Conforme sustenta Plácido Conde Fernandes (Comentário das Leis Penais Extravagantes, Org. Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco, 1.ª Edição, Univ. Católica, 2010, p. 295), em comentário ao artigo 32.º, a “motivação da incriminação não pressupõe (…) que o animal se inclua numa das raças de cães classificadas como potencialmente perigosas, pois a norma presume que, no decurso da agressão, a perigosidade [seja] revelada ou potenciada (…) o que tem apoio no texto legal, no preâmbulo do diploma e na discussão parlamentar” [que esteve na base do regime]. O mesmo autor, em comentário ao artigo 33.º, reitera que, não obstante a inserção sistemática, não se exige que o animal seja ou se tenha revelado, declarado ou presumido, previamente, “perigoso ou potencialmente perigoso”, designadamente por pertencer a uma raça de cães classificada legalmente como tal (p. 309).
Como já dissemos, o legislador pretendeu, através do diploma em apreço,  aumentar  a protecção jurídica relativamente às ofensas à integridade física causadas por animais.
O preâmbulo do diploma, algo deficiente, como deficiente se revela a técnica legislativa na formulação de alguns dos artigos, refere que “a punição como contra-ordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime”.
A deficiência do preâmbulo torna-se manifesta quando parece pressupor que o regime então vigente, constante do Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17/12, sancionava como contraordenação as ofensas corporais causadas por animais de companhia, o que não acontecia, mas sinaliza, com clareza, o entendimento do legislador de que “a punição como contra-ordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção”.

Seria contraditório, por conseguinte, que tendo evidenciado tal entendimento, o legislador viesse, afinal, a descriminalizar condutas de ofensas corporais negligentes causadas por animais de companhia – assim consideradas há muito pela doutrina e pela jurisprudência - transformando-as em ilícitos contraordenacionais.
Impõe-se, a nosso ver, a realização de um esforço interpretativo em ordem a compatibilizar o regime instituído pelo Decreto-Lei n. 315/2009 com o regime geral das contraordenações e com o código penal, tendo em vista a harmonia do sistema jurídico penal, a letra da lei e o pensamento legislativo, na base do princípio de que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º do Código Civil).

Ainda que a técnica legislativa não tenha sido a mais apurada, o que ressalta do diploma em questão é que o legislador procurou vincar a preocupação com crimes desta natureza e consolidar o regime que decorria da aplicação do Código Penal, ao abrigo do qual as condutas de ofensas à integridade física causadas por animais eram integradas, estabelecendo garantias acrescidas de combate à criminalidade envolvendo animais.

Assim, atribuiu-se natureza pública a crimes em que, pela mera aplicação do Código Penal, o procedimento criminal dependia de queixa, reforçando-se «a resposta punitiva existente, visando alcançar uma maior confiança da comunidade na protecção de bens jurídicos protegidos» (Conde Fernandes, ob. cit. pág. 306 e 319): crime de ofensa à integridade física dolosa (artigo 32.º, n.º1) e o crime de ofensa grave à integridade física negligente (artigo 33.º).
De modo inovador em relação ao Código Penal (artigo 143.º, n.º1), o artigo 32.º consagrou a punibilidade da tentativa.

Por seu turno, a norma contraordenacional do artigo 38.º, n.º 1, al. r), pretendeu, a nosso ver, evitar que as condutas danosas «fiquem descobertas de protecção apenas porque o ofendido optou por abdicar do procedimento criminal», nos casos de ofensas negligentes não graves (Conde Fernandes, ob. cit., pág. 318). Por outras palavras: pelo artigo 38.º, n.º 1, al. r), o legislador quis sancionar como contraordenação o acto de não observância dos deveres de cuidado relativamente a um animal que provoque ofensas na saúde e no corpo de outra pessoa em que as lesões não sejam graves. Nesses casos, ainda que não haja queixa para desencadear o necessário procedimento criminal, o legislador entendeu que há, ainda, uma necessidade de intervenção da autoridade pública no âmbito contraordenacional.

Seguindo a posição de Conde Fernandes (ob. cit., p. 318, também perfilhada nos acórdãos da Relação do Porto, de 10/05/2017, processo 124/13.4GBOAZ.P1, e da Relação de Guimarães, de 10/02/2020, processo 114/17.8GAVRM.G1), entendemos não se configurar qualquer descriminalização de condutas que já se integravam na tipicidade do crime de ofensa à integridade física simples, por negligência, devendo o concurso de normas ser resolvido tendo em atenção que o novo regime visa reforçar e não diminuir a protecção dos bens jurídicos e a confiança comunitária, sem ter revogado expressamente nenhuma norma do Código Penal.

