Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4867/04.5TBSXL-G.L1-7
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: ESCUSA
PROXIMIDADE PESSOAL E PROFISSIONAL
PROCURADOR
REQUERIDO
JUIZ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA – ART. 119.º CPC
Decisão: DEFERIDA
Sumário: Sendo a escusante juíza no juízo onde exerce funções o requerido do processo, trabalhando quotidianamente juntos e tendo-se estabelecido relação, entre ambos, de proximidade profissional e pessoal, verifica-se existir circunstância ponderosa que justifica que aquela seja dispensada de intervir no processo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: A Sra. Juíza de Direito “A”, a exercer funções no Juízo de Família e Menores (…) – Juiz (…), veio requerer, ao abrigo do estabelecido nos artigos 119.º e 120.º do CPC, seja dispensada de intervir no Processo nº. (…).

Para tanto, invocou que os referidos autos se reportam a processo tutelar comum de incumprimento das responsabilidades parentais, distribuído ao Juiz (…), do qual a requerente é substituta, face ao deferimento do pedido de escusa que o juiz substituído apresentou.

Nos referidos autos, o requerido é Procurador da República a exercer funções no Juízo de Família e Menores (…), o qual exerce funções neste juízo, tendo trabalhado juntos diariamente – à exceção de períodos em que ambos estiveram em situação de licença por doença – tramitando os mesmos processos e realizando juntos as respetivas diligências, tendo-se estabelecido entre ambos uma relação profissional e pessoal de proximidade, com partilha de posições e de aspetos da vida de cada um, que poderá ser abalada com a intervenção da requerente no processo tutelar e que podem gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. (…).

*

Vejamos:

Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.

O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser afastado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.

O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).

Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.

O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.

Efectivamente, não se discute se o juiz irá, ou não, manter a sua imparcialidade, mas visa-se a defesa contra uma suspeita, ou seja, evitar que sobre a decisão que venha a proferir, recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.

A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.

O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de justiça.

Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.

Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.

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No caso em apreço, a Sra. Juíza vem invocar que o requerido dos autos é Procurador da República a exercer funções no Juízo onde a requerente exerce funções, trabalhando quotidianamente juntos e tendo-se estabelecido relação, entre ambos, de proximidade profissional e pessoal.

Ora, não se coloca em causa o dever de objetividade e distanciamento inerentes ao ato de julgar, sendo a postura de um juiz sempre a de cumprir a lei, com rigor, imparcialidade e retidão, mas, atentas as circunstâncias referenciadas, mostra-se objetivamente evidente o seu não distanciamento relativamente à situação dos autos, uma vez que está em causa uma relação proximidade pessoal e profissional, que ocorre desde 2019, entre a Sra. Juíza e o requerido, que é Procurador da República no juízo onde aquela exerce funções.

Não se coloca somente a questão do contacto pessoal ou social, pois, um Juiz é um cidadão como qualquer outro, podendo conviver e integrar-se na sociedade.

Aqui releva também, a relação quotidiana e de proximidade estabelecida entre a Sra. Juíza e o requerido.

O processo em causa tem natureza tutelar, estando em causa o incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais pelo requerido.

Não seria só a imparcialidade da Sra. Juíza que ficaria em causa, caso se mantivesse nos autos, mas também, a desconfiança sobre si, relativamente aos restantes sujeitos processuais, ou seja, o poder gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões.

Tudo tem de se pautar pela transparência e com o maior distanciamento.

Quer do ponto de vista subjetivo quer objetivo, a situação narrada é suscetível de causar perturbação, descrença na Justiça e dúvidas sobre a imparcialidade do Juiz.

Os pedidos de escusa, pressupõem situações excecionais, o que é o caso.

Assim e sem mais considerandos, entendo existir circunstância ponderosa que justifica que a Sra. Juíza seja dispensada de intervir no processo.

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Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção da Sra. Juíza “A” no identificado processo.

Sem custas.

Notifique.

Lisboa, 01-03-2024,

Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente com poderes delegados).