Acrescente-se que, a não ser assim, colocar-se-ia a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 315/2009, por violação do disposto no artigo 168.º, n.º 1 al. c) da CRP, tendo em vista a Lei de Autorização Legislativa n.º 82/2009, de 21/08.

Assim, segundo Conde Fernandes:
« … temos as seguintes situações de concurso aparente ou concurso de normas, em três níveis:
Ofensa simples à integridade física por negligência, sem queixa, e sancionada pela contraordenação prevista no artigo 38.º n.º1 al. r), subsidiária face ao artigo 148.º n.º1, do Código Penal. A contraordenação inova, por prever o dano ao invés do mero perigo de lesão (como sucedia anteriormente), visando evitar que estas condutas fiquem descobertas de proteção apenas porque o ofendido optou por abdicar do procedimento criminal;
Ofensa simples à integridade física por negligência, com queixa, é punida pelo artigo 148.º n.º1 do Código Penal, excluindo a contraordenação, prevista no artigo 38.º n.º1 al. r), por subsidiariedade (ex vi artigo 36.º n.º3). A única alternativa a este entendimento, absurda por colidir frontalmente com a enunciada ratio legis e a mens legislatoris, seria a descriminalização das ofensas simples negligentes, nestes casos em que um animal é a fonte do perigo, mediante a degradação sancionatória para aquela contraordenação;
Ofensa grave à integridade física negligente (…) é punida pelo artigo 33.º é lex specialis face ao artigo 148.º n.º3, do Código Penal, cuja principal diferença que traz é a natureza procedimental pública da infração

No caso vertente, em que está em causa uma ofensa simples à integridade física por negligência causada por um cão potencialmente perigoso por descuido da arguida, sua proprietária, com queixa da ofendida, o facto é punido pelo artigo 148.º, n.º1, do Código Penal, excluindo a contraordenação prevista no artigo 38.º n.º1 al. r) do DL nº 315/209, de 29/10, desde que preenchidos os elementos típicos, objectivos e subjectivos, daquele crime.

É o que passaremos a analisar.

3.2.–Estabelece o artigo 148.º, n.ºs 1 e 4, do Código Penal:
«1-Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
(…)
4-O procedimento criminal depende de queixa

A definição legal de negligência, para efeitos criminais, é fornecida pelo artigo 15.º do Código Penal:
«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a)- Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b)- Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto

Seguindo de perto o Prof. Figueiredo Dias (Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 352/354),  o tipo de ilícito do facto negligente “(...) considera-se preenchido por um comportamento sempre que este discrepa daquele que era objectivamente devido em uma situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, para deste modo se evitar uma violação juridicamente indesejada.” Para além disso “torna-se indispensável que tenha ocorrido a violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico; e consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social do círculo de vida do agente.

Quando o tipo de ilícito negligente se encontra preenchido pela conduta, “tem então sentido indagar se mandato geral de cuidado e previsão podia também ter sido cumprido pelo agente concreto”, indagação que ultrapassa o nível do tipo de ilícito e situa-se no tipo de culpa do facto negligente.

Os crimes negligentes pressupõem, assim, a verificação, quanto ao tipo de ilícito, de: 1)- uma acção ou omissão da acção devida; 2)- uma violação do dever objectivo de cuidado [o dever de cuidado é limitado pelo princípio da confiança: ninguém terá, em princípio, de responder por faltas de cuidado de outrem, antes se pode confiar em que as outras pessoas observarão os deveres que lhes incumbem]; 3)- o resultado típico nos crimes negligentes de resultado (por ex., ofensa à integridade física ou morte); 4)- previsibilidade objectiva do resultado, incluindo o processo causal [um resultado será objectivamente previsível se for previsível para um homem sensato e prudente, colocado na situação do agente no momento da acção, de acordo com a experiência geral (juízo de adequação)]; 5)- imputação objectiva desse resultado à acção do sujeito.

Por sua vez, quanto ao tipo de culpa, os crimes negligentes exigem a verificação da censurabilidade da acção objectivamente violadora do dever de cuidado, sendo necessário que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado e prever o resultado típico e o processo causal, nos crimes de resultado [a previsibilidade individual está excluída na negligência inconsciente; na negligência consciente o agente representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime]

A omissão do dever objectivo de cuidado consiste em o agente não ter usado da diligência exigida, que é requerida na vida de relação social relativamente ao comportamento em causa.

Não se discute que o comportamento imputado à arguida na acusação e dado como provado constitui conduta negligente, por ter incorrido em violação do dever de cuidado que sobre si impendia de vigiar o seu animal de raça canina, adequado à produção do resultado que, em concreto, consistiu em ofensa à integridade física (simples) (em sintonia com o artigo 10.º, n.º 2, do Código Penal) e decorrente do dever especial de vigilância do detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso (por referência ao elenco definido no Anexo à Portaria n.º 422/2004, de 24/04, dado tratar-se de um “pitt bull”), imposto, em geral, pelo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, que estabelece como dever especial de vigilância: «O detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso fica obrigado ao dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e de outros animais.» Dever que é concretizado, além do mais, no seu artigo 13.º, n.º1: «Os animais abrangidos pelo presente decreto-lei não podem circular sozinhos na via pública, em lugares públicos ou em partes comuns de prédios urbanos, devendo sempre ser conduzidos por detentor

Qualquer animal pode ser considerado uma "causa de perigo" pela sua irracionalidade e pelo facto de não ser completamente dominado pela vontade humana. Logo, esse dever especial de cuidado já existia em relação a qualquer animal de companhia, incumbindo ao detentor do animal, nos termos do artigo 6.º, do Decreto-Lei n.º 276/2001, «o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais

Manifestamente, sobre a arguida, como proprietária e detentora do animal, recaia a obrigação jurídica de controlar aquela fonte de perigo sobre a qual tinha a disponibilidade fáctica de forma a evitar a lesão de bens alheios.

Está provado:
- no dia 6 de Junho de 2018, cerca das 11h15m, a ofendida EB  encontrava-se na residência sita na Rua ..., Seixal, pertencente à sua mãe, juntamente com o seu filho RB , à data com dois anos de idade;
- naquele instante, surgiu à porta de tal residência, que se encontrava aberta, um canídeo de nome “Wolf”, raça “X-Pitbull”, pertencente à arguida, sem trela ou açaime, e desacompanhado da arguida, tendo o mesmo saído de um anexo existente na zona traseira da residência da mesma residência, onde residia a arguida, sem estar limitado nos seus movimentos;
- ao visualizar o animal, EB  agarrou o seu filho, de forma a impedir que o mesmo ficasse à mercê daquele canídeo;
- porém, este entrou na residência de EB  e, de imediato, correu na direcção desta, e desferiu diversas dentadas, atingindo-a nos braços, pernas e glúteos;
- em consequência directa e necessária da conduta do cão da arguida, a ofendida sofreu as lesões descritas no ponto 5 dos factos provados, que determinaram-lhe um período de 26 (vinte e seis) dias de doença, sendo os primeiros 10 (dez) dias com afectação da capacidade para o trabalho em geral;
- a arguida, ao actuar nos termos em que o fez, agiu com manifesta falta de cuidado da arguida, não tendo acautelado, como podia e devia, a presença do cão na via pública, o animal saísse do local onde inicialmente estava, sem qualquer vigilância, caminhasse na via pública sem trela ou açaime, e se dirigisse ao interior da residência da ofendida EB, atacando-a, tendo admitindo como possível que o animal naquelas condições pudesse ofender a saúde e a integridade física de terceiros com quem se cruzasse, designadamente a ofendida;
- a arguida bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Face aos factos provados – sendo que a sentença recorrida, ao proceder à sua análise, assinala que “o que se verificou foi que, por falta de cuidado da arguida, que lhe era exigível e possível, o cão sua propriedade atacou a ofendida causando-lhe as lesões melhor descritas nos factos provados” – não temos dúvidas quanto à prática pela arguida do crime que lhe foi imputado, o que determina a revogação da sentença absolutória.

3.3.–Aqui chegados, cumpre determinar a medida da pena.
Debateu-se largamente na jurisprudência se cabia à Relação ou à 1.ª instância a determinação da espécie e medida da pena no caso de a Relação, em recurso, revogar a decisão absolutória da 1.ª instância e formular um juízo positivo sobre a culpabilidade do arguido.
A jurisprudência dividiu-se em duas posições: uma a sustentar deverem os autos ser devolvidos (“reenviados”) à 1.ª instância para novo julgamento restrito à determinação da espécie e medida da pena; outra que entendia caber à Relação a decisão sobre essa questão, salvo nas situações em que os factos provados não fossem suficientes para, com o rigor exigível, proceder à determinação da espécie e medida da pena. Apenas nestas situações excepcionais impor-se-ia, então, a devolução do processo à 1.ª instância para a determinação da sanção.

Veio o S.T.J. fixar a seguinte jurisprudência, no AFJ n.º4/2016 (Diário da República, 1.ª série, N.º 36, de 22 de Fevereiro de 2016):
«Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal

Diz o S.T.J. não ter qualquer sentido que, após o reexame da matéria de facto e ficando assente a culpabilidade do arguido que vinha absolvido da 1.ª instância, a Relação profira uma decisão condenatória incompleta, por omissão da consequência jurídica, e “reenvie” o processo para o tribunal a quo, a fim de aí ser determinada a espécie e medida da sanção.
No nosso sistema processual, à deliberação sobre a questão da culpabilidade segue-se a deliberação sobre a determinação da sanção – espécie e medida da sanção a aplicar -, nos termos dos artigos 368.º e 369.º do C.P.P.

O tribunal começa por deliberar e votar a questão da culpabilidade [artigo 368.º] e, resultando que ao arguido deve ser aplicada uma pena ou medida de segurança, “o presidente lê ou manda ler toda a documentação existente nos autos relativa aos antecedentes criminais do arguido, à perícia sobre a sua personalidade e ao relatório social” [artigo 369.º, n.º 1], sendo, quando necessária a produção de prova suplementar exclusivamente para a determinação da espécie e medida da sanção a aplicar, reaberta a audiência, nos termos do artigo 371.º [artigo 369.º, n.º 2, primeiro segmento].

Diz o S.T.J. que, por regra, a Relação não se confrontará com uma insuficiente base de facto impossível de suprir, no caso de alteração de uma decisão de absolutória para condenatória, a implicar a impossibilidade de determinação da sanção e que, na hipótese de uma insuficiente base de facto, não está a Relação impedida de obter os elementos necessários à determinação da sanção por via da realização de uma audiência, nos termos do artigo 371.º, do C.P.P.

A verdade, porém, é que no caso de o tribunal de 1.ª instância não passar à questão da determinação da espécie e medida da pena podem faltar, efectivamente, elementos necessários à determinação da sanção.

Não é esse o caso: entendemos que a sentença recorrida contém os elementos minimamente necessários, não se colocando a questão da necessidade de realização de outras diligências com vista permitir a prolação de decisão condenatória.

A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

O juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.

Nos termos do disposto no artigo 70.º do Código Penal, o tribunal, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa. Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção.

De seguida, importará determinar a concreta medida da pena por que se optou, dentro dos limites definidos na lei, tendo em consideração para o efeito, a culpa do agente e as exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra este (artigo 71.º do Código Penal).

Determinando-se uma concreta pena principal, haverá que verificar se ela pode ser objecto de substituição, em sentido próprio ou impróprio, e determinar a sua medida.

No caso em apreço, em que está prevista pena de prisão ou multa, entendemos dever dar preferências à multa.

O procedimento de determinação da multa integra dois momentos autónomos: o da fixação dos dias de multa, dentro dos limites legais e em função dos critérios gerais de determinação da pena; o da fixação da sua razão diária, em função da situação económico-financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, tendo em vista o preceituado no artigo 47.º, n.º2, do mesmo diploma.

No que toca ao primeiro momento, estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 227 e segs.).

Volvendo ao caso concreto em apreciação, tendo em vista a matéria provada, relevando particularmente, por um lado, as lesões sofridas pela ofendida e, por outro, a ausência de antecedentes criminais da arguida, sopesando as circunstâncias face ao binómio da culpa e da prevenção, entendemos fixar a pena de multa em 90 dias.

O montante da multa é o resultado da conjugação dos dias de multa com a sua razão diária.

A dignificação da multa, seja como pena principal, seja como pena de substituição, constituindo um claro propósito político-criminal, exige que a mesma tenha efectivo conteúdo sancionatório, sem o que não poderá realizar as finalidades que lhe competem de protecção de bens jurídicos e de prevenção especial. Para esse efeito, importa que o montante da multa seja fixado de forma a ser sentido como pena, constituindo, por isso, um sacrifício real para o condenado.

Porém, sobre a condição económica da arguida sabemos, apenas, ter quatro veículos registados em seu nome e que a sua última inscrição na Segurança Social é de Maio de 2021, ou seja, sabemos do seu património, mas não dos seus rendimentos e encargos.

Daí entendermos que é de fixar a taxa diária na proximidade do limite mínimo legal, fixando-se, por conseguinte, em 5,50€.
Conclui-se que o recurso merece provimento.
***

III–Dispositivo

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:

A)–Revogar a sentença recorrida, condenando a arguida TV pela autoria material de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punível pelo disposto no artigo 148.°, n.° 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a multa de 495,00€ (quatrocentos e noventa e  cinco euros).

Sem custas do recurso.

A arguida é condenada nas custas processuais a que deu causa em primeira instância, fixando-se a respectiva taxa de justiça em três (3) UC.



Lisboa, 29 de Março de 2022


(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)



(Jorge Gonçalves)                              
(Fernando Ventura)